II. A forma das ciências humanas

É preciso esboçar agora a forma dessa positividade. 

De ordinário, tenta-se defini-la em função das matemáticas: 

  • quer porque se busca aproximá-la o mais possível destas, fazendo o inventário de tudo o que nas ciências humanas é matematizável e supondo que tudo o que não é suscetível de semelhante formalização não recebeu ainda sua positividade científica; 
  • quer porque se tenta, ao contrário, distinguir com cuidado o domínio do matematizável e aquele outro que lhe seria irredutível, porque seria o lugar da interpretação, porque se lhes aplicariam sobretudo os métodos da compreensão, porque se acharia estreitado em torno do pólo clínico do saber. 

Semelhantes análises não são somente cansativas porque gastas, mas antes de tudo porque carecem de pertinência. Certamente, não há dúvida de que essa forma de saber empírico que se aplica ao homem (e que, para obedecer à convenção, pode-se ainda chamar de “ciências humanas” antes mesmo de saber em que sentido e dentro de que limites podem ser denominadas “ciências”) tem relação com as matemáticas: como qualquer outro domínio do saber, elas podem, sob certas condições, servir-se do instrumental matemático; alguns de seus procedimentos, muitos dos seus resultados podem ser formalizados. 

É, seguramente, de primeira importância, conhecer esses instrumentos, poder praticar essas formalizações, definir os níveis em que podem ser efetuadas; é, sem dúvida, interessante para a história saber como Condorcet pôde aplicar o cálculo das probabilidades à política, como Fechner definiu a relação logarítmica entre o crescimento da sensação e o da excitação, como os psicólogos contemporâneos se servem da teoria da informação para compreender os fenômenos da aprendizagem. 

Mas, apesar da especificidade dos problemas colocados, é pouco provável que a relação com as matemáticas (as possibilidades de matematização, ou a resistência a todos os esforços de formalização) seja constitutiva das ciências humanas na sua positividade singular. E isso por duas razões: 

  • porque, no essencial, elas têm esses problemas em comum com muitas outras disciplinas (como a biologia, a genética) ainda que eles não sejam, aqui e lá, identicamente os mesmos; 
  • e sobretudo porque a análise arqueológica não descortinou, no a priori histórico das ciências humanas, uma forma nova das matemáticas ou um brusco avanço destas no domínio do humano, mas, sim, muito mais uma espécie de retraimento da máthêsis, uma dissociação de seu campo unitário e a liberação, em relação à ordem linear das menores diferenças possíveis, de organizações empíricas como a vida, a linguagem e o trabalho. 

Nesse sentido, o aparecimento do homem e a constituição das ciências humanas (ainda que sob a forma de um projeto) seriam correlativos de uma espécie de “des-matematização”. 

Dir-se-á, sem dúvida, que essa dissociação de um saber concebido por inteiro como máthêsis não era um recuo das matemáticas, pela simples razão de que esse saber jamais conduzira (salvo em astronomia e sobre certos pontos de física) a uma matematização efetiva; ao desaparecer, ele antes liberava a natureza e todo o campo das empiricidades para uma aplicação, a cada instante limitado e controlado, das matemáticas; os primeiros grandes progressos da física matemática, as primeiras utilizações maciças do cálculo das probabilidades não datam do momento em que se renunciou a constituir imediatamente uma ciência geral das ordens não-quantificáveis? 

Com efeito, não se pode negar que a renúncia a uma máthêsis (ao menos provisoriamente) permitiu, em certos domínios do saber, suspender o obstáculo da qualidade, e aplicar o instrumental matemático lá onde ele ainda não penetrara. Mas se, ao nível da física, a dissociação do projeto da máthêsis constitui uma única e mesma coisa com a descoberta de novas aplicações das matemáticas, o mesmo não ocorreu em todos os domínios: a biologia, por exemplo, além de uma ciência das ordens qualitativas, constituiu-se como análise das relações entre os órgãos e as funções, estudo das estruturas e dos equilíbrios, investigações sobre sua formação e seu desenvolvimento na história dos indivíduos ou das espécies; tudo isso não impediu que a biologia utilizasse as matemáticas e que estas pudessem aplicar-se à biologia bem mais amplamente que no passado. 

Todavia, não foi em sua relação com as matemáticas que a biologia assumiu sua autonomia e definiu sua positividade. O mesmo ocorreu com as ciências humanas: 

  • foi o retraimento da máthêsis e não o avanço das matemáticas que permitiu ao homem constituir-se como objeto de saber; 
  • foi o envolvimento do trabalho, da vida e da linguagem em torno deles próprios que prescreveu, do exterior, o aparecimento desse novo domínio; 
  • e é o aparecimento desse ser empírico-transcendental, desse ser cujo pensamento é indefinidamente tramado com o impensado, desse ser sempre separado de uma origem que lhe é prometida na imediatidade do retorno – é esse aparecimento que dá às ciências humanas sua feição singular. 

Também aí, como em outras disciplinas, pode ser que a aplicação das matemáticas tenha sido facilitada (e o seja cada vez mais) por todas as modificações que se produziram, no começo do século XIX, no saber ocidental. Imaginar, porém, que as ciências humanas definiram seu projeto mais radical e inauguraram sua história positiva no dia em que se pretendeu aplicar o cálculo das probabilidades aos fenômenos da opinião política e utilizar logaritmos para medir a intensidade crescente das sensações é tomar um contra-efeito de superfície pelo acontecimento fundamental.

Em outros termos, entre as três dimensões que abrem às ciências humanas seu espaço próprio e lhes facultam o volume em que elas tomam corpo, 

  • a das matemáticas é talvez a menos problemática; 

é com ela, em todo o caso, que as ciências humanas entretêm as relações mais claras, mais serenas e, de certo modo, mais transparentes: tanto mais que o recurso às matemáticas, sob uma forma ou outra, sempre foi a maneira mais simples de emprestar ao saber positivo sobre o homem um estilo, uma forma, uma justificação científica. Em contrapartida, as dificuldades mais fundamentais, as que permitem melhor definir o que são, em sua essência, as ciências humanas, alojam-se do lado das outras duas dimensões do saber: 

  • aquela em que se desenrola a analítica da finitude 
  • e aquela ao longo da qual se repartem as ciências empíricas que tomam por objeto a linguagem, a vida e o trabalho.

As ciências humanas, com efeito, endereçam-se ao homem, na medida em que ele vive, em que fala, em que produz. 

  • É como ser vivo que ele cresce, que tem funções e necessidades, que vê abrir-se um espaço cujas coordenadas móveis ele articula em si mesmo; de um modo geral, sua existência corporal fá-Io entrecruzar-se, de parte a parte, com o ser vivo; 
  • produzindo objetos e utensílios, trocando aquilo de que tem necessidade, organizando toda uma rede de circulação ao longo da qual perpassa o que ele pode consumir e em que ele próprio se acha definido como elemento de troca, aparece ele em sua existência imediatamente imbricado com os outros; 
  • enfim, porque tem uma linguagem, pode constituir por si todo um universo simbólico, em cujo interior se relaciona com seu passado, com coisas, com outrem, a partir do qual pode imediatamente construir alguma coisa com um saber (particularmente esse saber que tem de si mesmo e do qual as ciências humanas desenham uma das formas possíveis). 

Pode-se, portanto, fixar o lugar das ciências do homem nas vizinhanças, nas fronteiras imediatas e em toda a extensão dessas ciências em que se trata da vida, do trabalho e da linguagem. 

Não chegam estas justamente a se formar na época em que, pela primeira vez, o homem se oferece à possibilidade de um saber positivo? 

Contudo, nem a biologia, nem a economia, nem a filologia devem ser tomadas como as primeiras ciências humanas nem como as mais fundamentais. 

Isso se reconhece sem dificuldade no caso da biologia, que se dirige a muitos outros seres vivos além do homem; 

tem-se mais dificuldade em admiti-lo no caso da economia ou da filologia, que têm por domínio próprio e exclusivo atividades específicas do homem. 

Mas não se pergunta por que é que a biologia ou a fisiologia humanas, por que é que a anatomia dos centros corticais da linguagem não podem, de modo algum, ser consideradas como ciências do homem. 

É que o objeto destas últimas jamais se dá ao modo de ser de um funcionamento biológico (nem mesmo sob sua forma singular e como que a de seu prolongamento no homem); ele é antes seu reverso, sua marca no vazio; ele começa lá onde pára – não a ação ou os efeitos – mas o ser próprio desse funcionamento – lá onde se liberam representações, verdadeiras ou falsas, claras ou obscuras, perfeitamente conscientes ou embrenhadas na profundidade de alguma sonolência, observáveis direta ou indiretamente, oferecidas naquilo que o próprio homem enuncia ou detectáveis somente do exterior; a busca das ligações intracorticais entre os diferentes centros de integração da linguagem (auditivos, visuais, motores) não é da alçada das ciências humanas; mas estas encontrarão seu espaço de desempenho, desde que se interrogue esse espaço de palavras, essa presença ou esse esquecimento de seu sentido, essa distância entre o que se quer dizer e a articulação em que essa intenção é investida, coisas de que o sujeito talvez não tenha consciência, mas que não teriam nenhum modo de ser assinalável se esse mesmo sujeito não tivesse representações.

De um modo mais geral, o homem, para as ciências humanas, 

  • não é esse ser vivo que tem uma forma bem particular (uma fisiologia bastante especial e uma autonomia quase única); 
  • é esse ser vivo que, do interior da vida à qual pertence inteiramente e pela qual é atravessado em todo o seu ser, constitui representações graças às quais ele vive e a partir das quais detém esta estranha capacidade de poder se representar justamente a vida. 

Do mesmo modo, conquanto o homem seja a única espécie no mundo que trabalha, ao menos aquela em que a produção, a distribuição, o consumo dos bens assumiram tanta importância e receberam formas tão múltiplas e tão diferenciadas, nem por isso a economia é uma ciência humana. 

Dir-se-á talvez que esta, 

  • para definir leis que são contudo interiores aos mecanismos da produção (como o acúmulo do capital ou as relações entre as taxas dos salários e os custos de produção), recorre a comportamentos humanos e a uma representação que o fundamentam (o interesse, a busca do lucro máximo, a tendência para a poupança); mas, ao fazê-lo, ela utiliza as representações como requisito de um funcionamento (que passa, com efeito, por uma atividade humana explícita); 
  • em contrapartida, só haverá ciência do homem se nos dirigirmos à maneira como os indivíduos ou os grupos se representam seus parceiros na produção e na troca, o modo como esclarecem, ou ignoram, ou mascaram esse funcionamento e a posição que aí ocupam, a maneira como se representam a sociedade em que isso ocorre, o modo como se sentem integrados a ela ou isolados, dependentes, submetidos ou livres; 

o objeto das ciências humanas 

  • não é esse homem que, desde a aurora do mundo, ou o primeiro grito de sua idade de ouro, está destinado ao trabalho; 
  • é esse ser que, do interior das formas da produção pelas quais toda a sua existência é comandada, forma a representação dessas necessidades, da sociedade pela qual, com a qual ou contra a qual as satisfaz, de sorte que, a partir daí, pode ele finalmente se dar a representação da própria economia. 

Quanto à linguagem, ocorre o mesmo: embora o homem seja, no mundo, o único ser que fala, 

  • não constitui ciência humana conhecer as mutações fonéticas, o parentesco das línguas, a lei dos desvios semânticos; 
  • em contrapartida, poder-se-á falar de ciência humana desde que se busque definir a maneira como os indivíduos ou os grupos se representam as palavras, utilizam sua forma e seu sentido, compõem discursos reais, mostram e escondem neles o que pensam, dizem, talvez à sua revelia, mais ou menos do que pretendem, deixam desses pensamentos, em todo o caso, uma massa de traços verbais que é preciso decifrar e restituir, tanto quanto possível, à sua vivacidade representativa. 

O objeto das ciências humanas 

  • não é, pois, a linguagem (falada, contudo, apenas pelos homens), 
  • mas, sim, esse ser que, do interior da linguagem pela qual está cercado, se representa, ao falar, o sentido das palavras ou das proposições que enuncia e se dá, finalmente, a representação da própria linguagem.

Vê-se que as ciências humanas 

  • não são uma análise do que o homem é por natureza; 
  • são antes uma análise que se estende entre o que o homem é em sua positividade (ser que vive, trabalha, fala) e o que permite a esse mesmo ser saber (ou buscar saber) o que é a vida, em que consistem a essência do trabalho e suas leis, e de que modo ele pode falar. 

As ciências humanas ocupam, pois, essa distância que separa (não sem uni-Ias) a biologia, a economia, a filologia daquilo que lhes dá possibilidade no ser mesmo do homem. Seria errôneo, portanto, fazer das ciências humanas o prolongamento, interiorizado na espécie humana, no seu organismo complexo, na sua conduta e na sua consciência, dos mecanismos biológicos; não menos errôneo colocar, no interior das ciências humanas, a ciência da economia e da linguagem (cuja irredutibilidade às ciências humanas é manifestada pelo esforço para constituir uma economia e uma linguística puras). 

De fato, nem as ciências humanas estão no interior dessas ciências, nem as interiorizam, inclinando-as em direção à subjetividade do homem; se as retomam na dimensão da representação, é antes reassumindo-as em sua vertente exterior, deixando-as na sua opacidade, acolhendo como coisas os mecanismos e os funcionamentos que elas isolam, interrogando estes últimos não no que são, mas no que deixam de ser quando se abre o espaço da representação; e, a partir daí, elas mostram como pode nascer e desdobrar-se uma representação do que eles sejam. 

Elas reconduzem sub-repticiamente as ciências da vida, do trabalho e da linguagem, para o lado dessa analítica da finitude que mostra como pode o homem haver-se, no seu ser, com essas coisas que ele conhece e conhecer essas coisas que determinam, na positividade, seu modo de ser. 

Mas aquilo que a analítica requer na interioridade ou ao menos na dependência profunda de um ser que não deve sua finitude senão a si mesmo, as ciências humanas o desenvolvem na exterioridade do conhecimento. 

É por isso que o específico das ciências humanas não é o direcionamento a certo conteúdo (esse objeto singular que é o ser humano); é muito mais um caráter puramente formal: o simples fato de estarem, em relação às ciências em que o ser humano é dado como objeto (exclusivo para a economia e a filologia, ou parcial para a biologia), numa posição de reduplicação, e de que essa reduplicação possa valer a fortiori para elas mesmas.

Essa posição torna-se perceptível em dois níveis: 

  • as ciências humanas não tratam a vida, o trabalho e a linguagem do homem na maior transparência em que se podem dar, mas naquela camada de condutas, de comportamentos, de atitudes, de gestos já feitos, de frases já pronunciadas ou escritas, em cujo interior eles foram dados antecipadamente, numa primeira vez, àqueles que agem, se conduzem, trocam, trabalham e falam; 
  • em outro nível (é sempre a mesma propriedade formal, mas desenvolvida até o ponto extremo e mais raro), é sempre possível tratar, em estilo de ciências humanas (de psicologia, de sociologia, de história das culturas ou das idéias ou das ciências) o fato de haver para certos indivíduos ou certas sociedades alguma coisa como um saber especulativo da vida, da produção e da linguagem – em última análise, uma biologia, uma economia e uma filologia. 

Sem dúvida, isso é apenas a indicação de uma possibilidade que raramente é efetuada e que talvez não seja suscetível, ao nível das empiricidades, de oferecer uma grande riqueza; mas, o fato de que ela existe como distância eventual, como espaço de recuo dado às ciências humanas em relação àquilo mesmo donde elas vêm, o fato também de que esse jogo pode aplicar-se a elas próprias (podem-se sempre fazer as ciências humanas das ciências humanas, a psicologia da psicologia, a sociologia da sociologia etc.) bastam para mostrar sua singular configuração. 

Em relação à biologia, à economia, às ciências da linguagem, elas não estão, portanto, em carência de exatidão ou de rigor; estão antes, como ciências da reduplicação, numa posição “metaepistemológica”. 

Ainda assim, o prefixo não está talvez muito bem escolhido: pois só se fala de metalinguagem quando se trata de definir as regras de interpretação de uma linguagem primeira. 

Aqui as ciências humanas, quando reduplicam as ciências da linguagem, do trabalho e da vida, quando, na sua mais fina extremidade, se reduplicam a si mesmas, não visam a estabelecer um discurso formalizado: ao contrário, elas embrenham o homem que tomam por objeto no campo da finitude, da relatividade, da perspectiva – no campo da erosão indefinida do tempo. 

Talvez fosse melhor falar a seu propósito de posição “ana” ou “hipoepistemológica”; se libertássemos este último prefixo do que pode ter de pejorativo, ele explicaria sem dúvida as coisas: faria compreender que a invencível impressão de fluidez, de inexatidão, de imprecisão que deixam quase todas as ciências humanas não é senão o efeito de superfície daquilo que permite defini-Ias em sua positividade.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas
Capítulo X – As ciências humanas;
tópico II – A forma das ciências humanas