“Esse acontecimento, sem dúvida porque estamos ainda presos na sua abertura, nos escapa em grande parte. Sua amplitude, as camadas profundas que atingiu, todas as positividades que ele pode subverter e recompor, a potência soberana que lhe permitiu atravessar, em alguns anos apenas, o espaço inteiro de nossa cultura, tudo isso só poderia ser estimado e medido ao termo de uma inquirição quase infinita que só concerniria, nem mais nem menos, ao ser mesmo de nossa modernidade.
A constituição de tantas ciências positivas, o aparecimento da literatura, a volta da filosofia sobre seu próprio devir, a emergência da história ao mesmo tempo como saber e como modo de ser da empiricidade, não são mais que sinais de uma ruptura profunda.
Sinais dispersos no espaço do saber, pois que se deixam perceber na formação, aqui de uma filologia, ali de uma economia política, ali ainda de uma biologia.
Dispersão também na cronologia: certamente, o conjunto do fenômeno se situa entre datas facilmente assinaláveis
- (os pontos extremos são
os anos 1775 e 1825);
podem-se porém reconhecer, em cada um dos domínios estudados, duas fases sucessivas que se articulam uma à outra, mais ou menos por volta dos anos 1795-1800.
Na primeira dessas fases, o modo de ser fundamental das positividades não muda; as riquezas dos homens, as espécies da natureza, as palavras de que as línguas são povoadas permanecem ainda o que eram na idade clássica: representações duplicadas – representações cujo papel consiste em designar representações, analisá-las, decompô-las e compô-las, para fazer nelas surgir, com o sistema de suas identidades e de suas diferenças, o princípio geral de uma ordem.
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