VII. O discurso e o ser do homem
Pode-se notar que estes quatro segmentos teóricos
- (análises da finitude,
- da repetição empírico-transcendental,
- do impensado
- e da origem)
mantêm certa relação com os quatro domínios subordinados que, juntos, constituíam, na época clássica, a teoria geral da linguagem. Relação que é, à primeira vista, de semelhança e de simetria.
Deve-se lembrar que
- a teoria do verbo explicava como a linguagem podia transbordar para fora de si mesma e afirmar o ser – isto, num movimento que assegurava, em troca, o ser mesmo da linguagem, pois que esta só podia instaurar-se e abrir seu espaço lá onde já houvesse, ao menos sob uma forma secreta, o verbo “ser”;
- a análise da finitude explica, do mesmo modo, como o ser do homem se acha determinado por positividades que lhe são exteriores e que o ligam à espessura das coisas, e como, em troca, é o ser finito que dá a toda determinação a possibilidade de aparecer na sua verdade positiva.
Enquanto
- a teoria da articulação mostrava de que maneira se podia fazer, num só movimento, o recorte das palavras e das coisas que elas representam,
- a análise da reduplicação empírico-transcendental mostra como se correspondem, numa oscilação indefinida, o que é dado na experiência e o que torna a experiência possível.
- A procura das designações primeiras da linguagem fazia brotar, no coração mais silencioso das palavras, das sílabas, dos próprios sons, uma representação adormecida que formava como que sua alma esquecida (e que era preciso fazer vir à luz, fazer falar e cantar novamente, para uma justeza maior do pensamento, para um mais maravilhoso poder da poesia);
- é de um modo análogo que, para a reflexão moderna, a espessura inerte do impensado é sempre habitada, de certa maneira, por um cogito e que esse pensamento adormecido no que não é pensamento deve ser novamente animado e dirigido à soberania do “eu penso”.
Enfim, havia na reflexão clássica sobre a linguagem uma teoria da derivação:
- ela mostrava como a linguagem, desde o início de sua história e talvez no instante de sua origem, no ponto mesmo em que ela se punha a falar, deslizava em seu próprio espaço, girava sobre si mesma, desviando-se de sua representação primeira, e só estabelecia suas palavras, mesmo as mais antigas, quando já desenroladas ao longo das figuras da retórica;
- a essa análise corresponde o esforço para pensar uma origem que já está sempre esquivada, para avançar nessa direção em que o ser do homem é sempre mantido em relação a si mesmo num afastamento e numa distância que o constituem.
Mas esse jogo de correspondências não deve iludir.
Não se deve imaginar que a análise clássica do discurso se tenha prosseguido sem modificação através dos tempos, aplicando-se apenas a um novo objeto; que a força de algum peso histórico a tenha mantido em sua identidade, apesar de tantas mutações vizinhas.
De fato, os quatro segmentos teóricos que desenhavam o espaço da gramática geral não se conservaram: dissociaram-se, mudaram de função e de nível, modificaram todo o seu domínio de validade quando, no final do século XVIII, a teoria da representação desapareceu.
Durante a idade clássica, a gramática geral tinha por função mostrar como, no interior da cadeia sucessiva das representações, podia introduzir-se uma linguagem que, mesmo manifestando-se na linha simples e absolutamente tênue do discurso,
- supunha formas de simultaneidade (afirmação de existências e de coexistências;
- delimitação de coisas representadas e formação de generalidades;
- relação originária e indelével entre palavras e coisas;
- deslocamento de palavras em seu espaço retórico).
Ao contrário, a análise do modo de ser do homem, tal como se desenvolveu desde o século XIX, não se aloja no interior de uma teoria da representação; sua tarefa é, muito pelo contrário,
- mostrar como é possível que as coisas em geral sejam dadas à representação, em que condições, sobre que solo, entre que limites elas podem aparecer numa positividade mais profunda do que os modos diversos da percepção;
- e o que então se descobre nessa coexistência do homem e das coisas, através do grande desdobramento espacial aberto pela representação, é a finitude radical do homem, a dispersão que, a um tempo, o afasta da origem e lha promete, a distância incontornável do tempo.
A analítica do homem não retoma, tal como fora constituída alhures e como a tradição lha negou, a análise do discurso.
A presença ou ausência de uma teoria da representação, mais exatamente, o caráter primeiro ou a posição derivada dessa teoria modifica inteiramente o equilíbrio do sistema.
Enquanto a representação é evidente, como elemento geral do pensamento, a teoria do discurso vale, ao mesmo tempo e num só movimento, como fundamento de toda gramática possível e como teoria do conhecimento.
Mas, desde que desaparece o primado da representação, então a teoria do discurso se dissocia, e pode-se-lhe reencontrar a forma desencamada e metamorfoseada em dois níveis.
No nível empírico, os quatro segmentos constitutivos se reencontram, mas a função que exerciam é inteiramente invertida:
- a antiga análise do privilégio do verbo, do seu poder de fazer sair o discurso de si mesmo e de enraizá-lo no ser da representação,
- foi substituída pela análise de uma estrutura gramatical interna que é imanente a cada língua e a constitui como um ser autônomo, portanto voltado sobre si mesmo;
do mesmo modo,
- a teoria das flexões, a procura das leis de mutação própria das palavras substituem
- a análise da articulação comum às palavras e às coisas;
- a teoria do radical substituiu
- a análise da raiz representativa;
- enfim, descobriu-se o parentesco lateral das línguas
- lá onde se buscava a continuidade sem fronteira das derivações.
Em outros termos,
- tudo o que havia funcionado na dimensão da relação entre as coisas (tais como são representadas) e das palavras (com seu valor representativo)
- acha-se retomado no interior da linguagem e incumbido de assegurar-lhe a legalidade interna.
No nível dos fundamentos, reencontram-se ainda os quatro segmentos da teoria do discurso: como na idade clássica, eles servem de fato, nessa analítica nova do ser humano, para manifestar a relação com as coisas; mas, desta feita, a modificação é inversa à precedente; não se trata mais de situá-los num espaço interior à linguagem, mas de liberá-los do domínio da representação, no interior do qual eram assumidos, e de fazê-los atuar nessa dimensão da exterioridade em que o homem aparece como finito, determinado, enredado na espessura daquilo que ele não pensa e submetido, no seu ser mesmo, à dispersão do tempo.
A análise clássica do discurso, a partir do momento em que não estava mais em continuidade com uma teoria da representação, achou-se como que fendida em duas:
- por um lado, ela investiu-se num conhecimento empírico das formas gramaticais;
- e, por outro, tornou-se uma analítica da finitude;
mas nenhuma dessas duas translações pôde operar-se sem uma inversão total do funcionamento.
Pode-se compreender agora, e até o fundo, a incompatibilidade que reina entre
- a existência do discurso clássico (apoiada na evidência não questionada da representação)
- e a existência do homem, tal como é dada ao pensamento moderno (e com a reflexão antropológica que ela autoriza):
alguma coisa como uma analítica do modo de ser do homem só se tornou possível uma vez dissociada, transferida e invertida a análise do discurso representativo.
Com isso adivinha-se também que ameaça faz pesar sobre o ser do homem assim definido e colocado o reaparecimento contemporâneo da linguagem no enigma de sua unidade e de seu ser.
Será nossa tarefa no porvir a de avançarmos em direção a um modo de pensamento, desconhecido até o presente em nossa cultura, e que permitiria refletir ao mesmo tempo, sem descontinuidade nem contradição, sobre o ser do homem e sobre o ser da linguagem?
E, nesse caso, é preciso conjurar, com as maiores precauções, tudo o que possa constituir retorno ingênuo à teoria clássica do discurso (retorno cuja tentação, é preciso dizê-lo, é tanto maior quanto mais estamos desarmados para pensar o ser cintilante mas abrupto da linguagem, ao passo que a velha teoria da representação está aí, toda constituída, a oferecer-nos um lugar onde esse ser poderá alojar-se e dissolver-se num puro funcionamento).
Mas pode ser também que esteja para sempre excluído o direito de pensar ao mesmo tempo o ser da linguagem e o ser do homem; pode ser que haja aí como que uma indelével abertura (aquela em que justamente existimos e falamos), de tal forma que seria preciso rejeitar como quimera toda antropologia que pretendesse tratar do ser da linguagem, toda concepção da linguagem ou da significação que quisesse alcançar, manifestar e liberar o ser próprio do homem.
É talvez aí que se enraíza a mais importante opção filosófica de nossa época. Opção que só se pode fazer na experiência mesma de uma reflexão futura. Pois nada nos pode dizer, de antemão, de que lado a via está aberta.
A única coisa que, por ora, sabemos com toda a certeza é que jamais, na cultura ocidental, o ser do homem e o ser da linguagem puderam coexistir e se articular um com o outro. Sua incompatibilidade foi um dos traços fundamentais de nosso pensamento.
A mutação da análise do Discurso numa analítica da finitude tem, contudo, outra conseqüência.
A teoria clássica do signo e da palavra devia mostrar como as representações, que se sucediam numa cadeia tão estreita e tão cerrada que as distinções aí não apareciam, e que eram, em suma, todas semelhantes, podiam estender-se num quadro permanente de diferenças estáveis e de identidades limitadas; tratava-se de uma gênese da Diferença a partir da monotonia secretamente variada do Semelhante.
A analítica da finitude tem um papel exatamente inverso:
- mostrando que o homem é determinado, trata-se, para ela, de manifestar que o fundamento dessas determinações é o ser mesmo do homem em seus limites radicais;
- ela deve manifestar também que os conteúdos da experiência são já suas próprias condições,
- que o pensamento frequenta previamente o impensado que lhes escapa e cuja reapreensão é sua tarefa de sempre;
- ela mostra como essa origem de que jamais o homem é contemporâneo lhe é a um tempo retirada e dada ao modo da iminência;
- em suma, trata-se sempre, para ela, de mostrar como o Outro, o Longínquo é também o mais Próximo e o Mesmo.
Passou-se assim
- de uma reflexão sobre a ordem das Diferenças (com a análise que ela supõe e essa ontologia do contínuo, essa exigência de um ser pleno, sem ruptura, desdobrado em sua perfeição, que supõem uma metafísica)
- a um pensamento do Mesmo, sempre a ser conquistado ao que lhe é contraditório: o que implica (além da ética de que se falou) uma dialética e essa forma de ontologia que, por não ter necessidade do contínuo, por não precisar refletir o ser senão nas suas formas limitadas ou no afastamento de sua distância, pode e deve dispensar a metafísica.
Um jogo dialético e uma ontologia sem metafisica se interpelam e se correspondem mutuamente através do pensamento moderno e ao longo de toda a sua história: pois é um pensamento que não se encaminha mais em direção à formação jamais acabada da Diferença, mas ao desvelamento do Mesmo sempre por realizar.
Ora, tal desvelamento não se dá sem o aparecimento simultâneo do Duplo, e essa distância, ínfima mas invencível, que reside no “e”
- do recuo e do retorno,
- do pensamento e do impensado,
- do empírico e do transcendental,
- do que é da ordem da positividade e do que é da ordem dos fundamentos.
A identidade separada de si mesma numa distância que lhe é, em certo sentido, interior, mas que, em outro, a constitui, a repetição que oferece o idêntico mas na forma do afastamento estão, sem dúvida, no coração desse pensamento moderno ao qual, apressadamente, se atribui a descoberta do tempo.
De fato, se se prestar um pouco mais de atenção, percebe-se que
- o pensamento clássico reportava a possibilidade de espacializar as coisas em um quadro a essa propriedade da pura sucessão representativa de se interpelar a partir de si, de se reduplicar e de constituir uma simultaneidade a partir de um tempo contínuo: o tempo fundava o espaço.
- No pensamento moderno, o que se revela no fundamento da história das coisas e da historicidade própria ao homem é a distância que escava o Mesmo, é o afastamento que o dispersa e o reúne nos dois extremos dele mesmo. É essa profunda espacialidade que permite ao pensamento moderno sempre pensar o tempo – conhecê-lo como sucessão, prometê-lo a si mesmo como acabamento, origem ou retomo.
As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
capítulo IX – O homem e seus duplos;
tópico VII. O discurso e o ser do homem.