Psicanálise e etnologia
“A psicanálise, com efeito,
mantém-se o mais próximo possível
desta função crítica acerca da qual se viu
que era interior a todas as ciências humanas.Dando-se por tarefa
fazer falar através da consciência o discurso do inconsciente,
a psicanálise avança na direção desta região fundamental
onde se travam as relações entre a representação e a finitude.
Enquanto todas as ciências humanas
só se dirigem ao inconsciente virando-lhe as costas,
esperando que ele se desvele à medida que se faz,
como que por recuos, a análise da consciência,
já a psicanálise aponta diretamente para ele, de propósito deliberado
– não em direção ao que deve explicitar-se pouco a pouco
na iluminação progressiva do implícito,
mas em direção ao que está aí e se furta,
que existe com a solidez muda de uma coisa, de um texto fechado sobre si mesmo,
ou de uma lacuna branca num texto visível e que assim se defende.Não há que supor que o empenho freudiano
seja o componente de uma interpretação do sentido
e de uma dinâmica da resistência ou da barreira;
seguindo o mesmo caminho que as ciências humanas,
mas com o olhar voltado em sentido contrário,
a psicanálise se encaminha em direção ao momento
– inacessível, por definição, a todo conhecimento teórico do homem,
a toda apreensão contínua em termos de significação, de conflito ou de função –
em que os conteúdos da consciência se articulam com,
ou antes, ficam abertos para a finitude do homem.
Isto quer dizer que, ao contrário das ciências humanas que,
retrocedendo embora em direção ao inconsciente,
permanecem sempre no espaço do representável,
a psicanálise avança para transpor a representação,
extravasá-la do lado da finitude e fazer assim surgir,
lá onde se esperavam
- as funções portadoras de suas normas,
- os conflitos carregados de regras
- e as significações formando sistema,
o fato nu de que pode haver
- sistema (portanto, significação),
- regra (portanto, oposição),
- norma (portanto, função).
E, nessa região onde a representação fica em suspenso,
à margem dela mesma, aberta, de certo modo ao fechamento da finitude,
desenham-se as três figuras pelas quais
- a vida, com suas funções e suas normas, vem fundar-se na repetição muda da Morte,
- os conflitos e as regras, na abertura desnudada do Desejo,
- as significações e os sistemas, numa linguagem que é ao mesmo tempo Lei.
Sabe-se como psicólogos e filósofos denominaram tudo isso:
mitologia freudiana.Era realmente necessário que este empenho de Freud assim lhes parecesse;
para um saber que se aloja no representável,
aquilo que margeia e define, em direção ao exterior,
a possibilidade mesma da representação não pode ser senão mitologia.Mas, quando se segue, no seu curso, o movimento da psicanálise,
ou quando se percorre o espaço epistemológico em seu conjunto,
vê-se bem que estas figuras – imaginárias, sem dúvida, para um olhar míope –
são as próprias formas da finitude, tal como é analisada no pensamento moderno:
- não é a morte aquilo a partir de que o saber em geral é possível de sorte tal que ela seria, do lado da psicanálise, a figura desta reduplicação empírico-transcendental que caracteriza na finitude o modo de ser do homem?
- Não é o desejo o que permanece sempre impensado no coração do pensamento?
- E esta Lei-Linguagem (ao mesmo tempo fala e sistema da fala) que a psicanálise se esforça por fazer falar, não é aquilo em que toda significação assume uma origem mais longínqua que ela mesma, mas também aquilo cujo retorno
é prometido no ato mesmo da análise?É bem verdade que nem esta Morte, nem este Desejo, nem esta Lei
podem jamais encontrar-se no interior do saber que percorre em sua positividade
o domínio empírico do homem; mas a razão disto é que designam
as condições de possibilidade de todo saber sobre o homem”
As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas;
Cap. 10. As ciências humanas; tópico V – Psicanálise e etnologia