IV. O penhor e o preço

Capítulo VI - Trocar; tópico IV. O penhor e o preço

A teoria clássica da moeda e dos preços elaborou-se através de experiências históricas bem conhecidas.

A primeira é a grande valorização dos signos monetários que começou bem cedo na Europa, no século XVII; será preciso ver uma primeira tomada de consciência disso, ainda marginal e alusiva, na afirmação de Colbert de que a massa metálica é estável na Europa e de que as contribuições americanas podem ser negligenciadas?

Em todo o caso, no fim do século, sente-se que o metal monetizado é demasiado raro: regressão do comércio, baixa dos preços, dificuldades para pagar as dívidas, as rendas e os impostos, depreciação da terra. Daí a grande série de desvalorizações ocorridas na França, durante os 15 primeiros anos do século XVIII, para multiplicar o numerário;

  • as 11 “diminuições” (reavaliações), escalonadas de 1. de dezembro de 1713 a 1. de setembro de 1715 e destinadas – mas foi um fracasso – a repor em circulação o metal que se esconde;
  • toda uma sequência de medidas que diminuem as taxas das rendas e reduzem seu capital nominal;
  • o aparecimento das cédulas monetárias, em 1701, logo substituídas por rendas de Estado.

Entre muitas outras consequências, a experiência de Law permitiu o reaparecimento dos metais, o aumento dos preços, a reavaliação da terra, a revalorização do comércio.

Os editos de janeiro e de maio de 1726 instauram, para todo o século XVIII, uma moeda metálica estável: promulgam a fabricação de um luís de ouro que vale e valerá, até a Revolução, 24 libras tornesas.

Tem-se o hábito de ver nessas experiências, no seu contexto teórico, nas discussões a que deram lugar, o confronto entre os partidários de uma moeda-signo e os de uma moeda-mercadoria.

De um lado,

  • coloca-se Law, é claro,
  • com Terrasson(29) Dutot(30), Montesquieu(31) o cavaleiro de Jaucourt(32) defronte,
    • alinham-se, além de Paris-Duvemey(33), o chanceler d’ Aguesseau(34), Condillac, Destutt;

entre os dois grupos e como que numa linha mediana,

  • cumpriria colocar Melon(35) e Graslin(36).

Certamente seria interessante fazer o parcelamento exato das opiniões e determinar como se distribuíram nos diferentes grupos sociais.

Se interrogarmos, porém, o saber que as tornou, umas e outras, ao mesmo tempo possíveis, perceberemos que a oposição é superficial; e que, se é necessária, é a partir de uma disposição única que estabelece somente, num ponto determinado, a bifurcação de uma escolha indispensável.

Essa disposição única é a que define a moeda como uma garantia. Definição que se encontra

  • em Locke e, um pouco antes dele, em Vaughan(37);
  • depois em Melon – “o ouro e a prata são, por convenção geral, a garantia, o equivalente ou a medida comum de tudo o que serve ao uso dos homens”(38) -,
  • em Dutot – “as riquezas de confiança ou de opinião são somente representativas, como o ouro, a prata, o bronze, o cobre”(39) -,
  • em Fortbonnais – “o ponto importante” nas riquezas de convenção consiste “na segurança que têm os proprietários de dinheiro e de mercadorias de trocá-los quando o quiserem… na base estabelecida pelo uso”(40).

Dizer que a moeda é uma garantia

  • é dizer que ela nada mais é que um tento recebido com consentimento comum – pura ficção, por conseguinte;
  • mas é dizer também que ela vale exatamente aquilo por que foi dada, pois que, por sua vez, poderá ser trocada por essa mesma quantidade de mercadoria ou seu equivalente.

A moeda pode sempre reconduzir às mãos de seu proprietário o que acaba de ser trocado por ela, assim como, na representação, um signo deve poder reconduzir o pensamento àquilo que ele representa.

A moeda é uma sólida memória, uma representação que se reduplica, uma troca adiada.

Como diz Le Trosne, o comércio que se serve da moeda é um aperfeiçoamento, na mesma medida em que é “um comércio imperfeito”(41), um ato ao qual falta, durante um tempo, aquilo que o compensa, uma semi operação que promete e espera a troca inversa pela qual a garantia se achará reconvertida em seu conteúdo efetivo.

Mas como pode a garantia monetária dar essa segurança? Como pode escapar ao dilema do signo sem valor ou da mercadoria análoga a todas as outras?

É aí que se situa, para a análise clássica da moeda, o ponto de heresia – a escolha que opõe aos partidários de Law seus adversários.

Com efeito, pode-se conceber que a operação que garante a moeda

  • seja assegurada pelo valor mercantil da matéria de que é feita;
  • ou, ao contrário, por outra mercadoria que lhe fosse exterior, mas que estaria a ela ligada pelo consentimento coletivo ou pela vontade do príncipe.

É essa segunda solução que Law escolhe por causa da raridade do metal e das oscilações de seu valor mercantil. Ele pensa que se pode fazer circular uma moeda de papel que seria garantida pela propriedade fundiária: trata-se então apenas de emitir “bilhetes hipotecados sobre as terras e que devem ser amortizados por pagamentos anuais…, esses bilhetes circularão como dinheiro monetizado pelo valor que eles exprimem”(42).

Sabe-se que Law foi obrigado a renunciar a essa técnica em sua experiência francesa e que fez com que a moeda fosse garantida por uma companhia de comércio. O fracasso do empreendimento em nada afetou a teoria da moeda-garantia que o tornara possível mas que tornava igualmente possível toda reflexão sobre a moeda, mesmo oposta às concepções de Law.

E quando, em 1726, uma moeda metálica estável foi introduzida, a garantia foi requerida à própria substância da espécie. O que assegura à moeda sua permutabilidade é o valor mercantil do metal que nela está presente; e Turgot criticará Law por ter acreditado que “a moeda não passa de uma riqueza simbólica, cujo crédito se baseia na marca do príncipe. Essa marca só está lá para certificar-lhe o peso e o título… Portanto, é como mercadoria que o dinheiro é não o signo, mas a comum medida das outras mercadorias… O ouro extrai seu preço de sua raridade e, por não constituir um mal o fato de ser ele empregado ao mesmo tempo como mercadoria e como medida, esses dois empregos sustentam seu preço”(43).

Law, com seus partidários, não se opõe a seu século como o genial ou imprudente – precursor das moedas fiduciárias. Do mesmo modo que seus adversários, define a moeda como garantia.

  • Pensa, porém, que seu fundamento será mais bem assegurado (ao mesmo tempo mais abundante e mais estável) por uma mercadoria exterior à própria espécie monetária;
  • seus adversários, em contrapartida, pensam que ele será mais bem assegurado (mais certo e menos submetido às especulações) pela substância metálica que constitui a realidade material da moeda.

Entre Law e os que o criticam, a oposição concerne somente à distância entre quem dá a garantia e quem a recebe.

Num caso,

  • a moeda, aliviada em si mesma de todo valor mercantil, mas assegurada por um valor que lhe é exterior, é aquilo “pelo qual” se trocam mercadorias(44);
  • no outro caso, a moeda, tendo em si um preço, é ao mesmo tempo aquilo “pelo qual” e “para o qual” se trocam as riquezas.

Em ambos os casos, porém, a moeda permite fixar o preço das coisas graças a certa relação de proporção com as riquezas e a certo poder de fazê-Ias circular. Enquanto garantia, a moeda designa uma certa riqueza (atual ou não): ela estabelece seu preço. Mas a relação entre a moeda e as mercadorias, portanto o sistema dos preços, se acha modificada desde que a quantidade de moeda ou a quantidade de mercadorias, em um momento do tempo, são, elas também, alteradas.

Se houver pequena quantidade de moeda em relação aos bens, ela terá um grande valor e os preços serão baixos; se sua quantidade aumenta a ponto de se tornar abundante diante das riquezas, então ela terá pouco valor e os preços serão altos.

O poder de representação e de análise da moeda varia com a quantidade de espécies, de um lado, e com a quantidade de riquezas, de outro: só seria constante se as duas quantidades fossem estáveis ou variassem conjuntamente numa mesma proporção.

A “lei quantitativa” não foi “inventada” por Locke. Já no século XVI, Bodin e Davanzatti sabiam perfeitamente que o crescimento das massas metálicas em circulação fazia subir o preço das mercadorias; mas esse mecanismo aparecia ligado a uma desvalorização intrínseca do metal.

No fim do século XVII, esse mesmo mecanismo é definido a partir da função representativa da moeda, “a quantidade da moeda estando em proporção com todo o comércio”.

  • Mais metal – e, de imediato, cada mercadoria existente no mundo poderá dispor de um pouco mais de elementos representativos;
  • mais mercadorias, e cada unidade metálica será um pouco mais fortemente garantida.

Basta tomar uma mercadoria qualquer como referência estável e o fenômeno de variação aparece com toda a clareza:

“Se tomarmos”, diz Locke, “o trigo como medida fixa, verificaremos que o dinheiro suportou no seu valor as mesmas variações que as outras mercadorias… A razão disso é tangível. Desde a descoberta das Índias, há dez vezes mais dinheiro no mundo do que havia até então; ele vale também 9/10 menos, o que quer dizer que é preciso dar dez vezes mais dinheiro do que se dava há 200 anos, para comprar a mesma quantidade de mercadorias”(45). A baixa do valor do metal que aqui é invocada não concerne a certa qualidade preciosa que lhe. pertenceria propriamente, mas a seu poder geral de representação.

É preciso considerar as moedas e as riquezas como duas massas gêmeas que se correspondem necessariamente:

“Como o total de uma está para o total da outra, a parte de uma estará para a parte da outra… Se houvesse apenas uma mercadoria divisível como o ouro, a metade dessa mercadoria corresponderia à metade do total do outro lado.”46

Supondo-se que só houvesse um bem no mundo, todo o ouro da terra estaria aí para representá-Io; e, inversamente, se os homens todos só dispusessem de uma peça de moeda, todas as riquezas que nascem da natureza ou saem de suas mãos deveriam repartir-se pelas suas subdivisões.

A partir dessa situação-limite,

  • se o dinheiro começar a afluir – as mercadorias permanecendo iguais – “o valor de cada parte da espécie diminuirá proporcionalmente”;
  • em contrapartida, “se a indústria, as artes e as ciências introduzirem no círculo das trocas novos objetos… será preciso aplicar ao novo valor dessas novas produções uma porção de signos representativos dos valores;
  • sendo essa porção tomada da massa dos signos, sua quantidade relativa diminuirá e aumentará proporcionalmente seu valor representativo para fazer face a mais valores, já que sua função é representá-Ios todos, nas proporções que lhes convêm”47.

Não há, pois, justo preço: nada, numa mercadoria qualquer, indica por algum caráter intrínseco, a quantidade de moeda pela qual seria preciso retribuí-Ia. O preço módico não é nem mais nem menos exato que o preço elevado. No entanto, existem regras de comodidade que permitem fixar a quantidade de moeda pela qual é desejável representar as riquezas. No final, cada coisa permutável deveria ter seu equivalente – “sua designação” – em espécies; o que seria sem inconveniente no caso em que a moeda utilizada fosse de papel (seriam fabricadas ou destruídas, segundo a idéia de Law, proporcionalmente às necessidades de troca); mas isso seria incômodo ou mesmo impossível se a moeda fosse metálica. Ora, uma só e mesma unidade monetária adquire, ao circular, o poder de representar várias coisas; quando ela muda de mão, ora é o pagamento de um objeto ao empresário, ora o de um salário ao operário, o de uma mercadoria ao mercador, o de um produto ao agricultor, ou ainda o da renda ao proprietário.

Uma única massa metálica pode, no curso do tempo e segundo os indivíduos que a recebem, representar várias coisas equivalentes (um objeto, um trabalho, uma medida de trigo, uma parte de um rendimento) – como um nome comum tem o poder de representar várias coisas, ou um caráter taxinômico o de representar vários indivíduos, várias espécies, vários gêneros, etc.

Mas, enquanto o caráter só cobre uma generalidade maior em se tomando mais simples, a moeda só representa mais riquezas quando circula mais depressa.

A extensão do caráter se define pelo número de espécies que agrupa (portanto, pelo espaço que ele ocupa no quadro); a velocidade de circulação da moeda, pelo número de mãos entre as quais passa antes de retornar ao seu ponto de partida (é por isso que se escolhe como origem o pagamento à agricultura dos produtos de sua colheita, porque aí há ciclos anuais absolutamente certos).

Vê-se, pois, que à extensão taxinômica do caráter no espaço simultâneo do quadro corresponde a velocidade do movimento monetário durante um tempo definido.

Essa velocidade tem dois limites:

  • uma velocidade infinitamente rápida, que seria a de uma troca imediata em que a moeda não teria papel a desempenhar,
  • e uma velocidade infinitamente lenta, em que cada elemento de riqueza teria seu duplo monetário.

Entre esses dois extremos, há velocidades variáveis, às quais correspondem as quantidades de moedas que as tornam possíveis. Ora, os ciclos da circulação são comandados pela anuidade das colheitas: a partir destas e tendo em conta o número de indivíduos que povoa um Estado, é possível, portanto, definir a quantidade de moeda necessária e suficiente para que passe entre todas as mãos e para que represente ao menos a subsistência de cada um.

Compreende-se de que modo se acharam ligadas, no século XVIII,

  • as análises da circulação a partir dos rendimentos agrícolas,
  • o problema do desenvolvimento da população
  • e o cálculo da quantidade ótima de espécies monetizadas.

Tripla questão que se põe sob uma forma normativa: pois o problema

  • não está em saber por quais mecanismos o dinheiro circula ou estagna, de que modo ele é despendido ou acumulado (tais questões só são possíveis numa economia que formulasse os problemas da produção e do capital),
  • mas sim, qual a quantidade necessária de moeda para que, num dado país, a circulação se faça bastante veloz, passando por um número bastante elevado de mãos.

Então os preços serão não intrinsecamente “justos”, mas exatamente ajustados: as divisões da massa monetária analisarão as riquezas segundo uma circulação que não será nem demasiado frouxa, nem demasiado cerrada.

O “quadro” estará bem-feito.

Essa proporção ótima não é a mesma, se considerarmos um país isolado ou o jogo de seu comércio exterior.

Supondo um Estado capaz de viver por si mesmo, a quantidade de moeda que é preciso pôr em circulação depende de diversas variáveis:

  • a quantidade de mercadorias que entra no sistema de trocas;
  • a parte dessas mercadorias que, não sendo nem distribuída nem retribuída pelo sistema da permuta deve ser, num momento qualquer de seu percurso, representada pela moeda;
  • a quantidade de metal que pode ser substituída pelo papel escrito;
  • enfim, o ritmo em que se devem efetuar os pagamentos: não é indiferente, como observa Cantillon(48), que os operários sejam pagos por semana ou por dia, que as rendas sejam entregues no fim do ano, ou antes, como é costume, no fim de cada trimestre.

Definidos os valores dessas quatro variáveis para um dado país, pode-se definir a quantidade ótima de espécies metálicas.

Para efetuar um cálculo desse gênero, Cantillon parte da produção da terra, da qual todas as riquezas saem direta ou indiretamente. Essa produção divide-se em três rendas nas mãos do agricultor:

  • a renda paga ao proprietário;
  • a que é utilizada para a manutenção do agricultor, dos homens e dos cavalos;
  • enfim, “uma terceira que deve permanecer com ele para o beneficio da sua empresa “(49)

Ora, só a primeira renda e cerca da metade da terceira devem ser entregues em espécies; as outras podem ser pagas sob a forma de trocas diretas. Levando em conta o fato de que uma metade da população reside nas cidades e tem despesas de manutenção mais elevadas que os camponeses, vê-se que a massa monetária em circulação deveria ser quase igual aos 2/3 da produção. Isso se ao menos todos os pagamentos se efetuassem uma vez por ano; mas, de fato, a renda fundiária é paga a cada trimestre; basta, portanto, uma quantidade de espécies equivalente a 1/6 da produção. Ademais, muitos pagamentos se fazem por dia ou por semana; a quantidade de moeda requerida é, pois, da ordem da nona parte da produção – isto é, de 1/3 da renda dos proprietários(50).

Esse cálculo, porém, só é exato desde que se imagine uma nação isolada. Ora, na sua maioria, os Estados mantêm, uns com os outros, um comércio em que os únicos meios de pagamento são a permuta, o metal estimado segundo seu peso (e não as espécies com seu valor nominal) e, eventualmente, os títulos bancários. Nesse caso, pode-se também calcular a quantidade relativa de moeda que é desejável pôr em circulação: todavia, essa estimação não deve tomar por referência a produção fundiária, mas uma certa relação dos salários e dos preços com aqueles que são praticados nos países estrangeiros.

Com efeito, numa região onde os preços são relativamente pouco elevados (em razão de uma fraca quantidade de moeda), o dinheiro estrangeiro é atraído por largas possibilidades de compra: a quantidade de metal cresce. O Estado, como se diz, torna-se “rico e poderoso”; pode manter uma frota e um exército, realizar conquistas, enriquecer-se mais.

A quantidade de espécies em circulação faz subir os preços, ao mesmo tempo em que dá aos particulares a faculdade de comprar no estrangeiro, onde os preços sejam inferiores; pouco a pouco o metal desaparece e o Estado novamente se empobrece.

Tal é o ciclo que Cantillon descreve e formula num princípio geral:

“A excessiva abundância de dinheiro que faz, enquanto dura, a potência dos Estados, lança-os insensível e naturalmente na indigência.”(51)

Sem dúvida, não seria possível evitar essas oscilações, se não existisse, na ordem das coisas, uma tendência inversa que agrava incessantemente a miséria das nações já pobres e aumenta, ao contrário, a prosperidade dos Estados ricos. É que os movimentos da população se dirigem num sentido oposto ao numerário. Este vai dos Estados prósperos às regiões de baixos preços; já os homens são atraídos em direção aos salários elevados, portanto, para os países que dispõem de um numerário abundante.

Os países pobres têm, pois, tendência a se despovoar; a agricultura e a indústria ali se deterioram e a miséria aumenta. Nos países ricos, ao contrário, o afluxo da mão-de-obra permite explorar novas riquezas cuja venda aumenta em proporção à quantidade de metal que circula.(52)

A política deve, portanto, buscar compor esses dois movimentos inversos da população e do numerário. É preciso que o número dos habitantes cresça pouco a pouco, mas sem interrupção, para que as manufaturas possam encontrar uma mão-de-obra sempre abundante; então os salários não aumentarão mais depressa que as riquezas, nem, com eles, os preços; e a balança comercial poderá permanecer favorável: reconhece-se aí o fundamento das teses populacionistas(53).

Mas, por outro lado, é preciso também que a quantidade do numerário esteja sempre em ligeiro aumento: único meio para que

  • as produções da terra ou da indústria sejam bem retribuídas,
  • para que os salários sejam suficientes,
  • para que a população não seja miserável em meio às riquezas que ela produz:
    • daí todas as medidas para favorecer o comércio exterior e manter uma balança positiva.

O que assegura o equilíbrio e impede as profundas oscilações entre a riqueza e a pobreza

  • não é, pois, um certo estatuto definitivamente adquirido,
  • mas uma composição – ao mesmo tempo natural e combinada – de dois movimentos.

Há prosperidade num Estado, não quando as espécies são aí numerosas ou os preços elevados; mas quando as espécies estão neste estágio de aumento – que é preciso poder prolongar indefinidamente – que permite sustentar os salários sem aumentar mais os preços: então a população cresce regularmente, seu trabalho produz mais e, uma vez que o aumento consecutivo das espécies se reparte (segundo a lei de representatividade) entre riquezas pouco numerosas, os preços não aumentam em relação aos que vigoram no estrangeiro. É somente “entre o crescimento da quantidade de ouro e a alta dos preços que o crescimento da quantidade de ouro e de prata é favorável à indústria. Uma nação cujo numerário está diminuindo é, no momento em que se faz a comparação, mais fraca e mais miserável que uma outra que não possui mais, mas cujo numerário está em crescimento”54. É assim que se explica o desastre espanhol: com efeito, a posse das minas aumentara maciçamente o numerário – e, por via de conseqüência, os preços – sem que a indústria, a agricultura e a população tivessem tido tempo, entre causa e efeito, de se desenvolver em proporção; era fatal que o ouro americano se espalhasse pela Europa, aí comprasse mercadorias, fizesse crescer as manufaturas, enriquecesse as herdades, deixando a Espanha mais miserável do que jamais fora. A Inglaterra, em contrapartida, se atraiu o metal, foi sempre em proveito do trabalho, e não apenas para o luxo de seus habitantes, isto é,. para aumentar, antes de toda alta dos preços, o número de seus operários e a quantidade de seus produtos55. Tais análises são importantes porque introduzem a noção de progresso na ordem da atividade humana. Mais ainda, porém, porque afetam o jogo dos signos e das representações com um índice temporal que define para o progresso a condição de sua possibilidade. Índice que não se acha em nenhuma outra região da teoria da ordem. Com efeito, a moeda, tal como a concebe o pensamento clássico, não pode representar a riqueza sem que esse poder se ache interiormente modificado pelo tempo – quer porque um ciclo espontâneo aumente, após ter diminuído, sua capacidade de representar as riquezas, quer porque uma política mantenha, a golpes de esforços combinados, a constância de sua representatividade. Na ordem da história natural, os caracteres (os feixes de identidades escolhidos para representar e distinguir várias espécies ou vários gêneros) alojavamse no interior do espaço contínuo da natureza que eles repartiam num quadro taxinômico; o tempo só intervinha do exterior, para perturbar a continuidade das menores diferenças e dispersá-Ias segundo os lugares fragmentados da geografia. Aqui, ao contrário, o tempo pertence à lei interior das representações, incorporando-se a elas; segue e altera sem interrupção o poder que detêm as riquezas de se representarem a si mesmas e de se analisarem num sistema monetário. Lá onde a história natural descobria zonas de identidades separadas por diferenças, a análise das riquezas descobre “diferenciais” – tendências ao aumento e à diminuição. Era necessário que essa função do tempo, na riqueza, aparecesse desde o momento (era o fim do século XVII) em que a moeda fosse definida como garantia e assimilada ao crédito: era realmente preciso então que a duração do crédito, a brevidade do termo do vencimento, o número de mãos entre as quais passava durante um dado tempo se tomassem variáveis características de seu poder representativo. Tudo isso, porém, era apenas a conseqüência de uma forma de reflexão que colocava o signo monetário, em relação à riqueza, numa postura de representação no sentido pleno do termo. Conseqüentemente, é a mesma rede arqueológica que sustenta, na análise das riquezas, a teoria da moeda-representação e, na história natural, a teoria do caráter-representação. O caráter designa os seres situando-os ao mesmo tempo em sua vizinhança; o preço monetário designa as riquezas, mas no movimento de seu crescimento ou de sua diminuição.

III. O mercantilismo

Capítulo VI - Trocar; tópico III. O mercantilismo

Para que o domínio das riquezas se constituísse como objeto de reflexão no pensamento clássico, foi preciso que se desfizesse a configuração estabelecida no século XVI.

Para os “economistas” do Renascimento e até mesmo Davanzatti, a aptidão da moeda para medir as mercadorias e sua permutabilidade repousavam em seu valor intrínseco: sabia-se bem que os metais preciosos tinham pouca utilidade fora da moedagem; porém, se foram escolhidos como estalões, se eram utilizados na troca, se, por consequência, atingiam um preço elevado, é porque, na ordem natural e em si próprios, tinham um preço absoluto, fundamental, mais elevado que qualquer outro, ao qual se podia referir o valor de cada mercadoria.(11)

O insigne metal era, por si, marca da riqueza; seu brilho oculto indicava suficientemente que ele era ao mesmo tempo presença escondida e visível assinalação de todas as riquezas do mundo.

  • Por essa razão é que tinha um preço;
  • por essa razão, também media todos os preços;
  • por essa razão, enfim, era possível trocá-lo por tudo o que tinha um preço.

Era o precioso por excelência.

No século XVII, atribuem-se sempre estas três propriedades à moeda fazendo-as repousar porém, todas três, não mais sobre a primeira (ter preço) mas sobre a última (substituir o que tem preço).

Enquanto

  • o Renascimento fundava as duas funções do metal monetizado (medida e substituto) sobre a reduplicação de seu caráter intrínseco (o fato de ser precioso),
  • o século XVII desloca a análise; é a função de troca que serve de fundamento para os dois outros caracteres (a aptidão para medir e a capacidade de receber um preço surgindo então como qualidades que derivam dessa função).

Essa reviravolta é obra de um conjunto de reflexões e de práticas que se distribuem ao longo de todo o século XVII (desde Scipion de Grammont até Nicolas Barbon) e que se agrupam sob o termo um pouco aproximativo de “mercantilismo”.

Apressadamente tem-se o costume de caracteriza-Io por um “monetarismo” absoluto, isto é, por uma confusão sistemática (ou obstinada) entre riquezas e espécies monetárias.

Na realidade, não é uma identidade mais ou menos confusa que o “mercantilismo” instaura entre umas e outras, mas uma articulação refletida,

  • que faz da moeda o instrumento de representação e de análise das riquezas
  • e faz, por sua vez, das riquezas o conteúdo representado pela moeda.

Assim como a velha configuração circular das similitudes e das marcas se desfizera para desenvolver-se segundo as duas superfícies correlativas da representação e dos signos, assim o círculo do “precioso” se desfaz na época do mercantilismo,

  • as riquezas se desenvolvem como objetos das necessidades e dos desejos;
  • dividem-se e substituem umas às outras pelo jogo das espécies monetizadas que as significam;
  • e as relações recíprocas entre a moeda e a riqueza se estabelecem sob a forma da circulação e das trocas.

Se se pôde crer que o mercantilismo confundia riqueza e moeda é, sem dúvida,

  • porque, para ele, a moeda tem o poder de representar toda riqueza possível,
  • porque ela é o seu instrumento universal de análise e de representação,
  • porque ela cobre por inteiro o conjunto de seu domínio.

Toda riqueza é monetizável; e é assim que ela entra em circulação. Da mesma forma,

Da mesma forma,

  • todo ser natural era caracterizável e podia entrar numa taxinomia;
  • todo indivíduo era nomeável e podia entrar numa linguagem articulada;
  • toda representação era significável e podia   entrar, para ser conhecida, num sistema de identidades e de diferenças.

Mas isso exige um exame mais minucioso. Entre todas as coisas que existem no mundo, quais são aquelas que o mercantilismo poderá chamar de “riquezas”? Todas as que,

  • além de representáveis,
  • são também objetos de desejo.

Quer dizer ainda, aquelas que são marcadas

  • pela “necessidade,
  • ou pela utilidade,
  • ou pelo prazer,
  • ou pela raridade”.(12)

Ora, pode-se dizer que os metais que servem para fabricar peças de moeda (não se trata aqui da moeda de cobre que serve apenas para troco em certas regiões, mas das que são utilizadas no comércio exterior) fazem parte das riquezas?

Muito pouca é a utilidade do ouro e da prata – “quando muito poderiam ser utilizados nos serviços da casa”; e, por raros que sejam, sua abundância excede ainda o que é requerido para essas utilizações.

Se são procurados, se os homens acham que lhes fazem falta, se escavam minas e guerreiam pela sua posse, é porque a fabricação das moedas de ouro e prata lhes deram uma utilidade e uma raridade que, por si mesmos, esses metais não detêm.

“A moeda não empresta seu valor da matéria de que é composta, mas sim da forma, que é a imagem ou a marca do príncipe.”(13)

É por ser moeda que o ouro é precioso. Não o inverso.

Desde logo, a relação tão estreitamente fixada no século XVI é invertida: a moeda (e mesmo o metal de que é feita) recebe seu valor de sua pura função de signo. O que acarreta duas consequências.

Primeiro, não é mais do metal que virá o valor das coisas. Este se estabelece por si mesmo, sem referência à moeda, segundo critérios de utilidade, de prazer ou de raridade; é na relação de umas com as outras que as coisas assumem valor; o metal permitirá somente representar esse valor, como um nome representa uma imagem ou uma ideia, mas não a constitui:

“O ouro é apenas o signo e o instrumento usual para pôr em prática o valor das coisas; mas a verdadeira estimação desse valor tem sua origem no juízo humano e nessa faculdade a que se chama estimativa.”(14)

As riquezas são riquezas porque as estimamos, assim como nossas ideias são o que são porque no-Ias representamos. Os signos monetários ou verbais são a elas somados por acréscimo.

Mas, por que o ouro e a prata, que em si mesmos dificilmente são riquezas, receberam ou assumiram esse poder significante?

Sem dúvida, poder-se-ia utilizar uma outra mercadoria para esse efeito “por muito vil e abjeta que fosse”(15). O cobre, que em muitas nações permanece em estado de matéria de baixo preço, torna-se precioso em algumas, na medida em que é transformado em moeda(16). De maneira geral, porém, utilizam-se o ouro e a prata porque encerram em si mesmos uma “perfeição própria”. Perfeição que não é da ordem do preço, mas provém de sua capacidade indefinida de representação. São duros, imperecíveis, inalteráveis; podem dividir-se em parcelas minúsculas; são capazes de reunir um grande peso sob um volume frágil; podem ser facilmente transportados; são fáceis de perfurar.

Tudo isso faz do ouro e da prata um instrumento privilegiado para representar todas as outras riquezas e estabelecer, por análise, uma comparação rigorosa entre elas.

Assim se acha definida a relação da moeda com as riquezas. Relação arbitrária, porque não é o valor intrínseco do metal que dá preço às coisas; todo objeto, mesmo sem preço, pode servir de moeda; mas é preciso ainda que tenha qualidades próprias de representação e capacidades de análise que permitam estabelecer entre as riquezas relações de igualdade e de diferença.

Parece então que a utilização do ouro e da prata está justamente fundada. Como diz Bouteroue, a moeda “é uma porção de matéria à qual a autoridade pública deu um peso e um valor certo, para servir de preço e igualar no comércio a desigualdade de todas as coisas”(17).

O “mercantilismo” ao mesmo tempo

  • liberou a moeda do postulado do valor próprio do metal – “loucura daqueles para quem o dinheiro é uma mercadoria como outra qualquer”(18)-
  • e estabeleceu entre ela e a riqueza uma relação rigorosa de representação e de análise.

“O que visamos na moeda, diz Barbon, não é tanto a quantidade de prata que ela contém, mas o fato de que tenha curso.”(19)

Comumente somos injustos, e duas vezes, com o que se convencionou chamar o “mercantilismo”;

  • quer porque se denuncie nele o que ele não cessou de criticar (o valor intrínseco do metal como princípio de riqueza),
  • quer porque se descubra nele uma série de imediatas contradições:
    • não definiu ele a moeda na sua pura função de signo, enquanto requeria sua acumulação como uma mercadoria?
    • não reconheceu a importância das flutuações quantitativas do numerário e desprezou a sua ação sobre os preços?
    • não foi protecionista, fundando, no entanto, sobre a troca o mecanismo de aumento das riquezas?

De fato, essas contradições ou essas hesitações só existem se se colocar o mercantilismo num dilema que, para ele, não podia ter sentido: o da moeda mercadoria ou signo.

Para o pensamento clássico, em via.de se constituir, a moeda é o que permite representar as riquezas. Sem tais signos, as riquezas ficariam imóveis, inúteis e como que silenciosas; nesse sentido, o ouro e a prata são criadores de tudo o que o homem pode cobiçar. Mas, para poder desempenhar esse papel de representação, é preciso que a moeda apresente propriedades (físicas e não econômicas) que a tornam adequada à sua tarefa e, por isso, preciosa. É a título de signo universal que ela se toma mercadoria rara e desigualmente repartida:

“O curso e valor impostos a toda moeda é sua verdadeira validade intrínseca.” (20)

Assim como, na ordem das representações, os signos que as substituem e as analisam devem ser, também eles, representações, a moeda não pode significar as riquezas sem ser ela própria uma riqueza.

Porém torna-se riqueza porque é signo; ao passo que uma representação deve ser primeiro representada para depois tomar-se signo. Daí as aparentes contradições entre os princípios da acumulação e as regras da circulação.

Em um dado momento do tempo, o número de espécies que existem é determinado; Colbert pensava mesmo, malgrado a exploração das minas, malgrado o metal americano, que “a quantidade de prata que circula na Europa é constante”. Ora, é dessa prata que se tem necessidade para representar as riquezas, isto é, atraí-Ias, fazê-Ias aparecer, trazendo-as do estrangeiro ou fabricando-as no local; é dela também que se tem necessidade para fazê-Ias passar de mão em mão no processo de troca.

É preciso, pois, importar metal, tomando-o dos Estados vizinhos:

“Somente o comércio e tudo o que dele depende pode produzir esse grande efeito.”(21)

A legislação deve, portanto, velar por duas coisas:

  • “Interditar a transferência do metal ao estrangeiro ou sua utilização para outros fins que não a moedagem,
  • e fixar direitos alfandegários tais que permitam à balança comercial ser sempre positiva, favorecer a importação de mercadorias brutas, evitar quanto possível a de objetos fabricados, exportar os produtos manufaturados de preferência aos próprios produtos cujo desaparecimento conduz à escassez e provoca a alta dos preços.”(22)

Ora, o metal que se acumula não é destinado a se engrossar nem a dormir; se é atraído a um Estado é para aí ser consumido pela troca.

Como dizia Becher, tudo o que é despesa para um dos parceiros é receita para o outro(23); e Thomas Mun identificava o negócio seguro com a fortuna(24).

É que o dinheiro só se torna riqueza real na exata medida em que cumpre sua função representativa:

  • quando substitui as mercadorias,
  • quando lhes permite deslocarem-se ou aguardarem,
  • quando dá às matérias brutas a ocasião de se tornarem consumíveis,
  • quando retribui o trabalho.

Não é, pois, de temer que a acumulação de dinheiro num Estado faça subir os preços; e o princípio estabelecido por Bodin de que a grande carestia do século XVI era devida ao afluxo do ouro americano não é válida;

  • se é verdade que a multiplicação do numerário provoca inicialmente uma alta dos preços, estimula contudo o comércio e as manufaturas;
  • a quantidade de riquezas cresce e o número de elementos entre os quais se repartem as espécies se acha proporcionalmente aumentado.

Não há que temer a alta dos preços: ao contrário, agora que os objetos preciosos se multiplicaram, agora que os burgueses, como diz Scipion de Grammont, podem usar “cetim e veludo”, o valor das coisas, mesmo as mais raras, só pôde baixar em relação à totalidade das outras; do mesmo modo, cada fragmento de metal perde em valor perante os outros, na medida em que aumenta a massa das espécies em circulação(25).

As relações entre riqueza e moeda estabelecem-se, pois, na circulação e na troca, não mais na “preciosidade” do metal.

Quando os bens podem circular (e isso graças à moeda), eles se multiplicam e as riquezas aumentam; quando as espécies se tornam mais numerosas por efeito de uma boa circulação e de uma balança favorável, podem-se atrair novas mercadorias e multiplicar as culturas e as fábricas. Portanto, é preciso dizer com Horneck que o ouro e a prata “são o mais puro de nosso sangue, a medula de nossas forças”, “os mais indispensáveis instrumentos da atividade humana e de nossa existência”(26).

Reencontra-se aqui a velha metáfora de uma moeda que seria para a sociedade o que o sangue é para o corpo(27). Mas, em Davanzatti, as espécies não tinham outro papel senão o de irrigar as diversas partes da nação.

Agora que moeda e riqueza são tomadas ambas no interior do espaço das trocas e da circulação, o mercantilismo pode ajustar sua análise conforme o modelo recentemente fornecido por Harvey.

Segundo Hobbes(28), o circuito venoso da moeda é o dos impostos e das taxas que subtraem das mercadorias transportadas, compradas ou vendidas, uma certa massa metálica; esta é conduzida até o coração do Homem-Leviatã – isto é, até os cofres do Estado. É lá que o metal recebe o “princípio vital”: o Estado, com efeito, pode fundi-Io ou tornar a pô-Io em circulação.

Em todo o caso, somente sua autoridade lhe dará curso; e, redistribuído aos particulares (sob forma de pensões, de emolumentos ou de retribuição por provisões compradas pelo Estado), estimulará, no segundo circuito, agora arterial, as trocas, as fabricações e as culturas.

A circulação torna-se assim uma das categorias fundamentais da análise.

Mas a transferência desse modelo fisiológico só se tornou possível pela abertura mais profunda de um espaço comum à moeda e aos signos, às riquezas e às representações.

A metáfora, tão assídua em nosso Ocidente, da cidade e do corpo, só assumiu, no século XVII, seus poderes imaginários com base em necessidades arqueológicas muito mais radicais. Através da experiência mercantilista, o domínio das riquezas se constitui do mesmo modo que o das representações. Viu-se que estas tinham o poder de se representarem a partir de si mesmas: de abrir em si um espaço onde elas se analisavam e de formar, com seus próprios elementos, substitutos que permitiam, a um tempo, estabelecer um sistema de signos e um quadro das identidades e das diferenças.

Do mesmo modo, as riquezas têm o poder de se permutarem; de se analisarem em partes que autorizam relações de igualdade ou de desigualdade; de se significarem umas às outras por esses elementos de riquezas perfeitamente comparáveis que são os metais preciosos.

E assim como o mundo inteiro da representação se cobre de representações de segundo grau que as representam, e isso numa cadeia ininterrupta, assim também todas as riquezas do mundo estão em relação umas com as outras, na medida em que fazem parte de um sistema de troca. De uma representação a outra não há ato autônomo de significação, mas uma simples e indefinida possibilidade de troca.

Quaisquer que tenham sido suas determinações e consequências econômicas, o mercantilismo, se interrogado ao nível da epistémê, aparece como o lento, o longo esforço para colocar a reflexão sobre os preços e a moeda na linha reta da análise das representações.

Ele fez surgir

  • um domínio de “riquezas” que é conexo àquele que, por volta da mesma época, abriu-se diante da história natural, e àquele, igualmente, que se desenrolou diante da gramática geral. Todavia, enquanto nestes dois últimos casos, a mutação se fez bruscamente (um certo modo de ser da linguagem se erige subitamente na Grammaire de Port- Royal, um certo modo de ser dos indivíduos naturais se manifesta quase de repente com Jonston e Tournefort) –
  • em contrapartida, o modo de ser da moeda e da riqueza, porque ligado a toda uma práxis, a todo um conjunto institucional, tinha um índice de viscosidade histórica muito mais elevado.

Os seres naturais e a linguagem não necessitaram do equivalente da longa operação mercantilista para entrar no domínio da representação, submeter-se às suas leis, dela receber seus signos e seus princípios de ordem.

II. Moeda e preço

Capapítulo VI - Trocar; tópico II. Moeda e preço

No século XVI, o pensamento econômico está limitado, ou quase, ao problema dos preços e ao da substância monetária.

A questão dos preços concerne 

  • ao caráter absoluto ou relativo do encarecimento das mercadorias 
  • e ao efeito que porventura tiveram sobre os preços as desvalorizações sucessivas ou o afluxo dos metais americanos.

O problema da substância monetária 

  • é o da natureza do estalão, da relação de preço entre os diferentes metais utilizados, 
  • da distorção entre o peso das moedas e seus valores nominais.

Mas essas duas séries de problemas estavam ligadas, pois que o metal só aparecia como signo, e como signo medindo riquezas, na medida em que ele próprio era uma riqueza. Se ele podia significar é porque era uma marca real. E assim como as palavras tinham a mesma realidade daquilo que diziam, assim como as marcas dos seres vivos estavam inscritas sobre seu corpo à maneira de marcas visíveis e positivas, assim os signos que indicavam as riquezas e as mediam deviam trazer, eles próprios, a sua marca real.

Para poderem dizer o preço,

  • era necessário que fossem preciosos.
  • Era necessário que fossem raros, úteis, desejáveis.
  • Era necessário também que todas essas qualidades fossem estáveis,

para que a marca por eles imposta fosse uma verdadeira assinalação, universalmente legível.

Daí essa correlação entre o problema dos preços e a natureza da moeda, que constitui o objeto privilegiado de toda reflexão sobre as riquezas, desde Copérnico até Bodin e Davanzatti.

Na realidade material da moeda fundam-se suas duas funções

  • de medida comum entre as mercadorias
  • e de substituto no mecanismo de troca.

Uma medida é estável reconhecida por todos e válida em todos os lugares, se tiver por estalão uma realidade assinalável que se possa comparar com a diversidade das coisas que se quer medir: assim, diz Copérnico, a toesa e o alqueire, cujo comprimento e volume materiais servem de unidade.(1)

Por consequência, a moeda só mede verdadeiramente, se sua unidade for uma realidade que existe realmente e à qual se pode referir toda e qualquer mercadoria.

Nesse sentido, o século XVI retoma à teoria admitida ao menos durante uma parte da Idade Média e que se deixava ao príncipe ou ainda ao consenso popular o direito de fixar o valor impositus da moeda, de modificar-lhe a taxa, de demonetizar uma categoria de peças ou qualquer metal que se desejasse.

É preciso que o valor da moeda seja regulado pela massa metálica que ela contém; isto é, que retome ao que era outrora, quando os príncipes não tinham ainda imprimido sua efígie nem seu selo sobre fragmentos metálicos; naquela ocasião, “nem o cobre, nem o ouro, nem a prata eram monetizados, mas estimados somente segundo seu peso”(2); não se fazia valer signos arbitrários por marcas reais; a moeda era uma justa medida, porque não significava nada mais que seu poder de aferir as riquezas a partir de sua própria realidade material de riqueza.

Foi sobre essa base epistemológica que se operaram as reformas no século XVI e que os debates assumiram suas dimensões próprias.

Busca-se reconduzir os signos monetários à sua exatidão de medida: é preciso que os valores nominais conferidos às peças sejam conformes à quantidade de metal que se escolheu como estalão e que nelas se acha incorporada; a moeda então não significará nada mais que seu valor de medida.

Nesse sentido, o autor anônimo do Compendious requer que “toda moeda atualmente corrente não o seja mais a partir de uma certa data”, pois as “altas” do valor nominal haviam alterado desde muito tempo suas funções de medida; será preciso que as peças já monetizadas não sejam mais aceitas senão “segundo a estimação do metal contido”; quanto à nova moeda, terá por valor nominal seu próprio peso: “a partir desse momento, só serão correntes a antiga e a nova moeda, segundo um mesmo valor, um mesmo peso, uma mesma denominação, e, assim, a moeda será restabelecida na sua antiga taxa e na sua antiga validade”.(3)

Não se sabe se o texto do Compendious, que não foi publicado antes de 1581, mas que certamente existiu e circulou em manuscrito uns 30 anos antes, inspirou a política monetária sob o reinado de Elisabeth.

Uma coisa é certa, é que após uma série de “altas” (de desvalorizações) entre 1544 e 1559, a proclamação de março de 1561 “baixa” o valor nominal das moedas e o reconduz à quantidade de metal que elas contêm.

Do mesmo modo, na França, os Estados Gerais de 1575 requerem e obtêm a supressão das unidades de conta (que introduziam uma terceira definição da moeda, puramente aritmética e que se acrescentava à definição do peso e à do valor nominal: essa relação suplementar escondia, aos olhos dos que eram mal instruídos a esse respeito, o sentido das manipulações sobre a moeda); o edito de setembro de 1577 estabelece o escudo de ouro ao mesmo tempo como peça real e como unidade de conta, decreta a subordinação ao ouro de todos os outros metais – da prata em particular, que guarda valor liberatório mas perde sua imutabilidade de direito. Assim, as moedas se acham reaferidas a partir de seu peso metálico. o signo que trazem – o valor impositus – é tão-somente a marca exata e transparente da medida que elas constituem.

Todavia, ao mesmo tempo em que esse retorno é exigido, por vezes realizado, põe-se à luz um certo número de fenômenos que são próprios à moeda-signo e comprometem talvez definitivamente seu papel de medida.

Primeiro, o fato de que uma moeda circula tanto mais depressa quanto menos valiosa, ao passo que as peças de alto teor de metal se acham escondidas e não figuram no comércio: é a chamada lei de Gresham(4), que Copérnico(5) e o autor do Compendious(6) já conheciam.

Em seguida e sobretudo, a relação entre os fatos monetários e o movimento dos preços: foi com isso que a moeda surgiu como uma mercadoria entre as outras – não como estalão absoluto de todas as equivalências, mas mercadoria cuja capacidade de troca e, por conseguinte, cujo valor de substituto nas trocas se modificam segundo sua frequência e sua raridade: a moeda também tem seu preço. Malestroit(7) fez ver que, apesar da aparência, não houve aumento dos preços no decurso do século XVI: posto que as mercadorias são sempre o que são, e que a moeda, em sua natureza própria, é um estalão constante, o encarecimento das mercadorias só pode ser devido ao aumento dos valores nominais investidos por uma mesma massa metálica; mas, para uma mesma quantidade de trigo, dá-se sempre um mesmo peso de ouro e de prata. De sorte que “nada é encarecido”: como o escudo de ouro valia em moeda de conta 20 soldos torneses no reinado de Filipe VI e vale agora 50, é realmente necessário que uma vara de veludo, que custava outrora quatro libras, hoje valha dez. “O encarecimento de todas as coisas não provém de dar mais, mas de receber menos em quantidade de ouro e de prata fina do que se estava acostumado.”

Mas, a partir dessa identificação do papel da moeda com a massa de metal que ela faz circular, concebe-se perfeitamente que ela está submetida às mesmas variações que todas as outras mercadorias. E se Malestroit admitia implicitamente que a quantidade e o valor mercantil dos metais permaneciam estáveis, Bodin, alguns poucos anos mais tarde(8), constata um aumento da massa metálica importada do Novo Mundo e, por consequência, um encarecimento real das mercadorias, posto que os príncipes, possuindo ou recebendo de particulares lingotes em maior quantidade, cunharam peças mais numerosas e de melhor quilate; para uma mesma mercadoria, dá-se, portanto, uma quantidade de metal mais importante.

A subida dos preços tem, pois, uma “causa principal e quase a única em que ninguém até aqui tocou”: é “a abundância de ouro e de prata”, “a abundância daquilo que dá estimativa e preço às coisas”. O próprio estalão das equivalências é assumido no sistema de trocas e o poder de compra da moeda só significa o valor mercantil do metal. A marca que distingue a moeda determina-a, torna-a certa e aceitável por todos, é, portanto, reversível, e pode ser lida nos dois sentidos: ela remete a Uma quantidade de metal que é medida constante (é assim que a decifra Malestroit); mas remete também a essas mercadorias variáveis em quantidade e em preço que são os metais (é a leitura de Bodin).

Tem-se aí uma disposição análoga à que caracteriza o regime geral dos signos no século XVI; os signos, como se sabe, eram constituídos por semelhanças que, por sua vez, para serem reconhecidas, necessitavam de signos.

Aqui, o signo monetário só pode definir seu valor de troca, só pode estabelecer-se como marca, segundo uma massa metálica que, por sua vez, define seu valor na ordem de outras mercadorias.

Se se admitir que a troca, no sistema das necessidades, corresponde à similitude no dos conhecimentos, vê-se que uma única e mesma configuração da epistémê controlou, durante o Renascimento, o saber da natureza e a reflexão ou as práticas que concerniam à moeda.

E, assim como a relação entre o microcosmo e o macrocosmo era indispensável para deter a oscilação indefinida da semelhança e do signo, assim também foi preciso estabelecer uma certa relação entre metal e mercadoria que, ao cabo, permitia fixar o valor mercantil total dos metais preciosos e, por conseguinte, aferir de uma forma certa e definitiva o preço de todas as mercadorias.

Foi essa a relação estabelecida pela Providência, quando entranhou na terra as minas de ouro e de prata e as fez crescer lentamente, da maneira como sobre a terra medram as plantas e multiplicam-se os animais. Entre todas as coisas de que o homem pode ter necessidade ou desejo, e os veios cintilantes, ocultos, onde crescem obscuramente os metais, há uma correspondência absoluta.

“A natureza”, diz Davanzatti, “fez boas todas as coisas terrestres; a soma destas, em virtude do acordo concluído pelos homens, vale todo o ouro que se trabalha; todos os homens, portanto, desejam tudo para adquirir todas as coisas…

Para constatar cada dia a regra e proporções matemáticas que as coisas têm entre si e o ouro, seria preciso, do alto do céu ou de algum observatório muito elevado, poder contemplar as coisas que existem e que se fazem sobre a terra, ou, antes, suas imagens reproduzidas e refletidas no céu como num fiel espelho. Abandonaríamos então todos os nossos cálculos e diríamos: há na terra tanto ouro quanto tantas coisas, tantos homens, tantas necessidades; na medida em que cada coisa satisfaz necessidades, seu valor será o de tantas coisas ou de tanto ouro.”(9) Esse cálculo celeste e exaustivo, só Deus pode fazê-Io: ele corresponde àquele outro cálculo que põe em relação cada elemento do microcosmo com um elemento do macrocosmo – com a única diferença de que este reúne o terrestre ao celeste e vai das coisas, dos animais ou do homem até as estrelas; já o outro reúne a terra às suas cavernas e às suas minas; faz corresponder as coisas que nascem entre as mãos dos homens com os tesouros enterrados desde a criação do mundo.

As marcas da similitude, porque guiam o conhecimento, endereçam-se à perfeição do céu; os signos da troca, porque satisfazem o desejo, apóiam-se na cintilação negra, perigosa e maldita do metal. Cintilação equívoca, pois reproduz no fundo da terra aquela que rutila na extremidade da noite: aí reside como uma promessa invertida da felicidade, e, porque o metal se assemelha aos astros, o saber de todos esses perigosos tesouros é ao mesmo tempo o saber do mundo. E a reflexão sobre as riquezas propende assim para a grande especulação sobre o cosmos, assim como, inversamente, o profundo conhecimento da ordem do mundo deve conduzir ao segredo dos metais e à posse das riquezas.

Vê-se a densa rede de necessidades que, no século XVI, liga os elementos do saber:

  • de que modo a cosmologia dos signos duplica e funda finalmente a reflexão sobre os preços e a moeda,
  • de que modo ela autoriza também uma especulação teórica e prática sobre os metais,
  • de que modo estabelece uma comunicação entre as promessas do desejo e as do conhecimento, da mesma forma como se respondem e se aproximam por secretas afinidades os metais e os astros.

Nos confins do saber, lá onde ele se faz todo-poderoso e quase divino, três grandes funções se juntam:

  • as do Basileús,
  • do Philósophos
  • e do Metallikós.

Mas, assim como esse saber só é dado por fragmentos e na fulguração atenta da divinatio, assim também, no que se refere às relações singulares e parciais entre as coisas e o metal, o desejo e os preços, o conhecimento divino ou o que se poderia adquirir “de algum observatório elevado” não é dado ao homem. Salvo por instantes e como que por sorte, aos espíritos que sabem espreitar: isto é, os mercadores.

O que os adivinhos eram no jogo indefinido das semelhanças e dos signos, os mercadores o são no jogo, também este sempre aberto, das trocas e das moedas.

“Aqui embaixo descobrimos com dificuldade as poucas coisas que nos cercam e lhes damos um preço conforme percebemos sua maior ou menor procura em cada lugar e em cada tempo. Quanto a isso os mercadores estão prontamente e muito bem advertidos, e é por isso que conhecem admiravelmente o preço das coisas.”(10)

I. Análise das riquezas

Capítulo VI - Trocar; tópico I. Análise das riquezas

  • Nem vida,
  • nem ciência da vida 

na época clássica;

  • tampouco filologia.

Mas sim

  • uma história natural,
  • uma gramática geral.

Do mesmo modo, não há

  • economia política

porque, na ordem do saber, [na época clássica]

  • a produção não existe. 

Em contrapartida, existe, nos séculos XVII e XVIII, uma noção que nos permaneceu familiar, embora tenha perdido para nós sua precisão essencial.

Nem é de “noção” que se deveria falar a seu respeito, pois não tem lugar no interior de um jogo de conceitos econômicos que ela deslocaria levemente, confiscando um pouco de seu sentido ou corroendo sua extensão.

Trata-se antes de um domínio geral: de uma camada bastante coerente e muito bem estratificada, que compreende e aloja, como tantos objetos parciais, as noções

  • de valor,
  • de preço,
  • de comércio,
  • de circulação,
  • de renda,
  • de interesse.

Esse domínio, solo e objeto da “economia” na idade clássica, é o da riqueza.

Inútil colocar-lhe questões vindas de uma economia de tipo diferente, organizada, por exemplo, em torno da produção ou do trabalho; 

inútil igualmente analisar seus diversos conceitos (mesmo e sobretudo se seus nomes em seguida se perpetuaram, com alguma analogia de sentido), sem levar em conta o sistema em que assumem sua positividade.

Isso equivaleria a

  • analisar o gênero segundo Lineu fora do domínio da história natural,
  • ou a teoria dos tempos de Bauzée sem levar em conta o fato de que a gramática geral era sua condição histórica de possibilidade.

É necessário, pois, evitar uma leitura retrospectiva que só conferiria à análise clássica das riquezas a unidade ulterior de uma economia política em via de se constituir às apalpadelas.

É deste modo, entretanto, que os historiadores das ideias têm costume de restituir o nascimento enigmático desse saber que, no pensamento ocidental, teria surgido todo armado e já perigoso na época de Ricardo e de J.-B. Say.

Supõem eles que uma economia científica se tornara durante muito tempo impossível 

graças a uma problemática puramente moral do lucro e da renda (teoria do preço justo, justificação ou condenação do interesse)

e, em seguida, por causa de uma confusão sistemática 

    • entre moeda e riqueza, 
    • valor e preço de mercado: 

dessa assimilação, o mercantilismo teria sido um dos principais responsáveis e a mais destacada manifestação.

Mas, pouco a pouco, o século XVIII teria assegurado as distinções essenciais e discernido alguns dos grandes problemas que a economia positiva, em seguida, não cessaria de tratar com instrumentos mais bem adaptados:

1. a moeda teria assim descoberto seu caráter convencional, ainda que não-arbitrário (e isso através da longa discussão entre os metalistas e os antimetalistas:

    • entre os primeiros, contar-se-iam Child, Petty, Locke, Cantillon, Galiani;
    • entre os outros, Barbon, Boisguillebert e sobretudo Law, depois, mais discretamente, após o desastre de 1720, Montesquieu e Melon);

2. ter-se-ia também começado – e isto é a obra de Cantillon – a distinguir, uma da outra, 

  • a teoria do preço de troca 
  • e a do valor intrínseco;

3. ter-se-ia discernido o grande “paradoxo do valor”, opondo à inútil carestia do diamante a barateza dessa água sem a qual não podemos viver (com efeito, é possível encontrar esse problema rigorosamente formulado por Galiani);

4. ter-se-ia começado, prefigurando assim Jevons e Menger, a vincular o valor a uma teoria geral da utilidade (que é esboçada em Galiani, em Graslin, em Turgot);

5. ter-se-ia compreendido a importância dos preços altos para o desenvolvimento do comércio (é o “princípio de Becher” retomado na França por Boisguillebert e por Quesnay);

6. enfim – e eis os fisiocratas – ter-se-ia encetado a análise do mecanismo da produção.

E assim, peça por peça, pedaço por pedaço, a economia política teria silenciosamente estabelecido seus temas essenciais, até o momento em que, retomando num outro sentido a análise da produção,

  • Adam Smith teria trazido à luz o processo da divisão crescente do trabalho,
  • Ricardo, o papel desempenhado pelo capital,
  • J.-B. Say, algumas das leis fundamentais da economia de mercado.

Desde então, a economia política teria começado a existir com seu objeto próprio e sua coerência interior. Na realidade, os conceitos 

  • de moeda,
  • de preço,
  • de valor,
  • de circulação,
  • de mercado

não foram pensados nos séculos XVII e XVIII a partir de um futuro que os esperava na sombra, mas, sim, sobre o solo de uma disposição epistemológica rigorosa e geral.

É essa disposição que sustenta, na sua necessidade de conjunto, a “análise das riquezas”.

Esta está para a economia política como a gramática geral para a filologia, como a história natural para a biologia.

E, assim como não se pode compreender

  • a teoria do verbo e do nome,
  • a análise da linguagem de ação,
  • a das raízes e de sua derivação,
    • sem se referir, através da gramática geral, a essa rede arqueológica que as torna possíveis e necessárias,

assim como não se pode compreender, sem demarcar o domínio da história natural, o que foram

  • a descrição,
  • a caracterização e a taxinomia clássicas,
  • tanto quanto a oposição entre
    • sistema e método, 
    • ou “fixismo” e “evolução”,

assim também não seria possível encontrar o liame de necessidade que enlaça

  • a análise da moeda,
  • dos preços,
  • do valor,
  • do comércio,

se não se trouxesse à luz esse domínio das riquezas que é o lugar de sua simultaneidade.

Sem dúvida, a análise das riquezas não se constituiu segundo os mesmos meandros nem ao mesmo ritmo que a gramática geral ou que a história natural.

É que a reflexão sobre a moeda, o comércio e as trocas está ligada a uma prática e a instituições.

Mas, se for possível opor a prática à especulação pura, ambas, de todo modo, repousam sobre um único e mesmo saber fundamental.

Uma reforma da moeda, um uso bancário, uma prática comercial podem bem se racionalizar, se desenvolver, se manter ou desaparecer segundo formas próprias; mas estão sempre fundados sobre certo saber: saber obscuro que não se manifesta por si mesmo num discurso, mas cujas necessidades são igualmente as mesmas para as teorias abstratas ou as especulações sem relação aparente com a realidade.

Numa cultura e num dado momento, nunca há mais que uma epistémê, que define as condições de possibilidade de todo saber. 

Tanto aquele que se manifesta numa teoria quanto aquele que é silenciosamente investido numa prática.

A reforma monetária prescrita pelos Estados Gerais de 1575, as medidas mercantilistas ou a experiência de Law e sua liquidação têm o mesmo suporte arqueológico que as teorias de Davanzatti, de Bouteroue, de Petty ou de Cantillon.

E são essas necessidades fundamentais do saber que é preciso fazer falar.

IV. Bopp

Capítulo VIII - Trabalho, vida e linguagem; tópico IV. Bopp

No domínio da história natural, as modificações que se podem constatar entre os anos 1775 e 1795 são do mesmo tipo. Não se repõe em questão o que está no princípio das classificações: estas têm sempre por finalidade determinar o “caráter” que agrupa os indivíduos e as espécies em unidades gerais, que distingue essas unidades umas das outras e que lhes permite enfim se encaixarem de maneira a formar um quadro em que todos os indivíduos e todos os grupos, conhecidos ou desconhecidos, poderão encontrar seu lugar. Esses caracteres são extraídos da representação total dos indivíduos; são sua análise e pennitem, representando essas representações, constituir uma ordem; os princípios gerais da taxinomia – aqueles mesmos que orientaram os sistemas de Tournefort e de Lineu, o método de Adanson – continuam a valer do mesmo modo para A.-L. de Jussieu, para Vicq d’Azyr, para Lamarck, para Candolle. E, contudo, a técnica que permite estabelecer o caráter, a relação entre estrutura visível e critérios de identidade são modificadas assim como foram modificadas por Adam Smith as relações da necessidade ou do preço. Ao longo de todo o século XVIII, os classificadores estabeleceram o caráter pela comparação de estruturas visíveis, isto é, relacionando elementos que eram homogêneos, pois que cada um podia, segundo o princípio ordenador que fosse escolhido, servir para representar todos os outros: a única diferença residia no fato de que, para os partidários do sistema, os elementos representativos eram fixados desde o início, e, para os partidários do método, eles se desprendiam pouco a pouco de uma confrontação progressiva. Mas a passagem da estrutura descrita para o caráter classificador se fazia inteiramente ao nível das funções representativas que o visível exercia em relação a si mesmo. A partir de Jussieu, de Lamarck e de Vicq d’ Azyr, o caráter, ou antes, a transformação da estrutura em caráter vai basear-se num princípio estranho ao domínio do visível – um princípio interno, irredutível ao jogo recíproco das representações. Esse princípio (ao qual corresponde, na ordem da economia, o trabalho) é a organização. Como fundamento das taxinomias, a organização aparece de quatro modos diferentes. 1. Primeiro, sob a forma de uma hierarquia dos caracteres. Com efeito, se não se expõem as espécies umas ao lado das outras e na sua maior diversidade, mas se se aceitam, para delimitar imediatamente o campo de investigação, os vastos agrupamentos que a evidência impõe – como as gramíneas, as compostas, as crucíferas, as leguminosas, para as plantas; ou, para os animais, os vermes, os peixes, as aves, os quadrúpedes -, vê-se que certos caracteres são absolutamente constantes e não estão ausentes em nenhum dos gêneros, nenhuma das espécies que se podem aí reconhecer: por exemplo, a inserção dos estames, sua situação em relação ao pistilo, a inserção da corola quando ela traz estames, o número de lóbulos que acompanham o embrião na semente. Outros caracteres são muito freqüentes numa família, mas não atingem o mesmo grau de constância; é que são formados por órgãos menos essenciais (número de pétalas, presença ou ausência da coro Ia, situação respectiva do cálice ou do pistilo): são os caracteres “secundários subuniformes”. Enfim, os caracteres “terciários semi-uniformes” são ora constantes ora variáveis (estrutura monófila ou polífila do cálice, número de compartimentos no fruto, situação das flores e das folhas, natureza do caule): com esses caracteres semi-uniformes não é possível definir famílias ou ordens – não que eles não sejam capazes, se os aplicássemos a todas as espécies, de formar entidades gerais, mas porque não concemem ao que há de essencial num grupo de seres vivos. Cada grande família natural tem requisitos que a definem, e os caracteres que permitem reconhecê-Ia são os mais próximos dessas condições fundamentais; assim, sendo a reprodução a função maior da planta, o embrião será sua parte mais importante, e poder-se-ão repartir os vegetais em três classes: acotilédones, monocotilédones e dicotilédones. Com base nesses caracteres essenciais e “primários”, os outros poderão aparecer e introduzir distinções mais sutis. Vê-se que o caráter já não é diretamente extraído da estrutura visível e sem outro critério senão sua presença ou ausência; funda-se na existência de funções essenciais ao ser vivo e nas relações de importância que já não procedem apenas da descrição. 2. Os caracteres estão, pois, ligados a funções. Volta-se, num sentido, à velha teoria das assinalações ou das marcas pelo que se supunha que os seres traziam, no ponto mais visível de sua superficie, o signo do que neles era o mais essencial. Aqui, porém, as relações de importância são relações de subordinação funcional. Se o número de cotilédones é decisivo para classificar os vegetais, é porque desempenham um papel determinado na função de reprodução, e porque estão ligados, por isso mesmo, a toda a organização interna da planta; indicam uma função que comanda toda a disposição do indivíduos8. Assim, para os animais, Vicq d’Azyr mostrou que as funções alimentares são, sem dúvida, as mais importantes; é por essa razão que “relações constantes existem entre a estrutura dos dentes dos carnívoros e a de seus músculos, de seus dedos, de suas unhas, de sua língua, de seu estômago, de seus intestinos”9. O caráter não é portanto estabelecido por uma relação do visível consigo próprio; em si mesmo, não é mais do que a saliência visível de uma organização complexa e hierarquizada, em que a função desempenha um papel essencial de comando e de determinação. Não é por ser freqüente nas estruturas observadas que um caráter é importante; é por ser funcionalmente importante que o encontramos com freqüência. Como observará Cuvier, resumindo a obra dos últimos grandes partidários do método do século, à medida que nos elevamos em direção às classes mais gerais, “mais também as propriedades que permanecem comuns são constantes; e, como as relações mais constantes são aquelas que pertencem às partes mais importantes, os caracteres das divisões superiores se acharão extraídos das partes mais importantes… Dessa forma, o método será natural, uma vez que leva em conta a importância dos órgãos”10. 3. Nessas condições, compreende-se como pôde a noção de vida tomar-se indispensável à ordenação dos seres naturais. Tomou-se indispensável por duas razões: primeiro, era preciso poder apreender na profundidade do corpo as relações que ligam os órgãos superficiais àqueles cuja existência e forma oculta asseguram as funções essenciais; assim, Storr propõe classificar os mamíferos segundo a disposição de seus cascos; é que esta está ligada aos modos de deslocamento e às possibilidades motoras do animal; ora, esses modos, por sua vez, estão em correlação com a forma de alimentação e os diferentes órgãos do sistema digestivo11. Ademais, pode ocorrer que os caracteres mais importantes sejam os mais escondidos; já na ordem vegetal, pôde-se constatar que não são as flores e os frutos – partes mais visíveis da planta – os elementos significativos, mas o aparelho embrionário e órgãos como os cotilédones. Esse fenômeno é mais freqüente ainda nos animais. Storr pensava ser preciso definir as grandes classes pelas formas da circulação; e Lamarck, que contudo não praticava pessoalmente a dissecação, recusa para os animais inferiores um princípio de classificação que só se fundasse em sua forma visível: “A consideração das articulações do corpo e dos membros dos crustáceos fez com que todos os naturalistas os olhassem como verdadeiros insetos, e eu próprio, durante muito tempo, segui a opinião comum a esse respeito. Mas, como é reconhecido que a organização é a mais essencial de todas as considerações para guiar numa distribuição metódica e natural dos animais, assim como para determinar entre eles as verdadeiras relações, resulta daí que os crustáceos, respirando unicamente por brânquias à maneira dos moluscos e, tendo como eles, um coração muscular, devem ser localizados imediatamente após eles, antes dos aracnídeos e dos insetos, que não têm uma semelhante organização.”12 Classificar, portanto, não será mais referir o visível a si mesmo, encarregando um de seus elementos de representar os outros; será, num movimento que faz revolver a análise, reportar o visível ao invisível, como à sua razão profunda, depois alçar de novo dessa secreta arquitetura em direção aos seus sinais manifestos, que são dados à superficie dos corpos. Como dizia Pinel, na sua obra de naturalista, “atermo-nos aos caracteres exteriores designados pelas nomenclaturas não é fechar para nós mesmos a mais fecunda fonte de instruções e nos recusar, por assim dizer, a abrir o grande livro da natureza que, contudo, nos propomos conhecer?”13. Doravante, o caráter reassume seu velho papel de sinal visível despontando em direção a uma profundidade escondida; mas o que ele indica não é um texto secreto, uma palavra encoberta ou uma semelhança demasiado preciosa para ser exposta; é o conjunto coerente de uma organização que retoma na trama única de sua soberania tanto o visível como o invisível. 4. O paralelismo entre classificação e nomenclatura é por isso mesmo rompido. Enquanto a classificação consistia numa repartição progressivamente encaixada no espaço visível, era muito concebível que a delimitação e a denominação desses conjuntos pudessem realizarse paralelamente. O problema do nome e o problema do gênero eram isomorfos. Mas agora que o caráter não pode mais classificar a não ser referindo-se primeiro à organização dos indivíduos, o “distinguir” não se faz mais segundo os mesmos critérios e as mesmas operações que o “denominar”. Para encontrar os conjuntos fundamentais que reagrupam os seres naturais, é necessário percorrer esse espaço em profundidade que conduz dos órgãos superficiais aos mais secretos e, destes, às grandes funções que eles asseguram. Em contrapartida, uma boa nomenclatura continuará a se desdobrar no espaço plano do quadro: a partir dos caracteres visíveis do indivíduo, será necessário chegar ao compartimento preciso onde se encontra o nome desse gênero e de sua espécie. Há uma distorção fundamental entre o espaço da organização e o da nomenclatura: ou, antes, em vez de se recobrirem exatamente, são doravante perpendiculares um ao outro; e no seu ponto de junção encontra-se o caráter manifesto, que indica, em profundidade, uma função e permite, na superficie, encontrar um nome. Essa distinção que, em alguns anos, tornará caducas a história natural e a preeminência da taxinomia, é devida ao gênio de Lamarck: no Discurso preliminar da Flore française, opôs ele como radicalmente distintas as duas tarefas da botânica: a “determinação”, que aplica as regras da análise e permite encontrar o nome pelo simples jogo de um método binário (ou tal caráter está presente no indivíduo que se examina e é preciso buscar situá- Io na parte direita do quadro; ou ele não está presente e é preciso buscar na parte esquerda; e isso até a última determinação); e a descoberta das relações reais de semelhança, que supõe o exame da organização inteira das espécies14. O nome e os gêneros, a designação e a classificação, a linguagem e a natureza deixam de ser entrecruzados de pleno direito. A ordem das palavras e a ordem dos seres não se recortam mais senão numa linha artificialmente definida. Sua velha interdependência que fundara a história natural na idade clássica e que conduzira, num só movimento, a estrutura até o caráter, a representação até o nome e o indivíduo visível até o gênero abstrato, começa a desfazer-se. Começa-se a falar sobre coisas que têm lugar num espaço diverso do das palavras. Ao fazer, e muito cedo, semelhante distinção, Lamarck encerrou a idade da história natural, entreabriu a da biologia muito melhor, de um modo bem mais certo e radical do que ao retomar, cerca de 20 anos mais tarde, o tema já conhecido da série única das espécies e de sua transformação progressiva. O conceito de organização já existia na história natural do século XVIII – assim como, na análise das riquezas, a noção de trabalho que tampouco foi inventada no desembocar da idade clássica; mas servia então para definir um certo modo de composição dos indivíduos complexos a partir de materiais mais elementares; Lineu, por exemplo, distinguia a “justaposição”, que faz crescer o mineral e a “intuscepção” pela qual o vegetal se desenvolve nutrindo-se15. Bonnet opunha o “agregado” dos “sólidos brutos” à “composição dos sólidos organizados” que “entrelaça num número quase infinito de partes, algumas fluidas, outras sólidas”16. Ora, esse conceito de organização jamais servira, antes do fim do século, para fundar a ordem da natureza, para definir seu espaço, ou para limitar-lhe as figuras. É através das obras de Jussieu, de Vicq d’ Azyr e de Lamarck, que ele começa a funcionar pela primeira vez como método de caracterização: subordina os caracteres uns aos outros; liga-os a funções; dispõe-nos segundo uma arquitetura tanto interna quanto externa e não menos invisível que visível; reparte-os num espaço diverso daquele dos nomes, do discurso e da linguagem. Não basta mais só para designar uma categoria de seres entre outros; não indica mais apenas um corte no espaço taxinômico; define para certos seres a lei interior, que permite a uma de suas estruturas assumir o valor de caráter. A organização se insere entre as estruturas que articulam e os caracteres que designam – introduzindo entre eles um espaço profundo, interior, essencial. Essa mutação importante se exerce ainda no elemento da história natural; ela modifica os métodos e as técnicas de uma taxinomia; não recusa suas condições fundamentais de possibilidade; não toca no modo de ser de uma ordem natural. Entretanto, acarreta uma conseqüência maior: a radicalização da divisão entre orgânico e inorgânico. No quadro dos seres que a história natural desdobrava, o organizado e o não-organizado definiam não mais que duas categorias; estas se entrecruzavam sem coincidirem necessariamente com a oposição entre o ser vivo e o não-vivo. A partir do momento em que a organização se torna conceito fundador da caracterização natural e permite passar da estrutura visível à designação, ela própria tem que deixar de ser apenas um caráter; contorna o espaço taxinômico onde estava alojada e é ela, por sua vez, que dá lugar a uma classificação possível. Por isso mesmo, a oposição entre o orgânico e o inorgânico torna-se fundamental. É, com efeito, a partir dos anos 1775-1795, que a velha articulação dos três ou quatro reinos desaparece; a oposição dos dois reinos – orgânico e inorgânico – não a substitui exatamente; torna-a antes impossível, impondo outra divisão, em outro nível e em outro espaço. PalIas e Lamarck 17formulam essa grande dicotomia, com a qual vem coincidir a oposição entre o ser vivo e o não-vivo. “Só há dois reinos na natureza”, escreve Vicq d’ Azyr, em 1786, “um que usufrui a vida e outro que dela está privado.”18 O orgânico torna-se o ser vivo e o ser vivo é o que produz, crescendo e reproduzindo-se; o inorgânico é o não-vivo, o que não se desenvolve nem se reproduz; é, nos limites da vida, o inerte e o infecundo – a morte. E se se mistura à vida, é como aquilo que nela tende a destruí-Ia e a matá-Ia. “Existem em todos os seres vivos duas forças poderosas, muito distintas e sempre em oposição entre si, de tal sorte que cada uma delas destrói perpetuamente os efeitos que a outra consegue produzir.”19 Vê-se como, fraturando em profundidade o grande quadro da história natural, alguma coisa como uma biologia vai tornar-se possível; e como também poderá emergir nas análises de Bichat a oposição fundamental entre a vida e a morte. Não se tratará do triunfo, mais ou menos precário, de um vitalismo sobre um mecanismo; o vitalismo e seu esforço para defmir a especificidade da vida não são mais que os efeitos de superficie desses acontecimentos arqueológicos.

V. A linguagem tornada objeto

Capítulo VIII - Trabalho, vida e linguagem; tópico V. A linguagem tornada objeto

Encontra-se a réplica exata desses acontecimentos do lado das análises da linguagem. Nisso, porém, têm elas, sem dúvida, uma forma mais discreta e também uma cronologia mais lenta. Há para isso uma razão fácil de descobrir; é que, durante toda a idade clássica, a linguagem foi posta e refletida como discurso, isto é, como análise espontânea da representação. De todas as formas de ordem não-quantitativa, era a mais imediata, a menos preparada, a mais profundamente ligada ao movimento próprio da representação. E, nessa medida, estava mais bem enraizada nela e no seu modo de ser do que estas ordens refletidas – sábias ou interessadas – que fundavam a classificação dos seres ou a troca das riquezas. Modificações técnicas como as que afetaram a medida dos valores de troca ou os procedimentos da caracterização bastaram para alterar consideravelmente a análise das riquezas ou a história natural. Para que a ciência da linguagem sofresse modificações tão importantes, foram necessários acontecimentos mais profundos, capazes de mudar, na cultura ocidental, até o ser mesmo das representações. Assim como a teoria do nome, nos séculos XVII e XVIII, se alojava o mais perto possível da representação e com isso comandava, até certo ponto, a análise das estruturas e do caráter nos seres vivos, a do preço e do valor nas riquezas, assim também, no fim da idade clássica, é ela que subsiste mais tempo, só se desfazendo tardiamente no momento em que a própria representação se modifica ao nível mais profundo de seu regime arqueológico. Até o começo do século XIX, as análises da linguagem só manifestam ainda poucas mudanças. As palavras são sempre interrogadas a partir de seus valores representativos, como elementos virtuais do discurso que lhes prescreve a todas um mesmo modo de ser. No entanto, esses conteúdos representativos já não são analisados somente na dimensão que a aproxima de uma origem absoluta, seja ela mítica ou não. Na gramática geral sob sua forma mais pura, todas as palavras de uma língua eram portadoras de uma significação mais ou menos oculta, mais ou menos derivada, mas cuja primitiva razão de ser residia numa designação inicial. Toda língua, por mais complexa que fosse, achava-se situada na abertura, disposta de uma vez por todas, pelos gritos arcaicos. As semelhanças laterais com as outras línguas – sonoridades vizinhas recobrindo significações análogas – só eram observadas e coligidas para confirmar a relação vertical de cada uma com esses valores profundos, encobertos, quase mudos. No último quartel do século XVIII a comparação horizontal entre as línguas adquire outra função: não mais permite saber o que cada uma pode comportar de memória ancestral, que marcas de antes de BabeI estão depositadas na sonoridade de suas palavras; deve permitir, porém, medir até que ponto elas se assemelham, qual a densidade de suas similitudes, em que limites são transparentes uma à outra. Daí essas grandes confrontações de línguas diversas que se vê surgirem no fim do século – e por vezes sob a pressão de motivos políticos, como as tentativas feitas na Rússia20 para estabelecer um levantamento das línguas do Império; em 1787, aparece em Petrogrado o primeiro volume do Glossarium comparatiuum totius orbis; ele contém referência a 279 línguas: 171 para a Ásia, 55 para a Europa, 30 para a África, 23 para a América21. Essas comparações fazem-se ainda exclusivamente a partir e em função dos conteúdos representativos; confronta-se um mesmo núcleo de significação – que serve de invariante – com as palavras pelas quais as diversas línguas podem designá-Io (Adelung22 dá 500 versões do pater em línguas e dialetos diferentes); ou então, escolhendo uma raiz como elemento constante através de formas ligeiramente variadas, determina-se o leque dos sentidos que ela pode assumir (são os primeiros ensaios de lexicografia, como a de Buthet de La Sarthe). Todas essas análises remetem sempre a dois princípios que eram já os da gramática geral: o de uma língua primitiva e comum que teria fornecido o lote inicial das raÍzes, e o de uma série de acontecimentos históricos, estranhos à linguagem e que, do exterior, a vergam, gastam-na, apuram-na, agilizam-na, multiplicam ou misturam suas formas (invasões, migrações, progressos dos conhecimentos, liberdade ou escravidão política etc.). Ora, a confrontação das línguas, no fim do século XVIII, traz à luz uma figura intermediária entre a articulação dos conteúdos e o valor das raÍzes: trata-se da tlexão. Certamente, os gramáticos conheciam desde muito tempo os fenômenos tlexionais (assim como, em história natural, conhecia-se o conceito de organização antes de PalIas ou Lamarck; e, em economia, o conceito de trabalho antes de Adam Smith); mas as tlexões só eram analisadas por seu valor representativo – quer fossem consideradas como representações anexas, quer se visse nelas uma forma de ligar entre si as representações (alguma coisa como uma outra ordem das palavras). Mas, quando se faz, como Coeurdoux23 e William Jones24 a comparação entre as diferentes formas do verbo ser em sânscrito e em latim ou em grego, descobre-se uma relação de constância que é inversa àquela que se admitia correntemente: a raiz é que é alterada e as tlexões é que são análogas. A série sânscrita asmi, asi, asti, smas, stha, santi, corresponde exatamente, mas por analogia flexional, à série latina sum, es, est, sumus, estis, sunt. Sem dúvida, Coeurdoux e Anquetil-Duperron permaneciam ao nível das análises da gramática geral quando o primeiro via nesse paralelismo os restos de uma língua primitiva; e o segundo, o resultado da mistura histórica que se teria feito entre hindus e mediterrâneos na época do reino de Bactriana. Mas o que estava em jogo nessa conjugação comparada já não era mais o liame entre sílaba primitiva e sentido primeiro, era uma relação mais complexa entre as modificações do radical e as funções da gramática; descobria-se que em duas línguas diferentes havia uma relação constante entre uma série determinada de alterações formais e uma série igualmente detern1inada de funções gramaticais, de valores sintáticos ou de modificações sem sentido. Por isso mesmo, a gramática geral começa a mudar de configuração: seus diversos segmentos teóricos não mais se encadeiam totalmente do mesmo modo uns nos outros; e a rede que os une desenha um percurso já ligeiramente diferente. Na época de Bauzée ou de Condillac, a relação entre as raízes de forma tão hábil e o sentido determinado nas representações, ou ainda o liame entre o poder de designar e o de articular, era assegurado pela soberania do Nome. Agora um novo elemento intervém: do lado do sentido ou da representação, ele indica apenas um valor acessório, necessariamente secundário (trata-se do papel de sujeito ou de complemento desempenhado pelo indivíduo ou pela coisa designada; trata-se do tempo da ação); mas, do lado da forma, ele constitui o conjunto sólido, constante, inalterável ou quase, cuja lei soberana se impõe às raízes representativas até modificar elas próprias. Mais ainda, esse elemento, secundário pelo valor significativo, primeiro pela consciência formal, não é, ele próprio, uma sílaba isolada, como uma espécie de raiz constante; é um sistema de modificações cujos segmentos diversos são solidários uns aos outros: a letra s não significa a segunda pessoa, como a letra e significava, segundo Court de Gébelin, a respiração, a vida e a existência; é o conjunto das modificações m, s, t, que dá à raiz verbal os valores da primeira, segunda e terceira pessoa. Essa nova análise, até o fim do século XVIII, se aloja na busca dos valores representativos da linguagem. É ainda do discurso que se trata. Já aparece porém, através do sistema das flexões, a dimensão do gramatical puro: a linguagem não é mais constituída somente de representações e de sons que, por sua vez, as representam e se ordenam entre si como o exigem os liames do pensamento; é, ademais, constituída de elementos formais, agrupados em sistema, e que impõem aos sons, às sílabas, às raízes, um regime que não é o da representação. Introduz-se assim na análise da linguagem um elemento que lhe é irredutível (como se introduz o trabalho na análise da troca ou a organização na dos caracteres). A título de conseqüência primeira, pode-se notar o aparecimento, no fim do século XVIII, de uma fonética que não é mais busca dos primeiros valores expressivos, mas análise dos sons, de suas relações e de sua transformação possível uns nos outros; Helwag, em 1781, define o triângulo vocálico25. Pode-se notar também o aparecimento dos primeiros esboços de gramática comparada; não se toma mais como objeto de comparação nas diversas linguas o par formado por um grupo de letras e por um sentido, mas conjuntos de modificações de valor gramatical (conjugações, declinações e afixações). As línguas são confrontadas não mais por aquilo que as palavras designam, mas pelo que as liga umas às outras; elas vão agora comunicar-se, não por intermédio desse pensamento anônimo e geral que devem representar, mas diretamente, urna com a outra, graças a esses finos instrumentos de aparência tão frágil, mas tão constantes, tão irredutíveis, que dispõem as palavras urnas em relação às outras. Como dizia Monboddo: “Sendo o mecanismo das línguas menos arbitrário e mais bem regulado que a pronúncia das palavras, aí encontramos urn excelente critério para determinar a afinidade das línguas entre si. É por isso que, quando vemos duas línguas empregarem da mesma forma esses grandes procedimentos da linguagem, a derivação, a composição, a inflexão, podemos disso concluir que urna deriva da outra ou que são, ambas, dialetos de urna mesma língua primitiva.”26 Enquanto a língua fora definida como discurso, não podia ter outra história senão a de suas representações: se as idéias, as coisas, os conhecimentos, os sentimentos, porventura mudavam, então e somente então a língua se modificava e na exata proporção de suas mudanças. Doravante, porém, há um “mecanismo” interior das línguas que determina não só a individualidade de cada urna, mas também suas semelhanças com as outras: é ele que, portador de identidade e de diferença, signo de vizinhança, marca do parentesco, vai tornar-se suporte da história. Por ele, a historicidade poderá introduzir-se na espessura da própria palavra.

III. Cuvier

Capítulo VIII - Trabalho, vida e linguagem; tópico III. Cuvier

Cuvier No seu projeto de estabelecer uma classificação tão fiel quanto um método e tão rigorosa quanto um sistema, Jussieu descobrira a regra de subordinação dos caracteres, assim como Smith utilizara o valor constante do trabalho para estabelecer o preço natural das coisas no jogo das equivalências. E assim como Ricardo libertou o trabalho de seu papel de medida para fazê-lo entrar, aquém de toda troca, nas formas gerais da produção, assim Cuvier6 libertou de sua função taxinômica a subordinação dos caracteres para fazê-Ia entrar, aquém de toda classificação eventual, nos diversos planos de organização dos seres vivos. O liame interno que faz as estruturas dependerem umas das outras não está mais situado no nível apenas das freqüências, torna-se o fundamento mesmo das correlações. É esse desnível e essa inversão que Geoffroy Saint-Hilaire devia um dia traduzir, dizendo: “A organização toma-se um ser abstrato… suscetível de formas numerosas.”7 O espaço dos seres vivos gira em tomo dessa noção e tudo o que até então pudera aparecer através do quadriculado da história natural (gêneros, espécies, indivíduos, estruturas, órgãos), tudo o que era dado ao olhar, assume doravante um modo novo de ser. E, em primeiro lugar, esses elementos ou esses grupos de elementos distintos que o olhar pode articular quando percorre o corpo dos indivíduos e a que se chama os órgãos. Na análise dos clássicos, o órgão se definia, a um tempo, por sua estrutura e por sua função; era como um sistema de dupla entrada que se podia ler exaustivamente, quer a partir do papel que desempenhava (por exemplo, a reprodução), quer a partir de suas variáveis morfológicas (forma, grandeza, disposição e número): os dois modos de decifração recobriam-se ajustadamente mas eram independentes um do outro – o primeiro enunciando o utilizável, o segundo, o identificável. É essa disposição que Cuvier altera; revogando tanto o postulado do ajustamento quanto o da independência, faz extravasar – e largamente – a função em relação ao órgão e submete a disposição do órgão à soberania da função. Dissolve, se não a individualidade, pelo menos a independência do órgão: é erro crer que “tudo é importante num órgão importante”; é preciso dirigir a atenção “mais para as próprias funções que para os órgãos”8; antes de definir estes últimos pelas suas variáveis, é necessário reportá-los à função que asseguram. Ora, essas funções são em número relativamente pouco elevado: respiração, digestão, circulação, locomoção… De sorte que a diversidade visível das estruturas não mais emerge do fundo de um quadro de variáveis, mas do fundo de grandes unidades funcionais suscetíveis de se realizarem e de cumprir seu fIm de maneiras diversas: “O que é comum a cada gênero de órgãos considerado, em todos os animais se reduz a muito pouca coisa e, freqüentemente, eles só se assemelham pelo efeito que produzem. Isso deve ter impressionado sobretudo no tocante à respiração que se opera nas diferentes classes por órgãos tão variados, que sua estrutura não apresenta nenhum ponto comum.”9 Considerando o órgão na sua relação com a função, vê-se, pois, aparecerem “semelhanças” onde não há nenhum elemento “idêntico”; semelhança que se constitui pela passagem à evidente invisibilidade da função. Pouco importa afinal que as brânquias e os pulmões tenham em comum algumas variáveis de forma, de grandeza, de número: assemelham-se por serem duas variedades desse órgão inexistente, abstrato, irreal, indeterminável, ausente de toda espécie descritível, presente contudo no reino animal inteiro e que serve para respirar em geral. Restauram-se assim, na análise do ser vivo, as analogias de tipo aristotélico: as brânquias são para a respiração na água o que são os pulmões para a respiração no ar. Certamente, semelhantes relações eram perfeitamente conhecidas na idade clássica; mas serviam apenas para determinar funções; não eram utilizadas para estabelecer a ordem das coisas no espaço da natureza. A partir de Cuvier, a função, definida sob a forma não perceptível do efeito a atingir, vai servir de meio-termo constante e permitir relacionar um a outro conjuntos desprovidas da menor identidade visível. Aquilo que, para o olhar clássico, não passava de puras e simples diferenças justapostas a identidades, deve agora ser ordenado e pensado a partir de uma homogeneidade funcional que o suporta em segredo. Há história natural quando o Mesmo e o Outro pertencem a um único espaço; alguma coisa como a biologia torna-se possível quando essa unidade de plano começa a desfazer-se e as diferenças surgem do fundo de uma identidade mais profunda e como que mais séria do que ela. Essa referência à função, essa disjunção entre o plano das identidades e o das diferenças fazem surgir relações novas: as de coexistência, de hierarquia interna, de dependência com respeito ao plano de organização. A coexistência designa o fato de que um órgão ou um sistema de órgãos não podem estar presentes num ser vivo sem que outro órgão ou outro sistema, de uma natureza e uma forma determinadas, o estejam igualmente: “Todos os órgãos de um mesmo animal formam um sistema único, cujas partes todas se sustentam, agem e reagem umas sobre as outras; não pode haver modificações numa delas que não acarretem modificações análogas em todas.”10 No interior do sistema da digestão, a forma dos dentes (o fato de serem cortantes ou mastigadores) varia ao mesmo tempo que “o comprimento, as curvas, as dilatações do sistema alimentar”; ou ainda, para dar um exemplo de coexistência entre sistemas diferentes, os órgãos da digestão não podem variar independentemente da morfologia dos membros (e, em particular, da forma das unhas): conforme houver garras ou cascos – portanto, conforme o animal possa ou não agarrar e despedaçar seu alimento – o canal alimentar, os “sucos dissolventes”, a forma dos dentes não serão os mesmos11. Trata-se aí de correlações laterais que estabelecem entre elementos do mesmo nível relações de concomitância fundadas por necessidades funcionais: por ser preciso que o animal se alimente, a natureza da presa e seu modo de captura não podem ficar estranhos aos aparelhos de mastigação e de digestão (e reciprocamente). Há, todavia, escalonamentos hierárquicos. Sabe-se como a análise clássica fora levada a suspender o privilégio dos órgãos mais importantes para só considerar sua eficácia taxinômica. Agora que não se trata mais de variáveis independentes, mas de sistemas comandados uns pelos outros, o problema da importância recíproca se acha novamente colocado. Assim, o canal alimentar dos mamíferos não está simplesmente numa relação de covariação eventual com os órgãos da locomoção e da preensão; é, ao menos em parte, prescrito pelo modo de reprodução. Esta, com efeito, sob sua forma vivípara, não implica simplesmente a presença de órgãos que lhe estão imediatamente ligados; exige também a existência de órgãos de lactação, a presença de lábios, a de uma língua carnuda igualmente; prescreve, por outro lado, a circulação de um sangue quente e bifocularidade do coração12. A análise dos organismos e a possibilidade de estabelecer entre eles semelhanças e distinções supõem, portanto, que se tenha fixado a tabela, não dos elementos que podem variar de espécie para espécie, mas das funções que, nos seres vivos em geral, se comandam, se ajustam, se ordenam umas às outras: não mais o polígono das modificações possíveis, mas a pirâmide hierárquica das importâncias. Cuvier pensou primeiro que as funções de existência se antepunham às de relações (“pois o animal primeiramente é, depois sente e age”): supunha portanto que a geração e a circulação deviam determinar, de início, certo número de órgãos aos quais a disposição dos outros se acharia submetida; aqueles formariam os caracteres primários, estes os caracteres secundários13. Depois, subordinou a circulação à digestão, pois esta existe em todos os animais (o corpo do pólipo é por inteiro apenas uma espécie de aparelho digestivo), ao passo que o sangue e os vasos se encontram “apenas nos animais superiores e desaparecem sucessivamente nos das últimas classes”14. Mais tarde, foi o sistema nervoso (com a existência ou a inexistência de um cordão espinhal) que lhe apareceu como determinante de todas as disposições orgânicas: “Ele é, em essência, todo o animal: os outros sistemas só estão lá para servi-lo e mantê-lo.”15 Essa preeminência de uma função sobre as outras implica que o organismo nas suas disposições visíveis obedeça a um plano. Tal plano garante o reino das funções essenciais e a elas vincula, mas com um grau maior de liberdade, os órgãos que asseguram funcionamentos menos capitais. Como princípio hierárquico, esse plano define as funções preeminentes, distribui os elementos anatõmicos que lhe permitem efetuar-se e os instala nas localizações privilegiadas do corpo: assim, no vasto grupo dos articulados, a classe dos insetos deixa aparecer a importância primordial das funções locomotoras e dos órgãos do movimento; nos três outros, são as funções vitais, em contrapartida, que têm primazia16. No controle regional que exerce sobre os órgãos menos fundamentais, o plano de organização não desempenha um papel tão determinante; liberaliza-se, de certo modo, na medida em que há um afastamento do centro, autorizando modificações, alterações, mudanças na forma ou a utilização possível. Reencontramo-lo, tomado porém mais flexível e mais permeável a outras formas de determinação. Isso é fácil de constatar nos mamíferos a propósito do sistema de locomoção. Os quatro membros motores fazem parte do plano de organização, mas a título somente do caráter secundário; não estão pois jamais suprimidos, nem ausentes nem substituídos, porém “disfarçados algumas vezes como nas asas dos morcegos e nas barbatanas posteriores das focas”; ocorre mesmo terem “degenerado pelo uso como nas barbatanas peitorais dos cetáceos… A natureza fez com um braço uma barbatana. Vedes que há sempre uma espécie de constância nos caracteres secundários conforme seu disfarce”17. Compreende-se como podem as espécies ao mesmo tempo assemelharse (para formar grupos como os gêneros, as classes e o que Cuvier chama as ramificações) e distinguir-se umas das outras. O que as aproxima não é certa quantidade de elementos superponíveis, mas uma espécie de foco de identidade que não se pode analisar em regiões visíveis, porque define a importância recíproca das funções; a partir desse ceme imperceptível das identidades, os órgãos se dispõem e, à medida que dele se afastam, ganham em flexibilidade, em possibilidades de variações, em caracteres distintivos. As espécies animais diferem pela periferia, assemelham-se pelo centro; o inacessível as religa, o manifesto as dispersa. Generalizam-se do lado do que é essencial à sua vida; singularizam-se do lado do que é mais acessório. Quanto mais se quiser atingir grupos extensos, mais é preciso entranharse na obscuridade do organismo, em direção ao pouco visível, nessa dimensão que escapa ao percebido; quanto mais se quiser cingir a individualidade, mais necessário é ascender à superfície e deixar cintilar, em sua visibilidade, as formas que a luz toca; pois a multiplicidade se vê e a unidade se esconde. Em suma, as espécies vivas “escapam” ao pulular dos indivíduos e das espécies, só podendo ser classificadas porque vivem e a partir do que ocultam. Avalia-se a imensa reviravolta que tudo isso supõe em relação à taxinomia clássica. Edificava-se esta inteiramente a partir das quatro variáveis de descrição (formas, número, disposição, grandeza) que eram percorridas, como num só movimento, pela linguagem e pelo olhar; e, nessa exposição do visível, a vida aparecia como o efeito de um recorte – simples fronteira classificatória. A partir de Cuvier, é a vida, no que tem de não-perceptível, de puramente funcional, que funda a possibilidade exterior de uma classificação. Não há mais, sobre a grande superfície da ordem, a classe daquilo que pode viver; mas sim, vindo da profundidade da vida, do que há de mais longínquo para o olhar, a possibilidade de classificar. O ser vivo era uma localidade da classificação natural; o fato de ser classificável é agora uma propriedade do ser vivo. Assim desaparece o projeto de uma taxinomia geral; assim desaparece a possibilidade de desenrolar uma grande ordem natural, que iria sem descontinuidade do mais simples e do mais inerte ao mais vivo e ao mais complexo; assim desaparece a procura da ordem como solo e fundamento de uma ciência geral da natureza. Assim desaparece a “natureza” – entendendo-se que, ao longo de toda a idade clássica, ela não existiu primeiramente como “tema”, como “idéia”, como fonte indefinida do saber, mas como espaço homogêneo das identidades e das diferenças ordenáveis. Esse espaço está agora dissociado e como que aberto em sua espessura. No lugar de um campo unitário de visibilidade e de ordem cujos elementos têm valor distintivo uns em relação aos outros, tem-se uma série de oposições cujos dois termos não são do mesmo nível: de um lado há os órgãos secundários, que são visíveis à superficie do corpo e se oferecem sem intervenção à imediata percepção, e os órgãos primários, que são essenciais, centrais, ocultos, e que só se podem atingir pela dissecção, isto é, destruindo materialmente o invólucro colorido dos órgãos secundários. Há também, mais profundamente, a oposição entre os órgãos em geral, que são espaciais, sólidos, direta ou indiretamente visíveis, e as funções, que não se dão à percepção, mas prescrevem, como que por debaixo, a disposição daquilo que se percebe. Há enfim, em última análise, a oposição entre identidades e diferenças: não são mais do mesmo veio, não mais se estabelecem em relação umas às outras sobre um plano homogêneo; mas as diferenças proliferam na superficie, enquanto em profundidade elas se desvanecem, se confundem, se tramam umas nas outras e se aproximam da grande, misteriosa, invisível unidade focal de que o múltiplo parece derivar como que por uma dispersão incessante. A vida não é mais o que se pode distinguir, de maneira mais ou menos certa, do mecânico; é aquilo em que se fundam todas as distinções possíveis entre os seres vivos. É essa passagem da noção taxinômica à noção sintética de vida que é assinalada, na cronologia das idéias e das ciências, pela recrudescência, no começo do século XIX, dos temas vitalistas. Do ponto de vista da arqueologia, o que naquele momento se instaura são as condições de possibilidade de uma biologia. Em todo o caso, essa série de oposições, dissociando o espaço da história natural, teve conseqüências de grande peso. Na prática, é o aparecimento de duas técnicas correlativas que se apóiam e se revezam mutuamente. A primeira dessas técnicas é constituída pela anatomia comparada: esta faz surgir um espaço interior, limitado, de um lado, pela camada superficial dos tegumentos e das cascas, e, de outro, pela quase-invisibilidade do que é infinitamente pequeno. Pois a anatomia comparada não é o puro e simples aprofundamento das técnicas descritivas que se utilizavam na idade clássica; não se contenta em procurar ver mais fundo, melhor e mais de perto; instaura um espaço que não é nem o dos caracteres visíveis nem o dos elementos microscópicos18. Ela faz aí aparecer a disposição recíproca dos órgãos, sua correlação, a maneira como se decompõem, como se especializam, como se ordenam uns aos outros os principais momentos de uma função. E assim, por oposição ao olhar simples que, percorrendo os organismos íntegros, vê desdobrar-se diante de si a profusão das diferenças, a anatomia, recortando realmente os corpos, fracionando-os em parcelas distintas, retalhando-os no espaço, faz surgir as grandes semelhanças que teriam permanecido invisíveis; ela reconstitui as unidades subjacentes às grandes dispersões visíveis. A formação das vastas unidades taxinômicas (classes e ordens) era, nos séculos XVII e XVIII, um problema de recorte lingüístico: era preciso encontrar um nome que fosse geral e fundado; agora, ela diz respeito a uma desarticulação anatômica; é preciso isolar o sistema funcional principal; são as divisões reais da anatomia que permitirão articular as grandes famílias do ser vivo. A segunda técnica repousa sobre a anatomia (pois que é seu resultado) mas a ela se opõe (porque permite dispensá-Ia); consiste em estabelecer relações de indicação entre elementos superficiais, portanto visíveis, e outros que estão encobertos na profundidade do corpo. É que, pela lei de solidariedade do organismo, pode-se saber que tal órgão periférico e acessório implica tal estrutura num órgão mais essencial; assim, é permitido “estabelecer a correspondência das formas exteriores e interiores que, umas e outras, fazem parte integrante da essência do animal”19. Nos insetos, por exemplo, a disposição das antenas só tem valor distintivo porque não está em correlação com nenhuma das grandes organizações internas; em contrapartida, a forma do maxilar inferior pode desempenhar um papel capital para distribuí-Ios segundo suas semelhanças e suas diferenças; pois está ligada à alimentação, à digestão e, por conseguinte, às funções essenciais do animal: “Os órgãos da mastigação deverão estar relacionados com os da nutrição, conseqüentemente com todo o gênero de vida e, conseqüentemente, com toda a organização.”20 Na verdade, essa técnica dos indícios não vai forçosamente da periferia visível às formas obscuras da interioridade orgânica: ela pode estabelecer redes de necessidade indo de um ponto qualquer do corpo a qualquer outro; de sorte que um único elemento pode bastar, em certos casos, para sugerir a arquitetura geral de um organismo; poder-se-á reconhecer um animal inteiro “por um só osso, por uma só faceta de osso: método que deu tão curiosos resultados acerca dos animais fósseis”21. Enquanto, para o pensamento do século XVIII, o fóssil era uma prefiguração das formas atuais e indicava assim a grande continuidade do tempo, será doravante a indicação da figura à qual realmente pertencia. A anatomia não somente quebrou o espaço tabular e homogêneo das identidades; rompeu a suposta continuidade do tempo. É que, do ponto de vista teórico, as análises de Cuvier recompõem inteiramente o regime das continuidades e das descontinuidades naturais. Com efeito, a anatomia comparada permite estabelecer, no mundo vivo, duas formas de continuidade perfeitamente distintas. A primeira concerne às grandes funções que se encontram na maioria das espécies (a respiração, a digestão, a circulação, a reprodução, o movimento…); estabelece em todo o mundo vivo uma vasta semelhança que se pode distribuir segundo uma escala de complexidade decrescente, indo do homem até o zoófito; nas espécies superiores estão presentes todas as funções, vemo-Ias desaparecer depois umas após outras e, no zoófito, finalmente, já “não há centro de circulação, não há nervos, não há centro de sensação; cada ponto parece nutrirse por sucção”22. Todavia, essa continuidade é fraca, relativamente frouxa, formando, pelo número restrito das funções essenciais, um simples quadro de presenças e de ausências. A outra continuidade é muito mais cerrada: concerne à maior ou menor perfeição dos órgãos. Mas, a partir daí, só se podem estabelecer séries limitadas, continuidades regionais logo interrompidas, e que, ademais, se imbricam umas nas outras em direções diferentes; é que, nas diversas espécies, “os órgãos não seguem todos a mesma ordem de gradação: um atinge seu mais alto grau de perfeição na sua espécie; outro o atinge numa espécie diferente”23. Tem-se pois, o que se poderia chamar de “microsséries” limitadas e parciais que dizem respeito menos às espécies que a tal ou tal órgão; e, na outra extremidade, uma “macrossérie”, descontínua, afrouxada e que diz respeito menos aos próprios organismos que ao grande registro fundamental das funções. Entre essas duas continuidades que não se superpõem nem se ajustam, vê-se a divisão de grandes massas descontínuas. Elas obedecem a planos de organização diferentes, encontrando-se as mesmas funções ordenadas segundo hierarquias variadas e realizadas por órgãos de tipo diverso. Por exemplo, é fácil encontrar no polvo “todas as funções que se exercem nos peixes e, no entanto, não há entre eles nenhuma semelhança, nenhuma analogia de disposição”24. É preciso, portanto, analisar cada um desses grupos em si mesmo, considerar não o fio estreito das semelhanças que podem vinculá-Io a outro, mas a forte coesão que o cerra em si mesmo; não se buscará saber se os animais de sangue vermelho estão na mesma linha que os animais de sangue branco, tendo apenas perfeições suplementares; estabelecer-se-á que todo animal de sangue vermelho – e é nisso que depende de um plano autônomo – possui sempre uma cabeça óssea, uma coluna vertebral, membros (com exceção das serpentes), artérias e veias, um fígado, um pâncreas, um baço, rins25. Vertebrados e invertebrados formam regiões perfeitamente isoladas, entre as quais não se podem encontrar formas intermediárias assegurando a passagem num sentido ou noutro: “Qualquer que seja a organização que se dê aos animais com vértebras e aos que não as têm, não se chegará jamais a encontrar no final de uma dessas grandes classes, nem encabeçando a outra, dois animais que se assemelhem o bastante para servirem de elo entre elas.”26 Vê-se, pois, que a teoria das ramificações não ajunta um quadro taxinômico suplementar às classificações tradicionais; ela está ligada à constituição de um espaço novo das identidades e das diferenças. Espaço sem continuidade essencial. Espaço que logo de início se dá na forma da fragmentação. Espaço atravessado por linhas que às vezes divergem e às vezes se recortam. Para designar-lhe a forma geral, é preciso, pois, substituir a imagem da escala continua que fora tradicional no século XVIII, de Bonnet a Lamarck, pela de uma irradiação, ou, antes, de um conjunto de centros a partir dos quais se desdobra uma multiplicidade de raios; poderse- ia assim recolocar cada ser “nessa imensa rede que constitui a natureza organizada mas dez ou vinte raios não bastariam para exprimir essas inumeráveis relações”27. É toda a experiência clássica da diferença que então se abala e, com ela, a relação entre o ser e a natureza. Nos séculos XVII e XVIII, a diferença tinha por função religar as espécies umas às outras e preencher assim a distância entre as extremidades do ser; desempenhava um papel de “catenária”: era tão limitada, tão tênue quanto possível; alojavase no quadriculado mais estreito; era sempre divisível e podia cair mesmo abaixo do limiar da percepção. A partir de Cuvier, ao contrário, ela própria se multiplica, adiciona formas diversas, difunde-se e se repercute através do organismo, isolando-o de todos os outros de diversas maneiras simultâneas; é que ela não se aloja no interstício dos seres para religálos entre si; funciona em relação ao organismo, para que ele possa “fazer corpo” consigo mesmo e manter-se em vida; não preenche o entremeio dos seres por tenuidades sucessivas; escava-o, aprofundando-se a si mesma, para definir em seu isolamento os grandes tipos de compatibilidade. A natureza do século XIX é descontínua na medida mesma em que é viva. Avalia-se a importância da reviravolta; na época clássica, os seres naturais formavam um conjunto contínuo porque eram seres e não havia razão para a interrupção de seu desdobramento. Não era possível representar o que separava o ser de si mesmo. O contínuo da representação (signos e caracteres) e o contínuo dos seres (a extrema proximidade das estruturas) eram, pois, correlativos. É essa trama, a um tempo ontológica e representativa, que se despedaça definitivamente com Cuvier: os seres vivos, porque vivem, não podem mais formar um tecido de diferenças progressivas e graduadas; devem concentrar-se em tomo de núcleos de coerência perfeitamente distintos uns dos outros e que constituem diferentes planos para manter a vida. O ser clássico era sem lacuna; já a vida é sem margem nem gradação. O ser se derramava num imenso quadro; a vida isola formas que se articulam consigo mesmas. O ser se dava no espaço sempre analisável da representação; a vida se recolhe no enigma de uma força inacessível em sua essência, captável apenas nos esforços que faz, aqui e ali, para manifestar-se e manter-se. Em suma, ao longo de toda a idade clássica, a vida estava sob a alçada de uma ontologia que concemia do mesmo modo a todos os seres materiais, submetidos à extensão, ao peso, ao movimento; e era nesse sentido que todas as ciências da natureza e singularmente do ser vivo tinham uma profunda vocação mecanicista; a partir de Cuvier, o ser vivo escapa, ao menos em primeira instância, às leis gerais do ser extenso; o ser biológico regionaliza-se e autonomiza-se; a vida é, nos confins do ser, o que lhe é exterior e que, contudo, se manifesta nele. E se se coloca a questão de suas relações com o não-vivo, ou a de suas determinações fisico-químicas, não é, de modo algum, na linha de um “mecanicismo” que se obstinasse em suas modalidades clássicas, mas sim, de maneira totalmente nova, para articular uma à outra duas naturezas. Mas, como as descontinuidades devem ser explicadas pela manutenção da vida e por suas condições, vê-se esboçar uma continuidade imprevista – ou, ao menos, um jogo de interações não ainda analisadas – entre o organismo e o que lhe permite viver. Se os ruminantes se distinguem dos roedores, e por todo um sistema de diferenças maciças que não se trata de atenuar, é porque têm outra dentição, outro aparelho digestivo, outra disposição dos dedos e das unhas; é porque não podem capturar o mesmo alimento, porque não podem tratá-Io do mesmo modo; é porque não têm de digerir a mesma natureza de alimentos. Portanto, o ser vivo não deve mais ser compreendido apenas como uma certa combinação de moléculas portadoras de caracteres definidos; ele delineia uma organização que se sustém em relações ininterruptas com elementos exteriores que ela utiliza (pela respiração, pela alimentação), a fim de manter ou desenvolver sua própria estrutura. Em torno do ser vivo, ou, antes, através dele e pelo filtro de sua superficie, efetua-se “uma circulação continua de fora para dentro e de dentro para fora, constantemente mantida e contudo fixada entre certos limites. Assim, Os corpos vivos devem ser considerados como espécies de focos nos quais as substâncias mortas são sucessivamente conduzidas, para ali se combinarem entre si de diversas maneiras”28. O ser vivo, pelo jogo e pela soberania dessa mesma força que o mantém em descontinuidade consigo mesmo, acha-se submetido a uma relação contínua com o que o cerca. Para que o ser vivo possa viver, é preciso que haja várias organizações irredutíveis umas às outras, como também um movimento ininterrupto entre cada uma e o ar que ela respira, a água que bebe, o alimento que absorve. Rompendo a antiga continuidade clássica entre o ser e a natureza, a força dividida da vida fará aparecer formas dispersas, ligadas todas, porém, a condições de existência. Em alguns anos, na curva dos séculos XVIII e XIX, a cultura européia modificou inteiramente a espacialização fundamental do ser vivo: para a experiência clássica, o ser vivo era um compartimento ou uma série de compartimentos na taxinomia universal do ser; se sua localização geográfica tinha um papel (como em Buffon), era para fazer aparecer variações que já eram possíveis. A partir de Cuvier, o ser vivo se envolve sobre si mesmo, rompe suas vizinhanças taxinômicas, se arranca ao vasto plano constringente das continuidades e se constitui um novo espaço: espaço duplo, na verdade – pois que é aquele, interior, das coerências anatômicas e das compatibilidades fisiológicas, e aquele, exterior, dos elementos onde ele reside para deles fazer seu corpo próprio. Todavia, esses dois espaços têm um comando unitário: não mais o das possibilidades do ser, mas o das condições de vida. Todo o a priori histórico de uma ciência dos seres vivos acha-se assim abalado e renovado. Considerada na sua profundidade arqueológica e não ao nível mais aparente das descobertas, das discussões, teorias, ou das opções filosóficas, a obra de Cuvier tende de longe para o que viria a ser o futuro da biologia. Freqüentemente, opõem-se as intuições “transformistas” de Lamarck, que parecem “prefigurar” o que será o evolucionismo, e o velho fixismo, todo impregnado de preconceitos tradicionais e de postulados teológicos, no qual se obstinava Cuvier. E por todo um jogo de amálgamas, de metáforas, de analogias mal controladas, desenha-se o perfil de um pensamento “reacionário” que se empenha apaixonadamente na imobilidade das coisas para garantir a ordem precária dos homens; tal seria a filosofia de Cuvier, homem de todos os poderes; de outro lado, descreve-se o destino dificil de um pensamento progressista, que crê na força do movimento, na incessante novidade, na vivacidade das adaptações: Lamarck, o revolucionário, estaria aí. Fornece-se assim, sob o pretexto de fazer história das idéias num sentido rigorosamente histórico, um belo exemplo de ingenuidade. Pois, na historicidade do saber, o que conta não são as opiniões, nem as semelhanças que, através das idades, se podem estabelecer entre elas (há, com efeito, uma “semelhança” entre Lamarck e um certo evolucionismo, assim como entre este e as idéias de Diderot, de Robinet ou de Benoit de Maillet); o que é importante, o que permite articular em si mesma a história do pensamento, são suas condições internas de possibilidade. Ora, basta tentar sua análise para logo se perceber que Lamarck só pensava as transformações das espécies a partir da continuidade ontológica que era a da história natural dos clássicos. Ele supunha uma gradação progressiva, um aperfeiçoamento ininterrupto, uma grande superflcie dos seres que podiam formar-se uns a partir dos outros. O que toma possível o pensamento de Lamarck não é a apreensão longínqua de um evolucionismo por vir, é a continuidade dos seres, tal como a descobriam e a supunham os “métodos” naturais. Lamarck é contemporâneo de A.-L. de Jussieu. Não de Cuvier. Este introduziu na escala clássica dos seres uma descontinuidade radical; e, por isso mesmo, fez surgir noções como as de incompatibilidade biológica, de relações com os elementos exteriores, de condições de existência; fez surgir também uma certa força que deve manter a vida e uma certa ameaça que a pune com a morte; aí se acham reunidas várias das condições que tornam possível alguma coisa como o pensamento da evolução. A descontinuidade das formas vivas permitiu conceber um grande fluxo temporal, que não autorizava, apesar das analogias de superfície, a continuidade das estruturas e dos caracteres. Pôde-se substituir a história natural por “história” da natureza, graças ao descontínuo espacial, graças à ruptura do quadro, graças ao fracionamento dessa superfície onde todos os seres naturais vinham, em ordem, achar seu lugar. Certamente, o espaço clássico, como se viu, não excluía a possibilidade de um devir, mas esse devir nada mais fazia que assegurar um percurso sobre o tablado discretamente prévio das variações possíveis. A ruptura desse espaço permitiu descobrir uma historicidade própria à vida: aquela de sua manutenção em suas condições de existência. O “fixismo” de Cuvier, como análise de tal manutenção, foi a maneira inicial de refletir essa historicidade no momento em que ela aflorava, pela primeira vez, no saber ocidental. A historicidade, pois, introduziu-se agora na natureza – ou, antes, no ser vivo; mas ela aí é bem mais do que uma forma provável de sucessão; constitui como que um modo de ser fundamental. Sem dúvida, na época de Cuvier não existe ainda história do ser vivo, como a que descreverá o evolucionismo; mas o ser vivo é pensado, logo de início, com as condições que lhe permitem ter uma história. É do mesmo modo que as riquezas receberam, na época de Ricardo, um estatuto de historicidade que ele tampouco formulara ainda como história econômica. A estabilidade próxima dos rendimentos industriais, da população e da renda tal como a previra Ricardo, a fixidez das espécies afirmada por Cuvier podem passar, após um exame superficial, por uma recusa da história; de fato, Ricardo e Cuvier só recusavam as modalidades da sucessão cronológica tais como foram pensadas no século XVIII; eles desfaziam a dependência do tempo em relação à ordem hierárquica ou classificatória das representações. Em contrapartida, essa imobilidade atual ou futura que descreviam ou anunciavam, só podiam concebê-Ia a partir da possibilidade de uma história; e esta lhes era dada quer pelas condições de existência do ser vivo, quer pelas condições de produção do valor. Paradoxalmente, o pessimismo de Ricardo, o fixismo de Cuvier só aparecem sobre um fundo histórico: eles definem a estabilidade dos seres que, doravante, têm direito, ao nível de sua modalidade profunda, a ter uma história; a idéia clássica de que as riquezas podiam crescer segundo um progresso contínuo, ou de que as espécies pudessem com o tempo transformar-se umas nas outras, definia, ao contrário, a mobilidade de seres que, antes mesmo de toda história, já obedeciam a um sistema de variáveis d: identidades ou de equivalências. Foi necessária a suspensão e como que a colocação entre parênteses daquela história, para que os seres da natureza e os produtos do trabalho recebessem uma historicidade que permitisse ao pensamento moderno apreendê-Ios e desenvolver, em seguida, a ciência dlscursiva de sua sucessão. Para o pensamento do século XYIII, as seqüências cronológicas não passam de uma propriedade e de uma manifestação mais ou menos confusa da ordem dos seres; a partir do século XIX, elas exprimem, de um modo mais ou menos direto e até na sua interrupção, o modo de ser profundamente histórico das coisas e dos homens. Em todo o caso, essa constituição de uma historicidade viva teve, para o pensamento europeu, vastas conseqüências. Tão vastas, sem dúvida, quanto aquelas acarretadas pela formação de uma historicidade econômica. Ao nível superficial dos grandes valores imaginários, a vida, doravante votada à história, se delineia sob a forma da animalidade. A besta, cuja grande ameaça ou estranheza radical tinham ficado suspensas e como que desarmadas no final da Idade Média ou pelo menos ao cabo do Renascimento, encontra, no século XIX, novos poderes fantásticos. Nesse ínterim, a natureza clássica privilegiara os valores vegetais – a planta trazendo sobre seu brasão visível a marca sem reticências de cada ordem eventual; com todas as suas figuras desdobradas, do caule à semente, da raiz ao fruto, o vegetal formava, para um pensamento em quadro, um puro objeto transparente aos segredos generosamente restituídos. A partir do momento em que caracteres e estruturas se escalonam em profundidade na direção da vida – esse ponto de fuga soberano, indefinidamente distante mas constituinte – é o animal então que se toma figura privilegiada, com seus arcabouços ocultos, seus órgãos encobertos, tantas funções invisíveis e essa força longínqua, no fundo de tudo, que o mantém em vida. Se o ser vivo é uma classe de seres, a erva, melhor que tudo, enuncia sua límpida essência; mas se o ser vivo é manifestação da vida, o animal deixa melhor perceber o que é o seu enigma. Mais que a imagem calma dos caracteres, ele mostra a passagem incessante do inorgânico ao orgânico, pela respiração ou pela nutrição, e a transformação inversa, sob o efeito da morte, das grandes arquiteturas funcionais em poeira sem vida: “As substâncias mortas são conduzidas para os corpos vivos”, dizia Cuvier, “para aí terem um lugar e aí exercerem uma ação, determinados pela natureza das combinações em que ingressaram, e para daí escaparem um dia, a fim de entrarem novamente sob as leis da natureza morta”29. A planta reinava nos confins do movimento e da imobilidade, do sensível e do insensível; já o animal mantém-se nos confins da vida e da morte. Esta o assedia de todos os lados; bem mais, ameaça-o também do interior, pois somente o organismo pode morrer, e é do fundo de sua vida que a morte sobrevém aos seres vivos. Daí, sem dúvida, os valores ambíguos assumidos, por volta do fim do século XVIII, pela animalidade: a besta aparece como portadora dessa morte, à qual, ao mesmo tempo, está sujeita; há nela uma devoração perpétua da vida por ela mesma. Ela só pertence à natureza quando encerra em si um núcleo de contranatureza. Transferindo sua mais secreta essência do vegetal ao animal, a vida abandona o espaço da ordem e volta a ser selvagem. Revela-se mortífera nesse mesmo movimento que a vota à morte. Mata porque vive. A natureza já não sabe ser boa. Que a vida não possa mais ser separada do assassínio, a natureza do mal, nem os desejos da contranatureza, Sade o anunciava ao século XVIII, cuja linguagem ele esgotava, bem como à idade moderna, que por longo tempo quis condená-lo ao mutismo. Que se desculpe a insolência (para com quem?): Les 120 journées são o reverso aveludado, maravilhoso, das Leçons d’anatomie comparée. Em todo. o caso, no calendário de nossa arqueologia, tem a mesma idade. Mas esse estatuto imaginário da animalidade, totalmente carregada de poderes inquietantes e noturnos, remete de maneira mais profunda às funções múltiplas e simultâneas da vida no pensamento do século XIX. Pela primeira vez talvez na cultura ocidental, a vida escapa às leis gerais do ser, tal como ele se dá e se analisa na representação. Do outro lado de todas as coisas que estão aquém mesmo daquelas que podem ser, suportando-as para fazê-Ias aparecer, e destruindo-as incessantemente pela violência da morte, a vida se torna uma força fundamental e que se opõe ao ser como o movimento à imobilidade, o tempo ao espaço, o querer secreto à manifestação visível. A vida é a raiz de toda existência, e o nãovivo, a natureza inerte, nada mais são que a vida decaída; o ser puro e simples é o não-ser da vida. Pois esta, e é por isso que ela tem um valor radical no pensamento do século XIX, é ao mesmo tempo núcleo do ser e do não-ser: só há ser porque há vida e, nesse movimento fundamental que os vota à morte, os seres dispersos e estáveis por instantes formam-se, detêm-se, imobilizam-na – e, num sentido, a matam -.:., mas são por sua vez destruídos por essa força inesgotável. A experiência da vida apresenta-se, pois, como a lei mais geral dos seres, o aclaramento dessa força primitiva a partir da qual eles são; ela funciona como uma ontologia selvagem que buscasse dizer o ser e o não-ser indissociáveis de todos os seres. Mas essa ontologia desvela menos o que funda os seres do que o que os leva, por um instante, a uma forma precária e secretamente já os mina por dentro, para os destruir. Em relação à vida, os seres não passam de figuras transitórias e o ser que eles mantêm, durante o episódio de sua existência, nada mais é que sua presunção, sua vontade de subsistir. De sorte que, para o conhecimento, o ser das coisas é ilusão, véu que se deve rasgar, para se reencontrar a violência muda e invisível que os devora na noite. A ontologia do aniquilamento dos seres vale, portanto, como crítica do conhecimento; mas trata-se menos de fundar o fenômeno, de dizer ao mesmo tempo seu limite e sua lei, de reportá10 à finitude que o toma possível, do que de dissipá-lo e destruí-lo como a própria vida destrói os seres: pois todo o seu ser é só aparência. Vê-se constituir-se assim um pensamento que se opõe, quase em cada um de seus termos, ao que estava ligado à formação de uma historicidade econômica. Vimos como esta última se apoiava sobre uma tríplice teoria das necessidades irredutíveis, da objetividade do trabalho e do fim da história. Aqui vemos, ao contrário, desenvolver-se um pensamento em que a individualidade, com suas formas, seus limites e suas necessidades, não passa de um momento precário, votado à destruição, formando, em tudo e por tudo, um simples obstáculo que, na via desse aniquilamento, tem de ser afastado; um pensamento em que a objetividade das coisas não passa de aparência, quimera da percepção, ilusão que é preciso dissipar e restituir à pura vontade sem fenômeno que as fez nascer e as suportou por um instante; um pensamento, enfim, para o qual o recomeço da vida, suas retomadas incessantes, sua obstinação, excluem que se lhe estabeleça um limite no curso do tempo, tanto mais que o próprio tempo, com suas divisões cronológicas e seu calendário quase espacial, não é, sem dúvida, mais que uma ilusão do conhecimento. Lá onde um pensamento prevê o fim da história, o outro anuncia o infinito da vida; onde um reconhece a produção real das coisas pelo trabalho, o outro dissipa as quimeras da consciência; onde um afirma com os limites do indivíduo as exigências de sua vida, o outro os apaga no murmúrio da morte. Será essa oposição o sinal de que, a partir do século XIX, o campo do saber não pode mais dar lugar a uma reflexão homogênea e uniforme em todos os seus pontos? Será preciso admitir que, doravante, cada forma de positividade tem a “filosofia” que lhe convém: a economia, a de um trabalho marcado pelo signo da necessidade, mas destinado finalmente à grande recompensa do tempo; a biologia, a de uma vida marcada por essa continuidade que só forma os seres para os desfazer, achando-se com isso liberada de todos os limites da História? E as ciências da linguagem, uma filosofia das culturas, de sua relatividade e de seu poder singular de manifestação?

II. Ricardo

Capítulo VIII - Trabalho, vida e linguagem; tópico II. Ricardo

Afirma-se facilmente que Adam Smith fundou a economia política moderna – poder-se-ia dizer a economia simplesmente – introduzindo o conceito de trabalho num domínio de reflexão que ainda não o conhecia: de imediato, todas as velhas análises da moeda, do comércio e da troca teriam sido remetidas a uma idade pré-histórica do saber – com exceção talvez unicamente da fisiocracia, à qual se concede o mérito de ter tentado ao menos a análise da produção agrícola. 

É verdade que Adam Smith refere, logo de início, a noção de riqueza à de trabalho: 

“O trabalho anual de uma nação é o fundo primitivo que fornece ao consumo anual todas as coisas necessárias e cômodas à vida; e essas coisas são sempre ou o produto imediato desse trabalho ou compradas de outras nações com esse produto”(1);

 é também verdade que Smith reporta o “valor em uso” das coisas à necessidade dos homens, e o “valor em troca” à quantidade de trabalho aplicada para produzi-lo: 

“O valor de uma mercadoria qualquer, para aquele que a possui e que não pretenda pessoalmente dela fazer uso ou consumi-Ia, mas que tem a intenção de trocá-Ia por outra coisa, é igual à quantidade de trabalho que essa mercadoria lhe permite comprar ou encomendar.”(2) 

De fato, a diferença entre as análises de Smith e as de Turgot ou Cantillon é menor do que se crê; ou, antes, não reside lá onde se imagina. 

Desde Cantillon e antes dele já se distinguiam perfeitamente o valor de uso e o valor de troca; desde Cantillon igualmente, utilizava-se a quantidade de trabalho para medir este último. 

Mas a quantidade de trabalho inscrita no preço das coisas não passava de um instrumento de medida, ao mesmo tempo relativo e redutível. Com efeito, o trabalho de um homem valia a quantidade de alimento que era necessária a ele e à sua família para os manter durante o tempo que durava a obra(3). De sorte que, em última instância, a necessidade – o alimento, o vestuário, a habitação – definia a medida absoluta do preço de mercado.

Ao longo de toda a idade clássica, é a necessidade que mede as equivalências, o valor de uso que serve de referência absoluta aos valores de troca; é o alimento que afere os preços, dando à produção agrícola, ao trigo e à terra o privilégio que todos lhes reconheceram. 

Adam Smith não inventou portanto o trabalho como conceito econômico, porquanto já o encontramos em Cantillon, em Quesnay, em Condillac; 

nem mesmo lhe faz desempenhar um papel novo, pois dele também se serve como medida do valor de troca: 

“O trabalho é a medida real do valor permutável de toda mercadoria.”(4)

 Desloca-o porém: 

  • conserva-lhe sempre a função de análise das riquezas permutáveis; 
  • essa análise, entretanto, não é mais um puro e simples momento para reconduzir a troca à necessidade (e o comércio ao gesto primitivo da permuta); 
  • ela descobre uma unidade de medida irredutível, insuperável e absoluta. 
  • Desde logo, as riquezas não estabelecerão mais a ordem interna de suas equivalências por uma comparação dos objetos a trocar, nem por uma estimação do poder próprio a cada um de representar um objeto de necessidade (e, em último recurso, o mais fundamental de todos, o alimento); 
  • elas se decomporão segundo as unidades de trabalho que realmente as produziram. 

As riquezas são sempre elementos representativos que funcionam: mas o que representam finalmente 

  • não é mais o objeto do desejo, 
  • é o trabalho. 

Duas objeções, porém, logo se apresentam: 

como pode o trabalho ser medida fixa do preço natural das coisas, se ele próprio tem um preço – e que é variável? 

Como pode o trabalho ser uma unidade insuperável, se ele muda de forma e se o progresso das manufaturas o torna incessantemente mais produtivo, dividindo-o sempre mais? 

Ora, é justamente através dessas objeções e como que por seu intermédio que podemos trazer à luz a irredutibilidade do trabalho e seu caráter primeiro. 

Com efeito, há regiões no mundo e momentos numa mesma região em que o trabalho é caro: os operários são pouco numerosos, os salários elevados; em outras partes e em outros momentos, a mão-de-obra abunda, é mal retribuída, o trabalho é barato. 

Mas o que se modifica nessas alternâncias é a quantidade de alimento que se pode obter com um dia de trabalho; 

  • se há poucas mercadorias e muitos consumidores, cada unidade de trabalho só será recompensada por uma fraca quantidade de subsistência; 
  • em contrapartida, ela será bem paga se as mercadorias se encontram em abundância. 

Isso não passa de conseqüências de uma situação de mercado; o próprio trabalho, as horas passadas, o esforço e a fadiga são, de todo modo, os mesmos; e quanto mais necessárias forem essas unidades, tanto mais caros serão os produtos.

 “As quantidades iguais de trabalho são sempre iguais para aquele que trabalha.”(5) 

E contudo poder-se-ia dizer que essa unidade não é fixa, já que, para produzir um único e mesmo objeto, será preciso, conforme a perfeição das manufaturas (isto é, segundo a divisão do trabalho que se instaurou), um labor mais ou menos longo. 

Mas, na verdade, não foi o trabalho em si mesmo que mudou; foi a relação do trabalho com a produção de que ele é suscetível. 

O trabalho, entendido como jornada, esforço e fadiga, é um numerador fixo: só o denominador (o número de objetos produzidos) é capaz de variações. 

Um operário que tivesse de fazer sozinho as 18 operações distintas de que necessita a fabricação de um alfinete não produziria, sem dúvida, mais que cerca de 20 deles no curso de todo um dia. 

Mas dez operários que tivessem de efetuar cada qual somente uma ou duas operações poderiam fazer juntos mais de 48 mil alfinetes num dia; portanto, cada operário, realizando uma décima parte desse produto, pode ser considerado como fazendo em seu dia 4.800 alfinetes(6). 

A potência produtiva do trabalho foi multiplicada; numa mesma unidade (a jornada de um assalariado), os objetos fabricados aumentaram; seu valor de troca vai portanto baixar, isto é, cada um deles, por sua vez, só poderá comprar uma quantidade de trabalho proporcionalmente menor. 

O trabalho não diminuiu em relação às coisas; foram as coisas que como que se estreitaram em relação à unidade de trabalho. 

Troca-se, é verdade, porque se têm necessidades; sem elas, o comércio não existiria, nem tampouco o trabalho, nem sobretudo essa divisão que o torna mais produtivo. Inversamente, são as necessidades que, quando satisfeitas, limitam o trabalho e seu aperfeiçoamento: 

“Uma vez que é a faculdade de trocar que dá lugar à divisão do trabalho, o aumento dessa divisão deve, por conseqüência, ser sempre limitado pela extensão da faculdade de trocar ou, em outros termos, pela extensão do mercado.”(7) 

As necessidades e a troca de produtos que podem responder a elas são sempre o princípio da economia: são seu primeiro motor e a circunscrevem; o trabalho e a divisão que o organiza não passam de seus efeitos. 

Mas, no interior da troca, na ordem das equivalências, a medida que estabelece as igualdades e as diferenças é de natureza diversa da necessidade. Não está ligada apenas ao desejo dos indivíduos, modificada com ele e variável como ele. É uma medida absoluta, se com isso se entender que não depende do coração dos homens ou de seu apetite; impõe-se-lhes do exterior: é seu tempo e é seu esforço. 

Em relação à de seus predecessores, a análise de Adam Smith representa um desfecho essencial: 

  • ela distingue a razão da troca e a medida do permutável, 
  • a natureza do que é trocado e as unidades que permitem sua decomposição. 

Troca-se porque se tem necessidade, e os objetos precisamente de que se tem necessidade, mas a ordem das trocas, sua hierarquia e as diferenças que aí se manifestam são estabelecidas pelas unidades de trabalho que foram depositadas nos objetos em questão. 

Se, 

  • para a experiência dos homens – ao nível do que se vai incessantemente chamar de psicologia – o que eles trocam é o que lhes é “indispensável, cômodo ou agradável”, 
  • para o economista, o que circula sob a forma de coisas é trabalho. 

Não mais objetos de necessidade que se representam uns aos outros, mas tempo e fadiga, transformados, ocultos, esquecidos. 

Esse desfecho é de grande importância. 

  • Certamente, Adam Smith analisa ainda, como seus predecessores, esse campo de positividade a que o século XVIII chamou “riquezas”; e, com isso, entendia também ele objetos de necessidade – os objetos portanto de uma certa forma de representação – representando-se a si próprios nos movimentos e nos processos da troca. 
  • Mas, no interior dessa reduplicação e para regular sua lei, as unidades e as medidas da troca, ele formula um princípio de ordem que é irredutível à análise da representação:
    • traz à luz o trabalho, isto é, o esforço e o tempo, essa jornada que, ao mesmo tempo talha e gasta a vida de um homem. 

A equivalência dos objetos do desejo não é mais estabelecida por intermédio de outros objetos e de outros desejos, mas por uma passagem ao que lhes é radicalmente heterogêneo; 

se há uma ordem nas riquezas, se isto pode comprar aquilo, se o ouro vale duas vezes mais que a prata, não é mais porque os homens têm desejos comparáveis; 

não é porque através de seu corpo eles experimentam a mesma fome ou porque o coração de todos obedece às mesmas seduções; 

é porque todos eles são submetidos ao tempo, ao esforço, à fadiga e, indo ao extremo, à própria morte. 

Os homens trocam porque experimentam necessidades e desejos; mas podem trocar e ordenar essas trocas porque são submetidos ao tempo e à grande fatalidade exterior. 

Quanto à fecundidade desse trabalho, não é ela devida tanto à habilidade pessoal ou ao cálculo dos interesses; funda-se em condições, também estas, exteriores à sua representação: 

progresso da indústria, aumento da divisão de tarefas, acúmulo de capitais, divisão do trabalho produtivo e do trabalho não-produtivo. 

Vê-se de que maneira a reflexão sobre as riquezas começa, com Adam Smith, a extravasar o espaço que lhe era designado na idade clássica; 

  • era então alojada no interior da “ideologia” – da análise da representação; 
  • doravante, ela se refere, como que de viés, a dois domínios que escapam, tanto um quanto o outro, às formas e às leis da decomposição das idéias:
    • de um lado, ela desponta já para uma antropologia que põe em questão a essência do homem (sua finitude, sua relação com o tempo, a iminência da morte) e o objeto no qual ele investe as jornadas de seu tempo e de seu esforço sem poder nele reconhecer o objeto de sua necessidade imediata; 
    • e, de outro, indica, ainda no vazio, a possibilidade de uma economia política que não mais teria por objeto a troca das riquezas (e o jogo das representações que a cria), mas sua produção real: formas do trabalho e do capital. 

Compreende-se como, entre essas positividades recentemente formadas –

  • uma antropologia que fala de um homem tornado estranho a si mesmo 
  • e uma economia que fala de mecanismos exteriores à consciência humana 

– a Ideologia ou a Análise das representações se reduzirá, em breve, a ser não mais que uma psicologia, ao mesmo tempo em que, diante dela, contra ela e dominando-a bem logo do alto de si mesma, se abre a dimensão de uma história possível. 

A partir de Smith, 

  • o tempo da economia não será mais aquele, cíclico, dos empobrecimentos e dos enriquecimentos; 
  • também não será o crescimento linear das políticas hábeis que, aumentando sempre ligeiramente as espécies em circulação, aceleram a produção mais rapidamente do que elevam os preços; 
  • será o tempo interior de uma organização que cresce segundo sua própria necessidade e se desenvolve segundo leis autóctones – o tempo do capital e do regime de produção.

I. As novas empiricidades

Capítulo VIII - Trabalho, vida e linguagem; tópico I. As novas empiricidades

Os últimos anos do século XVIII são rompidos por uma descontinuidade simétrica àquela que, no começo do século XVII, cindira o pensamento do Renascimento; 

  • então, as grandes figuras circulares em que se encerrava a similitude tinham-se deslocado e aberto para que o quadro das identidades pudesse desdobrar-se; 
  • e esse quadro agora vai por sua vez desfazer-se, alojando-se o saber num espaço novo. 

Descontinuidade tão enigmática em seu princípio, em seu primitivo despedaçamento, quanto a que separa os círculos de Paracelso da ordem cartesiana. 

Donde vem bruscamente essa mobilidade inesperada das disposições epistemológicas, o desvio das positividades umas em relação às outras, mais profundamente ainda a alteração de seu modo de ser? 

Como ocorre que o pensamento se desprenda daquelas plagas que habitava outrora – gramática geral, história natural, riquezas – e deixe oscilar no erro, na quimera, no não-saber aquilo mesmo que, menos de 20 anos antes, estava estabelecido e afirmado no espaço luminoso do conhecimento? 

A que acontecimento ou a que lei obedecem essas mutações que fazem com que de súbito as coisas não sejam mais percebidas, descritas, enunciadas, caracterizadas, classificadas e’ sabidas do mesmo modo e que, no interstício das palavras ou sob sua transparência, não sejam mais as riquezas, os seres vivos, o discurso que se oferecem ao saber, mas seres radicalmente diferentes? 

Se, para uma arqueologia do saber, essa abertura profunda na camada das continuidades deve ser analisada, e minuciosamente, não pode ser ela “explicada”, nem mesmo recolhida numa palavra única. É um acontecimento radical que se reparte por toda a superfície visível do saber e cujos signos, abalos, efeitos, podem-se seguir passo a passo. 

Somente o pensamento, assenhoreando-se de si mesmo na raiz de sua história, poderia fundar, sem nenhuma dúvida, o que foi, em si mesma, a verdade solitária desse acontecimento. 

A arqueologia, essa, deve percorrer o acontecimento segundo sua disposição manifesta; 

  • ela dirá como as configurações próprias a cada positividade se modificaram (ela analisa por exemplo,
    • para a gramática, o desaparecimento do papel maior atribuído ao nome e a importância nova dos sistemas de flexão; 
    • ou ainda, a subordinação, no ser vivo, do caráter à função); 
  • ela analisará a alteração dos seres empíricos que povoam as positividades
    • (a substituição do discurso pelas línguas, 
    • das riquezas pela produção); 
  • estudará o deslocamento das positividades umas em relação às outras
    • (por exemplo, a relação nova entre a biologia, as ciências da linguagem e a economia); 
  • enfim e sobretudo, mostrará que o espaço geral do saber
    • não é mais o das identidades e das diferenças, o das ordens não-quantitativas, o de uma caracterização universal, de uma taxinomia geral, de uma máthêsis do não-mensurável, 
    • mas um espaço feito de organizações, isto é, de relações internas entre elementos, cujo conjunto assegura uma função; 
  • mostrará que essas organizações são descontínuas,
    • que não formam, pois, um quadro de simultaneidades sem rupturas,
    • mas que algumas são do mesmo nível enquanto outras traçam séries ou sequências lineares. 

De sorte que se vêem surgir,
como princípios organizadores desse espaço de empiricidades,
a Analogia e a Sucessão:
de uma organização a outra,
o liame, com efeito,
não pode mais ser a identidade de um ou vários elementos,
mas a identidade da relação entre os elementos
(onde a visibilidade não tem mais papel)
e da função que asseguram;
ademais, se porventura essas organizações se avizinham
por efeito de uma densidade singularmente grande de analogias,
não é porque ocupem localizações próximas
num espaço de classificação,
mas sim porque foram formadas
uma ao mesmo tempo que a outra
e uma logo após a outra
no devir das sucessões. 

Enquanto, no pensamento clássico, 

a seqüência das cronologias não fazia mais que percorrer o espaço prévio e mais fundamental de um quadro que de antemão apresentava todas as suas possibilidades, 

doravante 

as semelhanças contemporâneas e observáveis simultaneamente no espaço não serão mais que as formas depositadas e fixadas de uma sucessão
que procede
de analogia em analogia. 

A ordem clássica 

distribuía num espaço permanente as identidades e as diferenças não-quantitativas que separavam e uniam as coisas: 

era essa a ordem que reinava soberanamente,
mas a cada vez segundo formas e leis ligeiramente diferentes,

  • sobre o discurso dos homens,
  • o quadro dos seres naturais
  • e a troca das riquezas. 

A partir do século XIX, 

a História vai desenrolar numa série temporal
as analogias que aproximam umas das outras
as organizações distintas. 

É essa História que, progressivamente, imporá suas leis 

  • à análise da produção, 
  • à dos seres organizados, 
  • enfim, à dos grupos linguísticos. 

A História dá lugar às organizações analógicas, 

assim como a Ordem abria o caminho das identidades
e das diferenças sucessivas. 

Mas vê-se bem que a História 

  • não deve ser aqui entendida como a coleta das sucessões de fatos, tais como se constituíram; 
  • ela é o modo de ser fundamental das empiricidades,
    • aquilo a partir de que elas são afirmadas, postas, dispostas e repartidas no espaço do saber para eventuais conhecimentos e para ciências possíveis. 

Assim como a Ordem no pensamento clássico 

não era a harmonia visível das coisas, seu ajustamento, sua regularidade ou sua simetria constatados, 

mas o espaço próprio de seu ser e aquilo que, antes de todo conhecimento efetivo, as estabelecia no saber, 

assim também a História, a partir do século XIX, 

define o lugar de nascimento do que é empírico,
lugar onde, aquém de toda cronologia estabelecida,
ele assume o ser que lhe é próprio.

 É por isso certamente que tão cedo a História se dividiu, segundo um equívoco que sem dúvida não é possível vencer, entre 

  • uma ciência empírica dos acontecimentos 
  • e esse modo de ser radical que prescreve seu destino a todos os seres empíricos e a estes seres singulares que somos nós. 

A História, como se sabe, é efetivamente a região mais erudita, mais informada, mais desperta, mais atravancada talvez de nossa memória; 

mas é igualmente a base a partir da qual todos os seres ganham existência e chegam à sua cintilação precária. 

Modo de ser de tudo o que nos é dado na experiência, a História tornou-se assim o incontornável de nosso pensamento: no que, sem dúvida, não é tão diferente da Ordem clássica. 

Essa também podia ser estabelecida num saber organizado mas era mais fundamentalmente o espaço onde todo ser vinha ao conhecimento; e a metafisica clássica alojava-se precisamente nessa distância 

  • da Ordem à ordem, 
  • das classificações à Identidade, 
  • dos seres naturais à Natureza: 
  • em suma,
    • da percepção (ou da imaginação) dos homens 
    • para com o entendimento e a vontade de Deus. 

A filosofia do século XIX se alojará na distância 

  • da história à História, 
  • dos acontecimentos à Origem, 
  • da evolução ao primeiro dilaceramento da fonte, 
  • do esquecimento ao Retorno. 

Portanto, 

  • ela só não será mais Metafisica na medida em que será Memória 
  • e, necessariamente, reconduzirá o pensamento à questão de saber o que é, para o pensamento, ter uma história. 

Essa questão infatigavelmente acossará a filosofia, de Hegel a Nietzsche, e para além desses. 

Não vejamos nisso o fim de uma reflexão filosófica autônoma, demasiado matinal e demasiado orgulhosa para se inclinar exclusivamente sobre o que foi dito antes dela e por outros; 

não tomemos isso como um pretexto para denunciar um pensamento impotente para manter-se de pé sozinho e sempre constrangido a enrolar-se a um pensamento já realizado. 

Basta reconhecer aí uma filosofia já desprendida de certa metafisica, porque desligada do espaço da ordem, mas votada ao Tempo, ao seu fluxo, a seus retornos, porque presa ao modo de ser da História. 

É preciso, porém, retomar, com um pouco mais de detalhe, ao que se passou na curva dos séculos XVIII e XIX: a essa mutação demasiado rapidamente desenhada da Ordem à História e à alteração fundamental dessas positividades que, durante quase um século e meio, deram lugar a tantos saberes vizinhos – análise das representações, gramática geral, história natural, reflexões sobre as riquezas e o comércio. 

Como essas maneiras de ordenar a empiricidade que foram o discurso, o quadro, as trocas, se desvaneceram? 

Em que outro espaço e segundo quais figuras as palavras, os seres, os objetos da necessidade tomaram lugar e se distribuíram uns em relação aos outros? 

Que novo modo de ser devem ter recebido para que todas essas mudanças fossem possíveis e para que aparecessem, ao cabo de alguns anos apenas, esses saberes agora familiares a que chamamos, desde o século XIX, 

 

  • filologia, 
  • biologia, 
  • economia política? 

Imaginamos facilmente que, se esses novos domínios foram definidos no século passado, é porque um pouco mais de objetividade no conhecimento, de exatidão na observação, de rigor no raciocínio, de organização na pesquisa e na informação cientifica – tudo isso ajudado, com um pouco de sorte ou de gênio, por algumas descobertas felizes, nos fez sair de uma idade pré-histórica em que o saber balbuciava ainda com a Gramática de Port-Royal, as classificações de Lineu e as teorias do comércio ou da agricultura. 

Mas se, do ponto de vista da racionalidade dos conhecimentos, podemos realmente falar em pré-história, para as positividades só podemos falar em história. 

E foi realmente necessário
um acontecimento fundamental
 – um dos mais radicais, sem dúvida,
que ocorreram na cultura ocidental,
para que se desfizesse a positividade do saber clássico
e se constituísse uma positividade de que, por certo,
não saímos inteiramente. 

Esse acontecimento, sem dúvida porque estamos ainda presos na sua abertura, nos escapa em grande parte. 

Sua amplitude, as camadas profundas que atingiu, todas as positividades que ele pode subverter e recompor, a potência soberana que lhe permitiu atravessar, em alguns anos apenas, o espaço inteiro de nossa cultura, tudo isso só poderia ser estimado e medido ao termo de uma inquirição quase infinita que só concerniria, nem mais nem menos, ao ser mesmo de nossa modernidade. 

  • A constituição de tantas ciências positivas, 
  • o aparecimento da literatura, 
  • a volta da filosofia sobre seu próprio devir, 
  • a emergência da história ao mesmo tempo
    • como saber 
    • e como modo de ser da empiricidade, 
  • não são mais que sinais de uma ruptura profunda. 

Sinais dispersos no espaço do saber, pois que se deixam perceber na formação, 

  • aqui de uma filologia, 
  • ali de uma economia política, 
  • ali ainda de uma biologia. 

Dispersão também na cronologia: 

  • certamente, o conjunto do fenômeno se situa entre datas facilmente assinaláveis (os pontos extremos são os anos 1775 e 1825); 
  • podem-se porém reconhecer, em cada um dos domínios estudados, duas fases sucessivas que se articulam uma à outra, mais ou menos por volta dos anos 1795-1800. 
  • Na primeira dessas fases, o modo de ser fundamental das positividades não muda;
    • as riquezas dos homens, 
    • as espécies da natureza, 
    • as palavras de que as línguas são povoadas 
  • permanecem ainda o que eram na idade clássica:
    • representações duplicadas – representações cujo papel consiste em designar representações, analisá-Ias, decompô-Ias e compô-Ias, para fazer nelas surgir, com o sistema de suas identidades e de suas diferenças, o princípio geral de uma ordem. 
  • É somente na segunda fase que as palavras, as classes e as riquezas adquirirão um modo de ser que não é mais compatível com o da representação. 

Em contra partida, o que se modifica muito cedo, desde as análises de Adam Smith, de A.-L. de Jussieu ou de Viq d’Azyr, na época de Jones ou de Anquetil- Duperron, é a configuração das positividades: 

  • a maneira como, no interior de cada uma, os elementos representativos funcionam uns em relação aos outros, 
  • a maneira como asseguram seu duplo papel de designação e de articulação, 
  • como chegam, pelo jogo das comparações, a estabelecer uma ordem. 

É essa primeira fase que será estudada no presente capítulo.

VI. As sínteses objetivas

Capítulo VII - Os limites da representação; tópico VI. As sínteses objetivas

 Daí uma série quase infinita de consequências. De consequências, em todo o caso, ilimitadas, já que o nosso pensamento hoje pertence ainda à sua dinastia. 

Em primeiro plano, é preciso, sem dúvida, colocar a emergência simultânea de um tema transcendental e de campos empíricos novos – ou pelo menos distribuídos e fundados de maneira nova.

Viu-se como, no século XVII, o aparecimento da máthêsis como ciência geral da ordem não só tivera um papel fundador nas disciplinas matemáticas como também fora correlativo da formação de domínios diversos e puramente empíricos como a gramática geral, a história natural e a análise das riquezas; estes não foram construídos segundo um “modelo” que lhes teria prescrito a matematização ou a mecanização da natureza; constituíram-se e dispuseram-se sobre o fundo de uma possibilidade geral: aquela que permitia estabelecer entre as representações um quadro ordenado das identidades e das diferenças. 

É a dissolução, nos últimos anos do século XVIII, desse campo homogêneo de representações ordenáveis, que faz aparecer, correlativamente, duas formas novas de pensamentos. 

Uma interroga as condições de uma relação entre as representações do lado do que as torna em geral possíveis: põe assim a descoberto um campo transcendental onde 

  • o sujeito, 

que jamais é dado à experiência (pois não é empírico),
mas que é infinito (pois não tem intuição intelectual), 

  • determina na sua relação com um objeto = x todas as condições formais da experiência em geral; 

é a análise do sujeito transcendental que extrai o fundamento de uma síntese possível entre as representações. 

Em face dessa abertura para o transcendental, e simetricamente a ela, uma outra forma de pensamento interroga as condições de uma relação entre as representações do lado do ser mesmo que aí se acha representado: 

o que, no horizonte de todas as representações atuais, se indica por si mesmo como o fundamento da unidade delas são esses objetos jamais objetiváveis, essas representações jamais inteiramente representáveis, essas visibilidades ao mesmo tempo manifestas e invisíveis, essas realidades que estão em recuo na medida mesma em que são fundadoras daquilo que se oferece e se adianta até nós: 

  • a potência de trabalho, 
  • a força da vida, 
  • o poder de falar. 

É a partir dessas formas que rondam nos limites exteriores de nossa experiência 

  • que o valor das coisas, 
  • a organização dos seres vivos, 
  • a estrutura gramatical e a afinidade histórica das línguas 

vêm até nossas representações e solicitam de nós a tarefa talvez infinita do conhecimento. 

Buscam-se assim 

  • as condições de possibilidade da experiência 
  • nas condições de possibilidade do objeto e de sua existência, 

ao passo que, na reflexão transcendental, 

  • identificam-se as condições de possibilidade dos objetos da experiência 
  • às condições de possibilidade da própria experiência. 

A positividade nova das ciências da vida, da linguagem e da economia está em correspondência com a instauração de uma filosofia transcendental. 

O trabalho, a vida e a linguagem aparecem como tantos “transcendentais”, que tornam possível o conhecimento objetivo dos seres vivos, das leis da produção, das formas da linguagem. 

Em seu ser, estão fora do conhecimento, mas são, por isso mesmo, condições de conhecimentos; correspondem à descoberta, por Kant, de um campo transcendental e, no entanto, dele diferem em dois pontos essenciais: 

  • alojam-se do lado do objeto e, de certo modo, além dele; como a Ideia na Dialética transcendental, totalizam os fenômenos e dizem a coerência a priori das multiplicidades empíricas; 
  • fundam-nas, porém, num ser cuja realidade enigmática constitui, antes de todo conhecimento, a ordem e o liame daquilo que se presta a conhecer; 
  • ademais, eles concernem
    • ao domínio das verdades a posteriori e aos princípios de sua síntese – 
    • e não à síntese a priori de toda experiência possível. 

A primeira diferença (o fato de estarem os transcendentais alojados do lado do objeto) explica o nascimento dessas metafisicas que, apesar de sua cronologia pós-kantiana, aparecem como “pré-críticas”: 

com efeito, elas se desviam da análise das condições do conhecimento tais como se podem desvelar no nível da subjetividade transcendental; mas essas metafisicas se desenvolvem a partir de transcendentais objetivos (a Palavra de Deus, a Vontade, a Vida), que só são possíveis na medida em que o domínio da representação se acha previamente limitado; elas têm, portanto, o mesmo solo arqueológico que a própria Crítica. 

A segunda diferença (o fato de que esses transcendentais concernem às sínteses a posteriori) explica o aparecimento de um “positivismo”: 

é dada à experiência toda uma camada de fenômenos cuja racionalidade e cujo encadeamento repousam sobre um fundamento objetivo que não é possível trazer à luz; podem-se conhecer não as substâncias, mas os fenômenos; não as essências, mas as leis; não os seres, mas suas regularidades.

Instaura-se assim, a partir da crítica – ou, antes, a partir desse desnível do ser em relação à representação, de que o kantismo é a primeira constatação filosófica – uma correlação fundamental: 

  • de um lado, metafisicas do objeto, mais exatamente, metafisicas desse fundo jamais objetivável donde vêm os objetos ao nosso conhecimento superficial; 
  • e, do outro, filosofias que se dão por tarefa unicamente a observação daquilo mesmo que é dado a um conhecimento positivo. 

Vê-se de que modo os dois termos dessa oposição se dão apoio e se reforçam um ao outro; 

  • é no tesouro dos conhecimentos positivos (e sobretudo daqueles que a biologia, a economia ou a filologia podem liberar) 
  • que as metafisicas dos “fundos” ou dos “transcendentais” objetivos encontrarão seu ponto de investida; 

e, inversamente, 

  • é na divisão entre o fundo incognoscível e a racionalidade do cognoscível 
  • que os positivismos encontrarão sua justificação. 

O triângulo crítica-positivismo-metafisica do objeto é constitutivo do pensamento europeu desde o começo do século XIX até Bergson. 

Uma tal organização está ligada, na sua possibilidade arqueológica, à emergência desses campos empíricos de que, doravante, a pura e simples análise interna da representação não pode mais explicar. 

Ela é, portanto, correlativa de um certo número de disposições próprias à epistémê moderna. Antes de mais, vem à luz um tema que até então permanecera informulado, e, a bem dizer, inexistente. 

Pode parecer estranho que na época clássica não se tenha tentado matematizar as ciências de observação, ou os conhecimentos gramaticais, ou a experiência econômica. Como se a matematização galileana da natureza e o fundamento da mecânica fossem por si sós suficientes para cumprir o projeto de uma máthêsis. 

Não há nisso nada de paradoxal: a análise das representações segundo suas identidades e suas diferenças, sua ordenação em quadros permanentes situavam, de pleno direito, as ciências do qualitativo no campo de uma máthêsis universal. 

No fim do século XVIII, produz-se uma divisão fundamental e nova: 

  • agora que o liame das representações já não se estabelece no movimento mesmo que as decompõe, 
  • as disciplinas analíticas acham-se epistemologicamente distintas daquelas que devem recorrer à síntese. 

Ter-se-á, pois, 

  • um campo de ciências a priori, de ciências formais e puras, de ciências dedutivas que são da alçada da lógica e das matemáticas: 
  • por outro lado, vê-se destacar um domínio de ciências a posteriori, de ciências empíricas que só utilizam as formas dedutivas por fragmentos e em regiões estreitamente localizadas. 

Ora, essa divisão tem por consequência a preocupação epistemológica de reencontrar em outro nível a unidade que se perdera com a dissociação da máthêsis e da ciência universal da ordem. 

Daí certo número de esforços que caracterizam a reflexão moderna sobre as ciências: 

  • a classificação dos domínios do saber a partir das matemáticas, e a hierarquia que se instaura para se dirigir progressivamente ao mais complexo e ao menos exato; 
  • a reflexão sobre os métodos empíricos da indução e o esforço para, ao mesmo tempo,
    • fundá-los filosoficamente
    • e justificá-los de um ponto de vista formal; 
  • a tentativa para purificar, formalizar e talvez matematizar os domínios da economia, da biologia e finalmente da própria linguística. 

Contrapondo-se a essas tentativas para reconstituir um campo epistemológico unitário, encontra-se, em intervalos regulares, a afirmação de uma impossibilidade: 

esta seria devida 

  • quer a uma especificidade irredutível da vida (que se tenta cingir sobretudo no começo do século XIX), 
  • quer ao caráter singular das ciências humanas que resistiriam a toda redução metodológica (resistência essa que se tenta definir e medir sobretudo na segunda metade do século XIX). 

Sem dúvida, nessa dupla afirmação,
alternada ou simultânea,
de poder e de não poder
formalizar o empírico,
é preciso reconhecer o traço
desse acontecimento profundo que,
por volta do fim do século XVIII,
apartou do espaço das representações
a possibilidade da síntese. 

É esse acontecimento que coloca a formalização, ou a matematização, no cerne de todo projeto científico moderno; é ele igualmente que explica por que toda matematização apressada ou toda formalização ingênua do empírico torna a feição de um dogmatismo “pré-crítico”, e ressoa no pensamento como um retomo à insipidez da Ideologia. 

Seria preciso evocar ainda um segundo caráter da epistémê moderna. 

Durante a idade clássica, a relação constante e fundamental do saber, mesmo empírico, com uma máthêsis universal, justificava o projeto, incessantemente retomado sob formas diversas, de um corpus enfim unificado dos conhecimentos; esse projeto tomou alternativamente, mas sem que seu fundamento tenha sido modificado, a feição 

  • quer de uma ciência geral do movimento, 
  • quer de uma característica universal, 
  • quer de uma língua refletida e reconstituída em todos os seus valores de análise e em todas as suas possibilidades de sintaxe, 
  • quer, finalmente, de uma Enciclopédia alfabética ou analítica do saber; 

pouco importa que essas tentativas não tenham sido levadas a cabo ou que não tenham cumprido inteiramente o desígnio que as fizera nascer: manifestavam todas, na superfície visível dos acontecimentos ou dos textos, a profunda unidade que a idade clássica instaurara ao dar como suporte arqueológico ao saber a análise das identidades e das diferenças e a possibilidade universal da ordenação. 

De sorte que Descartes, Leibniz, Diderot e D’Alembert, naquilo que se pode chamar seu fracasso, em sua obra suspensa ou desviada, permaneciam o mais próximo possível do que era constitutivo do pensamento clássico. 

A partir do século XIX, a unidade da máthêsis é rompida.

 Duas vezes rompida: 

  • por um lado, segundo a linha que divide as formas puras da análise e as leis da síntese, 
  • por outro lado, segundo a linha que separa, quando se trata de fundar as sínteses,
    • a subjetividade transcendental
    • e o modo de ser dos objetos.

 Essas duas formas de ruptura fazem nascer duas séries de tentativas em que certo intuito de universalidade parece fazer eco aos empreendimentos cartesiano e leibniziano.

Porém, observando-se um pouco mais de perto, a unificação do campo do conhecimento não tem e não pode ter, no século XIX, nem as mesmas formas, nem as mesmas pretensões, nem os mesmos fundamentos que na época clássica. 

Na época de Descartes ou de Leibniz, a transparência recíproca entre o saber e a filosofia era total, a ponto de a universalização do saber num pensamento filosófico não exigir um modo de reflexão específica. 

A partir de Kant, o problema é inteiramente diverso; o saber não pode mais desenvolver-se sobre o fundo unificado e unificador de uma máthêsis. 

Por um lado, coloca-se o problema das relações entre o campo formal e o campo transcendental (e nesse nível todos os conteúdos empíricos do saber são postos entre parênteses e permanecem em suspenso no que diz respeito a toda validade); 

e, por outro lado, coloca-se o problema das relações entre o domínio da empiricidade e o fundamento transcendental do conhecimento (então, a ordem pura do formal é posta de lado como não-pertinente para explicar essa região onde se funda toda experiência, mesmo aquela das formas puras do pensamento). 

Mas, num caso como noutro, o pensamento filosófico da universalidade não está no mesmo nível que o campo do saber real; constitui-se, 

  • quer como uma reflexão pura suscetível de fundar, 
  • quer como uma retomada capaz de desvelar: 

A primeira forma de filosofia manifestou-se de início no empreendimento fichtiano em que a totalidade do domínio transcendental é geneticamente deduzida das leis puras, universais e vazias do pensamento: por aí se abriu um campo de pesquisas por onde se tenta, 

  • quer reduzir toda reflexão transcendental à análise dos formalismos, 
  • quer descobrir na subjetividade transcendental o solo de possibilidade de todo formalismo. 

Quanto à outra abertura filosófica, apareceu primeiramente com a fenomenologia hegeliana, quando a totalidade do domínio empírico foi retomada no interior de uma consciência que se revela a si própria como espírito, isto é, como campo ao mesmo tempo empírico e transcendental. 

Vê-se de que modo a tarefa fenomenológica, em que Husserl bem mais tarde se fixará, está ligada, no âmago de suas possibilidades e de suas impossibilidades, ao destino da filosofia ocidental tal como ele se estabeleceu desde o século XIX. 

Com efeito, ela tenta assentar os direitos e os limites de uma lógica formal numa reflexão de tipo transcendental e, por outro lado, ligar a subjetividade transcendental ao horizonte implícito dos conteúdos empíricos que só ela tem possibilidade de constituir, manter e abrir mediante explicitações infinitas. 

Mas talvez não escape ela ao perigo que ameaça, antes mesmo da fenomenologia, todo empreendimento dialético, e a faz, queira ou não, resvalar numa antropologia. 

Sem dúvida, não é possível conferir valor transcendental aos conteúdos empíricos nem deslocá-los para o lado de uma subjetividade constituinte, sem dar lugar, ao menos silenciosamente, a uma antropologia, isto é, a um modo de pensamento em que os limites de direito do conhecimento (e, conseqüentemente, de todo saber empírico) são ao mesmo tempo as formas concretas da existência, tais como elas se dão precisamente nesse mesmo saber empírico. 

As conseqüências mais longínquas e, para nós, as mais difíceis de circunscrever, do acontecimento fundamental que sobreveio à epistémê ocidental por volta do fim do século XVllI, podem assim se resumir: 

  • negativamente, o domínio das formas puras do conhecimento se isola, assumindo ao mesmo tempo autonomia e soberania em relação a todo saber empírico, fazendo nascer e renascer indefinidamente o projeto de formalizar o concreto e de constituir, a despeito de tudo, ciências puras; 
  • positivamente, os domínios empíricos se ligam a reflexões sobre a subjetividade, o ser humano e a finitude, assumindo valor e função de filosofia, tanto quanto de redução da filosofia ou de contrafilosofia.