Capítulo VIII - Trabalho, vida e linguagem; tópico I - As novas empiricidades

Eis que nos adiantamos
bem para além do acontecimento histórico que se impunha situar
– bem para além das margens cronológicas
dessa ruptura que divide, em sua profundidade,
a epistémê do mundo ocidental
e isola para nós o começo
de certa maneira moderna de conhecer as empiricidades. 

É que o pensamento que nos é contemporâneo
e com o qual, queiramos ou não, pensamos,
se acha ainda muito dominado 

pela impossibilidade,
trazida à luz por volta do fim do século XVIII,
de fundar as sínteses no espaço da representação 

e pela obrigação
correlativa, simultânea, mas logo dividida contra si mesma,
de abrir o campo transcendental da subjetividade
e de constituir inversamente,
para além do objeto,
esses “quase-transcendentais” que são para nós
a Vida, o Trabalho, a Linguagem. 

Para fazer surgir 

  • essa obrigação 
  • e essa impossibilidade 

na aspereza de sua irrupção histórica, 

  • era preciso deixar a análise correr ao longo de todo o pensamento que encontra sua fonte em semelhante abertura; 
  • era preciso que tal intento reduplicasse apressadamente o destino ou o pendor do pensamento moderno para atingir finalmente seu ponto de declínio: 

esta claridade de hoje, ainda pálida mas talvez decisiva, que nos permite, se não contornar por inteiro, ao menos dominar fragmentariamente e ter um pouco sob controle aquilo que, desse pensamento formado no limiar da idade moderna, chega ainda até nós, nos investe e serve de solo contínuo ao nosso discurso. 

Entretanto, a outra metade do acontecimento – a mais importante sem dúvida – pois ela concerne em seu ser mesmo, em seu enraizamento, às positividades sobre as quais se arraigam nossos conhecimentos empíricos – ficou em suspenso; e é ela que é preciso agora analisar. 

Numa primeira fase 

– a que cronologicamente se estende de 1775 a 1795 e cuja configuração se pode designar através das obras de Smith, de Jussieu e de Wilkins – os conceitos de trabalho, de organismo e de sistema gramatical foram introduzidos – ou reintroduzidos com um estatuto singular – na análise das representações e no espaço tabular onde esta até então se desenrolava. 

Sem dúvida, sua função era ainda somente autorizar essa análise, permitir o estabelecimento das identidades e das diferenças, e fornecer o instrumento – como a medida qualitativa – de uma ordenação. 

Todavia, 

  • nem o trabalho, 
  • nem o sistema gramatical, 
  • nem a organização viva 

podiam ser definidos ou assegurados pelo simples jogo da representação se decompondo, se analisando, se recompondo e assim representando-se a si mesma numa pura reduplicação; o espaço da análise não podia, pois, deixar de perder sua autonomia. 

O quadro, doravante, deixando de ser o lugar de todas as ordens possíveis, a matriz de todas as relações, a forma de distribuição de todos os seres em sua individualidade singular, já não constitui para o saber senão uma fina película de superfície; 

  • as vizinhanças que ele manifesta, 
  • as identidades elementares que circunscreve e cuja repetição é por ele mostrada, 
  • as semelhanças que desprende e expõe, 
  • as constâncias que permite percorrer, 

nada mais são que os efeitos de certas sínteses, ou organizações, ou sistemas 

que residem muito além de todas as repartições que se podem ordenar a partir do visível. 

A ordem que se dá ao olhar, com o quadriculado permanente de suas distinções, não é mais que uma cintilação superficial por sobre uma profundeza. 

O espaço do saber ocidental acha-se agora prestes a balançar: 

  • a taxinomia 

cuja grande camada universal se estendia em correlação com a possibilidade de uma máthêsis e que constituía o tempo forte do saber – ao mesmo tempo sua possibilidade primeira e o termo de sua perfeição – 

vai ordenar-se segundo uma verticalidade obscura: 

esta definirá a lei das semelhanças, prescreverá as vizinhanças e as descontinuidades, fundará as disposições perceptíveis e desviará todos os grandes desdobramentos horizontais da taxinomia para a região um pouco acessória das consequências. 

Assim, a cultura européia inventa para si uma profundeza em que 

  • a questão não será mais a das identidades, dos caracteres distintivos, das plataformas permanentes com todos os seus caminhos e percursos possíveis, 
  • mas a das grandes forças ocultas desenvolvidas a partir de seu núcleo primitivo e inacessível, 
  • mas a da origem, da causalidade e da história. 

Doravante, as coisas só virão à representação do fundo dessa espessura recolhida em si, emaranhadas talvez e tornadas mais sombrias por sua obscuridade, porém fortemente enlaçadas a si mesmas, reunidas ou divididas, agrupadas sem recurso pelo vigor que lá, naquele fundo, se oculta. 

As figuras visíveis, seus liames, os brancos que as isolam e contornam seu perfil

não mais se oferecerão a nosso olhar
senão totalmente compostos,
já articulados
nessa noite subterrânea que as fomenta com o tempo. 

Então – e esta é a outra fase do acontecimento – 

o saber, em sua positividade, muda de natureza e de forma. 

Seria falso – sobretudo insuficiente – atribuir essa mutação 

  • à descoberta de objetos ainda desconhecidos como o sistema gramatical do sânscrito, 
  • ou a relação, no ser vivo, entre as disposições anatômicas e os planos funcionais, 
  • ou ainda o papel econômico do capital. 

Nem seria mais exato imaginar que 

  • a gramática geral tornou-se filologia, 
  • a história natural, biologia, 
  • e a análise das riquezas, economia política, 

porque todos esses modos de conhecimento retificaram seus métodos, se acercaram mais de perto do seu objeto, racionalizaram seus conceitos, escolheram melhores modelos de formalização – em suma, porque se teriam desprendido de sua pré-história por uma espécie de auto-análise da própria razão. 

O que mudou, na curva do século,
e sofreu uma alteração irreparável
foi o próprio saber
como modo de ser prévio e indiviso
entre o sujeito que conhece
e o objeto do conhecimento; 

  • se se começa a estudar o custo da produção, e não mais se utiliza a situação ideal e primitiva da permuta para analisar a formação do valor, é porque, ao nível arqueológico,
    • a produção como figura fundamental no espaço do saber 
    • substituiu-se à troca, 
  • fazendo aparecer,
    • por um lado, novos objetos cognoscíveis (como o capital) 
    • e prescrevendo, por outro, novos conceitos e novos métodos (como a análise das formas de produção). 

Do mesmo modo, 

  • se se estuda, a partir de Cuvier, a organização interna dos seres vivos, e se, para tanto, se utilizam métodos da anatomia comparada, é porque
    • a Vida, como forma fundamental do saber, fez aparecer novos objetos
      • (como a relação do caráter com a função) 
      • e novos métodos ( como a busca das analogias). 

Enfim, 

  • se Grimm e Bopp tentam definir as leis da alternância vocálica ou da mutação das consoantes, é porque
    • o Discurso como modo do saber veio a ser substituído pela Linguagem, que define objetos até então inaparentes
      • (famílias de línguas em que os sistemas gramaticais são análogos) 
      • e prescreve métodos que não haviam ainda sido empregados (análise das regras de transformação das consoantes e das vogais). 

A produção, a vida, a linguagem
– não se devem buscar aí
objetos que se tivessem,
como que por seu próprio peso
e sob o efeito de uma insistência autônoma,
imposto do exterior a um conhecimento
que durante um tempo por demais longo
os negligenciara;
também não se devem ver aí
conceitos construídos pouco a pouco,
graças a novos métodos,
através do progresso de ciências
que marcham em direção
à sua racionalidade própria. 
Trata-se de modos fundamentais do saber
que suportam em sua unidade sem fissura
a correlação segunda e derivada
de ciências e de técnicas novas
com objetos inéditos. 

A constituição desses modos fundamentais está sem dúvida enterrada longe, na espessura das camadas arqueológicas: é possível, contudo, descortinar alguns dos seus sinais através das obras 

  • de Ricardo para a economia
  • de Cuvier para a biologia
  • de Bopp para a filologia.