Capítulo VII - Os limites da representação; tópico II. A medida do trabalho
Afirma-se facilmente que Adam Smith fundou a economia política moderna – poder-se-ia dizer a economia simplesmente – introduzindo o conceito de trabalho num domínio de reflexão que ainda não o conhecia: de imediato, todas as velhas análises da moeda, do comércio e da troca teriam sido remetidas a uma idade pré-histórica do saber – com exceção talvez unicamente da fisiocracia, à qual se concede o mérito de ter tentado ao menos a análise da produção agrícola.
É verdade que Adam Smith refere, logo de início, a noção de riqueza à de trabalho:
“O trabalho anual de uma nação é o fundo primitivo que fornece ao consumo anual todas as coisas necessárias e cômodas à vida; e essas coisas são sempre ou o produto imediato desse trabalho ou compradas de outras nações com esse produto”(1);
é também verdade que Smith reporta
- o “valor em uso” das coisas à necessidade dos homens,
- e o “valor em troca” à quantidade de trabalho aplicada para produzi-lo:
“O valor de uma mercadoria qualquer, para aquele que a possui e que não pretenda pessoalmente dela fazer uso ou consumi-Ia, mas que tem a intenção de trocá-Ia por outra coisa, é igual à quantidade de trabalho que essa mercadoria lhe permite comprar ou encomendar.”(2)
De fato, a diferença entre as análises de Smith e as de Turgot ou Cantillon é menor do que se crê; ou, antes, não reside lá onde se imagina. Desde Cantillon e antes dele já se distinguiam perfeitamente o valor de uso e o valor de troca; desde Cantillon igualmente, utilizava-se a quantidade de trabalho para medir este último.
Mas a quantidade de trabalho inscrita no preço das coisas não passava de um instrumento de medida, ao mesmo tempo relativo e redutível. Com efeito, o trabalho de um homem valia a quantidade de alimento que era necessária a ele e à sua família para os manter durante o tempo que durava a obra(3).
De sorte que, em última instância, a necessidade – o alimento, o vestuário, a habitação – definia a medida absoluta do preço de mercado.
Ao longo de toda a idade clássica, é a necessidade que mede as equivalências, o valor de uso que serve de referência absoluta aos valores de troca; é o alimento que afere os preços, dando à produção agrícola, ao trigo e à terra o privilégio que todos lhes reconheceram.
Adam Smith não inventou portanto o trabalho como conceito econômico, porquanto já o encontramos em Cantillon, em Quesnay, em Condillac; nem mesmo lhe faz desempenhar um papel novo, pois dele também se serve como medida do valor de troca:
“O trabalho é a medida real do valor permutável de toda mercadoria.”(4)
Desloca-o porém:
- conserva-lhe sempre a função de análise das riquezas permutáveis;
- essa análise, entretanto, não é mais um puro e simples momento para reconduzir a troca à necessidade (e o comércio ao gesto primitivo da permuta);
- ela descobre uma unidade de medida irredutível, insuperável e absoluta.
Desde logo, as riquezas não estabelecerão mais a ordem interna de suas equivalências por uma comparação dos objetos a trocar, nem por uma estimação do poder próprio a cada um de representar um objeto de necessidade (e, em último recurso, o mais fundamental de todos, o alimento); elas se decomporão segundo as unidades de trabalho que realmente as produziram.
As riquezas são sempre elementos representativos que funcionam: mas o que representam finalmente
- não é mais o objeto do desejo,
- é o trabalho.
Duas objeções, porém, logo se apresentam:
como pode o trabalho ser medida fixa do preço natural das coisas, se ele próprio tem um preço – e que é variável?
Como pode o trabalho ser uma unidade insuperável, se ele muda de forma e se o progresso das manufaturas o torna incessantemente mais produtivo, dividindo-o sempre mais?
Ora, é justamente através dessas objeções e como que por seu intermédio que podemos trazer à luz a irredutibilidade do trabalho e seu caráter primeiro.
Com efeito,
- há regiões no mundo e momentos numa mesma região em que o trabalho é caro:
- os operários são pouco numerosos,
- os salários elevados;
- em outras partes e em outros momentos,
- a mão-de-obra abunda, é mal retribuída,
- o trabalho é barato.
Mas o que se modifica nessas alternâncias é a quantidade de alimento que se pode obter com um dia de trabalho;
- se há poucas mercadorias e muitos consumidores, cada unidade de trabalho só será recompensada por uma fraca quantidade de subsistência;
- em contrapartida, ela será bem paga se as mercadorias se encontram em abundância.
Isso não passa de conseqüências de uma situação de mercado;
- o próprio trabalho,
- as horas passadas,
- o esforço e a fadiga são,
de todo modo, os mesmos; e quanto mais necessárias forem essas unidades, tanto mais caros serão os produtos.
“As quantidades iguais de trabalho são sempre iguais para aquele que trabalha.”(5)
E contudo poder-se-ia dizer que essa unidade não é fixa, já que, para produzir um único e mesmo objeto, será preciso, conforme a perfeição das manufaturas (isto é, segundo a divisão do trabalho que se instaurou), um labor mais ou menos longo.
Mas, na verdade, não foi o trabalho em si mesmo que mudou; foi a relação do trabalho com a produção de que ele é suscetível.
O trabalho, entendido como jornada, esforço e fadiga, é um numerador fixo: só o denominador (o número de objetos produzidos) é capaz de variações.
- Um operário que tivesse de fazer sozinho as 18 operações distintas de que necessita a fabricação de um alfinete não produziria, sem dúvida, mais que cerca de 20 deles no curso de todo um dia.
- Mas dez operários que tivessem de efetuar cada qual somente uma ou duas operações poderiam fazer juntos mais de 48 mil alfinetes num dia; portanto, cada operário, realizando uma décima parte desse produto, pode ser considerado como fazendo em seu dia 4.800 alfinetes(6).
A potência produtiva do trabalho foi multiplicada; numa mesma unidade (a jornada de um assalariado), os objetos fabricados aumentaram; seu valor de troca vai portanto baixar, isto é, cada um deles, por sua vez, só poderá comprar uma quantidade de trabalho proporcionalmente menor.
O trabalho não diminuiu em relação às coisas; foram as coisas que como que se estreitaram em relação à unidade de trabalho. Troca-se, é verdade, porque se têm necessidades; sem elas, o comércio não existiria, nem tampouco o trabalho, nem sobretudo essa divisão que o torna mais produtivo. Inversamente, são as necessidades que, quando satisfeitas, limitam o trabalho e seu aperfeiçoamento:
“Uma vez que é a faculdade de trocar que dá lugar à divisão do trabalho, o aumento dessa divisão deve, por conseqüência, ser sempre limitado pela extensão da faculdade de trocar ou, em outros termos, pela extensão do mercado.”(7)
As necessidades e a troca de produtos que podem responder a elas são sempre o princípio da economia: são seu primeiro motor e a circunscrevem; o trabalho e a divisão que o organiza não passam de seus efeitos.
Mas, no interior da troca, na ordem das equivalências, a medida que estabelece as igualdades e as diferenças é de natureza diversa da necessidade.
Não está ligada apenas ao desejo dos indivíduos, modificada com ele e variável como ele. É uma medida absoluta, se com isso se entender que não depende do coração dos homens ou de seu apetite; impõe-se-lhes do exterior: é seu tempo e é seu esforço.
Em relação à de seus predecessores, a análise de Adam Smith representa um desfecho essencial:
- ela distingue a razão da troca e a medida do permutável,
- a natureza do que é trocado e as unidades que permitem sua decomposição.
Troca-se porque se tem necessidade, e os objetos precisamente de que se tem necessidade, mas a ordem das trocas, sua hierarquia e as diferenças que aí se manifestam são estabelecidas pelas unidades de trabalho que foram depositadas nos objetos em questão.
Se, para a experiência dos homens – ao nível do que se vai incessantemente chamar de psicologia – o que eles trocam é o que lhes é “indispensável, cômodo ou agradável”, para o economista, o que circula sob a forma de coisas é trabalho.
Não mais objetos de necessidade que se representam uns aos outros, mas tempo e fadiga, transformados, ocultos, esquecidos. Esse desfecho é de grande importância.
Certamente, Adam Smith analisa ainda, como seus predecessores, esse campo de positividade a que o século XVIII chamou “riquezas”; e, com isso, entendia também ele objetos de necessidade – os objetos portanto de uma certa forma de representação – representando-se a si próprios nos movimentos e nos processos da troca.
- Mas, no interior dessa reduplicação e para regular sua lei, as unidades e as medidas da troca, ele formula um princípio de ordem que é irredutível à análise da representação:
- traz à luz o trabalho, isto é, o esforço e o tempo, essa jornada que, ao mesmo tempo talha e gasta a vida de um homem.
A equivalência dos objetos do desejo
- não é mais estabelecida por intermédio de outros objetos e de outros desejos,
- mas por uma passagem ao que lhes é radicalmente heterogêneo;
- se há uma ordem nas riquezas,
- se isto pode comprar aquilo,
- se o ouro vale duas vezes mais que a prata,
- não é mais porque os homens têm desejos comparáveis;
- não é porque através de seu corpo eles experimentam a mesma fome ou porque o coração de todos obedece às mesmas seduções;
- é porque todos eles são submetidos ao tempo, ao esforço, à fadiga e, indo ao extremo, à própria morte.
Os homens trocam porque experimentam necessidades e desejos;
mas podem trocar e ordenar essas trocas porque são submetidos ao tempo e à grande fatalidade exterior.
Quanto à fecundidade desse trabalho, não é ela devida tanto à habilidade pessoal ou ao cálculo dos interesses; funda-se em condições, também estas, exteriores à sua representação: progresso da indústria, aumento da divisão de tarefas, acúmulo de capitais, divisão do trabalho produtivo e do trabalho não-produtivo.
Vê-se de que maneira a reflexão sobre as riquezas começa, com Adam Smith, a extravasar o espaço que lhe era designado na idade clássica;
- era então alojada no interior da “ideologia” – da análise da representação;
- doravante, ela se refere, como que de viés, a dois domínios que escapam, tanto um quanto o outro, às formas e às leis da decomposição das idéias:
- de um lado, ela desponta já para uma antropologia que põe em questão a essência do homem (sua finitude, sua relação com o tempo, a iminência da morte) e o objeto no qual ele investe as jornadas de seu tempo e de seu esforço sem poder nele reconhecer o objeto de sua necessidade imediata;
- e, de outro, indica, ainda no vazio, a possibilidade de uma economia política
- que não mais teria por objeto a troca das riquezas (e o jogo das representações que a cria),
- mas sua produção real: formas do trabalho e do capital.
Compreende-se como, entre essas positividades recentemente formadas –
uma antropologia que fala de um homem tornado estranho a si mesmo e uma economia que fala de mecanismos exteriores à consciência humana
– a Ideologia ou a Análise das representações se reduzirá, em breve, a ser não mais que uma psicologia, ao mesmo tempo em que, diante dela, contra ela e dominando-a bem logo do alto de si mesma, se abre a dimensão de uma história possível.
A partir de Smith, o tempo da economia
- não será mais aquele, cíclico, dos empobrecimentos e dos enriquecimentos;
- também não será o crescimento linear das políticas hábeis que, aumentando sempre ligeiramente as espécies em circulação, aceleram a produção mais rapidamente do que elevam os preços;
- será o tempo interior de uma organização que cresce segundo sua própria necessidade e se desenvolve segundo leis autóctones – o tempo do capital e do regime de produção.