III. Os três modelos

Assim, estes três pares,
- função e norma,
- conflito e regra,
- significação e sistema,
cobrem, por completo, o domínio inteiro do conhecimento do homem.
Numa primeira abordagem, pode-se dizer que o domínio das ciências humanas é coberto por três “ciências” – ou, antes, por três regiões epistemológicas, todas subdivididas no interior de si mesmas e todas entrecruzadas umas com as outras; essas regiões são definidas pela tríplice relação das ciências humanas em geral com a biologia, a economia, a filologia.
Poder-se-ia admitir assim que
- a “região psicológica” encontrou seu lugar lá onde o ser vivo, no prolongamento de suas funções, de seus esquemas neuromotores, de suas regulações fisiológicas, mas também na suspensão que os interrompe e os limita, se abre à possibilidade da representação;
- do mesmo modo, a “região sociológica” teria encontrado seu lugar lá onde o indivíduo que trabalha, produz e consome se confere a representação da sociedade em que se exerce essa atividade, dos grupos e dos indivíduos entre os quais ela se reparte, dos imperativos, das sanções, dos ritos, das festas e das crenças mediante os quais ela é sustentada ou regulada;
- enfim naquela região onde reinam as leis e as formas de uma linguagem, mas onde, entretanto, elas permanecem à margem de si mesmas, permitindo ao homem fazer aí passar o jogo de suas representações, lá nascem o estudo das literaturas e dos mitos, a análise de todas as manifestações orais e de todos os documentos escritos, em suma, a análise dos vestígios verbais que uma cultura ou um indivíduo podem deixar de si mesmos.
Essa repartição, ainda que muito sumária, não é certamente demasiado inexata. Ela deixa, porém, na íntegra, dois problemas fundamentais:
- um concerne à forma de positividade que é própria às ciências humanas (os conceitos em torno dos quais elas se organizam, o tipo de racionalidade ao qual se referem e pelo qual buscam constituir-se como saber);
- outro, à sua relação com a representação (e a este fato paradoxal de que, embora tendo lugar somente onde há representação, é a mecanismos, formas, processos inconscientes, é, em todo o caso, aos limites exteriores da consciência que elas se dirigem).
São bem conhecidos os debates a que deu lugar a busca de uma positividade específica no campo das ciências humanas: análise genética ou estrutural? explicação ou compreensão? recurso ao “inferior” ou manutenção da decifração ao nível da leitura?
Na verdade, todas essas discussões teóricas não nasceram e não prosseguiram ao longo de toda a história das ciências humanas porque estas teriam que lidar com o homem como com um objeto tão complexo que não se teria podido encontrar em sua direção um modo de acesso único, ou que se teria sido constrangido a utilizar vários alternadamente. De fato, essas discussões só puderam existir na medida em que a positividade das ciências humanas se apóia simultaneamente na transferência de três modelos distintos. Essa transferência não é, para as ciências humanas, um fenômeno marginal (uma espécie de estrutura de apoio, de desvio mediante uma inteligibilidade exterior, de confirmação no campo das ciências já constituídas); não é também um episódio limitado de sua história (uma crise de formação numa época em que eram ainda tão novas, que não podiam fixar por si próprias seus conceitos e suas leis).
Trata-se de um fato indelével, que está ligado, para sempre, à sua disposição própria no espaço epistemológico. Convém, com efeito, distinguir duas espécies de modelos utilizados pelas ciências humanas (pondo à parte os modelos de formalização).
- Houve, por um lado – e ainda há freqüentemente – conceitos que são transportados a partir de outro domínio do conhecimento e que, perdendo então toda eficácia operatória, não desempenham mais que um papel de imagem (as metáforas organicistas na sociologia do século XIX; as metáforas energéticas em Janet; as metáforas geométricas e dinâmicas em Lewin).
- Mas há também os modelos constituintes que não são, para as ciências humanas, técnicas de formalização nem simples meios para, com o menor esforço, imaginar processos; eles permitem formar conjuntos de fenômenos como tantos “objetos” para um saber possível; asseguram sua ligação na empiricidade, mas os oferecem à experiência já ligados entre si. Desempenham o papel de “categorias” no saber singular das ciências humanas.
Esses modelos constituintes são tomados de empréstimo aos três domínios da biologia, da economia e do estudo da linguagem.
- É na superfície de projeção da biologia que o homem aparece como um ser que tem funções – que recebe estímulos (fisiológicos, mas também sociais, interhumanos, culturais), que responde a eles, que se adapta, evolui, submete-se às exigências do meio, harmoniza-se com as modificações que ele impõe, busca apagar os desequilíbrios, age segundo regularidades, tem, em suma, condições de existência e a possibilidade de encontrar normas médias de ajustamento que lhe permitem exercer suas funções.
- Na superfície de projeção da economia, o homem aparece enquanto tem necessidades e desejos, enquanto busca satisfazê-Ios, enquanto, pois, tem interesses, visa a lucros, opõe-se a outros homens; em suma, ele aparece numa irredutível situação de conflito; a esses conflitos ele se esquiva, deles foge ou chega a dominá-los, a encontrar uma solução que apazigue, ao menos em um nível e por algum tempo, sua contradição; instaura um conjunto de regras que são, ao mesmo tempo, limitação e dilatação do conflito.
- Enfim, na superfície de projeção da linguagem, as condutas do homem aparecem como querendo dizer alguma coisa; seus menores gestos, até em seus mecanismos involuntários e até em seus malogros, têm um sentido; e tudo o que ele deposita em torno de si, em matéria de objetos, de ritos, de hábitos, de discurso, toda a esteira de rastros que deixa atrás de si constitui um conjunto coerente e um sistema de signos.
Assim, estes três pares,
– função e norma,
– conflito e regra,
– significação e sistema,
cobrem, por completo,
o domínio inteiro do conhecimento do homem.
Contudo, não se deve julgar que cada um desses pares de conceitos permanece localizado na superfície de projeção em que puderam nascer:
- a função e a norma não são conceitos psicológicos e exclusivamente tais;
- o conflito e a regra não têm uma aplicação limitada apenas ao domínio sociológico;
- a significação e o sistema não valem somente para os fenômenos mais ou menos aparentados à linguagem.
Todos esses conceitos são retomados no volume comum das ciências humanas, valem em cada uma das regiões que ele envolve: daí se segue ser freqüentemente difícil fixar os limites, não só entre os objetos, mas também entre os métodos próprios à psicologia, à sociologia, à análise das literaturas e dos mitos.
No entanto, pode-se dizer, de maneira global, que
- a psicologia é fundamentalmente um estudo do homem em termos de funções e de normas (funções e normas que se podem, de maneira secundária, interpretar a partir dos conflitos e das significações, das regras e dos sistemas);
- a sociologia é fundamentalmente um estudo do homem em termos de regras e de conflitos (mas estes podem ser interpretados, e somos constantemente levados a interpretá-los secundariamente, quer a partir das funções, como se fossem indivíduos organicamente ligados a si mesmos, quer a partir de sistemas de significações, como se fossem textos escritos ou falados);
- enfim, o estudo das literaturas e dos mitos procede essencialmente de uma análise das significações e dos sistemas significantes, mas sabe-se bem que esta pode ser retomada em termos de coerência funcional ou de conflitos e de regras.
É assim que todas as ciências humanas se entrecruzam e podem sempre interpretar-se umas às outras, que suas fronteiras se apagam, que as disciplinas intermediárias e mistas se multiplicam indefinidamente, que seu objeto próprio acaba mesmo por dissolver-se. Mas, qualquer que seja a natureza da análise e o domínio a que ela se aplica, tem-se um critério formal para saber o que é do nível da psicologia, da sociologia ou da análise das linguagens: é a escolha do modelo fundamental e a posição dos modelos secundários que permitem saber em que momento se “psicologiza” ou se “sociologiza” no estudo das literaturas e dos mitos, em que momento se faz, em psicologia, decifração de textos ou análise sociológica.
Mas essa superposição de modelos não é um defeito de método. Só há defeito se os modelos não forem ordenados e explicitamente articulados uns com os outros. Sabe-se com que precisão admirável se pôde conduzir o estudo das mitologias indo-europeias utilizando, com base numa análise dos significantes e das significações, o modelo sociológico. Sabe-se, em contrapartida, a que trivialidades sincréticas conduziu o sempre medíocre empreendimento de fundar uma psicologia dita “clínica”. Quer seja ele fundado e dominado, quer se realize na confusão, esse entrecruzamento dos modelos constituintes explica as discussões dos métodos há pouco evocadas. Elas não têm sua origem e sua justificação numa complexidade por vezes contraditória que seria o caráter próprio do homem; mas, sim, no jogo de oposição que permite definir cada um dos três modelos em relação aos dois outros.
- Opor a gênese à estrutura é opor a função (em seu desenvolvimento, em suas operações progressivamente diversificadas, em suas adaptações adquiridas e equilibradas no tempo) ao sincronismo do conflito e da regra, da significação e do sistema;
- opor a análise pelo “inferior” à que se mantém ao nível de seu objeto é opor o conflito (como dado primeiro, arcaico, inscrito já nas necessidades fundamentais do homem) à função e à significação tais como se desdobram na sua realização própria;
- opor a compreensão à explicação é opor a técnica que permite decifrar um sentido a partir do sistema significante àquelas que permitem explicar um conflito com suas conseqüências, ou as formas e as deformações que pode assumir e sofrer uma função com seus órgãos.
Mas é preciso ir mais longe

Mas é preciso ir mais longe.
Sabe-se que, nas ciências humanas,
- o ponto de vista da descontinuidade (limiar entre a natureza e a cultura, irredutibilidade mútua dos equilíbrios ou das soluções encontradas por cada sociedade ou cada indivíduo, ausência de formas intermediárias, inexistência de um continuum dado no espaço ou no tempo)
- se opõe ao ponto de vista da continuidade.
A existência dessa oposição se explica pelo caráter bipolar dos modelos:
a análise em estilo de continuidade apóia-se
- na permanência das funções (que se encontra desde o fundo da vida numa identidade que autoriza e enraíza as adaptações sucessivas),
- no encadeamento dos conflitos (ainda que assumam formas diversas, seu ruído de fundo não cessa jamais),
- na trama das significações (que se retomam umas às outras e constituem como que a superfície de um discurso);
a análise das descontinuidades, ao contrário,
- procura antes fazer surgir a coerência interna dos sistemas significantes,
- a especificidade dos conjuntos de regras
- e o caráter de decisão que elas assumem em relação ao que deve ser regulado, a emergência da norma acima das oscilações funcionais.
Poder-se-ia talvez retraçar toda a história das ciências humanas desde o século XIX, a partir desses três modelos. Com efeito, eles cobriram todo o seu devir, pois que se pode seguir, há mais de um século, a dinastia de seus privilégios:
- primeiro, o reino do modelo biológico (o homem, sua psique, seu grupo, sua sociedade, a linguagem que ele fala existem, na época romântica, enquanto vivos e na medida em que de fato vivem; seu modo de ser é orgânico e é analisado em termos de função);
- depois vem o reino do modelo econômico (o homem e toda a sua atividade são o lugar de conflitos de que constituem, ao mesmo tempo, a expressão mais ou menos manifesta e a solução mais ou menos bem-sucedida);
- enfim – assim como Freud vem após Comte e Marx – começa o reino do modelo filológico.(quando se trata de interpretar e de descobrir o sentido oculto) e linguístico (quando se trata de estruturar e de trazer à luz o sistema significante).
Um amplo declive conduziu, pois, as ciências humanas de uma forma mais densa em modelos vivos a uma outra mais saturada de modelos tirados da linguagem.
Esse desvio, porém, foi duplicado por outro: aquele que fez recuar o primeiro termo de cada um dos pares constituintes (função, conflito, significação) e fez surgir com mais intensidade a importância do segundo (norma, regra, sistema): Goldstein, Mauss, Dumezil podem representar, quase igualmente, o momento em que se realizou a reversão em cada um dos modelos.
Uma tal reversão tem duas séries de conseqüências notáveis:
- enquanto o ponto de vista da função prevalecia sobre o da norma (enquanto não era a partir da norma e do interior da atividade que a estabelece que se tentava compreender a realização da função), era então preciso realmente separar de facto os funcionamentos normais daqueles que não o eram;
- admitia-se, assim, uma psicologia patológica bem ao lado da normal, mas para ser como que sua imagem invertida (daí a importância do esquema jacksoniano da desintegração em Ribot ou Janet);
- admitia-se também uma patologia das sociedades (Durkheim), das formas irracionais e quase mórbidas de crenças (Lévy-Brühl, Blondel);
- do mesmo modo, enquanto o ponto de vista do conflito prevalecia sobre o da regra, supunha-se que certos conflitos não podiam ser superados, que os indivíduos e as sociedades corriam o risco de neles soçobrar;
- enfim, enquanto o ponto de vista da significação prevalecia sobre o do sistema, separava-se o significante e o não-significante, admitia-se que em certos domínios do comportamento humano ou do espaço social havia sentido e que em outros não.
De maneira que as ciências humanas exerciam no seu próprio campo uma partilha essencial, estendiam-se sempre entre um pólo positivo e um pólo negativo, designavam sempre uma alteridade (e isso a partir da continuidade que elas analisavam).
Ao contrário,
- quando a análise foi efetuada do ponto de vista da norma, da regra e do sistema, cada conjunto recebeu de si mesmo sua própria coerência e sua própria validade, não foi mais possível falar,
- mesmo a propósito dos doentes, de “consciência mórbida”,
- mesmo a propósito de sociedades abandonadas pela história, de “mentalidades primitivas”,
- mesmo a propósito de narrativas absurdas, de lendas aparentemente sem coerência, de “discursos não-significantes”.
Tudo pode ser pensado na ordem do sistema, da regra e da norma.
Ao pluralizar-se – visto que os sistemas são isolados, que as regras formam conjuntos fechados e que as normas se estabelecem na sua autonomia – o campo das ciências humanas achou-se unificado: deixou, de imediato, de estar cindido segundo uma dicotomia de valores.
E se se lembrar que Freud, mais que qualquer outro, aproximou o conhecimento do homem de seu modelo filológico e linguístico, mas que foi também o primeiro a tentar apagar radicalmente a divisão entre o positivo e o negativo (o normal e o patológico, o compreensível e o incomunicável, o significante e o não-significante), compreende-se de que modo anuncia ele a passagem de uma análise em termos de funções, de conflitos e de significações para uma análise em termos de norma, de regras e de sistemas: e é assim que todo esse saber, em cujo interior a cultura ocidental se proveu, em um século, de uma certa imagem do homem, gira em tomo da obra de Freud, sem contudo sair de sua disposição fundamental.
Mas não é ainda aí – como se verá dentro em pouco – que está a importância mais decisiva da psicanálise. Em todo o caso, essa passagem para o ponto de vista da norma, da regra e do sistema nos aproxima de um problema que foi deixado em suspenso: o do papel da representação nas ciências humanas.
Já podia parecer bem contestável encerrar estas últimas (para opô-Ias à biologia, à economia, à filologia) no espaço da representação; não se deveria já estimar que uma função pode exercer-se, um conflito desenvolver suas conseqüências, uma significação impor sua inteligibilidade sem passar pelo momento de uma consciência explícita?
E agora não será preciso reconhecer que o que é específico
- da norma em relação à função que ela determina,
- da regra em relação ao conflito que ela rege,
- do sistema em relação à significação que ele torna possível
está precisamente em não serem dados à consciência?
Às duas vertentes históricas já isoladas não será preciso acrescentar uma terceira e dizer que, desde o século XIX, as ciências humanas não cessaram de aproximar-se dessa região do inconsciente onde a instância da representação é mantida em suspenso?
De fato, a representação não é a consciência e nada prova que este trazer à luz elementos ou organizações que jamais são dados como tais à consciência faça as ciências humanas escaparem à lei da representação.
Com efeito,
- o papel do conceito de significação é mostrar de que modo alguma coisa como uma linguagem, ainda que não se trate de um discurso explícito e mesmo que não seja desdobrada para uma consciência, pode, em geral, ser dada à representação;
- o papel do conceito complementar de sistema é mostrar de que modo a significação jamais é primeira e contemporânea de si mesma, mas sempre segunda e como que derivada em relação a um sistema que a precede, que constitui sua origem positiva, e que se dá, pouco a pouco, por fragmentos e perfis através dela; em relação à consciência de uma significação, o sistema é, na verdade, sempre inconsciente, pois que já estava lá, antes dela, pois que é nele que ela se aloja e a partir dele que ela se efetua; mas isso porque ele fica sempre prometido a uma consciência futura que talvez jamais o totalizará. Em outras palavras, o par significação-sistema é o que assegura, a um tempo, a representabilidade da linguagem (como texto ou estrutura analisados pela filologia e pela linguística) e a presença próxima mas recuada da origem (tal como é manifestada como modo de ser do homem pela analítica da finitude).
Da mesma forma,
- a noção de conflito mostra de que modo a necessidade, o desejo ou o interesse, ainda que não sejam dados à consciência que os experimenta, podem tomar forma na representação; e o papel do conceito inverso de regra é mostrar de que modo a violência do conflito, a insistência aparentemente selvagem da necessidade, o infinito sem lei do desejo estão, de fato, já organizados por um impensado que não só lhes prescreve sua regra, mas também os torna possíveis a partir de uma regra. O par conflito-regra assegura a representabilidade da necessidade (dessa necessidade que a economia estuda como processo objetivo no trabalho e na produção) e a representabilidade desse impensado desvelado pela analítica da finitude.
- Enfim, o conceito de função tem por papel mostrar de que modo as estruturas da vida podem dar lugar à representação (ainda que não sejam conscientes), e o conceito de norma, de que modo a função se dá a si mesma suas próprias condições de possibilidades e os limites de seu exercício.
Compreende-se, assim, por que essas grandes categorias podem organizar todo o campo das ciências humanas: é que elas o atravessam de ponta a ponta, mantêm à distância, mas também reúnem as positividades empíricas da vida, do trabalho e da linguagem (a partir das quais o homem historicamente destacou-se como figura de um saber possível) às formas da finitude que caracterizam o modo de ser do homem (tal como se constituiu a partir do dia em que a representação cessou de definir o espaço geral do conhecimento).
Essas categorias não são, pois, simples conceitos empíricos de uma bem grande generalidade; elas são, na verdade, aquilo a partir do qual o homem pode oferecer-se a um saber possível; elas percorrem todo o campo de sua possibilidade e o articulam fortemente com as duas dimensões que o delimitam.
Mas isso não é tudo:
- elas permitem a dissociação, característica de todo saber contemporâneo sobre o homem, entre a consciência e a representação. Definem a maneira como as empiricidades podem ser dadas à representação, mas sob uma forma que não está presente à consciência (a função, o conflito, a significação constituem, realmente, a maneira como a vida, a necessidade, a linguagem são reduplicadas na representação, mas sob uma forma que pode ser perfeitamente inconsciente);
- por outro lado, definem a maneira como a finitude fundamental pode ser dada à representação sob uma forma positiva e empírica, mas não transparente à consciência ingênua (nem a norma, nem a regra, nem o sistema, são dados à experiência cotidiana: atravessam-na, dão lugar a consciências parciais, mas não podem ser inteiramente aclarados senão por um saber reflexivo).
De sorte que as ciências humanas só falam no elemento do representável, mas segundo uma dimensão consciente-inconsciente, tanto mais acentuada quanto se tente trazer à luz a ordem dos sistemas, das regras e das normas. Tudo se passa como se a dicotomia do normal e do patológico tendesse a esvaecer-se em proveito da bipolaridade da consciência e do inconsciente.
Não se deve, pois, esquecer que a importância cada vez mais acentuada do inconsciente em nada compromete o primado da representação. Essa primazia, no entanto, levanta um importante problema.
Agora que os saberes empíricos como os da vida, do trabalho e da linguagem escapam à sua lei, agora que se tenta definir fora de seu campo o modo de ser do homem, o que é a representação, senão um fenômeno de ordem empírica que se produz no homem e que se poderia analisar como tal? E se a representação se produz no homem, que diferença há entre ela e a consciência? Mas a representação não é simplesmente um objeto para as ciências humanas; ela é, como se acaba de ver, o próprio campo das ciências humanas, e em toda a sua extensão; é o suporte geral dessa forma de saber, aquilo a partir do qual ele é possível.
Daí duas conseqüências.
Uma é de ordem histórica: é o fato de que as ciências humanas, diferentemente das ciências empíricas desde o século XIX, e diferentemente do pensamento moderno, não puderam contornar o primado da representação; como todo o saber clássico, alojam-se nelas; porém não são, de modo algum, suas herdeiras ou sua continuação, pois toda a configuração do saber modificou-se, e elas só nasceram na medida em que apareceu, com o homem, um ser que não existia outrora no campo da epistémê.
Entretanto, pode-se compreender por que cada vez que há a intenção de servir-se das ciências humanas para filosofar, verter para o espaço do pensamento aquilo que se pôde aprender lá onde o homem estava em questão, falseia-se a filosofia do século XVIII, na qual, todavia, o homem não tinha lugar;
- é que, ao estender para além de seus limites o domínio do saber do homem, estende-se igualmente para além dele o reino da representação e se está a instalar-se de novo numa filosofia de tipo clássico.
A outra conseqüência é que as ciências humanas, ao tratarem do que é representação (sob uma forma consciente ou inconsciente) estão tratando como seu objeto o que é sua condição de possibilidade.
São, portanto, sempre animadas por uma espécie de mobilidade transcendental. Não cessam de exercer para consigo próprias uma retomada critica. Vão do que é dado à representação ao que torna possível a representação, mas que é ainda uma representação. De maneira que elas buscam menos, como as outras ciências, generalizar-se ou precisar-se do que desmistificar-se sem cessar: passar de uma evidência imediata e não-controlada a formas menos transparentes, porém mais fundamentais.
Esse percurso quase transcendental dá-se sempre sob a forma do desvelamento. É sempre desvelando que, por contragolpe, elas podem generalizar-se ou se refinar até pensarem os fenômenos individuais. No horizonte de toda ciência humana, há o projeto de reconduzir a consciência do homem às suas condições reais, de restituí-Ia aos conteúdos e às formas que a fizeram nascer e que nela se esquivam; é por isso que o problema do inconsciente – sua possibilidade, seu estatuto, seu modo de existência, os meios de conhecê-lo e de o trazer à luz – não é simplesmente um problema interior às ciências humanas e que elas encontrassem ao acaso de seus procedimentos; é um problema que é, afinal, co-extensivo à sua própria existência.
Uma sobrelevação transcendental revertida num desvelamento do não-consciente é constitutiva de todas as ciências do homem. Aí talvez se encontrasse o meio de demarcá-Ias no que elas têm de essencial. O que manifesta, em todo o caso, o específico das ciências humanas, vê-se bem que não é esse objeto privilegiado e singularmente nebuloso que é o homem. Pela simples razão de que não é o homem que as constitui e lhes oferece um domínio específico; mas, sim, é a disposição geral da epistémê que lhes dá lugar, as requer e as instaura – permitindo-lhes assim constituir o homem como seu objeto.
Dir-se-á, pois, que há “ciência humana” não onde quer que o homem esteja em questão, mas onde quer que se analisem, na dimensão própria do inconsciente, normas, regras, conjuntos significantes que desvelam à consciência as condições de suas formas e de seus conteúdos. Falar de “ciências do homem”, em qualquer outro caso, é puro e simples abuso de linguagem.
Avalia-se assim quão vãs e ociosas são todas as enfadonhas discussões para saber se tais conhecimentos podem ser ditos realmente científicos e a que condições deveriam sujeitar-se para vir a sê-lo. As “ciências do homem” fazem parte da epistémê moderna como a química ou a medicina ou alguma outra ciência; ou, ainda, como a gramática e a história natural faziam parte da epistémê clássica.
Mas dizer que elas fazem parte do campo epistemológico significa somente que elas nele enraízam sua positividade, que nele encontram sua condição de existência, que não são, portanto, apenas ilusões, quimeras pseudocientíficas, motivadas ao nível das opiniões, dos interesses, das crenças, que elas não são aquilo a que outros dão o estranho nome de “ideologia”. O que não quer dizer, porém, que por isso sejam ciências.
Se é verdade que toda ciência, qualquer que seja, quando interrogada ao nível arqueológico e quando se busca desenredar o solo de sua positividade, revela sempre a configuração epistemológica que a tornou possível, em contrapartida, toda configuração epistemológica, mesmo se perfeitamente demarcável em sua positividade, pode muito bem não ser uma ciência: nem por isso se reduz a uma impostura.
É preciso distinguir, com cuidado, três coisas:
- há temas com pretensão científica que se podem encontrar ao nível das opiniões e que não fazem (ou não mais fazem) parte da rede epistemológica de uma cultura;
a partir do século XVII, por exemplo, a magia natural cessou de pertencer à epistémê ocidental, mas prolongou-se por muito tempo no jogo das crenças e das valorizações afetivas.
Há, em seguida,
- as figuras epistemológicas cujo desenho, posição, funcionamento, podem ser restituídos em sua positividade por uma análise de tipo arqueológico;
e, por sua vez, podem obedecer a duas organizações diferentes:
-
- umas apresentam caracteres de objetividade e de sistematicidade que permitem defini-Ias como ciências;
- outras não respondem a esses critérios, isto é, sua forma de coerência e sua relação com seu objeto são determinadas tão somente por sua positividade.
Estas últimas, conquanto não possuam os critérios formais de um conhecimento científico, pertencem, contudo, ao domínio positivo do saber. Seria, portanto, tão vão e injusto analisá-Ias como fenômenos de opinião, quanto confrontá-Ias, pela história ou pela crítica, com as formações propriamente científicas; mais absurdo ainda seria tratá- Ias como uma combinação que misturasse, segundo proporções variáveis, “elementos racionais” com outros que não o fossem. É preciso recolocá-las ao nível da positividade que as torna possíveis e determina necessariamente sua forma. A arqueologia tem, pois, para com elas, duas tarefas: determinar a maneira como elas se dispõem na epistémê em que se enraízam; mostrar também em que sua configuração é radicalmente diferente daquela das ciências no sentido estrito. Essa configuração que lhes é peculiar não deve ser tratada como um fenômeno negativo: não é a presença de um obstáculo, não é alguma deficiência interna que as fazem malograr no limiar das formas científicas. Elas constituem, na sua figura própria, ao lado das ciências e sobre o mesmo solo arqueológico, outras configurações do saber.
Já foram encontrados exemplos de tais configurações na gramática geral ou na teoria clássica do valor; tinham o mesmo solo de positividade que a matemática cartesiana, mas não eram ciências, ao menos para a maioria daqueles que lhes eram contemporâneos.
- É o caso também do que se denomina hoje ciências humanas;
elas desenham, quando se lhes faz a análise arqueológica, configurações perfeitamente positivas; mas, desde que se determinam essas configurações e a maneira como estão dispostas na epistémê moderna, compreende-se por que não podem ser ciências: o que as torna possíveis, com efeito, é uma certa situação de “vizinhança” em relação à biologia, à economia, à filologia (ou à linguística); elas só existem na medida em que se alojam ao lado destas – ou antes, debaixo delas, no seu espaço de projeção. Com elas mantêm, entretanto, uma relação que é radicalmente diferente daquela que se pode estabelecer entre duas ciências “conexas” ou “afins”: essa relação, com efeito, supõe a transferência de modelos exteriores na dimensão do inconsciente e da consciência e o refluxo da reflexão crítica em direção ao próprio lugar donde vêm esses modelos.
Inútil, pois, dizer que as “ciências humanas” são falsas ciências; simplesmente não são ciências; a configuração que define sua positividade e as enraíza na epistémê moderna coloca-as, ao mesmo tempo, fora da situação de serem ciências; e se se perguntar então por que assumiram esse título, bastará lembrar que pertence à definição arqueológica de seu enraizamento o fato de que elas requerem e acolhem a transferência de modelos tomados de empréstimo a ciências.
Não é, pois, a irredutibilidade do homem, aquilo que se designa como sua invencível transcendência, nem mesmo sua complexidade demasiado grande que o impede de tornar-se objeto de ciência.
A cultura ocidental constituiu, sob o nome de homem, um ser que, por um único e mesmo jogo de razões, deve ser domínio positivo do saber e não pode ser objeto de ciência.
As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo X – As ciências humanas;
tópico III. Os três modelos