CapĆtulo I. Las Meninas
I
O pintor estĆ” ligeiramente afastado do quadro. LanƧa um olhar em direção ao modelo; talvez se trate de acrescentar um Ćŗltimo toque, mas Ć© possĆvel tambĆ©m que o primeiro traƧo nĆ£o tenha ainda sido aplicado. O braƧo que segura o pincel estĆ” dobrado para a esquerda, na direção da palheta; permanece imóvel, por um instante, entre a tela e as cores, Essa mĆ£o hĆ”bil estĆ” pendente do olhar; e o olhar, em troca, repousa sobre o gesto suspenso. Entre a fina ponta do pincel e o gume do olhar, o espetĆ”culo vai liberar seu volume. NĆ£o sem um sistema sutil de evasivas.Ā
Distanciando-se um pouco, o pintor colocou-se ao lado da obra na qual trabalha. Isso quer dizer que, para o espectador que no momento olha, ele estĆ” Ć direita de seu quadro, o qual ocupa toda a extremidade esquerda. A esse mesmo espectador o quadro volta as costas: dele só se pode perceber o reverso, com a imensa armação que o sustenta.Ā
O pintor, em contrapartida, Ć© perfeitamente visĆvel em toda a sua estatura; de todo modo, ele nĆ£o estĆ” encoberto pela alta tela que, talvez, irĆ” absorvĆŖ-lo logo em seguida, quando, dando um passo em sua direção, se entregarĆ” novamente a seu trabalho; sem dĆŗvida, nesse mesmo instante, ele acaba de aparecer aos olhos do espectador, surgindo dessa espĆ©cie de grande gaiola virtual que a superfĆcie que ele estĆ” pintando projeta para trĆ”s.Ā
Podemos vĆŖ-Io agora, num instante de pausa, no centro neutro dessa oscilação. Seu talhe escuro, seu rosto claro sĆ£o meios-termos entre o visĆvel e o invisĆvel: saindo dessa tela que nos escapa, ele emerge aos nossos olhos; mas quando, dentro em pouco, der um passo para a direita, furtando-se aos nossos olhares, achar-se-Ć” colocado bem em face da tela que estĆ” pintando; entrarĆ” nessa regiĆ£o onde seu quadro, negligenciado por um instante, se lhe vai tornar de novo visĆvel, sem sombra nem reticĆŖncia.Ā
Como se o pintor nĆ£o pudesse ser ao mesmo tempo visto no quadro em que estĆ” representado e ver aquele em que se aplica a representar alguma coisa. Ele reina no limiar dessas duas visibilidades incompatĆveis. O pintor olha, o rosto ligeiramente virado e a cabeƧa inclinada para o ombro.Ā
Fixa um ponto invisĆvel, mas que nós, espectadores, podemos facilmente determinar, pois que esse ponto somos nós mesmos: nosso corpo, nosso rosto, nossos olhos.Ā
O espetĆ”culo que ele observa Ć©, portanto, duas vezes invisĆvel: uma vez que nĆ£o Ć© representado no espaƧo do quadro e uma vez que se situa precisamente nesse ponto cego, nesse esconderijo essencial onde nosso olhar se furta a nós mesmos no momento em que olhamos.Ā
E, no entanto, como poderĆamos deixar de ver essa invisibilidade, que estĆ” aĆ sob nossos olhos, jĆ” que ela tem no próprio quadro seu sensĆvel equivalente, sua figura selada?Ā
Poder-se-ia, com efeito, adivinhar o que o pintor olha, se fosse possĆvel lanƧar os olhos sobre a tela a que se aplica; desta, porĆ©m, só se distingue a textura, os esteios na horizontal e, na vertical, o oblĆquo do cavalete.Ā
O alto retĆ¢ngulo monótono que ocupa toda a parte esquerda do quadro real e que figura o verso da tela representada reconstituiu, sob as espĆ©cies de uma superfĆcie, a invisibilidade em profundidade daquilo que o artista contempla: este espaƧo em que nós estamos, que nós somos.Ā
Dos olhos do pintor atĆ© aquilo que ele olha, estĆ” traƧada uma linha imperiosa que nós, os que olhamos, nĆ£o poderĆamos evitar: ela atravessa o quadro real e alcanƧa, Ć frente da sua superfĆcie, o lugar de onde vemos o pintor que nos observa; esse pontilhado nos atinge infalivelmente e nos liga Ć representação do quadro.Ā
Aparentemente, esse lugar Ć© simples; constitui-se de pura reciprocidade: olhamos um quadro de onde um pintor, por sua vez, nos contempla. Nada mais que um face-a-face, olhos que se surpreendem, olhares retos que, em se cruzando, se superpƵem. E, no entanto, essa tĆŖnue linha de visibilidade envolve, em troca, toda uma rede complexa de incertezas, de trocas e de evasivas.Ā
O pintor só dirige os olhos para nós na medida em que nos encontramos no lugar do seu motivo. Nós, espectadores, estamos em excesso. Acolhidos sob esse olhar, somos por ele expulsos, substituĆdos por aquilo que desde sempre se encontrava lĆ”, antes de nós: o próprio modelo.Ā
Mas, inversamente, o olhar do pintor, dirigido para fora do quadro, ao vazio que lhe faz face, aceita tantos modelos quantos espectadores lhe apareƧam; nesse lugar preciso mas indiferente, o que olha e o que Ć© olhado permutam-se incessantemente. Nenhum olhar Ć© estĆ”vel, ou antes, no sulco neutro do olhar que traspassa a tela perpendicularmente, o sujeito e o objeto, o espectador e o modelo invertem seu papel ao infinito.Ā
E, na extremidade esquerda do quadro, a grande tela virada exerce aĆ sua segunda função: obstinadamente invisĆvel, impede que seja alguma vez determinĆ”vel ou definitivamente estabelecida a relação dos olhares. A fixidez opaca que ela faz reinar num lado torna para sempre instĆ”vel o jogo das metamorfoses que, no centro, se estabelece entre o espectador e o modelo.Ā
Porque só vemos esse reverso, nĆ£o sabemos quem somos nem o que fazemos. Somos vistos ou vemos? O pintor fixa atualmente um lugar que, de instante a instante, nĆ£o cessa de mudar de conteĆŗdo, de forma, de rosto, de identidade.Ā
Mas a imobilidade atenta de seus olhos remete a uma outra direção, que eles jÔ seguiram frequentes vezes e que breve, sem dúvida alguma, vão retomar: a da tela imóvel sobre a qual se traça, estÔ talvez traçado, desde muito tempo e para sempre, um retrato que jamais se apagarÔ.
Ā De sorte que o olhar soberano do pintor comanda um triĆ¢ngulo virtual, que define em seu percurso esse quadro de um quadro:Ā
- no vĆ©rtice – Ćŗnico ponto visĆvel – os olhos do artista;Ā
- na base, de um lado, o lugar invisĆvel do modelo,Ā
- do outro, a figura provavelmente esboƧada na tela virada.Ā
No momento em que colocam o espectador no campo de seu olhar, os olhos do pintor captam-no, constrangem-no a entrar no quadro, designam-lhe um lugar ao mesmo tempo privilegiado e obrigatório, apropriam-se de sua luminosa e visĆvel espĆ©cie e a projetam sobre a superfĆcie inacessĆvel da tela virada.Ā
Ele vĆŖ sua invisibilidade tornada visĆvel ao pintor e transposta em uma imagem definitivamente invisĆvel a ele próprio.Ā
Surpresa que Ć© multiplicada e tornada ainda mais inevitĆ”vel por um estratagema marginal. Na extremidade direita, o quadro recebe sua luz de uma janela representada segundo uma perspectiva muito curta; dela apenas se visualiza o vĆ£o; de sorte que o fluxo de luz que ela espalha largamente banha ao mesmo tempo, com a mesma generosidade, dois espaƧos vizinhos, entrecruzados, mas irredutĆveis:Ā
- a superfĆcie da tela, com o volume que ela representa (isto Ć©, o ateliĆŖ do pintor, ou a sala em que instalou seu cavalete),Ā
- e, Ć frente dessa superfĆcie, o volume real que o espectador ocupa (ou entĆ£o o lugar irreal do modelo).Ā
E, percorrendo a sala da direita para a esquerda, a vasta luz dourada impele ao mesmo tempo o espectador em direção ao pintor e o modelo em direção Ć tela; Ć© ela tambĆ©m que, iluminando o pintor, torna-o visĆvel ao espectador e faz brilhar como linhas de ouro, aos olhos do modelo, a moldura da tela enigmĆ”tica, onde sua imagem, transposta, vai se achar encerrada.Ā
Esta janela encantoada, parcial, apenas indicada, libera uma luz inteira e mista que serve de lugar-comum Ć representação.Ā
Ela equilibra, na outra extremidade do quadro, a tela invisĆvel:Ā
- assim como esta, virando as costas aos espectadores, se redobra contra o quadro que a representa e forma, pela superposição de seu reverso visĆvel sobre a superfĆcie do quadro que a contĆ©m, o lugar, para nós inacessĆvel, onde cintila a Imagem por excelĆŖncia;Ā
- assim a janela, pura abertura, instaura um espaƧo tĆ£o manifesto quanto o outro Ć© oculto; tĆ£o comum ao pintor, Ć s personagens, aos modelos, aos espectadores quanto o outro Ć© solitĆ”rio (pois ninguĆ©m o olha, nem mesmo o pintor).Ā
Da direita, derrama-se por uma janela invisĆvel o puro volume de uma luz que torna visĆvel toda representação;Ā
Ć esquerda, estende-se a superfĆcie que encobre, do outro lado de sua textura demasiado visĆvel, a representação que ela contĆ©m.Ā
Inundando a cena (quero dizer, tanto a sala quanto a tela, a sala representada na tela e a sala onde a tela estĆ” colocada), a luz envolve as personagens e os espectadores, impelindo-os, sob o olhar do pintor, em direção ao lugar onde seu pincel os vai representar.Ā
Esse lugar, porĆ©m, nos Ć© recusado.Ā
Olhamo-nos olhados pelo pintor e tornados visĆveis aos seus olhos pela mesma luz que no-lo faz ver. E, no momento em que vamos nos apreender transcritos por sua mĆ£o como num espelho, deste nĆ£o podemos surpreender mais que o insĆpido reverso. O outro lado de um reflexo.Ā
Ora, exatamente em face dos espectadores – de nós mesmos – sobre a parede que constitui o fundo da sala, o autor representou uma sĆ©rie de quadros; e eis que, entre todas essas telas suspensas, uma dentre elas brilha com um clarĆ£o singular. Sua moldura Ć© mais larga, mais sombria que a das outras; uma fina linha branca, no entanto, a duplica interiormente, difundindo sobre toda a sua superfĆcie uma luz dificilmente determinĆ”vel; pois nĆ£o vem de parte alguma senĆ£o de um espaƧo que lhe seria interior.Ā
Nessa luz estranha aparecem duas silhuetas e, acima delas, um pouco para trĆ”s, uma pesada cortina de pĆŗrpura. Os outros quadros só dĆ£o a ver algumas manchas mais pĆ”lidas no limite de uma noite sem profundeza. Esse, ao contrĆ”rio, abre-se para um espaƧo em recuo onde formas reconhecĆveis se dispƵem numa claridade que só a ele pertence.Ā
Entre todos esses elementos destinados a oferecer representaƧƵes, mas que as contestam, as recusam, as esquivam por sua posição ou sua distĆ¢ncia, esse Ć© o Ćŗnico que funciona com toda a honestidade e que dĆ” a ver o que deve mostrar. A despeito de seu distanciamento, a despeito da sombra que o envolve.Ā
Mas nĆ£o Ć© um quadro: Ć© um espelho.Ā
Ele oferece enfim esse encantamento do duplo, que tanto as pinturas afastadas quanto a luz do primeiro plano com a tela irĆ“nica recusavam.Ā
De todas as representaƧƵes que o quadro representa, ele Ć© a Ćŗnica visĆvel; mas ninguĆ©m o olha. Em pĆ© ao lado de sua tela, a atenção toda absorvida pelo seu modelo, o pintor nĆ£o pode ver esse espelho que brilha suavemente atrĆ”s dele.Ā
As outras personagens do quadro estĆ£o, na maioria, voltadas tambĆ©m elas para o que se deve passar Ć frente – para a clara invisibilidade que margeia a tela, para esse Ć”trio de luz, onde seus olhares tĆŖm para ver aqueles que os vĆŖem, e nĆ£o para essa cavidade sombria pela qual se fecha o quarto onde estĆ£o representadas.Ā
HĆ”, com efeito, algumas cabeƧas que se oferecem de perfil: nenhuma, porĆ©m, suficientemente virada para olhar, no fundo da sala, esse espelho desolado, pequeno retĆ¢ngulo brilhante que nada mais Ć© senĆ£o visibilidade, mas sem nenhum olhar capaz de apossar-se dela, tornĆ”-Ia atual e comprazer-se no fruto, subitamente amadurecido, de seu espetĆ”culo.Ā
Ć preciso reconhecer que essa indiferenƧa só se iguala Ć do espelho. Com efeito, este nada reflete daquilo que se encontra no mesmo espaƧo que ele: nem o pintor, que lhe volta as costas, nem as personagens no centro da sala. Em sua clara profundidade, nĆ£o Ć© o visĆvel que ele fita.Ā
Na pintura holandesa, era tradição que os espelhos desempenhassem um papel de reduplicação: repetiam o que era dado uma primeira vez no quadro, mas no interior de um espaƧo irreal, modificado, estreitado, recurvo. Ali se via a mesma coisa que na primeira instĆ¢ncia do quadro, porĆ©m decomposta e recomposta segundo uma outra lei.Ā
Aqui o espelho nada diz do que jĆ” foi dito. Sua posição, entretanto, Ć© quase central: sua borda superior estĆ” exatamente sobre a linha que reparte em duas a altura do quadro, ocupa sobre a parede do fundo (ao menos sobre a parte visĆvel desta) uma posição mediana; deveria, pois, ser atravessado pelas mesmas linhas perspectivas que o próprio quadro; poder-se-ia esperar que um mesmo ateliĆŖ, um mesmo pintor, uma mesma tela nele se dispusessem segundo um espaƧo idĆŖntico; poderia ser o duplo perfeito.Ā
Ora, ele nĆ£o faz ver nada do que o próprio quadro representa. Seu olhar imóvel vai captar Ć frente do quadro, nessa regiĆ£o necessariamente invisĆvel que forma sua face exterior, as personagens que ali estĆ£o dispostas.Ā
Em vez de girar em torno de objetos visĆveis, esse espelho atravessa todo o campo da representação, negligenciando o que aĆ poderia captar, e restitui a visibilidade ao que permanece fora de todo olhar.Ā
Mas essa invisibilidade que ele supera nĆ£o Ć© a do oculto: nĆ£o contorna o obstĆ”culo, nĆ£o desvia a perspectiva, endereƧa-se ao que Ć© invisĆvel ao mesmo tempo pela estrutura do quadro e por sua existĆŖncia como pintura.Ā
O que nele se reflete Ć© o que todas as personagens da tela estĆ£o fixando, o olhar reto diante delas; Ć©, pois, o que se poderia ver, se a tela se prolongasse para a frente, indo mais para baixo, atĆ© envolver as personagens que servem de modelos ao pintor. Mas Ć© tambĆ©m, jĆ” que a tela se interrompe ali, dando a ver o pintor e seu ateliĆŖ, o que estĆ” exterior ao quadro, na medida em que ele Ć© quadro, isto Ć©, fragmento retangular de linhas e cores, encarregado de representar alguma coisa aos olhos de todo espectador possĆvel.Ā
No fundo da sala, ignorado por todos, o espelho inesperado faz brilhar as figuras que o pintor olha (o pintor e sua realidade representada, objetiva, de pintor trabalhando); mas tambĆ©m as figuras que olham o pintor (nessa realidade material que as linhas e as cores depositaram sobre a tela).Ā
Estas figuras sĆ£o, uma e outra, igualmente inacessĆveis, mas de modo diferente: a primeira, por um efeito de composição que Ć© próprio ao quadro; a segunda, pela lei que preside Ć existĆŖncia mesma de todo quadro em geral.Ā
Aqui, o jogo da representação consiste em conduzir essas duas formas de invisibilidade uma ao lugar da outra, numa superposição instĆ”vel – e em restituĆ-Ias logo Ć outra extremidade do quadro – a esse pólo que Ć© o mais altamente representado: o de uma profundidade de reflexo na reentrĆ¢ncia de uma profundidade de quadro.Ā
O espelho assegura uma metĆ”tese da visibilidade que incide ao mesmo tempo sobre o espaƧo representado no quadro e sua natureza de representação; faz ver, no centro da tela, aquilo que, do quadro, Ć© duas vezes necessariamente invisĆvel.Ā
Estranha maneira de aplicar ao pĆ© da letra, mas invertendo-o, o conselho que o velho Pachero dera, ao que parece, ao seu aluno, quando trabalhava no ateliĆŖ de Sevilha:Ā
āA imagem deve sair da moldura.ā
Ā
Ā II
Mas talvez seja tempo de nomear enfim essa imagem que aparece no fundo do espelho e que o pintor contempla Ć frente do quadro. Talvez valha a pena fixar de vez a identidade das personagens presentes ou indicadas, para nĆ£o nos atrapalharmos infinitamente nestas designaƧƵes flutuantes, um pouco abstratas, sempre suscetĆveis de equĆvocos e de desdobramentos: āo pintorā, āas personagensā, āos espectadoresā, āas imagensā.Ā
Em vez de prosseguir sem fim numa linguagem fatalmente inadequada ao visĆvel, bastaria dizerĀ
- que VelĆ”squez compĆ“s um quadro; que nesse quadro ele se representou a si mesmo no seu ateliĆŖ, ou num salĆ£o do Escorial,Ā
- a pintar duas personagens que a infanta Margarida vem contemplar,Ā
- rodeada de aias,Ā
- de damas de honor,Ā
- de cortesĆ£osĀ
- e de anƵes;Ā
- que a esse grupo pode-se muito precisamente atribuir nomes: a tradição reconheceĀ
- aqui dona Maria Agustina Sarmiente,Ā
- ali, Nieto,Ā
- no primeiro plano, Nicolaso Pertusato, bufĆ£o italiano.Ā
Bastaria acrescentar que as duas personagens que servem de modelo ao pintor nĆ£o sĆ£o visĆveis, ao menos diretamente; mas que podemos distingui- Ias num espelho; que se trata, sem dĆŗvida,Ā
- do rei Filipe IVĀ
- e de sua esposa Mariana.Ā
Esses nomes próprios constituiriam indĆcios Ćŗteis evitariam designaƧƵes ambĆguas; eles nos diriam, em todo o caso, o que o pintor olha e, com ele, a maioria das personagens do quadro.Ā
Mas a relação da linguagem com a pintura Ć© uma relação infinita. NĆ£o que a palavra seja imperfeita e esteja, em face do visĆvel, num dĆ©ficit que em vĆ£o se esforƧaria por recuperar.Ā
SĆ£o irredutĆveis uma ao outro:Ā
- por mais que se diga o que se vĆŖ,Ā
- o que se vĆŖ nĆ£o se aloja jamais no que se diz,Ā
- e por mais que se faƧa ver o que se estĆ” dizendo por imagens, metĆ”foras, comparaƧƵes,Ā
- o lugar onde estas resplandecem nĆ£o Ć© aquele que os olhos descortinam,Ā
- mas aquele que as sucessƵes da sintaxe definem.Ā
Ora, o nome próprio, nesse jogo, nĆ£o passa de um artifĆcio:Ā
- permite mostrar com o dedo, quer dizer, fazer passar sub-repticiamenteĀ
- do espaƧo onde se falaĀ
- para o espaƧo onde se olha,Ā
- isto Ć©, ajustĆ”-los comodamente um sobre o outro como se fossem adequados.Ā
Mas, se se quiser manter aberta a relação entre a linguagem e o visĆvel, se se quiser falar nĆ£o de encontro a, mas a partir de sua incompatibilidade, de maneira que se permaneƧa o mais próximo possĆvel de uma e de outro, Ć© preciso entĆ£o pĆ“r de parte os nomes próprios e meter-se no infinito da tarefa.Ā
Ć, talvez, por intermĆ©dio dessa linguagem nebulosa, anĆ“nima, sempre meticulosa e repetitiva, porque demasiado ampla, que a pintura, pouco a pouco, acenderĆ” suas luzes.Ā
Ć preciso, pois, fingir nĆ£o saber quem se refletirĆ” no fundo do espelho e interrogar esse reflexo ao nĆvel de sua existĆŖncia.Ā
De inĆcio, ele Ć© o verso da grande tela representada Ć esquerda. O verso ou, antes, a face dianteira, pois que mostra de frente o que ela, por sua posição, esconde.Ā
Ademais, opƵe-se Ć janela e a reforƧa. Como ela, Ć© um lugar-comum ao quadro e ao que lhe Ć© exterior.Ā
- A janela, porĆ©m, opera pelo movimento contĆnuo de uma efusĆ£o que, da direita para a esquerda, agrega Ć s personagens atentas, ao pintor, ao quadro, o espetĆ”culo que contemplam;Ā
- jĆ” o espelho, por um movimento violento, instantĆ¢neo e de pura surpresa, vai buscar, Ć frente do quadro, aquilo que Ć© olhado mas nĆ£o visĆvel, a fim de, no extremo da profundidade fictĆcia, tornĆ”-lo visĆvel mas indiferente a todos os olhares.Ā
O pontilhado imperioso que estĆ” traƧado entre o reflexo e o que ele reflete corta perpendicularmente o fluxo lateral da luz.Ā
Enfim – e Ć© a terceira função desse espelho – ele pƵe em paralelo uma porta que, como ele, se abre na parede do fundo.Ā
TambĆ©m ela recorta um retĆ¢ngulo claro, cuja luz fosca nĆ£o se irradia pela sala. NĆ£o passaria de uma placa dourada, nĆ£o estivesse ela aberta para fora atravĆ©s de um batente esculpido, da curva de uma cortina e da sombra de vĆ”rios degraus. AĆ comeƧa um corredor; mas, em vez de se perder em meio Ć obscuridade, ele se dissipa num brilho amarelo, cuja luz, sem entrar, rodopia em tomo de si mesma e repousa.Ā
Sobre esse fundo, ao mesmo tempo próximo e sem limite, um homem destaca sua alta silhueta; ele Ć© visto de perfil; com uma das mĆ£os retĆ©m o peso de um cortinado; seus pĆ©s estĆ£o pousados sobre dois degraus diferentes; tem o joelho dobrado. Talvez vĆ” entrar na sala; talvez se limite a espiar o que se passa no interior, contente de surpreender sem ser observado.Ā
Tal como o espelho, fixa o verso da cena: tanto quanto ao espelho, ninguĆ©m lhe presta atenção.Ā
NĆ£o se sabe donde vem; pode-se supor que, seguindo por incertos corredores, contornou a sala onde as personagens estĆ£o reunidas e onde trabalha o pintor; talvez estivesse, hĆ” pouco, tambĆ©m ele Ć frente da cena, na regiĆ£o invisĆvel que Ć© contemplada por todos os olhos do quadro.Ā Como as imagens que se distinguem no fundo do espelho, Ć© possĆvel que ele seja um emissĆ”rio desse espaƧo evidente e escondido.Ā
HĆ”, no entanto, uma diferenƧa:Ā
- ele estĆ” ali em carne e osso; surgiu de fora, no limiar da Ć”rea representada; ele Ć© indubitĆ”vel – nĆ£o um reflexo provĆ”vel, mas uma irrupção.Ā
- O espelho, fazendo ver, para alĆ©m mesmo dos muros do ateliĆŖ, o que se passa Ć frente do quadro, faz oscilar, na sua dimensĆ£o sagital, o interior e o exterior.Ā
Com um pĆ© sobre o degrau e o corpo inteiramente de perfil, o visitante ambĆguo entra e sai ao mesmo tempo, num balancear imóvel. Ele repete, sem sair do lugar, mas na realidade sombria de seu corpo, o movimento instantĆ¢neo das imagens que atravessam a sala, penetram no espelho, nele se refletem e dele ressaltam como espĆ©cies visĆveis, novas e idĆŖnticas. PĆ”lidas, minĆŗsculas, essas silhuetas no espelho sĆ£o recusadas pela alta e sólida estatura do homem que surge no vĆ£o da porta.Ā
Cumpre, no entanto, retomar do fundo do quadro em direção Ć frente da cena; Ć© preciso abandonar esse circuito cuja voluta se acaba de percorrer.Ā
Partindo do olhar do pintor que, Ć esquerda, constitui como que um centro deslocado, distingue-se primeiro o reverso da tela, depois os quadros expostos, com o espelho no centro, a seguir a porta aberta, novos quadros, cuja perspectiva, porĆ©m, muito aguda, só deixa ver as molduras em sua densidade, enfim, Ć extremidade direita a janela, ou, antes, a fenda por onde se derrama a luz.Ā
Essa concha em hĆ©lice oferece todo o ciclo da representação: o olhar, a palheta e o pincel, a tela inocente de signos (sĆ£o os instrumentos materiais da representação), os quadros, os reflexos, o homem real (a representação acabada, mas como que liberada de seus conteĆŗdos ilusórios ou verdadeiros que lhe sĆ£o justapostos); depois, a representação se dilui: só se vĆŖem as molduras e essa luz que, do exterior, banha os quadros, os quais, contudo, devem em troca reconstituir Ć sua própria maneira, como se ela viesse de outro lugar, atravessando suas molduras de madeira escura. E essa luz, vemo-la, com efeito, no quadro, parecendo emergir no interstĆcio da moldura; e de lĆ” ela alcanƧa a fronte, as faces, os olhos, o olhar do pintor que segura numa das mĆ£os a palheta e, na outra, o fino pincel…Ā
Assim se fecha a voluta, ou melhor, por essa luz, ela se abre. Essa abertura nĆ£o Ć© mais, como no fundo, uma porta que se abriu; Ć© a própria amplitude do quadro, e os olhares que por ela passam nĆ£o sĆ£o de um visitante longĆnquo.Ā
O friso que ocupa o primeiro e o segundo planos do quadro representa – se se incluir o pintor – oito personagens. Cinco delas, a cabeƧa mais ou menos inclinada, virada ou abaixada, olham na direção perpendicular do quadro.Ā
O centro do grupo Ć© ocupado pela pequena infanta, com seu amplo vestido cinza e rosa. A princesa vira a cabeƧa para a direita do quadro, enquanto seu busto e os grandes folhos do vestido pendem ligeiramente para a esquerda; o olhar, porĆ©m, dirige-se aprumado na direção do espectador que se acha em face do quadro.Ā
Uma linha mediana que dividisse a tela em duas alas iguais passaria entre os dois olhos da crianƧa. Seu rosto estĆ” a um terƧo da altura total do quadro. De sorte que aĆ reside, sem dĆŗvida, o tema principal da composição; aĆ, o objeto mesmo dessa pintura.Ā
Como que para provĆ”-lo e melhor sublinhĆ”-lo, o autor recorreu a uma figura tradicional: ao lado da personagem principal, colocou outra, ajoelhada, que a olha. Como um ofertante em prece, como o Anjo saudando a Virgem, uma governanta de joelhos estende as mĆ£os para a princesa. Seu rosto se recorta num perfil perfeito. EstĆ” Ć altura do da crianƧa. A aia olha para a princesa e só para ela.Ā
Um pouco mais Ć direita, outra dama de honor, voltada tambĆ©m para a infanta, ligeiramente inclinada acima dela mas com os olhos claramente dirigidos para a frente, lĆ” onde jĆ” olham o pintor e a princesa.Ā
Enfim, dois grupos de duas personagens: um, em recuo; outro, composto de anƵes, no primeiro plano. Em cada par, uma personagem olha em frente, a outra Ć direita ou Ć esquerda. Por sua posição e por sua proporção, esses dois grupos se correspondem e se emparelham:Ā
- atrĆ”s, os cortesĆ£os (a mulher, Ć esquerda, olha para a direita);Ā
- Ć frente, os anƵes (o rapaz que estĆ” na extremidade direita olha para o interior do quadro).Ā
Esse conjunto de personagens assim dispostas pode constituir, conforme a atenção que se dĆŖ ao quadro ou o centro de referĆŖncia que se escolha, duas figuras.Ā
Uma seria um grande X;Ā
- no ponto superior esquerdo estaria o olhar do pintorĀ
- e, Ć direita, o do cortesĆ£o;Ā
- na ponta inferior, do lado esquerdo, estĆ” o canto da tela representada de costas (mais exatamente, o pĆ© do cavalete);Ā
- do lado direito, o anĆ£o (com o calƧado deposto sobre o dorso do cĆ£o).Ā
No cruzamento dessas duas linhas, no centro do X, o olhar da infanta.Ā
A outra figura seria antes a de uma vasta curva;Ā
- suas duas pontas seriam determinadas pelo pintor Ć esquerda e pelo cortesĆ£o Ć direita – extremidades altas e recuadas;Ā
- o recĆ“ncavo, bem mais aproximado, coincidiria com o rosto da princesa e com o olhar que a aia lhe dirige.Ā
Essa tĆŖnue linha desenha uma concha que, ao mesmo tempo, encerra e libera, no meio do quadro, a localização do espelho.Ā
HĆ”, pois, dois centros que podem organizar o quadro, conforme a atenção do espectador divague e se prenda aqui ou ali.Ā
A princesa mantĆ©m-se de pĆ© no meio de uma cruz de Santo AndrĆ©, que gira em torno dela com o turbilhĆ£o dos cortesĆ£os, damas de honor, animais e bufƵes.Ā
Mas essa rotação Ć© fixa. Fixa por um espetĆ”culo que seria absolutamente invisĆvel se essas mesmas personagens, subitamente imóveis, nĆ£o oferecessem, como que no vĆ£o de uma taƧa, a possibilidade de olhar no fundo de um espelho, o dĆŗplice imprevisto de sua contemplação.Ā
No sentido da profundidade, a princesa se superpƵe ao espelho;Ā
no da altura, Ć© o reflexo que se superpƵe ao rosto. Mas a perspectiva os torna muito próximos um do outro.Ā
Ora, cada um deles emana uma linha inevitĆ”vel;Ā
- uma, saĆda do espelho, transpƵe toda a espessura representada (e mesmo alĆ©m dela, jĆ” que o espelho perfura a parede do fundo e faz nascer atrĆ”s dela um outro espaƧo);Ā
- a outra Ć© mais curta; vem do olhar da crianƧa e só atravessa o primeiro plano.Ā
Essas duas linhas sagitais sĆ£o convergentes, segundo um Ć¢ngulo muito agudo, e o ponto de seu encontro, saindo da tela, se fixa Ć frente do quadro, mais ou menos lĆ” de onde o olhamos. Ponto duvidoso, pois que nĆ£o o vemos; ponto, porĆ©m, inevitĆ”vel e perfeitamente definido, pois que Ć© prescrito por essas duas figuras mestras e confirmado ainda por outros pontilhados adjacentes que nascem do quadro e que tambĆ©m dele escapam.Ā
Que hĆ”, enfim, nesse lugar perfeitamente inacessĆvel, porquanto exterior ao quadro, mas prescrito por todas as linhas de sua composição?Ā
Que espetĆ”culo Ć© esse, quem sĆ£o esses rostos que se refletem primeiro no fundo das pupilas da infanta, depois dos cortesĆ£os e do pintor e, finalmente, na claridade longĆnqua do espelho?Ā
Mas a questĆ£o logo se desdobra:Ā
- o rosto que o espelho reflete Ć© igualmente aquele que o contempla;Ā
- o que todas as personagens do quadro olham sĆ£o tambĆ©m as personagens a cujos olhos elas sĆ£o oferecidas como uma cena a contemplar;Ā
- o quadro como um todo olha a cena para a qual ele Ć©, por sua vez, uma cena.Ā
Pura reciprocidade que manifesta o espelho que olha e Ć© olhado, e cujos dois momentos sĆ£o desprendidos nos dois Ć¢ngulos do quadro:Ā
- Ć esquerda a tela virada, pela qual o ponto exterior se torna puro espetĆ”culo;Ā
- Ć direita o cĆ£o estirado, Ćŗnico elemento do quadro que nĆ£o olha nem se mexe, porque ele, com seus fortes relevos e a luz que brinca em seus pelos sedosos, só Ć© feito para ser um objeto a ser olhado.Ā
O primeiro olhar lanƧado ao quadro nos ensinou de que Ć© constituĆdo esse espetĆ”culo-de-olhares.Ā
SĆ£o os soberanos.Ā
Adivinhamo-los jĆ” no olhar respeitoso da assistĆŖncia, no espanto da crianƧa e dos anƵes. Reconhecemo-los, no fundo do quadro, nas duas pequenas silhuetas que o espelho reflete. Em meio a todos esses rostos atentos, a todos esses corpos ornamentados, eles sĆ£o a mais pĆ”lida, a mais irreal, a mais comprometida de todas as imagens; um movimento, um pouco de luz bastariam para fazĆŖ-los desvanecer-se.Ā
De todas as personagens representadas, elas sĆ£o tambĆ©m as mais desprezadas, pois ninguĆ©m presta atenção a esse reflexo que se esgueira por trĆ”s de todo o mundo e se introduz silenciosamente por um espaƧo insuspeitado; na medida em que sĆ£o visĆveis, sĆ£o a forma mais frĆ”gil e mais distante de toda realidade.Ā
Inversamente, na medida em que, residindo no exterior do quadro, se retiraram para uma invisibilidade essencial, ordenam em torno delas toda a representação;Ā
- Ć© diante delas que as coisas estĆ£o, Ć© para elas que se voltam, Ć© a seus olhos que se mostra a princesa em seu vestido de festa;Ā
- da tela virada Ć infanta e desta ao anĆ£o que brinca na extremidade direita, desenha-se uma curva (ou entĆ£o, abre-se o braƧo inferior do X) para ordenar em relação a eles toda a disposição do quadro e fazer aparecer, assim, o verdadeiro centro da composição, ao qual o olhar da infanta e a imagem no espelho estĆ£o finalmente submetidos.Ā
Esse centro Ć© simbolicamente soberano na sua particularidade histórica, jĆ” que Ć© ocupado pelo rei Filipe IV e sua esposa.Ā
Mas, sobretudo, ele o Ć© pela trĆplice função que ocupa em relação ao quadro.Ā
Nele vĆŖm superpor-se exatamenteĀ
- o olhar do modelo no momento em que Ć© pintado,Ā
- o do espectador que contempla a cenaĀ
- e o do pintor no momento em que compƵe seu quadro (nĆ£o o que Ć© representado, mas o que estĆ” diante de nós e do qual falamos).Ā
Essas trĆŖs funƧƵes āolhantesā confundem-se em um ponto exterior ao quadro: isto Ć©, ideal em relação ao que Ć© representado, mas perfeitamente real, porquanto Ć© a partir dele que se torna possĆvel a representação; nessa realidade mesma, ele nĆ£o pode deixar de ser invisĆvel. E, contudo, essa realidade Ć© projetada no interior do quadro – projetada e difratada em trĆŖs figuras que correspondem Ć s trĆŖs funƧƵes desse ponto ideal e real.Ā
SĆ£o elas:Ā
- Ć esquerda, o pintor com sua palheta na mĆ£o (autoretrato do autor do quadro);Ā
- Ć direita o visitante, com um pĆ© sobre o degrau, prestes a entrar na sala; ele capta ao revĆ©s toda a cena, mas vĆŖ de frente o par real, que Ć© o próprio espetĆ”culo;Ā
- no centro, enfim, o reflexo do rei e da rainha, ornamentados, imóveis, na atitude de pacientes modelos. .
Tal reflexo mostra ingenuamente, e na sombra, aquilo que todos olham no primeiro plano. Restitui, como que por encanto, o que falta a cada olhar:Ā
- ao do pintor, o modelo que Ć© recopiado no quadro pelo seu duplo representado;Ā
- ao do rei, seu retrato que se completa nesse lado da tela que ele nĆ£o pode distinguir do lugar em que estĆ”;Ā
- ao do espectador, o centro real da cena, cujo lugar ele assumiu como que por intrusĆ£o.Ā
Mas talvez essa generosidade do espelho seja simulada; talvez esconda tanto ou mais do que manifesta. O lugar onde impera o rei com sua esposa Ć© tambĆ©m o do artista e o do espectador: no fundo do espelho poderiam aparecer – deveriam aparecer – o rosto anĆ“nimo do transeunte e o de VelĆ”squez. Pois a função desse reflexo Ć© atrair para o interior do quadro o que lhe Ć© intimamente estranho: o olhar que o organizou e aquele para o qual ele se desdobra.Ā
Mas, por estarem presentes no quadro, Ć direita e Ć esquerda, o artista e o visitante nĆ£o podem estar alojados no espelho:Ā
do mesmo modo o rei aparece no fundo do espelho, na medida mesma em que nĆ£o faz parte do quadro.Ā
Na grande voluta que percorria o perĆmetro do ateliĆŖ, desde o olhar do pintor, sua palheta e sua mĆ£o suspensa, atĆ© os quadros terminados, a representação nascia, completava-se para se desfazer novamente na luz; o ciclo era perfeito.Ā
Em contrapartida, as linhas que atravessam a profundidade do quadro sĆ£o incompletas; falta, a todas, uma parte de seu trajeto.Ā
Essa lacuna Ć© devida Ć ausĆŖncia do rei – ausĆŖncia que Ć© um artifĆcio do pintor. Mas esse artifĆcio recobre e designa um lugar vago que Ć© imediato: o do pintor e do espectador quando olham ou compƵem o quadro.Ā
Ć que, nesse quadro talvez, como em toda representação de que ele Ć©, por assim dizer, a essĆŖncia manifestada,Ā
- a invisibilidade profunda do que se vĆŖ Ć© solidĆ”riaĀ
- com a invisibilidade daquele que vĆŖ – malgrado os espelhos, os reflexos, as imitaƧƵes, os retratos.Ā
Em torno da cenaĀ
- estĆ£o depositados os signos e as formas sucessivas da representação;Ā
- mas a dupla relaçãoĀ
- da representação com o modelo e com o soberano,Ā
- com o autor e com aquele a quem ela Ć© dada em oferenda,Ā
- essa relação Ć© necessariamente interrompida.Ā
Ela jamais pode estar toda presente, ainda quando numa representação que se desse a si própria em espetĆ”culo.Ā
Na profundidade que atravessa a tela, que a escava ficticiamente e a projeta para a frente dela própria, nĆ£o Ć© possĆvel que a pura felicidade da imagem ofereƧa alguma vez, em plena luz,Ā
- o mestre que representaĀ
- e o soberano representado.Ā
Talvez haja, neste quadro de VelĆ”squez, como que a representação da representação clĆ”ssica e a definição do espaƧo que ela abre.Ā
Com efeito, ela intenta representar-se a si mesma em todos os seus elementos, com suas imagens, os olhares aos quais ela se oferece, os rostos que torna visĆveis, os gestos que a fazem nascer.Ā
Mas aĆ, nessa dispersĆ£o que ela reĆŗne e exibe em conjunto, por todas as partes um vazio essencial Ć© imperiosamente indicado: o desaparecimento necessĆ”rio daquilo que a funda – daquele a quem ela se assemelha e daquele a cujos olhos ela nĆ£o passa de semelhanƧa.Ā
Esse sujeito mesmo ā que Ć© o mesmo ā foi elidido.Ā
E livre, enfim, dessa relação que a acorrentava, a representação pode se dar como pura representação.
Ā
ComentƔrios