V. O "cogito" e o impensado
Se efetivamente
- o homem é, no mundo, o lugar de uma reduplicação empírico-transcendental,
- se deve ser essa figura paradoxal em que os conteúdos empíricos do conhecimento liberam, mas a partir de si, as condições que os tornaram possíveis,
o homem não se pode dar na transparência imediata e soberana de um cogito; mas tampouco pode ele residir na inércia objetiva daquilo que, por direito, não acede e jamais acederá à consciência de si.
O homem é um modo de ser tal que nele se funda esta dimensão sempre aberta, jamais delimitada de uma vez por todas, mas indefinidamente percorrida, que vai,
- de uma parte dele mesmo que ele não reflete num cogito,
- ao ato de pensamento pelo qual a capta;
e que, inversamente, vai
- desta pura captação
- ao atravancamento empírico, à ascensão desordenada dos conteúdos, ao desvio das experiências que escapam a si mesmas, a todo o horizonte silencioso do que se dá na extensão movediça do não-pensamento.
Porque é duplo empírico-transcendental, o homem é também o lugar do desconhecimento – deste desconhecimento que expõe sempre seu pensamento a ser transbordado por seu ser próprio e que lhe permite, ao mesmo tempo, se interpelar a partir do que lhe escapa.
É essa a razão pela qual a reflexão transcendental, sob sua forma moderna,
- não mais encontra o ponto de sua necessidade, como em Kant, na existência de uma ciência da natureza (à qual se opõem o combate perpétuo e a incerteza dos filósofos),
- mas na existência muda, prestes porém a falar e como que toda atravessada secretamente por um discurso virtual, desse não-conhecido a partir do qual o homem é incessantemente chamado ao conhecimento de si.
A questão não é mais:
- como pode ocorrer que a experiência da natureza dê lugar a juízos necessários?
Mas sim:
- como pode ocorrer que o homem pense o que ele não pensa, habite o que lhe escapa sob a forma de uma ocupação muda, anime, por uma espécie de movimento rijo, essa figura dele mesmo que se lhe apresenta sob a forma de uma exterioridade obstinada?
- Como pode o homem ser essa vida cuja rede, cujas pulsações, cuja força encoberta transbordam indefinidamente a experiência que dela lhe é imediatamente dada?
- Como pode ele ser esse trabalho, cujas exigências e cujas leis se lhe impõem como um rigor estranho?
- Como pode ele ser o sujeito de uma linguagem que, desde milênios, se formou sem ele, cujo sistema lhe escapa, cujo sentido dorme um sono quase invencível nas palavras que, por um instante, ele faz cintilar por seu discurso, e no interior da qual ele é, desde o início, obrigado a alojar sua fala e seu pensamento, como se estes nada mais fizessem senão animar por algum tempo um segmento nessa trama de possibilidades inumeráveis?
– Quádruplo deslocamento em relação à questão kantiana, pois que se trata
- não mais da verdade, mas do ser;
- não mais da natureza, mas do homem;
- não mais da possibilidade de um conhecimento, mas daquela de um desconhecimento primeiro;
- não mais do caráter não-fundado das teorias filosóficas em face da ciência, mas da retomada, numa consciência filosófica clara, de todo esse domínio de experiências não-fundadas em que o homem não se reconhece.
A partir desse deslocamento da questão transcendental, o pensamento contemporâneo não podia evitar a reativação do tema do cogito.
Não fora também a partir do erro, da ilusão, do sonho e da loucura, de todas as experiências do pensamento não-fundado que Descartes descobrira a impossibilidade de elas não serem pensamentos – de tal modo que o pensamento do mal-pensado, do não-verdadeiro, do quimérico, do puramente imaginário, aparecesse como lugar de possibilidade de todas essas experiências e primeira evidência irrecusável?
Mas o cogito moderno é tão diferente do de Descartes quanto nossa reflexão transcendental está afastada da análise kantiana.
É que, para Descartes, tratava-se de trazer à luz o pensamento como a forma mais geral de todos esses pensamentos que são o erro ou a ilusão, de maneira a conjurar-lhes o perigo, com o risco de reencontrá-los no final de sua tentativa, de explicá-los e de propor então o método para evitá-los.
No cogito moderno, trata-se, ao contrário,
- de deixar valer, na sua maior dimensão, a distância que, a um tempo, separa e religa o pensamento presente a si, com aquilo que, do pensamento, se enraíza no não-pensado;
- ele precisa (e é por isso que ele é menos uma evidência descoberta que uma tarefa incessante a ser sempre retomada) percorrer, reduplicar e reativar, sob uma forma explícita, a articulação do pensamento com o que nele, em tomo dele, debaixo dele, não é pensamento, mas que nem por isso lhe é estranho, segundo uma irredutível, uma intransponível exterioridade.
Sob essa forma, o cogito
- não será, portanto, a súbita descoberta iluminadora de que todo o pensamento é pensado,
- mas a interrogação sempre recomeçada para saber como o pensamento habita fora daqui, e, no entanto, o mais próximo de si mesmo, como pode ele ser sob as espécies do não-pensante.
Ele não reconduz todo o ser das coisas ao pensamento sem ramificar o ser do pensamento até na nervura inerte do que não pensa.
Esse duplo movimento próprio ao cogito moderno explica por que nele o “Eu penso” não conduz à evidência do “Eu sou”; de fato, assim que o “Eu penso” se mostrou imbricado em toda uma espessura em que ele está quase presente, que ele anima mas à maneira ambígua de uma vigília sonolenta, não é mais possível fazer dele decorrer a afirmação de que “Eu sou”: posso eu dizer, com efeito, que sou essa linguagem que falo e na qual meu pensamento desliza a ponto de nela encontrar o sistema de todas as suas possibilidades próprias, mas que, no entanto, só existe sob o peso de sedimentações que ele jamais será capaz de atualizar inteiramente?
Posso eu dizer que sou este trabalho que faço com minhas mãos, mas que me escapa não somente quando o concluo, mas antes mesmo de o haver encetado?
Posso eu dizer que sou essa vida que sinto no fundo de mim, mas que me envolve tanto pelo tempo formidável que ela impulsiona consigo e que me eleva por um instante sobre sua crista, quanto pelo tempo iminente que me prescreve minha morte?
Posso dizer tanto que sou quanto que não sou tudo isso;
- o cogito não conduz a uma afirmação de ser, mas abre justamente para toda uma série de interrogações em que o ser está em questão:
- que é preciso eu ser, eu que penso e que sou meu pensamento,
- para que eu seja o que não penso, para que meu pensamento seja o que não sou?
- Que é, pois, esse ser que cintila e, por assim dizer, tremeluz na abertura do cogito, mas não é dado soberanamente nele e por ele?
- Qual é, pois, a relação e a difícil interdependência entre o ser e o pensamento?
- Que é o ser do homem, e como pode ocorrer que esse ser, que se poderia tão facilmente caracterizar pelo fato de que “ele tem pensamento” e que talvez seja o único a possuí-lo, tenha uma relação indelével e fundamental com o impensado?
Instaura-se uma forma de reflexão,
bastante afastada do cartesianismo
e da análise kantiana,
em que está em questão,
pela primeira vez,
o ser do homem,
nessa dimensão segundo a qual
o pensamento
se dirige ao impensado
e com ele se articula.
Isso tem duas conseqüências.
- A primeira é negativa e de ordem puramente histórica.
Pode parecer que a fenomenologia juntou, um ao outro,
- o tema cartesiano do cogito
- e o motivo transcendental que Kant extraíra da crítica de Hume;
Husserl teria assim reanimado a vocação mais profunda da ratio ocidental, curvando-a sobre si mesma numa reflexão que seria radicalização da filosofia pura e fundamento da possibilidade de sua própria história.
Na verdade, Husserl só pôde operar essa junção na medida em que a análise transcendental mudara seu ponto de aplicação
- (este é transportado da possibilidade de uma ciência da natureza
- para a possibilidade que o homem tem de se pensar),
e em que o cogito modificara sua função
- (esta não é mais a de conduzir a uma existência apodítica, a partir de um pensamento que se afirma por toda a parte em que ele pensa,
- mas a de mostrar como pode o pensamento escapar a si mesmo e conduzir assim a uma interrogação múltipla e proliferante sobre o ser).
A fenomenologia é, portanto,
- muito menos a retomada de uma velha destinação racional do Ocidente,
- que a atestação, bem sensível e ajustada, da grande ruptura que se produziu na epistémê moderna, na curva do século XVIII para o século XIX.
Se a alguma coisa está ligada
- é à descoberta da vida, do trabalho e da linguagem;
- é também a essa figura nova que, sob o velho nome de homem, surgiu não há ainda dois séculos;
- é à interrogação sobre o modo de ser do homem e sobre sua relação com o impensado.
É por isso que a fenomenologia – ainda que se tenha esboçado primeiramente através do anti-psicologismo, ou, antes, na medida mesma em que, contra este, tenha feito ressurgir o problema do a priori e o motivo transcendental jamais pôde conjurar o insidioso parentesco, a vizinhança ao mesmo tempo prometedora e ameaçante com as análises empíricas sobre o homem; é por isso também que, embora se tenha inaugurado por uma redução ao cogito, ela foi sempre conduzida a questões, à questão ontológica.
Sob nossos olhos, o projeto fenomenológico não cessa de se resolver numa descrição do vivido que, queira ou não, é empírica, e uma ontologia do impensado que põe fora de circuito a primazia do “Eu penso”.
- A outra conseqüência é positiva.
Concerne à relação do homem com o impensado, ou, mais exatamente, ao seu aparecimento gêmeo na cultura ocidental.
Tem-se facilmente a impressão de que, a partir do momento em que o homem se constituiu como uma figura positiva no campo do saber, o velho privilégio do conhecimento reflexivo, do pensamento que se pensa a si mesmo, não podia deixar de desaparecer; mas que era, por isso mesmo, dado a um pensamento objetivo percorrer o homem por inteiro – com o risco de nele descobrir o que precisamente jamais podia ser dado à sua reflexão nem mesmo à sua consciência:
- mecanismos obscuros,
- determinações sem figura,
- toda uma paisagem de sombra a que, direta ou indiretamente, se chamou inconsciente.
Não é o inconsciente aquilo que se dá necessariamente ao pensamento científico que o homem aplica a si mesmo quando pára de se pensar na forma da reflexão?
De fato, o inconsciente e, de maneira geral, as formas do impensado, não foram a recompensa oferecida a um saber positivo do homem.
O homem e o impensado são, ao nível arqueológico, contemporâneos.
O homem não pôde desenhar-se como uma configuração na epistémê, sem que o pensamento simultaneamente descobrisse, ao mesmo tempo em si e fora de si, nas suas margens mas igualmente entrecruzados com sua própria trama, uma parte de noite, uma espessura aparentemente inerte em que ele está imbricado, um impensado que ele contém de ponta a ponta, mas em que do mesmo modo se acha preso.
O impensado (qualquer que seja o nome que se lhe dê) não está alojado no homem como uma natureza encarquilhada ou uma história que nele se houvesse estratificado, mas é, em relação ao homem, o Outro: o Outro, fraterno e gêmeo, nascido não dele, nem nele, mas ao lado e ao mesmo tempo, numa idêntica novidade, numa dualidade sem apelo.
Esse terreno obscuro, que facilmente se interpreta como uma região abissal na natureza do homem, ou como uma fortaleza singularmente trancafiada de sua história, lhe está ligado de outro modo; é-lhe, ao mesmo tempo, exterior e indispensável: um pouco a sombra projetada do homem surgindo no saber; um pouco a mancha cega a partir da qual é possível conhecê-lo.
Em todo o caso, o impensado serviu ao homem de acompanhamento surdo e ininterrupto desde o século XIX. Como, em suma, ele não passava de um duplo insistente, jamais foi refletido por ele próprio de um modo autônomo; daquilo de que ele era o Outro e a sombra, recebeu a forma complementar e o nome invertido;
- foi o An sich em face do Für sich na fenomenologia hegeliana;
- foi o Unbewusste para Schopenhauer;
- foi o homem alienado para Marx;
- nas análises de Husserl, o implícito, o inatual, o sedimentado, o não-efetuado:
de todo modo, o inesgotável duplo que se oferece ao saber refletido como a projeção confusa do que é o homem na sua verdade, mas que desempenha igualmente o papel de base prévia a partir da qual o homem deve reunir-se a si mesmo e se interpelar até sua verdade.
É que esse duplo, por próximo que seja, é estranho, e o papel do pensamento, sua iniciativa própria, será aproximá-lo o mais perto possível de si mesmo;
- todo o pensamento moderno é atravessado pela lei de pensar o impensado –
- de refletir, na forma do Para-si, os conteúdos do Em-si,
- de desalienar o homem reconciliando-o com sua própria essência,
- de explicitar o horizonte que dá às experiências seu pano de fundo de evidência imediata e desarmada,
- de levantar o véu do Inconsciente,
- de absorver-se no seu silêncio
- ou de pôr-se à escuta de seu murmúrio indefinido.
Na experiência moderna, a possibilidade de instaurar o homem num saber, o simples aparecimento dessa figura nova no campo da epistémê, implicam um imperativo que importuna interiormente o pensamento;
- pouco importa que ele seja cunhado sob as formas de uma moral, de uma política, de um humanismo, de um dever de se incumbir do destino ocidental,
- ou da pura e simples consciência de realizar na história uma tarefa de funcionário;
o essencial é que o pensamento seja, por si mesmo e na espessura de seu trabalho, ao mesmo tempo
- saber e modificação do que ele sabe,
- reflexão e transformação do modo de ser daquilo sobre o que ele reflete.
Ele põe em movimento, desde logo, aquilo que toca: não pode descobrir o impensado, ou ao menos ir em sua direção, sem logo aproximá-lo de si – ou talvez ainda, sem afastá-lo, sem que o ser do homem, em todo o caso, uma vez que ele se desenrola nessa distância, não se ache, por isso mesmo, alterado.
Há aí alguma coisa profundamente ligada à nossa modernidade; afora as morais religiosas, o Ocidente só conheceu, sem dúvida, duas formas de ética:
- a antiga (sob a forma do estoicismo ou do epicurismo) articulava-se com a ordem do mundo e, descobrindo sua lei, podia deduzir o princípio de uma sabedoria ou uma concepção da cidade: mesmo o pensamento político do século XVIII pertence ainda a essa forma geral;
- a moderna, em contrapartida, não formula nenhuma moral, na medida em que todo imperativo está alojado no interior do pensamento e de seu movimento para captar o impensado; é a reflexão, é a tomada de consciência, é a elucidação do silencioso, a palavra restituída ao que é mudo, o advento à luz dessa parte de sombra que furta o homem a si mesmo, é a reanimação do inerte, é tudo isso que constitui, por si só, o conteúdo e a forma da ética.
O pensamento moderno jamais pôde, na verdade, propor uma moral: mas a razão disso não está em ser ele pura especulação; muito ao contrário, desde o início e na sua própria espessura, ele é um certo modo de ação. Deixemos falar aqueles que incitam o pensamento a sair de seu retiro e a formular suas escolhas; deixemos agir aqueles que querem, sem qualquer promessa e na ausência de virtude, constituir uma moral.
Para o pensamento moderno, não há moral possível; pois, desde o século XIX, o pensamento já “saiu” de si mesmo em seu ser próprio, não é mais teoria; desde que ele pensa, fere ou reconcilia, aproxima ou afasta, rompe, dissocia, ata ou reata, não pode impedir-se de liberar e de submeter.
Antes mesmo de prescrever, de esforçar um futuro, de dizer o que é preciso fazer, antes mesmo de exortar ou somente alertar, o pensamento, ao nível de sua existência, desde sua forma mais matinal, é, em si mesmo, uma ação – um ato perigoso. Sade, Nietzsche, Artaud e Bataille o souberam, por todos aqueles que o quiseram ignorar; mas é certo também que Regel, Marx e Freud o sabiam.
Pode-se dizer que o ignoram, em seu profundo simplismo, aqueles que afirmam que não há filosofia sem escolha política, que todo pensamento é “progressista” ou “reacionário’?
Sua inépcia está em crer que todo pensamento “exprime” a ideologia de uma classe; sua involuntária profundidade está em que apontam com o dedo o modo de ser moderno do pensamento.
Superficialmente, pode-se dizer que o conhecimento do homem, diferentemente das ciências da natureza, está sempre ligado, mesmo sob sua forma mais indecisa, a éticas ou a políticas; mais profundamente, o pensamento moderno avança naquela direção em que o outro do homem deve tomar-se o Mesmo que ele.
As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
capítulo IX – O homem e seus duplos;
tópico V. O cogito e o impensado