Capítulo III. Representar; tópico IV. A representação reduplicada
No entanto, a mais fundamental propriedade dos signos para a epistémê clássica não foi enunciada até o presente.
Com efeito, que o signo possa ser
- mais ou menos provável,
- mais ou menos afastado daquilo que significa,
- que possa ser natural
- ou arbitrário sem que sua natureza ou seu valor de signo seja afetado por isso –
tudo isso mostra bem que a relação do signo com seu conteúdo não é assegurada na ordem das próprias coisas.
A relação do significante com o significado se aloja agora num espaço onde nenhuma figura intermediária assegura mais seu encontro: ela é, no interior do conhecimento, o liame estabelecido entre
- a ideia de uma coisa
- e a ideia de uma outra.
A Lógica de Port-Royal o diz:
“O signo encerra duas idéias, uma da coisa que representa, outra da coisa representada; e sua natureza consiste em excitar a primeira pela segunda.”(16)
Teoria dual do signo, que se opõe sem equívoco à organização mais complexa do Renascimento; então, a teoria do signo implicava três elementos perfeitamente distintos:
- o que era marcado,
- o que era marcante
- e o que permitia ver nisto a marca daquilo;
ora, este último elemento era a semelhança – o signo marcava na medida em que era “quase a mesma coisa” que o que ele designava.
É esse sistema unitário e triplo que desaparece ao mesmo tempo que o “pensamento por semelhança”, e que é substituído por uma organização estritamente binária.
Mas há uma condição para que o signo seja realmente essa pura dualidade. Em seu ser simples de ideia ou de imagem ou de percepção, associada ou substituída a uma outra, o elemento significante não é signo.
Ele só se torna signo sob a condição de manifestar, além do mais, a relação que o liga àquilo que significa.
É preciso que ele represente, mas que essa representação, por sua vez, se ache representada nele.
Condição indispensável à organização binária do signo e que a Lógica de Port-Royal enuncia antes mesmo de dizer o que é um signo:
“Quando só se olha certo objeto como representando outro, a ideia que dele se tem é uma ideia de signo e esse primeiro objeto se chama signo.”(17)
A ideia significante se desdobra, porquanto à ideia que substitui outra se superpõe a ideia de seu poder representativo.
Acaso não haveria três termos: a ideia significada, a ideia significante e, no interior desta, a ideia de seu papel de representação?
Não se trata, porém, de um retorno sub-reptício a um sistema ternário. Trata-se antes de um desnível inevitável da figura com dois termos, que recua em relação a si mesma e vem alojar-se por inteiro no interior do elemento significante.
De fato, o significante tem por conteúdo total, por função total e por determinação total somente aquilo que ele representa:
- ele lhe é inteiramente ordenado e transparente;
- mas esse conteúdo só é indicado numa representação que se dá como tal,
- e o significado se aloja sem resíduo e sem opacidade no interior da representação do signo.
É característico que o exemplo primeiro de um signo que dá a Lógica de Port-Royal
- não seja nem a palavra, nem o grito, nem o símbolo,
- mas a representação espacial e gráfica – o desenho: mapa ou quadro.
É que, com efeito, o quadro só tem por conteúdo o que ele representa e, no entanto, esse conteúdo só aparece representado por uma representação.
A disposição binária do signo, tal como aparece no século XVII, substitui-se a uma organização que, de modos diferentes, era sempre ternária desde os estoicos e mesmo desde os primeiros gramáticos gregos; ora, essa disposição supõe que o signo é uma representação duplicada e reduplicada sobre si mesma.
Uma ideia pode ser signo de outra
- não somente porque entre elas pode estabelecer-se um liame de representação,
- mas porque essa representação pode sempre se representar no interior da ideia que representa.
Ou ainda porque, em sua essência própria, a representação é sempre perpendicular a si mesma: é, ao mesmo tempo,
- indicação e aparecer;
- relação a um objeto e manifestação de si.
A partir da idade clássica, o signo é a representatividade da representação enquanto ela é representável.
Isso tem conseqüências de grande peso.
Primeiramente, a importância dos signos no pensamento clássico.
Eles eram outrora meios de conhecer e chaves para um saber; são agora co-extensivos à representação, isto é, ao pensamento inteiro, alojam-se nele, percorrendo-o, porém, em toda a sua extensão:
- desde que uma representação esteja ligada a outra e represente em si mesma essa ligação, há signo;
- a ideia abstrata significa a percepção concreta donde ela foi formada (Condillac);
- a ideia geral é tão-somente uma ideia singular servindo de signos às outras (Berkeley);
- as imaginações são signos das percepções donde elas vieram (Hume, Condillac);
- as sensações são signos umas das outras (Berkeley, Condillac)
- e é possível finalmente que as próprias sensações (como em Berkeley) sejam os signos do que Deus nos quer dizer, o que delas faria como que os signos de um conjunto de signos.
A análise da representação e a teoria dos signos se interpenetram de modo absoluto:
- e no dia em que a Ideologia, no fim do século XVIII, se interrogar sobre o primado que é preciso dar à ideia ou ao signo,
- no dia em que Destutt reprovar Gerando por ter elaborado uma teoria dos signos antes de ter definido a ideia(18),
é que sua imediata interdependência já começará a anuviar-se e que a ideia e o signo cessarão de ser perfeitamente transparentes um ao outro.
Segunda conseqüência: essa extensão universal do signo no campo da representação exclui até a possibilidade de uma teoria da significação.
Com efeito, interrogar-se sobre o que é a significação supõe que esta seja uma figura determinada na consciência. Mas, se os fenômenos nunca são dados senão numa representação que, em si mesma e por sua representatividade própria, é inteiramente signo, a significação não pode constituir problema.
Mais ainda, ela nem sequer aparece.
- Todas as representações são ligadas entre si como signos;
- em conjunto, formam como que uma imensa rede;
- cada uma na sua transparência se dá como o signo daquilo que ela representa;
- e todavia – ou, antes, por isso mesmo – nenhuma atividade específica da consciência pode jamais constituir uma significação.
É, sem dúvida, porque o pensamento clássico da representação exclui a análise da significação que nós, que só pensamos os signos a partir desta, temos tanta dificuldade, a despeito da evidência, em reconhecer que a filosofia clássica, de Malebranche à Ideologia, foi inteiramente uma filosofia do signo.
Não há sentido exterior ou anterior ao signo; nenhuma presença implícita de um discurso prévio que seria necessário restituir para trazer à luz o sentido autóctone das coisas.
Mas também não há ato constituinte da significação nem gênese interior à consciência.
É que entre o signo e seu conteúdo não há nenhum elemento intermediário e nenhuma opacidade. Os signos não têm, pois, outras leis, senão aquelas que podem reger seu conteúdo: toda análise de signos é, ao mesmo tempo e de pleno direito, decifração do que eles querem dizer.
Inversamente, a elucidação do significado nada mais será que a reflexão sobre os signos que o indicam.
Como no século XVI, “semiologia” e “hermenêutica” se sobrepõem. Mas de uma forma diferente. Na idade clássica, elas não se reúnem mais no terceiro elemento da semelhança; ligam-se neste poder próprio da representação de representar-se a si mesma.
Não haverá, pois,
- uma teoria dos signos
- diferente de uma análise do sentido.
Entretanto, o sistema concede certo privilégio à primeira sobre a segunda;
- como ela não dá ao que é significado uma natureza diferente da que concede ao signo,
- o sentido não poderá ser mais que a totalidade dos signos desenvolvida em seu encadeamento;
- ele se dará no quadro completo dos signos.
Mas, por outro lado, a rede completa dos signos se liga e se articula de acordo com os cortes próprios ao sentido. O quadro dos signos será a imagem das coisas. Se o ser do sentido está inteiramente do lado do signo, o funcionamento está inteiramente do lado do significado.
É por isso que a análise da linguagem, de Lancelot a Destutt de Tracy, faz-se a partir de uma teoria abstrata dos signos verbais e na forma de uma gramática geral:
- mas ela toma sempre por fio condutor o sentido das palavras;
- é por isso também que a história natural se apresenta como análise dos caracteres dos seres vivos, mas que, mesmo artificiais, as taxinomias têm sempre o projeto de se ajustar à ordem natural ou de dissociar-se dela o menos possível;
- é por isso que a análise das riquezas faz-se a partir da moeda e da troca, mas que o valor é sempre fundado na necessidade.
Na idade clássica, a ciência pura dos signos vale como o discurso imediato do significado.
Enfim, última conseqüência que se estende, sem dúvida, até nós: a teoria binária do signo, a que funda, desde o século XVII, toda a ciência geral do signo, está ligada, segundo uma relação fundamental, a uma teoria geral da representação.
Se o signo é a pura e simples ligação de um significante com um significado (ligação que é arbitrária ou não, voluntária ou imposta, individual ou coletiva), de todo modo a relação só pode ser estabelecida no elemento geral da representação: o significante e o significado só são ligados na medida em que um e outro são (ou foram ou podem ser) representados e em que um representa atualmente o outro.
Era, pois, necessário que a teoria clássica do signo desse a si própria, como fundamento e justificação filosófica, uma “ideologia”, isto é, uma análise geral de todas as formas da representação, desde a sensação elementar até a ideia abstrata e complexa.
Era igualmente necessário que, reencontrando o projeto de uma semiologia geral, Saussure desse ao signo uma definição que pôde parecer “psicologista” (ligação de um conceito com uma imagem): é que, de fato, ele redescobria aí a condição clássica para pensar a natureza binária do signo.