Capítulo VII - Os limites da representação; tópico IV. A flexão das palavras
Encontra-se a réplica exata desses acontecimentos do lado das análises da linguagem.
Nisso, porém, têm elas, sem dúvida, uma forma mais discreta e também uma cronologia mais lenta.
Há para isso uma razão fácil de descobrir;
é que, durante toda a idade clássica, a linguagem foi posta e refletida como discurso, isto é, como análise espontânea da representação.
De todas as formas de ordem não-quantitativa, era a mais imediata, a menos preparada, a mais profundamente ligada ao movimento próprio da representação.
E, nessa medida, estava mais bem enraizada nela e no seu modo de ser do que estas ordens refletidas – sábias ou interessadas – que fundavam
- a classificação dos seres
- ou a troca das riquezas.
Modificações técnicas como as que afetaram
- a medida dos valores de troca
- ou os procedimentos da caracterização
bastaram para alterar consideravelmente a análise das riquezas ou a história natural.
Para que a ciência da linguagem sofresse modificações tão importantes, foram necessários acontecimentos mais profundos, capazes de mudar, na cultura ocidental, até o ser mesmo das representações.
Assim como a teoria do nome, nos séculos XVII e XVIII,
se alojava o mais perto possível da representação e com isso comandava, até certo ponto,
a análise das estruturas e do caráter nos seres vivos,
a do preço e do valor nas riquezas,
assim também, no fim da idade clássica,
é ela que subsiste mais tempo, só se desfazendo tardiamente no momento em que a própria representação se modifica ao nível mais profundo de seu regime arqueológico.
Até o começo do século XIX, as análises da linguagem só manifestam ainda poucas mudanças. As palavras são sempre interrogadas a partir de seus valores representativos, como elementos virtuais do discurso que lhes prescreve a todas um mesmo modo de ser.
No entanto, esses conteúdos representativos já não são analisados somente na dimensão que a aproxima de uma origem absoluta, seja ela mítica ou não.
Na gramática geral sob sua forma mais pura,
- todas as palavras de uma língua eram portadoras de uma significação mais ou menos oculta, mais ou menos derivada,
- mas cuja primitiva razão de ser residia numa designação inicial.
Toda língua, por mais complexa que fosse, achava-se situada na abertura, disposta de uma vez por todas, pelos gritos arcaicos.
As semelhanças laterais com as outras línguas – sonoridades vizinhas recobrindo significações análogas – só eram observadas e coligidas para confirmar a relação vertical de cada uma com esses valores profundos, encobertos, quase mudos.
No último quartel do século XVIII a comparação horizontal entre as línguas adquire outra função:
- não mais permite saber o que cada uma pode comportar de memória ancestral, que marcas de antes de BabeI estão depositadas na sonoridade de suas palavras;
- deve permitir, porém, medir até que ponto elas se assemelham, qual a densidade de suas similitudes, em que limites são transparentes uma à outra.
Daí essas grandes confrontações de línguas diversas que se vê surgirem no fim do século – e por vezes sob a pressão de motivos políticos, como as tentativas feitas na Rússia(20) para estabelecer um levantamento das línguas do Império;
em 1787, aparece em Petrogrado o primeiro volume do Glossarium comparatiuum totius orbis;
ele contém referência a 279 línguas:
171 para a Ásia,
55 para a Europa,
30 para a África,
23 para a América(21).
Essas comparações fazem-se ainda exclusivamente a partir e em função dos conteúdos representativos;
- confronta-se um mesmo núcleo de significação – que serve de invariante – com as palavras pelas quais as diversas línguas podem designá-Io (Adelung(22) dá 500 versões do pater em línguas e dialetos diferentes);
- ou então, escolhendo uma raiz como elemento constante através de formas ligeiramente variadas, determina-se o leque dos sentidos que ela pode assumir (são os primeiros ensaios de lexicografia, como a de Buthet de La Sarthe).
Todas essas análises remetem sempre a dois princípios que eram já os da gramática geral:
- o de uma língua primitiva e comum que teria fornecido o lote inicial das raízes,
- e o de uma série de acontecimentos históricos, estranhos à linguagem e que, do exterior, a vergam, gastam-na, apuram-na, agilizam-na, multiplicam ou misturam suas formas (invasões, migrações, progressos dos conhecimentos, liberdade ou escravidão política etc.).
Ora, a confrontação das línguas, no fim do século XVIII, traz à luz uma figura intermediária entre a articulação dos conteúdos e o valor das raÍzes: trata-se da flexão.
Certamente, os gramáticos conheciam desde muito tempo os fenômenos flexionais (assim como, em história natural, conhecia-se o conceito de organização antes de PalIas ou Lamarck; e, em economia, o conceito de trabalho antes de Adam Smith);
mas as flexões só eram analisadas por seu valor representativo – quer fossem consideradas como representações anexas, quer se visse nelas uma forma de ligar entre si as representações (alguma coisa como uma outra ordem das palavras).
Mas, quando se faz, como Coeurdoux(23) e William Jones(24) a comparação entre as diferentes formas do verbo ser em sânscrito e em latim ou em grego, descobre-se uma relação de constância que é inversa àquela que se admitia correntemente: a raiz é que é alterada e as flexões é que são análogas.
A série sânscrita asmi, asi, asti, smas, stha, santi, corresponde exatamente, mas por analogia flexional, à série latina sum, es, est, sumus, estis, sunt.
Sem dúvida, Coeurdoux e Anquetil-Duperron permaneciam ao nível das análises da gramática geral quando o primeiro via nesse paralelismo os restos de uma língua primitiva; e o segundo, o resultado da mistura histórica que se teria feito entre hindus e mediterrâneos na época do reino de Bactriana.
Mas o que estava em jogo nessa conjugação comparada
- já não era mais o liame entre sílaba primitiva e sentido primeiro,
- era uma relação mais complexa entre as modificações do radical e as funções da gramática;
- descobria-se que em duas línguas diferentes havia uma relação constante entre uma série determinada de alterações formais e uma série igualmente determinada de funções gramaticais, de valores sintáticos ou de modificações sem sentido.
Por isso mesmo, a gramática geral começa a mudar de configuração:
- seus diversos segmentos teóricos não mais se encadeiam totalmente do mesmo modo uns nos outros;
- e a rede que os une desenha um percurso já ligeiramente diferente.
Na época de Bauzée ou de Condillac,
- a relação entre as raízes de forma tão hábil e o sentido determinado nas representações,
- ou ainda o liame entre o poder de designar e o de articular,
era assegurado pela soberania do Nome.
Agora um novo elemento intervém:
- do lado do sentido ou da representação, ele indica apenas um valor acessório, necessariamente secundário (trata-se do papel de sujeito ou de complemento desempenhado pelo indivíduo ou pela coisa designada; trata-se do tempo da ação);
- mas, do lado da forma, ele constitui o conjunto sólido, constante, inalterável ou quase, cuja lei soberana se impõe às raízes representativas até modificar elas próprias.
Mais ainda, esse elemento, secundário pelo valor significativo, primeiro pela consciência formal, não é, ele próprio, uma sílaba isolada, como uma espécie de raiz constante; é um sistema de modificações cujos segmentos diversos são solidários uns aos outros: a letra s não significa a segunda pessoa, como a letra e significava, segundo Court de Gébelin, a respiração, a vida e a existência; é o conjunto das modificações m, s, t, que dá à raiz verbal os valores da primeira, segunda e terceira pessoa.
Essa nova análise, até o fim do século XVIII, se aloja na busca dos valores representativos da linguagem.
É ainda do discurso que se trata. Já aparece porém, através do sistema das flexões, a dimensão do gramatical puro:
- a linguagem não é mais constituída somente de representações e de sons que, por sua vez, as representam e se ordenam entre si como o exigem os liames do pensamento;
- é, ademais, constituída de elementos formais, agrupados em sistema, e que impõem aos sons, às sílabas, às raízes, um regime que não é o da representação.
Introduz-se assim na análise da linguagem um elemento que lhe é irredutível (como se introduz o trabalho na análise da troca ou a organização na dos caracteres).
A título de consequência primeira, pode-se notar o aparecimento, no fim do século XVIII, de uma fonética que não é mais busca dos primeiros valores expressivos, mas análise dos sons, de suas relações e de sua transformação possível uns nos outros; Helwag, em 1781, define o triângulo vocálico(25).
Pode-se notar também o aparecimento dos primeiros esboços de gramática comparada;
- não se toma mais como objeto de comparação nas diversas línguas o par formado por um grupo de letras e por um sentido,
- mas conjuntos de modificações de valor gramatical (conjugações, declinações e afixações).
As línguas são confrontadas não mais por aquilo que as palavras designam, mas pelo que as liga umas às outras; elas vão agora comunicar-se,
- não por intermédio desse pensamento anônimo e geral que devem representar,
- mas diretamente, uma com a outra, graças a esses finos instrumentos de aparência tão frágil, mas tão constantes, tão irredutíveis, que dispõem as palavras umas em relação às outras.
Como dizia Monboddo:
“Sendo o mecanismo das línguas menos arbitrário e mais bem regulado que a pronúncia das palavras, aí encontramos um excelente critério para determinar a afinidade das línguas entre si. É por isso que, quando vemos duas línguas empregarem da mesma forma esses grandes procedimentos da linguagem, a derivação, a composição, a inflexão, podemos disso concluir que uma deriva da outra ou que são, ambas, dialetos de uma mesma língua primitiva.”(26)
Enquanto a língua fora definida como discurso, não podia ter outra história senão a de suas representações: se as idéias, as coisas, os conhecimentos, os sentimentos, porventura mudavam, então e somente então a língua se modificava e na exata proporção de suas mudanças.
Doravante, porém, há um “mecanismo” interior das línguas que determina
- não só a individualidade de cada uma,
- mas também suas semelhanças com as outras:
- é ele que, portador de
- identidade e de diferença,
- signo de vizinhança,
- marca do parentesco,
- vai tornar-se suporte da história.
Por ele, a historicidade poderá introduzir-se na espessura da própria palavra.