Capítulo V - Classificar; tópico V. O contínuo e a catástrofe

No coração dessa língua bem-feita em que se tornou a história natural, persiste um problema.

Poderia ocorrer que, no final das contas, a transformação da estrutura em caráter nunca fosse possível e que o nome comum jamais pudesse nascer do nome próprio.

Quem pode garantir que as descrições não vão patentear elementos tão diversos de um indivíduo para outro e de uma espécie para outra, que toda tentativa para fundar um nome comum não seria de antemão arruinada?

Quem pode assegurar que cada estrutura não seja rigorosamente isolada de toda outra e que não funcione como marca individual?

Para que o mais simples caráter possa aparecer, é preciso que ao menos um elemento da estrutura primeiramente considerada se repita em outra.

Pois a ordem geral das diferenças que permite estabelecer a disposição das espécies implica um certo jogo de similitudes.

Esse problema é isomorfo daquele que já se encontrou a propósito da linguagem(36): para que um nome comum fosse possível, era preciso que houvesse entre as coisas esta semelhança imediata que permitisse aos elementos significantes

  • circularem ao longo das representações,
  • deslizarem à sua superfície,
  • prenderem-se às suas similitudes,
para formarem, finalmente, designações coletivas.
 

Mas para desenhar esse espaço retórico onde os nomes pouco a pouco assumiam seu valor geral, não era necessário determinar o estatuto dessa semelhança, nem se ela estava fundada em verdade; bastava que ela emprestasse bastante força à imaginação.

Entretanto, para a história natural, língua bem-feita, essas analogias da imaginação não podem valer como garantias; e é preciso que a história natural encontre o meio de contornar a dúvida radical que a ameaça assim como a qualquer linguagem, dúvida essa que Hume fazia incidir sobre a necessidade da repetição na experiência.

Deve haver continuidade na natureza. Essa exigência de uma natureza contínua não tem inteiramente a mesma forma nos sistemas e nos métodos.

Para os partidários do sistema, a continuidade é feita apenas pela justaposição sem falha das diferentes regiões que os caracteres permitem distinguir com clareza; basta uma gradação ininterrupta dos valores que, no domínio inteiro das espécies, a estrutura escolhida como caráter pode assumir; a partir desse princípio, evidenciar-se-á que todos esses valores serão ocupados por seres reais, mesmo que ainda desconhecidos.

“O sistema indica as plantas, até aquelas que não mencionou; coisa que jamais pode fazer a enumeração de um catálogo.”(37)

E sobre essa continuidade de justaposição, as categorias não serão simplesmente convenções arbitrárias; poderão corresponder (se não forem estabelecidas corretamente) a regiões que existem distintamente sobre essa superfície ininterrupta da natureza; serão regiões mais vastas, mas tão reais quanto os indivíduos.

É assim que o sistema sexual permitiu, segundo Lineu, descobrir gêneros indubitavelmente fundados:

“Saiba que não é o caráter que constituiu o gênero, mas o gênero que constituiu o caráter, que o caráter decorre do gênero, não o gênero do caráter.”(38)

Em contrapartida, nos métodos para os quais as semelhanças, sob sua forma maciça e evidente, são dadas de início, a continuidade da natureza

  • não será este postulado puramente negativo (ausência de espaço branco entre as categorias distintas,
  • mas uma exigência positiva: toda a natureza forma uma grande trama onde os seres se assemelham gradualmente, onde os indivíduos vizinhos são infinitamente semelhantes entre si; de sorte que todo corte que não indique a ínfima diferença do indivíduo, mas categorias mais amplas, é sempre irreal.

Continuidade de fusão em que toda generalidade é nominal. Nossas idéias gerais, diz Buffon, “são relativas a uma escala contínua de objetos, da qual só percebemos nitidamente os núcleos e cujas extremidades fogem e escapam sempre e cada vez mais às nossas considerações… Quanto mais aumentarmos o número de divisões das produções naturais, mais nos aproximaremos da verdade, visto que não existe realmente na natureza senão indivíduos e que os gêneros, as ordens, as classes só existem na nossa imaginação”(39).

E Bonnet dizia, no mesmo sentido, que

“não há saltos na natureza; nela tudo é graduado, matizado. Se, entre dois seres quaisquer, existisse um vazio, qual seria a razão da passagem de um ao outro? Portanto não há ser acima e abaixo do qual não haja outros que se lhe aproximem por alguns caracteres e que dele se afastem por outros”.

Podemos, pois, sempre descobrir “produções medianas”,

  • como o pólipo entre o vegetal e o animal,
  • o esquilo voador entre a ave e o quadrúpede,
  • o macaco entre o quadrúpede e o homem.

Por conseguinte, nossas distribuições em espécies e em classes “são puramente nominais”; elas não representam nada mais que “meios relativos às nossas necessidades e aos limites de nossos conhecimentos”(40).

No século XVIII, a continuidade da natureza é exigida por toda história natural, isto é, por todo esforço para instaurar na natureza uma ordem e nela descobrir categorias gerais, quer sejam elas reais e prescritas por distinções manifestas, quer cômoda e simplesmente demarcadas por nossa imaginação.

Só o contínuo pode garantir que a natureza se repita e que a estrutura, por consequência, possa tornar-se caráter.

Mas essa exigência logo se desdobra. Pois, se fosse dado à experiência, no seu movimento ininterrupto, percorrer exatamente, passo por passo,

  • o contínuo dos indivíduos,
  • das variedades,
  • das espécies,
  • dos gêneros,
  • das classes,
não haveria necessidade de constituir uma ciência; as designações descritivas se generalizariam de pleno direito e a linguagem das coisas, por um movimento espontâneo, se constituiria em discurso científico.
 

As identidades da natureza se ofereceriam como que letra por letra à imaginação e o deslizar espontâneo das palavras para dentro desse espaço retórico reproduziria em linhas cheias a identidade dos seres na sua generalidade crescente.

A história natural tomar-se-ia inútil, ou melhor, já estaria feita pela linguagem cotidiana dos homens; a gramática geral seria ao mesmo tempo a taxinomia universal dos seres.

Mas, se uma história natural perfeitamente distinta da análise das palavras é indispensável, é porque a experiência não nos libera o contínuo da natureza tal como ele é. Oferece-o ao mesmo tempo retalhado –

  • pois que há muitas lacunas na série dos valores efetivamente ocupados pelas variáveis (existem seres possíveis cujo valor se constata mas que jamais se teve ocasião de observar) –
  • e confuso, porque o espaço real, geográfico e terrestre onde nos encontramos nos mostra os seres imbricados uns com os outros numa ordem que, em relação à grande superfície das taxinomias, não passa de acaso, desordem ou perturbação.

Lineu observava que, ao associar nos mesmos lugares

  • o lernea (que é um animal)
  • e a conferva (que é uma alga),
  • ou ainda a esponja e o coral,

a natureza não reúne, como o desejaria a ordem das classificações,

“as mais perfeitas plantas com os animais chamados muito imperfeitos, mas combina os animais imperfeitos com as plantas imperfeitas”(41).

E Adanson constatava que a natureza

“é uma mistura confusa de seres que o acaso parece ter aproximado: aqui, o ouro está mesclado com outro metal, com uma pedra, com uma terra; ali, a violeta cresce ao lado do carvalho. Entre essas plantas vagueiam igualmente o quadrúpede, o réptil e o inseto; os peixes se confundem, por assim dizer, com o elemento aquoso onde nadam e com as plantas que crescem no fundo das águas… Essa mistura é tão geral até e tão multiplicada que parece ser uma das leis da natureza “(42).

Ora, essa imbricação é o resultado de uma série cronológica de acontecimentos. Estes têm seu ponto de origem e seu primeiro lugar de aplicação

  • não nas próprias espécies vivas,
  • mas no espaço onde elas se alojam.

Produzem-se na relação entre a Terra e o Sol, no regime dos climas, nas metamorfoses da crosta terrestre; o que eles atingem primeiramente são os mares e os continentes, é a superfície do globo; os seres vivos só são afetados por contragolpe e de maneira secundária: o calor os atrai ou os repele, os vulcões os destroem; desaparecem com as terras que desmoronam.

É possível, por exemplo, como supunha Buffon(43), que a terra tenha sido incandescente na origem, antes de arrefecer pouco a pouco; os animais, habituados a viver nas mais elevadas temperaturas, reagruparam-se na única região atualmente tórrida, enquanto as terras temperadas ou frias se povoavam de espécies que até então não tinham tido ocasião de aparecer.

Com as revoluções na história da Terra, o espaço taxinômico (onde as vizinhanças são da ordem do Caráter e não do modo de vida) veio a ser repartido num espaço concreto que o transmutava.

Bem mais: ele foi, sem dúvida, despedaçado, e muitas espécies, vizinhas daquelas que conhecemos ou intermediárias entre regiões taxinômicas que nos são familiares, devem ter-se extinguido, só deixando atrás de si vestígios difíceis de decifrar.

Em todo o caso, essa série histórica de acontecimentos se ajunta à superfície dos seres: não lhe pertence propriamente; desenrola-se no espaço real do mundo, não naquele, analítico, das classificações; o que ela põe em questão é o mundo como lugar dos seres e não os seres enquanto têm a propriedade de serem vivos.

Uma historicidade simbolizada pelas narrativas bíblicas afeta diretamente nosso sistema astronômico, indiretamente a rede taxinômica das espécies; e, além da Gênese e do Dilúvio, é bem possível que “nosso globo tenha sofrido outras revoluções que não nos foram reveladas. Ele depende de todo o sistema astronômico, e as ligações que unem este globo aos outros corpos celestes e, em particular, ao Sol e aos cometas podem ter sido a fonte de muitas revoluções, de que para nós não resta nenhum traço sensível e das quais talvez os habitantes de mundos vizinhos tenham tido algum conhecimento”(44).

A história natural supõe, pois, para poder existir como ciência, dois conjuntos:

  • um deles é constituído pela rede contínua dos seres; essa continuidade pode tomar diversas formas espaciais; Charles Bonnet concebe-a ora sob a forma de uma grande escala linear cujas extremidades são uma muito simples, outra muito complicada, tendo ao centro uma estreita região mediana, a única a nos ser desvelada, ora sob a forma de um tronco central do qual partiriam, de um lado, um ramo (o das conchas com os caranguejos e os lagostins como ramificações suplementares)
  • e, do outro, a série dos insetos na qual entroncam insetos e rãs(45);

Buffon define essa mesma continuidade “como uma vasta trama ou, antes, um feixe que, de intervalo em intervalo, lança ramos para o lado, a fim de se reunir a feixes de uma outra ordem”(46); Palias pensa numa figura poliédrica(47); J. Hennann queria constituir um modelo de três dimensões, composto de fios que, partindo todos de um ponto comum, se separam uns dos outros, “se expandem por um número muito grande de ramos laterais” e depois se reúnem de novo(48).

Dessas configurações espaciais que descrevem, cada qual à sua maneira, a continuidade taxinômica,

  • se distingue a série dos acontecimentos;
    • esta é descontínua e diferente em cada um de seus episódios, mas seu conjunto só pode desenhar uma linha simples, que é a do tempo (e que não se pode conceber como reta, quebrada ou circular).

Sob sua forma concreta e na espessura que lhe é própria, a natureza se aloja inteira

  • entre a superfície da taxinomia
  • e a linha das revoluções.

Os “quadros” que ela forma sob os olhos dos homens e que o discurso da ciência é encarregado de percorrer são os fragmentos da grande superficie das espécies vivas, de acordo com o que foi repartido, transmutado, imobilizado, entre duas revoluções do tempo.

Vê-se quanto é superficial opor, como duas opiniões diferentes e que se defrontassem em suas opções fundamentais

  • um “fixismo” que se contentasse em classificar os seres da natureza num quadro permanente
  • e uma espécie de “evolucionismo” que acreditasse numa história imemorial da natureza e num profundo impulso dos seres através da sua continuidade.

A solidez sem lacunas de uma rede de espécies e de gêneros e a série dos acontecimentos que a confundiram fazem parte, e num mesmo nível, do suporte epistemológico a partir do qual um saber como a história natural foi possível na idade clássica.

  • Não se trata de duas maneiras de perceber a natureza, radicalmente opostas porque comprometidas com opções filosóficas mais antigas e mais fundamentais que qualquer ciência;
  • trata-se de duas exigências simultâneas na rede arqueológica que define, na idade clássica, o saber da natureza.

Essas duas exigências, porém, são complementares. Portanto, irredutíveis. A série temporal não pode integrar-se na gradação dos seres. As épocas da natureza não prescrevem o tempo interior dos seres e de sua continuidade; elas ditam as intempéries que não cessaram de os dispersar, de os destruir, de os misturar, de os separar, de os entrelaçar.

Não há nem pode haver sequer a suspeita de um evolucionismo ou de um transformismo no pensamento clássico;

  • pois o tempo jamais é concebido como princípio de desenvolvimento para os seres vivos na sua organização interna;
  • só é percebido a título de revolução possível no espaço exterior onde eles vivem.