Capítulo II. A prosa do mundo; tópico V. O ser da linguagem
Desde o estoicismo, o sistema dos signos no mundo ocidental fora ternário, já que nele se reconhecia
- o significante,
- o significado
- e a “conjuntura” (o ‘túyxavov).
A partir do século XVII, em contrapartida, a disposição dos signos tornar-se-á binária, pois que será definida, com Port- Royal,
- pela ligação de um significante
- com um significado.
No Renascimento, a organização é diferente e muito mais complexa; ela é ternária, já que apela
- para o domínio formal das marcas,
- para o conteúdo que se acha por elas assinalado
- e para as similitudes que ligam as marcas às coisas designadas;
porém, como a semelhança é tanto a forma dos signos quanto seu conteúdo, os três elementos distintos dessa distribuição se resolvem numa figura única.
Essa disposição, com o jogo que ela autoriza, se reencontra, mas invertida, na experiência da linguagem. Com efeito, esta existe primeiramente, em seu ser bruto e primitivo, sob a forma simples, material, de uma escrita, de um estigma sobre as coisas, de uma marca espalhada pelo mundo e que faz parte de suas mais indeléveis figuras.
Num sentido, essa camada da linguagem é única e absoluta. Mas ela faz logo nascer duas outras formas de discurso que a vão enquadrar:
- acima dela, o comentário, que retoma os signos dados com um novo propósito
- e, abaixo, o texto, cujo comentário supõe a primazia oculta por sob as marcas visíveis a todos.
Daí três níveis de linguagem a partir do ser único da escrita. É esse jogo complexo que vai desaparecer com o fim do Renascimento. E isso de duas maneiras:
- seja porque as figuras que oscilavam indefinidamente entre um e três termos vão ser fixadas numa forma binária que as tornará estáveis;
- seja porque a linguagem, em vez de existir como escrita material das coisas, não achará mais seu espaço senão no regime geral dos signos representativos.
Essa nova disposição implica o aparecimento de um novo problema até então desconhecido: com efeito, perguntava-se
- como reconhecer que um signo designasse realmente aquilo que ele significava;
- a partir do século XVII, perguntar-se-á como um signo pode estar ligado àquilo que ele significa.
Questão à qual a idade clássica responderá pela análise da representação;
e à qual o pensamento moderno responderá pela análise do sentido e da significação.
Mas, por isso mesmo, a linguagem não será nada mais
- que um caso particular da representação (para os clássicos)
- ou da significação (para nós).
A profunda interdependência da linguagem e do mundo se acha desfeita.
O primado da escrita está suspenso.
Desaparece então essa camada uniforme onde se entrecruzavam indefinidamente
- o visto e o lido,
- o visível e o enunciável.
As coisas e as palavras vão separar-se.
O olho será destinado a ver e somente a ver; o ouvido somente a ouvir.
O discurso terá realmente por tarefa dizer o que é, mas não será nada mais que o que ele diz.
Imensa reorganização da cultura de que a idade clássica foi a primeira etapa, a mais importante talvez, posto ser ela a responsável pela nova disposição na qual estamos ainda presos – posto ser ela que nos separa de uma cultura onde a significação dos signos não existia, por ser absorvida na soberania do Semelhante; mas onde seu ser enigmático, monótono, obstinado, primitivo, cintilava numa dispersão infinita.
Nada mais há em nosso saber nem em nossa reflexão que nos traga hoje a lembrança desse ser. Nada mais, salvo talvez a literatura e ainda de um modo mais alusivo e diagonal que direto.
Pode-se dizer, num certo sentido, que a “literatura”, tal como se constituiu e assim se designou no limiar da idade moderna, manifesta o reaparecimento, onde era inesperado, do ser vivo da linguagem.
Nos séculos XVII e XVIII, a existência própria da linguagem, sua velha solidez de coisa inscrita no mundo foram dissolvidas no funcionamento da representação; toda linguagem valia como discurso.
A arte da linguagem era uma maneira de “fazer signo” ao mesmo tempo de significar alguma coisa e de dispor, em torno dessa coisa, signos: uma arte, pois, de nomear e, depois, por uma reduplicação ao mesmo tempo demonstrativa e decorativa, de captar esse nome, de encerrá-lo e encobri-lo por sua vez com outros nomes, que eram sua presença adiada, seu signo segundo, sua figura, seu aparato retórico.
Ora, ao longo de todo o século XIX e até nossos dias ainda – de Hôlderlin a Mallarmé, a Antonin Artaud – a literatura só existiu em sua autonomia, só se desprendeu de qualquer outra linguagem, por um corte profundo, na medida em que constituiu uma espécie de “contradiscurso” e remontou assim da função representativa ou significante da linguagem àquele ser bruto esquecido desde o século XVI.
Crê-se atingir a essência mesma da literatura, interrogando-a não mais ao nível do que ela diz, mas na sua forma significante: fazendo-o, permanece-se no estatuto clássico da linguagem.
Na idade moderna, a literatura é o que compensa (e não o que confirma) o funcionamento significativo da linguagem. Através dela o ser da linguagem brilha de novo nos limites da cultura ocidental e em seu coração – pois ele é, desde o século XVI, aquilo que lhe é mais estranho; porém, desde esse mesmo século XVI, ele está no centro do que ela recobriu.
Eis por que, cada vez mais, a literatura aparece como o que deve ser pensado; mas também, e pela mesma razão, como o que não poderá em nenhum caso ser pensado a partir de uma teoria da significação.
Quer a analisemos do lado do significado (o que ela quer dizer, suas “ideias”, o que ela promete ou o que exige), quer do lado do significante (com a ajuda de esquemas tomados à linguística ou à psicanálise), pouco importa: isso não passa de um episódio.
Tanto num caso como no outro, buscam-na fora do lugar onde, para a nossa cultura, ela jamais cessou, desde há um século e meio, de nascer e de se imprimir.
Tais modos de decifração provém de uma situação clássica da linguagem aquela que reinou no século XVII, quando o regime dos signos se tornou binário e quando a significação foi refletida na forma da representação; então a literatura era realmente composta de um significante e de um significado e merecia ser analisada como tal.
A partir do século XIX, a literatura repõe à luz a linguagem no seu ser: não, porém, tal como ela aparecia ainda no final do Renascimento.
Porque agora não há mais aquela palavra primeira, absolutamente inicial, pela qual se achava fundado e limitado o movimento infinito do discurso; doravante a linguagem vai crescer sem começo, sem termo e sem promessa.
É o percurso desse espaço vão e fundamental que traça, dia a dia, o texto da literatura.