Capítulo IV. Falar; tópico IV. A articulação

as funções essenciais da linguagem
atribuição, articulação, designação e derivação.
nos Séculos XVII e XVIII

as funções essenciais da linguagem
atribuição, articulação, designação e derivação.
no Século XIX
O verbo ser,
- misto de atribuição e de afirmação,
- cruzamento do discurso com a possibilidade primeira e radical de falar,
define a primeira invariante da proposição, e a mais fundamental.
Ao lado dele, de uma parte e de outra, elementos: partes do discurso ou da “oração”.
Essas regiões são ainda indiferentes e determinadas apenas pela figura tênue, quase imperceptível e central que designa o ser;
- funcionam, em torno desse “julgador”,
- como a coisa a julgar – o judicande,
- e a coisa julgada – o judicat(41).
Como pode esse puro esboço da proposição transformar-se em frases distintas?
Como pode o discurso enunciar todo o conteúdo de uma representação?
Porque ele é feito de palavras que nomeiam, parte por parte, o que é dado à representação.
A palavra designa, o que quer dizer que, em sua natureza, é nome. Nome próprio, pois que aponta para tal representação e mais nenhuma.
Assim é que, em face da uniformidade do verbo
- – que nunca é mais que o enunciado universal da atribuição –
os nomes pululam e ao infinito.
Deveria haver tantos nomes quantas coisas a nomear. Mas então cada nome seria tão fortemente vinculado à única representação que ele designa, que não se poderia sequer formular a menor atribuição; e a linguagem recairia abaixo de si mesma:
“Se tivéssemos por substantivos somente nomes próprios, seria preciso multiplicá-los ao infinito. Essas palavras, cuja multidão sobrecarregaria a memória, não poriam ordem alguma nos objetos de nossos conhecimentos, nem, por conseguinte, em nossas ideias, e todos os nossos discursos estariam na maior confusão.”(42)
Os nomes podem funcionar na frase e permitir a atribuição somente se um dos dois (o atributo ao menos) designar algum elemento comum a várias representações.
A generalidade do nome é tão necessária às partes do discurso quanto a designação do ser à forma da proposição. Essa generalidade pode ser adquirida de duas maneiras.
- Ou por uma articulação horizontal, agrupando os indivíduos que têm entre si certas identidades, separando aqueles que são diferentes;
- forma ela então uma generalização sucessiva de grupos cada vez mais amplos (e cada vez menos numerosos);
- pode também subdividi-los quase ao infinito por distinções novas e atingir assim o nome próprio do qual partiu(43);
- toda a ordem das coordenações e das subordinações se acha recoberta pela linguagem e cada um desses pontos aí figura com seu nome;
- do indivíduo à espécie,
- desta em seguida ao gênero e à classe, a linguagem se articula exatamente sobre o domínio das generalidades crescentes; são os substantivos que manifestam na linguagem essa função taxinômica: diz-se
- um animal,
- um quadrúpede,
- um cão,
- um cão-d’água(44)
- um cão,
- um quadrúpede,
- um animal,
- Ou então por uma articulação vertical – ligada à primeira, pois elas são indispensáveis uma à outra;
- essa segunda articulação distingue
- as coisas que subsistem por si mesmas
- e aquelas – modificações, traços, acidentes, ou caracteres – que jamais se podem encontrar em estado independente:
- em profundidade, as substâncias,
- na superfície, as qualidades;
- esse corte – essa metafísica, como dizia Adam Smith(45) – é manifestado no discurso pela presença de adjetivos que designam na representação tudo o que não pode subsistir por si.
- essa segunda articulação distingue
A articulação primeira da linguagem (se se puser de parte o verbo ser, que é condição tanto quanto parte do discurso) faz-se, pois, segundo dois eixos ortogonais:
- um que vai do indivíduo singular ao geral;
- outro que vai da substância à qualidade.
No seu cruzamento reside o nome comum;
- numa extremidade, o nome próprio,
- na outra, o adjetivo.
Mas esses dois tipos de representação só distinguem as palavras entre si na medida exata em que a representação é analisada segundo esse mesmo modelo.
Como o dizem os autores de Port-Royal:
- as palavras “que significam as coisas se chamam nomes substantivos, como terra, sol.
- Aquelas que significam os modos, marcando ao mesmo tempo o sujeito ao qual convêm se chamam adjetivos, como bom, justo, redondo”(46).
Entre a articulação da linguagem e a da representação há, contudo, um jogo.
- Quando se fala de “brancura”, é certamente uma qualidade que se designa, mas é designada por um substantivo:
- quando se fala dos “humanos”, utiliza-se um adjetivo para designar indivíduos que subsistem por si mesmos.
Esse desnível não indica que a linguagem obedeça a outras leis além da representação: mas, ao contrário, que ela tem, consigo mesma e na sua espessura própria, relações que são idênticas às da representação.
Com efeito, não é ela uma representação desdobrada e não tem ela o poder de combinar, com os elementos da representação, uma representação distinta da primeira, embora não tenha por função e sentido senão representá-Ia? Se o discurso se apropria do adjetivo que designa uma modificação e fá-Io valer no interior da frase como a substância mesma da proposição, então o adjetivo torna-se substantivo; o nome, ao contrário, que se comporta na frase como um acidente, torna-se, por seu turno, adjetivo, mesmo designando, como que pelo passado, substâncias.
“Porque a substância é o que subsiste por si mesmo, chamou-se substantivos a todas as palavras que subsistem por si mesmas no discurso, ainda quando signifiquem acidentes.
E, ao contrário, chamou-se adjetivos àquelas que significam substância, quando, em sua maneira de significar, devem estar unidas a outros nomes no discurso.”(47)
Os elementos da proposição têm entre si relações idênticas às da representação; mas essa identidade não é assegurada ponto por ponto, de sorte que toda substância seria designada por um substantivo e todo acidente por um adjetivo.
Trata-se de uma identidade global e de natureza:
- a proposição é uma representação;
- articula-se segundo os mesmos modos que ela;
- mas compete-lhe poder articular, de uma forma ou de outra, a representação que ela transforma em discurso.
Ela é, em si mesma, uma representação que articula outra, com uma possibilidade de desnível que constitui ao mesmo tempo a liberdade do discurso e a diferença das línguas.
Tal é a primeira camada de articulação: a mais superficial, em todo o caso, a mais aparente. Desde logo, tudo pode tornar-se discurso. Mas numa linguagem ainda pouco diferenciada:
- para religar os nomes, só se dispõe ainda da monotonia do verbo ser e de sua função atributiva.
Ora, os elementos da representação se articulam segundo toda uma rede de relações complexas (sucessão, subordinação, consequência) que é necessário fazer passar para a linguagem a fim de que esta se tome realmente representativa.
Daí todas as palavras, sílabas, letras mesmo que, circulando entre os nomes e os verbos, devem designar essas ideias a que Port-Royal chamava “acessórias”(48);
- são necessárias preposições e conjunções;
- são necessários signos de sintaxe que indiquem as relações de identidade ou de concordância
- e as de dependência ou de regência(49): marcas de plural e de gênero, casos de declinações;
- são necessárias, enfim, palavras que reportem os nomes comuns aos indivíduos que eles designam – esses artigos ou esses demonstrativos a que Lemercier chamava “concretizadores” ou “desabstradores”(50).
Uma tal poeira de palavras constitui uma articulação inferior à unidade do nome (substantivo ou adjetivo) tal como é requerida pela forma nua da proposição:
- nenhuma delas detém, no seu íntimo e em estado isolado, um conteúdo representativo que seja fixo e determinado;
- só recobrem uma ideia – mesmo acessória – uma vez ligadas a outras palavras;
- enquanto os nomes e os verbos são “significativos absolutos”, elas só têm significação de um modo relativo(51).
É certo que
- se dirigem à representação;
- só existem na medida em que essa, analisando-se, deixa ver a rede interior dessas relações; mas elas próprias só têm valor pelo conjunto gramatical de que fazem parte.
Estabelecem na linguagem uma articulação nova e de natureza mista, ao mesmo tempo
- representativa
- e gramatical,
sem que nenhuma dessas duas ordens possa ajustar-se exatamente à outra.
Eis que a frase se povoa de elementos sintáticos que são de um recorte mais fino que as figuras amplas da proposição.
Esse novo recorte coloca a gramática geral perante a necessidade de uma escolha:
- ou prosseguir a análise por sob a unidade nominal, e fazer surgir, antes da significação, os elementos insignificantes de que é construída,
- ou então reduzir, por um processo regressivo, essa unidade nominal, reconhecer-lhe medidas mais restritas e encontrar sua eficácia representativa abaixo das palavras completas, nas partículas, nas sílabas e até nas próprias letras.
Essas possibilidades são oferecidas – mais: são prescritas – desde o momento em que a teoria das línguas se dá por objeto o discurso e a análise de seus valores representativos.
- Elas definem o ponto de heresia que divide a gramática do século XVIII.
“Suporemos”, diz Harris, “que toda significação é, como o corpo, divisível numa infinidade de outras significações, divisíveis, elas mesmas, ao infinito? Seria um absurdo; é preciso pois, necessariamente, admitir que há sons significativos dos quais nenhuma parte pode, por si mesma, ter significação.”(52)
A significação desaparece desde que são dissociados ou suspensos os valores representativos das palavras: aparecem, em sua independência, materiais que não se articulam com o pensamento e cujos liames não se podem reduzir aos do discurso.
Há uma “mecânica” própria às concordâncias, às regências, às flexões, às sílabas e aos sons e, essa mecânica, nenhum valor representativo pode explicar.
É preciso tratar a língua como essas máquinas que, pouco a pouco, se aperfeiçoam(53):
- em sua forma mais simples, a frase é composta apenas de um sujeito, de um verbo, de um atributo;
- e toda adição de sentido exige uma proposição nova e inteira;
- assim as mais rudimentares máquinas supõem princípios de movimento que diferem para cada um de seus órgãos.
Mas, quando elas se aperfeiçoam, submetem a um só e mesmo princípio todos os seus órgãos que, desse princípio, não são então mais do que intermediários, meios de transformação, pontos de aplicação; do mesmo modo, aperfeiçoando-se, as línguas fazem passar o sentido de uma proposição por órgãos gramaticais que não têm, eles mesmos, valor representativo, mas cujo papel é precisá- Io, religar seus elementos, indicar suas determinações atuais.
Numa frase, e num só movimento, podem-se marcar relações de tempo, de consequência, de possessão, de localização, que entram realmente na série sujeito-verbo-atributo, mas não podem ser demarcadas por uma distinção tão vasta.
Daí a importância assumida, desde Bauzée(54), pelas teorias do complemento, da subordinação.
Daí também o papel crescente da sintaxe;
- na época de Port-Royal, esta era identificada com a construção e a ordem das palavras, portanto, com o desenrolar interior da proposição (55) ;
- com Sicard, ela tornou-se independente:
- é ela “que comanda para cada palavra sua forma própria”(56).
E assim se esboça a autonomia do gramatical, tal como será definida, bem no fim do século, por Sylvestre de Saci, quando, pela primeira vez, junto com Sicard, distingue
- a análise lógica da proposição
- e a gramatical, da frase(57).
Compreende-se por que análises desse gênero permaneceram suspensas enquanto o discurso foi o objeto da gramática;
- desde que se atingisse uma camada de articulação onde os valores representativos se pulverizassem,
- passava-se para o outro lado da gramática, lá onde ela não tinha mais controle,
num domínio que era- o do uso
- e da história –
- a sintaxe, no século XVIII, era considerada como o lugar do arbitrário, onde se desenvolviam, em sua fantasia, os hábitos de cada povo(58).
Em todo o caso, elas não podiam ser, no século XVIII, nada mais que possibilidades abstratas, não prefigurações do que viria a ser a filologia, mas ramo não-privilegiado de uma escolha.
De outro lado, a partir do mesmo ponto de heresia, vê-se desenvolver-se uma reflexão que, para nós e para a ciência da linguagem que construímos desde o século XIX, é desprovida de valor, mas que permitia então manter toda a análise dos signos verbais no interior do discurso. E que, por esse recobrimento exato, fazia parte das figuras positivas do saber.
Buscava-se a obscura função nominal que se julgava investida e oculta nessas palavras, nessas sílabas, nessas flexões, nessas letras que a análise demasiado frouxa da proposição deixava passar através de seu crivo. É que afinal, como observavam os autores de Port- Royal, todas as partículas de ligação têm realmente um certo conteúdo, pois que representam a maneira pela qual os objetos são ligados e aquela pela qual eles se encadeiam em nossas representações(59)
Não se pode supor que foram nomes como todos os outros?
Porém, em vez de substituírem os objetos, eles teriam tomado o lugar dos gestos com que os homens os indicavam ou simulavam seus liames e sua sucessão(60).
São essas palavras que, ou perderam pouco a pouco seu sentido próprio (este, com efeito, não era sempre visível, já que ligado aos gestos, ao corpo e à situação do locutor), ou então se incorporavam às outras palavras em que encontravam um suporte estável e a que forneciam, em troca, todo um sistema de modificações(61).
De sorte que todas as palavras, quaisquer que sejam, são nomes adormecidos:
- os verbos juntaram nomes adjetivos ao verbo ser;
- as conjunções e as preposições são os nomes de gestos doravante imóveis;
- as declinações e as conjugações nada mais são que nomes absorvidos.
As palavras, agora, podem se abrir e liberar o vôo de todos os nomes que nelas se depositaram.
Como dizia Le Bel, a título de princípio fundamental da análise,
“não há reunião cujas partes não tenham existido separadamente antes de serem reunidas”(62),
o que lhe permitia reduzir todas as palavras a elementos silábicos em que reapareciam enfim os velhos nomes esquecidos – os únicos vocábulos que tiveram a possibilidade de existir ao lado do verbo ser:
- Romulus, por exemplo(63), vem de Roma e moliri (construir);
- e Roma vem de Ro, que designava a força (Robur) e de Ma, que indicava a grandeza (magnus).
Do mesmo modo, Thiébault descobre em “abandonner” [“abandonar”] três significações latentes:
- a, que “apresenta a ideia da tendência ou da destinação de uma coisa em direção a outra coisa qualquer”;
- ban, que “dá a ideia da totalidade do corpo social”,
- e do que indica “o ato pelo qual se renuncia a alguma coisa”(64).
E se é preciso não ficar nas sílabas, ir até as próprias letras, recolher-se-ão ainda os valores de uma nomeação rudimentar. Nisso empenhou-se maravilhosamente Court de Gébelin, para sua maior glória, e a mais perecível;
- “o toque labial, o mais fácil de acionar, o mais suave, o mais gracioso, servia para designar os primeiros seres que o homem conhece, aqueles que o cercam e a quem deve tudo” (papai, mamãe, beijo).
- Em contrapartida, “os dentes são tão firmes quanto os lábios são móveis e flexíveis; as entoações que deles provêm são fortes, sonoras, ruidosas… É pelo toque dental que se atroa, que se retumba, que se espanta; por ele, designam-se os tambores, os timbales, as trombetas”.
Isoladas, as vogais podem, por sua vez, manifestar o segredo dos nomes milenares em que o uso os encerrou:
- A para a posse (haver),
- E para a existência,
- I para o poderio,
- O para o espanto (os olhos que se arredondam),
- U para umidade, portanto para o humor(65)
E talvez, nos recônditos mais antigos de nossa história, consoantes e vogais, distinguidas apenas como dois grupos ainda confusos, formassem como que dois únicos nomes que teriam articulado a linguagem humana:
- as vogais cantantes diziam as paixões;
- as rudes consoantes, as necessidades(66).
Pode-se ainda distinguir
- o falar áspero do Norte – floresta das guturais, da fome e do frio –
- ou as línguas meridionais, todas de vogais, nascidas do matinal encontro de pastores, quando “saíam do puro cristal das fontes os primeiros fogos do amor”.
Em toda a sua espessura e até os mais arcaicos sons que pela primeira vez a arrancaram ao grito, a linguagem conserva sua função representativa: em cada uma de suas articulações, desde os tempos mais remotos, ela sempre nomeou. Em si mesma, é tão-somente um imenso sussurro de denominações que se sobrepõem, se comprimem, se ocultam e, entretanto, se mantêm para permitir analisar ou compor as mais complexas representações.
No interior das frases, ali mesmo onde a significação parece ter um apoio mudo em sílabas insignificantes, há sempre uma nomeação adormecida, uma forma que guarda fechado entre suas paredes sonoras o reflexo de uma representação invisível e todavia inapagável.
Para a filologia do século XIX, semelhantes análises permaneceram, no sentido estrito do termo, “letra morta”.
Não, porém, para toda uma experiência da linguagem –
- primeiramente esotérica e mística, na época de Saint-Marc, de Reveroni, de Fabre d’Olivet, d’Oegger,
- depois literária, quando o enigma da palavra ressurge em seu ser maciço, com Mallarmé, Roussel, Leiris ou Ponge.
- para que a linguagem fosse inteiramente compreendida na forma geral da proposição,
- era necessário que cada palavra, na menor de suas parcelas, fosse uma nomeação meticulosa.