Capítulo V - Classificar; tópico II. A história natural
Como pôde a idade clássica definir esse domínio da “história natural”, cuja evidência hoje e cuja unidade mesma nos parecem tão longínquas e como que já confusas?
Que campo é esse em que a natureza apareceu
- próxima de si mesma o bastante para que os indivíduos que ela envolve pudessem ser classificados,
- e suficientemente afastada de si, para que o devessem ser
- pela análise
- e pela reflexão?
Tem-se a impressão – e diz-se com muita frequência – que a história da natureza deve seu aparecimento ao malogro do mecanicismo cartesiano.
Quando finalmente se revelou impossível fazer entrar o mundo inteiro nas leis do movimento retilíneo, quando a complexidade do vegetal e do animal resistiu suficientemente às formas simples da substância extensa, então foi necessário que a natureza se manifestasse em sua estranha riqueza; e a minuciosa observação dos seres vivos teria nascido nessas plagas, de onde o cartesianismo acabava de se retirar.
Infelizmente as coisas não se passam com essa simplicidade. Pode ser – e isto ainda estaria por examinar – que uma ciência nasça de outra; jamais, porém, uma ciência pode nascer da ausência de outra, nem do fracasso, nem mesmo do obstáculo encontrado por outra.
De fato, a possibilidade da história natural, com Ray, Jonston, Christophe Knaut, é contemporânea do cartesianismo e não do seu fracasso. A mesma epistémê autorizou tanto a mecânica, desde Descartes até D’ Alembert quanto a história natural de Tournefort a Daubenton.
Para que a história natural aparecesse,
- não foi preciso que a natureza se adensasse, se obscurecesse e multiplicasse seus mecanismos, até adquirir o peso opaco de uma história que apenas se pode delinear e descrever, sem se poder medir, calcular nem explicar:
- foi preciso – e muito ao contrário – que a História se tornasse Natural.
O que existia no século XVI e até meados do século XVII eram histórias: Belon escrevera uma História da natureza das aves; Duret, uma História admirável das plantas; Aldrovandi, uma História das serpentes e dos dragões.
Em 1657, Jonston publica uma História natural dos quadrúpedes. Certamente essa data de nascimento não é rigorosa (1); está aqui somente para simbolizar uma referência e assinalar de longe o enigma aparente de um acontecimento.
Esse acontecimento é a súbita decantação, no domínio da História, de duas ordens, doravante diferentes, de conhecimento. Até Aldrovandi, a História era o tecido inextrincável e perfeitamente unitário daquilo que se vê das coisas e de todos os signos que foram nelas descobertos ou nelas depositados: fazer a história de uma planta ou de um animal era tanto dizer quais são seus elementos ou seus órgãos, quanto as semelhanças que se lhe podem encontrar, as virtudes que se lhe atribuem, as lendas e as histórias com que se misturou, os brasões onde figura, os medicamentos que se fabricam com sua substância, os alimentos que ele fornece, o que os antigos relatam dele, o que os viajantes dele podem dizer. A história de um ser vivo era esse ser mesmo, no interior de toda a rede semântica que o ligava ao mundo.
A divisão, para nós evidente, entre o que vemos, o que os outros observaram e transmitiram, o que os outros enfim imaginam ou em que crêem ingenuamente, a grande tripartição, aparentemente tão simples e tão imediata, entre
- a Observação,
- o Documento
- e a Fábula
não existia.
E não porque a ciência hesitasse entre uma vocação racional e todo um peso de tradição ingênua, mas por uma razão bem mais precisa e bem mais constringente
- é que os signos faziam parte das coisas,
- ao passo que no século XVII eles se tornam modos da representação.
Quando Jonston escreveu sua História natural dos quadrúpedes, saberia ele a respeito mais que Aldrovandi, meio século antes?
Não muito, afirmam os historiadores.
Mas a questão não está aí ou, se se quiser colocá-la nesses termos, é preciso responder que Jonston sabe a respeito muito menos que Aldrovandi. Este, a propósito de todo animal estudado, desenvolvia, e no mesmo nível,
- a descrição de sua anatomia e as maneiras de capturá-lo;
- sua utilização alegórica e seu modo de geração;
- seu habitat e os templos de suas lendas;
- sua nutrição e a melhor maneira de torná-lo saboroso.
Jonston subdivide seu capítulo sobre o cavalo em 12 rubricas:
- nome, partes anatômicas, habitação, idades, geração, vozes, movimentos, simpatia e antipatia, utilizações, usos medicinais(2).
Nada disso faltava em Aldrovandi, mas havia muito mais. E a diferença essencial reside nessa falta. Toda a semântica animal ruiu como uma parte morta e inútil.
As palavras que eram entrelaçadas ao animal foram desligadas e subtraídas: e o ser vivo, em sua anatomia, em sua forma, em seus costumes, em seu nascimento e em sua morte, aparece como que nu.
A história natural encontra seu lugar nessa distância agora aberta entre as coisas e as palavras – distância silenciosa, isenta de toda sedimentação verbal e, contudo, articulada segundo os elementos da representação, aqueles mesmos que, de pleno direito, poderão ser nomeados. As coisas beiram as margens do discurso, porque aparecem no âmago da representação.
Portanto, não é no momento em que se renuncia a calcular que se começa enfim a observar.
Na constituição da história natural, com o clima empírico em que se desenvolve,
- não se deve ver a experiência forçando, bem ou mal, o acesso de um conhecimento que espreitava alhures a verdade da natureza;
- a história natural eis por que ela apareceu precisamente nesse momento – é o espaço aberto na representação por uma análise que se antecipa à possibilidade de nomear;
- é a possibilidade de ver o que se poderá dizer, mas que não se poderia dizer depois, nem ver, a distância, se as coisas e as palavras, distintas umas das outras, não se comunicassem, desde o início, numa representação.
A ordem descritiva que Lineu, bem após Jonston, proporá à história natural é muito característica. Segundo ele, todo capítulo concernente a um animal qualquer deve ter os seguintes passos:
- nome,
- teoria,
- gênero,
- espécie,
- atributos,
- uso e, para terminar,
- Litteraria.
Toda a linguagem depositada pelo tempo sobre as coisas é repelida ao último limite, como um suplemento em que o discurso se relatasse a si mesmo e relatasse as descobertas, as tradições, as crenças, as figuras poéticas. Antes dessa linguagem da linguagem, é a própria coisa que aparece nos seus caracteres próprios, mas no interior dessa realidade que, desde o início, foi recortada pelo nome.
A instauração, na idade clássica, de uma ciência natural
- não é o efeito direto ou indireto da transferência de uma racionalidade formada alhures (a propósito da geometria ou da mecânica).
- É uma formação distinta, tendo sua arqueologia própria, ainda que ligada (mas segundo o modo da correlação e da simultaneidade) à teoria geral dos signos e ao projeto de máthêsis universal.
A velha palavra história muda então de valor e reencontra talvez uma de suas significações arcaicas. Em todo o caso, se é verdade que o historiador, no pensamento grego, foi realmente aquele que vê e que narra a partir de seu olhar, nem sempre foi assim em nossa cultura. Foi, aliás, bem tarde, no limiar da idade clássica, que ele tomou ou retomou esse papel.
- Até meados do século XVII, o historiador tinha por tarefa estabelecer a grande compilação dos documentos e dos signos – de tudo o que, através do mundo, podia constituir como que uma marca.
- Era ele o encarregado de restituir linguagem a todas as palavras encobertas.
- Sua existência se definia menos pelo olhar que pela repetição, por uma palavra segunda que pronunciava de novo tantas palavras ensurdecidas.
A idade clássica confere à história um sentido totalmente diferente:
- o de pousar pela primeira vez um olhar minucioso sobre as coisas
- e de transcrever, em seguida, o que ele recolhe em palavras lisas, neutralizadas e fiéis.
Compreende-se que, nessa “purificação”, a primeira forma de história que se constituiu tenha sido a história da natureza. Pois, para construir-se, ela tem necessidade apenas de palavras aplicadas sem intermediário às coisas mesmas. Os documentos dessa história nova não são outras palavras, textos ou arquivos, mas espaços claros onde as coisas se justapõem:
- herbários, coleções, jardins;
- o lugar dessa história é um retângulo intemporal, onde, despojados de todo comentário, de toda linguagem circundante, os seres se apresentam uns ao lado dos outros, com suas superfícies visíveis, aproximados segundo seus traços comuns e, com isso, já virtualmente analisados e portadores apenas de seu nome.
Diz-se frequentemente que a constituição dos jardins botânicos e das coleções zoológicas traduzia uma nova curiosidade para com as plantas e os animais exóticos. De fato, já desde muito eles haviam suscitado interesse.
O que mudou foi o espaço em que podem ser vistos e donde podem ser descritos.
No Renascimento, a estranheza animal era um espetáculo; figurava nas festas, nos torneios, nos combates fictícios ou reais, nas reconstituições lendárias, onde quer que o bestiário desdobrasse suas fábulas sem idade.
O gabinete de história natural e o jardim, tal como são organizados na idade clássica, substituem o desfile circular do “mostruário” pela exposição das coisas em “quadro”.
O que se esgueirou entre esses teatros e esse catálogo não foi o desejo de saber, mas um novo modo de vincular as coisas ao mesmo tempo ao olhar e ao discurso.
Uma nova maneira de fazer história.
Sabe-se da importância metodológica que assumiram esses espaços e essas distribuições “naturais” para a classificação, nos fins do século XVIII, das palavras, das línguas, das raízes, dos documentos, dos arquivos, em suma, para a constituição de todo um ambiente de história (no sentido agora familiar da palavra), em que o século XIX reencontrará, após esse puro quadro das coisas, a possibilidade renovada de falar sobre palavras.
E de falar sobre elas não mais no estilo do comentário, mas segundo um modo que se considerará tão positivo, tão objetivo quanto o da história natural.
A conservação cada vez mais completa do escrito, a instauração de arquivos, sua classificação, a reorganização das bibliotecas, o estabelecimento de catálogos, de repertórios, de inventários representam, no fim da idade clássica, mais que uma sensibilidade nova ao tempo, ao seu passado, à espessura da história, uma forma de introduzir na linguagem já depositada e nos vestígios por ela deixados uma ordem que é do mesmo tipo da que se estabelece entre os seres vivos.
E é nesse tempo classificado, nesse devir quadriculado e espacializado que os historiadores do século XIX se empenharão em escrever uma história enfim “verdadeira” – isto é, liberada da racionalidade clássica, de sua ordenação e de sua teodicéia, uma história restituída à violência irruptiva do tempo.