Capítulo VI - Trocar; tópico VI. A utilidade

A análise de Condillac, de Galiani, de Graslin, de Destutt corresponde à teoria gramatical da proposição.

Escolhe por ponto de partida

  • não o que é dado numa troca
  • mas o que é recebido:

a mesma coisa, na verdade, mas considerada do ponto de vista daquele que dela necessita, que a demanda e aceita renunciar ao que possui para obter essa outra coisa que estima mais útil e à qual atribui mais valor.

De fato, os fisiocratas e seus adversários percorrem o mesmo segmento teórico, mas num sentido oposto:

  • uns se perguntam sob que condição – e a que custo – um bem pode tornar-se um valor num sistema de trocas,
  • os outros, sob que condição um juízo de apreciação pode transformar-se em preço nesse mesmo sistema de trocas.

Compreende-se por que as análises dos fisiocratas e as dos utilitaristas são frequentemente tão próximas e por vezes complementares;

  • por que Cantillon pôde ser reivindicado por uns – pela sua teoria dos três rendimentos fundiários e pela importância que confere à terra – e por outros – pela sua análise dos circuitos e pelo papel que atribui à moeda (70);
  • por que Turgot pôde ser fiel à fisiocracia em La formation et Ia distribuition des richesses e tão próximo de Galiani em Valeur et monnaie.

Suponhamos a mais rudimentar das situações de troca:

  • um homem que só tem milho ou trigo,
  • e, frente a ele, um outro que só tem vinho ou lenha.

Não há ainda nenhum preço fixado, nem qualquer equivalência, nem qualquer medida comum.

Contudo, se esses homens reuniram essa lenha, semearam e colheram o milho ou o trigo, é porque faziam sobre essas coisas um certo juízo;

  • sem ter de o comparar com o que quer que fosse, julgavam que esse trigo ou essa lenha podia satisfazer uma de suas necessidades – que lhes seria útil:

“Dizer que uma coisa vale é dizer que ela é ou que nós a estimamos boa para algum uso. O valor das coisas está, pois, fundado em sua utilidade ou, o que dá no mesmo, no uso que delas podemos fazer.”(71)

Esse juízo funda o que Turgot chama “valor estimativo” das coisas(72). Valor que é absoluto, pois que concerne a cada mercadoria individualmente, e sem comparação com nenhuma outra; que é, porém, relativo e cambiante, pois que se modifica com o apetite, os desejos ou a necessidade dos homens.

Entretanto, a troca que se realiza com base nessas utilidades primeiras não é sua simples redução a um denominador comum. Em si mesma, é criadora de utilidade, porquanto oferece à apreciação de um o que até então só tinha para o outro pouca utilidade.

Há, nesse momento, três possibilidades.

  1. Ou o “superabundante de cada um”, como diz Condillac(73) o que ele não utilizou ou não conta utilizar imediatamente -, corresponde em qualidade e em quantidade às necessidades do outro:

todo o excedente do proprietário de trigo se revela, na situação de troca, útil ao proprietário de vinho, e reciprocamente; por conseguinte, o que era inútil torna-se totalmente útil por uma criação de valores simultâneos e iguais de cada lado; o que na estimação de um era nulo torna-se positivo na do outro; e como a situação é simétrica, os valores estimativos assim criados são automaticamente equivalentes; utilidade e preço se correspondem por inteiro; a apreciação se ajusta de pleno direito à estimação.

2. Ou, então, o superabundante de um não basta para as necessidades do outro e este se preservará de dar tudo o que possui;

reservará uma parte para obter de um terceiro o complemento indispensável à sua necessidade; essa parte subtraída – e que o parceiro busca reduzir o mais possível, já que tem necessidade de todo o supérfluo do primeiro – faz aparecer o preço: não se troca mais o excesso de trigo pelo excesso de vinho mas, em seguida a uma altercação, dão-se tantos tonéis de vinho por tantos sesteiros de trigo. Dir-se-á que aquele que dá mais perde na troca em relação ao valor do que possuía? Não propriamente, pois esse supérfluo é para ele sem utilidade ou, em todo o caso, posto que aceitou trocá-lo, é porque confere mais valor àquilo que recebe do que àquilo que abandona.

3. Enfim, terceira hipótese, nada é absolutamente supérfluo para ninguém, pois cada um dos dois parceiros sabe que pode utilizar, a prazo mais ou menos longo, a totalidade daquilo que possui:

o estado de necessidade é geral e cada parcela de propriedade se torna riqueza. Portanto, os dois parceiros podem muito bem nada trocar; mas cada um pode igualmente estimar que uma parte da mercadoria do outro lhe seria mais útil que uma parte da sua própria. Um e outro estabelecem – e cada um para si, portanto segundo um cálculo diferente – uma desigualdade mínima: tantas medidas de milho que eu não tenho, diz um, valerão para mim um pouco mais que tantas medidas de minha lenha; tal quantidade de lenha, diz o outro, me será mais preciosa que tantas de milho. Essas duas desigualdades estimativas definem para cada um o valor relativo que confere ao que possui e ao que não detém. Para ajustar essas duas desigualdades, não há outro meio senão estabelecer entre elas a igualdade de duas relações: a troca se fará quando a relação do milho com a lenha para um tornar-se igual à relação da lenha com o milho para o outro. Enquanto o valor estimativo se define unicamente pelo jogo de uma necessidade e de um objeto – portanto, por um interesse único num indivíduo isolado – no valor apreciativo, tal como aparece agora,

“há dois homens que comparam e há quatro interesses comparados; mas os dois interesses particulares de cada um dos dois contratantes foram primeiro comparados à parte, entre si, e os resultados é que são em seguida comparados conjuntamente para formar um valor estimativo médio”;

essa igualdade da relação permite dizer, por exemplo, que quatro medidas de milho e cinco braças de lenha têm um valor permutável igual(74). Essa igualdade, porém, não quer dizer que se troca utilidade por utilidade em porções idênticas; trocam-se desigualdades, o que quer dizer que dos dois lados – e ainda que cada elemento do mercado tenha tido uma utilidade intrínseca – adquire-se mais valor do que se possuía. Em vez de duas utilidades imediatas, dispõe-se de duas outras que são reputadas capazes de satisfazer necessidades maiores.

Tais análises mostram o entrecruzamento do valor e da troca; não se trocaria se não existissem valores imediatos – isto é, se não existisse nas coisas “um atributo que lhes é acidental e que depende unicamente das necessidades do homem como o efeito depende de sua causa”(75).

Mas a troca, por sua vez, cria valor. E isso de duas maneiras.

1. Primeiramente torna úteis coisas que sem ela seriam de utilidade fraca ou talvez nula:

que pode valer um diamante para os homens que têm fome ou necessidade de se vestir? Basta, porém, que exista no mundo uma mulher a quem se deseja agradar e um comércio suscetível de trazê-Ia às suas mãos, para que a pedra se torne “riqueza indireta para seu proprietário que dela não precisa… o valor desse objeto é para ele um valor de troca”(76) e ele poderá nutrir-se vendendo o que só serve para brilhar: daí a importância do luxo(77), daí o fato de haver diferença do ponto de vista das riquezas, entre necessidade, comodidade e prazer(78).

2. Por outro lado, a troca faz nascer um novo tipo de valor, que é “apreciativo”:

organiza entre as utilidades uma relação recíproca, que duplica a relação com a simples necessidade. E, sobretudo, modifica-a: é que, na ordem da apreciação, da comparação, pois, de cada valor com todos, a menor criação nova de utilidade diminui o valor relativo daquelas que já existem. O total das riquezas não aumenta, apesar do aparecimento de novos objetos que podem satisfazer as necessidades; toda produção faz nascer somente “uma nova ordem de valores relativamente à massa das riquezas; os primeiros objetos da necessidade terão diminuído de valor para dar lugar, na massa, ao novo valor dos objetos de comodidade ou de prazer”(79).

A troca é, portanto,

  • o que aumenta os valores (fazendo aparecer novas utilidades que, ao menos indiretamente, satisfazem necessidades);
  • mas é igualmente o que diminui os valores (uns em relação aos outros na apreciação que se faz de cada um).

Por ela, o não-útil torna-se útil e, na mesma proporção, o mais útil torna-se menos útil. Tal é o papel constitutivo da troca no jogo de valor: dá um preço a todas as coisas e abaixa o preço de cada uma.

Vê-se que os elementos teóricos são os mesmos nos fisiocratas e nos seus adversários. O corpo das proposições fundamentais lhes é comum:

  • toda riqueza nasce da terra;
  • o valor das coisas está ligado à troca;
  • a moeda vale como a representação das riquezas em circulação;
  • a circulação deve ser tão simples e completa quanto possível.

Esses elementos teóricos, porém, são dispostos pelos fisiocratas e pelos “utilitaristas” numa ordem que é inversa; e, em consequência desse jogo das disposições, o que para uns tem um papel positivo torna-se negativo para os outros.

Condillac, Galiani, Graslin partem da troca das utilidades como fundamento subjetivo e positivo de todos os valores; tudo o que satisfaz a necessidade tem portanto um valor, e toda transformação ou toda transposição que permita satisfazer as mais numerosas necessidades constitui um aumento de valor: é esse aumento que permite retribuir os operários, dando-lhes, subtraído desse crescimento, o equivalente de sua subsistência. Mas todos esses elementos positivos que constituem o valor repousam sobre um certo estado de necessidades nos homens, portanto, sobre o caráter finito da fecundidade da natureza.

Para os fisiocratas, a mesma série deve ser percorrida ao inverso: toda transformação e todo trabalho sobre os produtos da terra são retribuídos pela subsistência do operário; estabelecem-se, portanto, pela diminuição do total dos bens; o valor só nasce onde houver consumo. Portanto, para que o valor apareça, é preciso que a natureza seja dotada de uma fecundidade indefinida.

Tudo o que é percebido positivamente e como que em relevo numa das duas leituras é percebido como que em recôncavo, negativamente, na outra.

Os “utilitaristas” fundam sobre a articulação das trocas a atribuição às coisas de um certo valor; os fisiocratas explicam pela existência das riquezas a determinação progressiva dos valores.

Nuns e noutros, porém, a teoria do valor, como a da estrutura na história natural, liga o momento que atribui ao que articula.

Teria sido talvez mais simples dizer que

  • os fisiocratas representavam os proprietários fundiários,
  • e os “utilitaristas”, os comerciantes e os empresários.

Que estes, por consequência, acreditavam no aumento do valor quando as produções naturais se transformavam ou se deslocavam; que, por força das coisas, estavam preocupados com uma economia de mercado em que as necessidades e os desejos faziam a lei.

Que os fisiocratas, em contrapartida, só acreditavam na produção agrícola e reivindicavam para ela uma retribuição melhor; que, sendo proprietários, atribuíam à renda fundiária um fundamento natural e que, reivindicando o poder político, pretendiam ser os únicos sujeitos submetidos ao imposto, portadores, portanto, dos direitos que ele confere. E certamente, através da coerência de interesses, reencontrar-se-iam as grandes opções econômicas de uns e de outros.

Mas, se o fato de pertencer a um grupo social pode sempre explicar que este ou aquele tenha escolhido um sistema de pensamento de preferência a outro, a condição para que esse sistema tenha sido pensado não reside jamais na existência desse grupo.

É preciso distinguir com cuidado duas formas e dois níveis de estudos.

  • Um seria uma pesquisa de opiniões para saber
    • quem, no século XVIII, foi fisiocrata e quem foi antifisiocrata;
    • quais os interesses em jogo;
    • quais os pontos e os argumentos da polêmica;
    • como se desenrolou a luta pelo poder.
  • O outro, sem levar em conta personagens nem sua história, consiste em definir as condições a partir das quais foi possível pensar, em formas coerentes e simultâneas,
    • o saber “fisiocrático”
    • e o saber “utilitarista”.

A primeira análise seria pertinente a uma doxologia.

A arqueologia só pode reconhecer e praticar a segunda.