Carta ao site ‘Inconsciente coletivo’

Carta ao site 'Inconsciente coletivo'

O prefácio do ‘As palavras e as coisas’

Desde o Prefácio do ‘As palavras e as coisas’ Foucault nos oferece dois momentos muito ricos:

Essa animação pretende associar as ideias encontradas nesse texto, e respectivos elementos de imagem, plotados em figuras, a modelos de operações e de organizações existentes, que permitem reduzir seu alto grau de abstração e com isso facilitam o entendimento daquilo que Foucault coloca diante de nós com esse livro e ressalta a força da sua arqueologia.

A animação à qual o link acima dá acesso tem 7 min:27 seg de duração procurando relacionar o texto com modelos de operações e suas estruturas. E fala de coisas como:

  • Limites do nosso pensamento pela comparação quase que caricatural com outra configuração de pensamento e a impossibilidade de pensar determinadas coisas;
    • – Que coisa é impossível pensar? e
    • – De que impossibilidades se trata? 
  • Que há desordem pior do que a do incongruente e a da aproximação do que não convém:

é a desordem em que consistem os fragmentos de um grande número de ordens possíveis todas presentes na dimensão sem lei nem geometria do heteróclito,
(a animação mostra um par de modelos, um para a operações de produção e outro para uma organização empresarial típica, na qual esse grande número de ordens fica evidenciado)

·     o papel fundamental das Utopias no pensamento

·      a inquietação causada pelas heterotopias (modelos clássicos em geral) que:

    • solapam secretamente a linguagem
    • impedem de nomear isto e aquilo;
    • fracionam os nomes comuns ou os emaranham;
    • arruínam de antemão a sintaxe –
      (note bem, arruínam duas sintaxes e não apenas uma!):
      • não somente aquela sintaxe que constrói as frases;
      • mas aquela outra sintaxe, menos manifesta, que autoriza manter juntas, ao lado e em frente, umas das outras, as palavras e as coisas.
        (esta sintaxe só funciona na configuração do pensamento moderno, o de depois de 1825, e com a noção de objeto presente na estrutura do modelo de operações)


A – A minha questão propriamente dita

Falta um alinhamento filosófico entre argumentos usados nas discussões feitas sobre teorias, modelos e sistemas relacionados ao liberalismo e variantes, e isso não se restringe à discussão conduzida no vídeo 254.

como ademais, alinhamento desse tipo não costuma ser feito generalizadamente em discussões desse tipo, como se pode ver adiante 
    • pelo uso unanime no domínio da economia, de conceitos característicos do pensamento filosófico clássico, o de antes de 1775, segundo Michel Foucault, como ‘Mercado‘, ‘Processo‘, ‘Riquezas‘;
    • e pela não utilização, também unânime, de conceitos que caracterizam a configuração de pensamento surgida depois de 1825, segundo esse mesmo autor, como
      Lugar de nascimento do que é empírico’, Forma de produção, e Análise de produção’

Há entre os vídeos ‘Falando nisso’ 150 e 254 tomados em conjunto, um exemplo desse tratamento inconsistente e heterogêneo porque diferente em cada um, a respeito do mesmo movimento fundamental de pensamento, presente igualmente em nossa cultura: o movimento  feito por Lacan, ao alterar, desde na representação, em que ele via estar a psicanálise de Freud, para fora da representação, na psicanálise por ele formulada, encontra congêneres em outras áreas do pensamento.

Esse movimento feito por Lacan na psicanálise não é restrito a esse domínio, mas antes caracteriza a configuração do pensamento no pós descontinuidade epistemológica situada entre os anos de 1775 e 1825, e todas as áreas do saber em nossa cultura ocidental.

Tomo esses dois vídeos, o 150 e o 254, do canal Falando nisso, de Christian Dunker, como elementos de explanação dessa questão: a necessidade de alinhamento filosófico das discussões, levando em conta as mudanças como diz Foucault ‘do modo de ser fundamental das positividades’ antes e depois desse evento ao qual esse autor atribui a força de evento fundador da nossa modernidade no pensamento.

Sobre essas discussões:

I. no vídeo Falando nisso – 150: Signo, significante e significado de 08/10/2017, 

está em destaque um movimento no pensamento feito por Lacan:

I.1 manifestado pelo incômodo dele, Lacan, com a base fundamental da psicanálise de Freud, que ele via como sediada na representação;

I.2 e consumado pela decisão dele de criar uma outra psicanálise, no campo da linguagem, usando conceitos atinentes à fala, e agora sediada fora da representação.

II. no vídeo Falando nisso – 254: Neoliberalismo e sofrimento de 31/08/2019, 

teorias, modelos e sistemas ligados ao liberalismo não são questionados quanto às respectivas bases fundamentais – se fundados na representação ou se fora dela, e portanto sem uma verificação se mudança do mesmo teor e fundamentalidade que o desse movimento de pensamento feito por Lacan na psicanálise teria ou não ocorrido com essas produções do pensamento ligadas ao liberalismo. Note-se que o vídeo 150 é anterior ao 254.

    • II.1 Faltam as necessárias verificações, a serem feitas em todo o período de tempo abrangido pela discussão, sobre quais são as bases no pensamento em que se sustentam cada uma das teorias, modelos e sistemas relacionados ao liberalismo e neoliberalismo (e suas variantes).
    • II.2 Ao final do áudio deste vídeo 254 está a afirmação de que o liberalismo envolve uma psicologia. Entretanto, ao tempo em que a alteração feita por Lacan implica em uma alteração no modo como conhecemos o que dizemos conhecer, – uma alteração epistemológica, fica-se à espera do surgimento de mais do que uma psicologia, do mesmo modo que teríamos, e coexistentes, duas psicanálises diferentes.

Reflexões sobre o movimento feito por Lacan em sua psicanálise – desde modelo com base na representação para modelo baseado fora dela  

À primeira vista podem parecer duas coisas:

  • que a psicanálise de Lacan está ‘na linguagem’ e modelada com elementos atinentes à fala; e que a de Freud não está, ou que esta independa da linguagem ao contrário daquela.
  • e que a representação é a base da psicanálise de Freud, mas que a psicanálise de Lacan prescinde totalmente dessa ideia de representação, o que é falso.

Esta ideia, a representação, está em ambas as duas psicanálises, como não poderia deixar de ser dada a nossa condição humana. E a linguagem também está presente em ambas, obviamente, e o que muda é a configuração da linguagem usada em cada caso; melhor dizendo, muda a origem do valor carregado pela proposição às representações, em cada caso. E valor é o parâmetro que é considerado na decisão sobre se a troca pode ou não ser efetuada.

Dado que a alteração feita por Lacan em sua psicanálise está em que as proposições na linguagem por ele escolhida, carregam às representações valor cuja origem é externa à linguagem. Essa origem externa à linguagem do valor carregado na representação permite uma operação – de qualquer tipo inclusive de troca – muito mais ampla, porque pode se iniciar em um ponto em que a representação não existe. 

E aí está o interesse dessa linguagem, porque ela permite vislumbrar uma operação de troca que no lugar de analisar assim, diretamente, a troca de um objeto por outro, permite prospectar a permutabilidade de um objeto cuja representação ainda não existe, e dependendo dessa prospecção, levar o objeto ao Circuito das trocas, ou ao Mercado. 

Ou seja, a operação clássica do pensamento, que tinha como pressuposto a existência de todas as representações no início da operação, agora foi muito ampliada – exatamente pela alteração feita na linguagem, para considerar a operação de construção de representações para objetos ainda não representados.

O significado e o funcionamento do movimento feito por Lacan na psicanálise, à luz do pensamento de Michel Foucault no livro ‘As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas.

Michel Foucault discorre sobre o significado e o funcionamento, com as razões e porquês, de um movimento de pensamento como o feito por Lacan e descreve

as duas possibilidades de leitura do fenômeno ‘operações’ e as correspondentes origens de valor das proposições e da representação tanto na linguagem da psicanálise de Freud como na outra linguagem sobre a qual estaria a psicanálise de Lacan. Esse texto está em ‘As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas, no Capítulo 6 – Trocar; tópico V. A formação do valor.

Por atingir a linguagem em seu âmago – nas origens do valor atribuído à proposição e carregado por ela para a representação, esse movimento é absolutamente geral e atinge todas as regiões do saber. Em resumo, o pensamento de Foucault nesse texto diz o seguinte:

Uma operação de troca envolve dois objetos, um deles dado pelo outro em operação de troca. Essa operação de troca, como fenômeno, guarda, portanto, relação próxima com as operações de obtenção de cada um desses dois objetos.

Podemos ver o que sejam operações, – sejam elas as de troca ou aquelas outras de obtenção de objetos eventualmente destinados a operações de trocas, segundo duas possibilidades de inserção do ponto de início de leitura dos fenômenos ‘operações’ e ‘operações de troca’. A escolha do posicionamento desses pontos de início de leitura do fenômeno operações, as de obtenção ou as de troca, é feita (se nos posicionamos do ponto de vista da troca) em função da disponibilidade ou não dos dois objetos requeridos para que essa operação de troca possa ocorrer,

  • Se sim, existem os dois objetos requeridos pela operação de troca: 

o ponto de leitura da operação pode ser posicionado no exato momento do cruzamento (do andamento das respectivas operações de obtenção) entre o que é dado e o que é recebido na operação de troca; ou então

  • Se não existe pelo menos um dos objetos requeridos pela operação de troca: 

o ponto de leitura da operação precisa ser posicionado antes desse momento do cruzamento quando o objeto ainda não existe; e nesse momento inicia-se a prospecção da permutabilidade desse objeto ainda inexistente quando sua representação for construída, instanciada, e então for levado ao Circuito das trocas (ou Mercado). Faz-se, então, uma aposta de que esse objeto poderá, no futuro, fazer par com um outro em uma operação de troca em que um é dado e outro é recebido.

Obviamente que na segunda possibilidade – objeto ainda não disponível – o valor não pode ser proveniente da representação dele, que também não existe. O pensamento precisa, então, descobrir outra origem de valor para a representação que terá de construir, e isso se dá pela incorporação daquele tipo de atividade ‘que está na origem do valor das coisas’ e que só aparece com David Ricardo. E a operação de obtenção do objeto faltante é acionada e a representação para esse objeto é construída.

A cada uma dessas possibilidades de inserção do ponto de início de leitura do fenômeno ‘operações’ corresponde uma diferente origem do valor carregado pela proposição para a representação – existente ou em construção. E valor é o parâmetro que deve ser considerado para a decisão sobre se a troca será efetivada ou não.

As duas origens de valor atribuído à proposição e por ela carregado para a representação são os seguintes:

  • no ponto de cruzamento entre o objeto que é dado e o objeto que é recebido,

o valor é atribuído diretamente à proposição que o carrega para a representação;

  • no ponto de início da prospecção da permutabilidade do objeto ainda não disponível para troca, – e portanto da operação de construção da representação para o objeto não disponível -, 

o valor é carregado para a proposição a partir de sua origem obtida em:

    • designações primitivas;
    • linguagem de ação ou raiz (linguagem de uso).

Mercado, Processo, Riquezas: unanimidades como conceitos;

falta uma cartografia do espaço em que ocorrem operações: ‘Circuito das trocas’, ‘Lugar de nascimento do que é empírico’, ‘Forma de produção’, Lugar desde onde se fala’, ‘Lugar do falado’

Há uma série de unanimidades quando se fala de teorias, modelos e sistemas ligados ao liberalismo e variantes; e ao mesmo tempo falta uma cartografia que mapeie o espaço em que ocorrem operações, seja aquelas de obtenção de coisas, sejam as operações de troca de objetos uns pelos outros:

  • A primeira é quanto à utilização da ideia de Mercado.

Entendendo Mercado como diz Foucault, como o ‘Circuito das trocas’, essa segunda possibilidade com o posicionamento do ponto de início de leitura da operação antes de o objeto estar disponível – a usada por Lacan, arrasta para o centro do cenário de operações o ‘Lugar de nascimento do que é empírico’, anterior ao ‘Circuito das trocas’ ou Mercado.

  • outra unanimidade é a ideia de Processo.

O elemento central de operações que ocorrem no ‘Circuito das trocas’, ou Mercado é Processo. 

“Assim como a Ordem no pensamento clássico não era a harmonia visível das coisas, seu ajustamento, sua regularidade ou sua simetria constatados, mas o espaço próprio de seu ser e aquilo que, antes de todo conhecimento efetivo, as estabelecia no saber, assim também a História, a partir do século XIX, define o lugar de nascimento do que é empírico, lugar onde, aquém de toda cronologia estabelecida, ele assume o ser que lhe é próprio.” As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas; Cap. 7 – Os limites da representação; tópico I – A idade da história

Michel Foucault fala de um certo ‘Lugar de nascimento do que é empírico’, lugar onde exatamente aquele objeto que ainda não está disponível para uma operação de troca, como na segunda possibilidade acima, ‘assume o ser que lhe é próprio’, isto é, tem a respectiva representação construída. Veja a citação acima.

  • Forma de produção: o elemento central do modelo de operações sob o pensamento moderno

Mas entendendo o que ocorre no ‘Lugar de nascimento do que é empírico’, com seus subespaços ‘Lugar desde onde se fala’ e ‘Lugar do falado’, vemos que o elemento central desta operação de obtenção do objeto faltante para troca,  que pode ser entendida como uma prospecção da permutabilidade desse objeto, esse elemento central agora é ‘Forma de produção’ em vez de ‘Processo’. E logo será possível associar ‘Lugar de nascimento do que é empírico’ e ‘Forma de produção’;  e estas duas ideias, ao Princípio Dual de Trabalho de David Ricardo.

E praticamente ninguém fala do que seja ‘Lugar de nascimento do que é empírico’, e pouco se fala de ‘Forma de produção‘ porque não cabem no pensamento monolítico de Adam Smith.

Processo e Forma de produção como verbos, segundo a teoria do verbo no ‘As palavras e as coisas’ de Michel Foucault

Com a intenção de diminuir possíveis dúvidas entre os conceitos de ‘Processo’ e o de ‘Forma de produção’, essas duas ideias, elementos centrais em configurações de pensamento diferentes, têm a natureza de verbos. Pois veja abaixo dois tratamentos dados por Foucault a verbos.

  • Para o verbo ‘Processo’

“A única coisa que o verbo afirma é a coexistência de duas representações: por exemplo, a do verde e da árvore, a do homem e da existência ou da morte; é por isso que o tempo dos verbos não indica aquele em que as coisas existiram no absoluto, mas um sistema relativo de anterioridade ou de simultaneidade das coisas entre si.” As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas; Cap. IV – Falar; tópico III.  A teoria do verbo

Não por acaso, a estrutura Input-Output e seu sistema combinam à perfeição com um sistema relativo de anterioridade ou de simultaneidade das coisas entre si, e a visão de operações como uma transformação de Entradas em Saídas.

  • Para o verbo ‘Forma de produção’

“É preciso, portanto, tratar esse verbo como um ser misto, ao mesmo tempo palavra entre as palavras, preso às mesmas regras, obedecendo como elas às leis de regência e de concordância; e depois, em recuo em relação a elas todas, numa região que não é aquela do falado mas aquela donde se fala.” As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas; Cap. IV – Falar; tópico III.  A teoria do verbo

Estamos diante da Forma de produção, um ser misto que habita o interior do ‘Lugar de nascimento do que é empírico’, e neste, o interior do ‘Lugar desde onde se fala’, pertencente ao domínio do Pensamento e da Língua.

  • e há uma unanimidade fortemente associada às teorias liberais: Riquezas

“Nem vida, nem ciência da vida na época clássica;
tampouco filologia.
Mas sim uma história natural, uma gramática geral.

Do mesmo modo, não há economia política
porque, na ordem do saber, a produção não existe.

Em contrapartida, existe, nos séculos XVII e XVIII,
uma noção que nos permaneceu familiar,
embora tenha perdido para nós sua precisão essencial.

Nem é de “noção” que se deveria falar a seu respeito,
pois não tem lugar no interior de um jogo de conceitos econômicos
que ela deslocaria levemente, confiscando um pouco de seu sentido
ou corroendo sua extensão.

Trata-se antes de um domínio geral:
de uma camada bastante coerente e muito bem estratificada,
que compreende e aloja, como tantos objetos parciais,
as noções de valor, de preço, de comércio, de circulação, de renda, de interesse.

Esse domínio, solo e objeto da “economia” na idade clássica, é o da riqueza.

Inútil colocar-lhe questões vindas de uma economia de tipo diferente, organizada, por exemplo, em torno da produção ou do trabalho; inútil igualmente analisar seus diversos conceitos (mesmo e sobretudo se seus nomes em seguida se perpetuaram, com alguma analogia de sentido), sem levar em conta o sistema em que assumem sua positividade.”  As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas; Cap. 6 – Trocar; tópico I – A análise das riquezas

As visões de operações de todo tipo, incluindo as operações de troca envolvendo pares de objetos, quando na representação e quando fora da representação

Essas duas possibilidades de leitura da operação de troca correspondem a visões do fenômeno da troca e das operações de obtenção e de instanciamento dos dois objetos envolvidos e portanto são refletidas nos modelos das operações que ocorrem em cada caso. O fenômeno da troca sobrepõe-se ao fenômeno da obtenção e instanciamento respectivamente dos dois objetos.

Relação dessas duas visões de operações e de origens da linguagem com o pensamento de Adam Smith e David Ricardo

Podemos considerar o fenômeno operações como operação de obtenção de objeto, simplesmente, e também como operação de troca, com o par de objetos que também precisam ser obtidos. O posicionamento do ponto inicial de leitura do fenômeno operações, – nos dois casos -, pode ser feito no ponto em que um dos objetos envolvidos na troca ainda não está disponível, antes da possibilidade da troca. Isso implica em uma formidável ampliação da visão que temos do fenômeno ‘operação’ e ‘operação de troca’.

A visão desse fenômeno se expande e passa a incluir todo o caminho da Construção da representação (projeto) do objeto ainda não disponível.

Esse ponto de início está posicionado antes do momento em que uma troca é possível.

Pois foi exatamente essa formidável expansão de horizontes tanto na ‘operação de obtenção’ de um dos objetos, como também na ‘operação de troca’ de um par de objetos um pelo outro, em que esse objeto esteja envolvido, que foi feita por David Ricardo, em 1817, ampliando o conceito de trabalho se tivermos como referência o pensamento de Adam Smith, de 1776.

E exatamente por isso Ricardo e Smith não podem ser tratados em um mesmo bloco.

Se a cartilha do liberalismo for a de Adam Smith e Locke, como comumente se propala, Ricardo está fora.

Não pertencem ao mesmo bloco se considerarmos como critério o modo como cada um deles ‘conhece’ o que seja trabalho, epistemologicamente distinto. Não dá para entender uma teoria, modelo ou sistema que tenha como fundadores simultaneamente Smith e Ricardo sem perceber que, a despeito de muitas semelhanças e congruências, toma-los no mesmo bloco é desconhecer o movimento feito por Lacan na psicanálise.

Veja nesta página os dois princípios de trabalho, o de Adam Smith, de 1776, e o de David Ricardo, de 1817, posicionados por Michel Foucault de lados opostos da Descontinuidade epistemológica por ele situada entre os anos de 1775 e 1825.

 B – A ausência do homem nas teorias, modelos e sistemas sob o pensamento filosófico clássico, o de antes de 1775, segundo Michel Foucault

Michel Foucault é direto, claro e taxativo sem deixar margem a dúvidas. Veja as seguintes citações dele no ‘As palavras e as coisas”:

“Antes do fim do século XVIII, o homem não existia. Não mais que a potência da vida, a fecundidade do trabalho ou a espessura histórica da linguagem. É uma criatura muito recente que a demiurgia do saber fabricou com suas mãos há menos de 200 anos: mas ele envelheceu tão depressa que facilmente se imaginou que ele esperara na sombra, durante milênios, o momento de iluminação em que seria enfim conhecido. Certamente poder-se-ia dizer que a gramática geral, a história natural, a análise das riquezas eram, num certo sentido, maneiras de reconhecer o homem, mas é preciso discernir. Sem dúvida, as ciências naturais trataram do homem como de uma espécie ou de um gênero: a discussão sobre o problema das raças, no século XVIII, o testemunha.  As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas; Cap. IX – O homem e seus duplos; tópico II – O lugar do rei


“É por isso, sem dúvida, que a história natural, na época clássica, não se pode constituir como biologia. Com efeito, até o fim do século XVIII, a vida não existe. Apenas existem seres vivos. Estes formam uma, ou antes, várias classes na série de todas as coisas do mundo: e se se pode falar da vida, é somente como de um caráter – no sentido taxinômico da palavra – na universal distribuição dos seres.” Cap. V – Classificar; VII – O discurso da natureza

O surgimento do homem em nossa cultura: o tipo de reflexão que se instaura em nossa cultura, marcando a entrada em nossa modernidade no pensamento

“Instaura-se uma forma de reflexão, bastante afastada do cartesianismo e da análise kantiana, em que está em questão, pela primeira vez, o ser do homem, nessa dimensão segundo a qual o pensamento, se dirige ao impensado, e com ele se articula.” Cap. 9. O homem e seus duplos; tópico V – O “cogito” e o impensado

“A partir de Ricardo, o trabalho, desnivelado em relação à representação, e instalando-se em uma região onde ela não tem mais domínio, organiza-se segundo uma causalidade que lhe é própria.”  Cap. 8. Trabalho, Vida e Linguagem; tópico II. Ricardo

Todos os autores considerados como fundamentos do liberalismo estão posicionados por Foucault no período clássico do pensamento filosófico em nossa cultura.

C – Os dois obstáculos enfrentados por Foucault: a impossibilidade de fundar as sínteses no espaço da representação e a obrigação de constituir, para além do objeto, os quase transcendentais Vida, Trabalho e Linguagem:

  • obstáculo 1: a impossibilidade encontrada em certa configuração do pensamento, de fundar as sínteses  – do objeto da operação de pensamento, através de sua representação (projeto) -,
    no espaço da representação;
  • obstáculo 2: a obrigação de abrir o campo transcendental da subjetividade e constituir, para além do objeto, dos quase-transcendentais Vida, Trabalho e Linguagem

um espectro de modelos pode ser traçado entendendo esses obstáculos descritos por Foucault

Esses são os dois obstáculos ou pedras de tropeço que Foucault teve de enfrentar em seu trabalho no ‘As palavras e as coisas’. Veja aqui o que ele diz:

“Eis que nos adiantamos bem para além do acontecimento histórico que se impunha situar – bem para além das margens cronológicas dessa ruptura que divide, em sua profundidade, a epistémê do mundo ocidental e isola para nós o começo de certa maneira moderna de conhecer as empiricidades. É que o pensamento que nos é contemporâneo e com o qual, queiramos ou não, pensamos, se acha ainda muito dominado pela impossibilidade, trazida à luz por volta do fim do século XVIII, de fundar as sínteses no espaço da representação e pela obrigação correlativa, simultânea, mas logo dividida contra si mesma, de abrir o campo transcendental da subjetividade e de constituir inversamente, para além do objeto, esses “quase-transcendentais” que são para nós a Vida, o Trabalho, a Linguagem.” Cap. 8 – Trabalho, Vida e Linguagem; tópico I – As novas empiricidades

Segmentos de um espectro de modelos:

  • AQUÉM do objeto: modelos incapazes de fundar as sínteses no espaço da representação
  • DIANTE do objeto: modelos capazes de fundar as sínteses no espaço da representação;
  • Para ALÉM do objeto: modelos nos quais os “quase-transcendentais Vida, Trabalho e Linguagem estão constituídos

Um primeiro critério ‘macro’ para separar teorias, modelos e sistemas quanto a suas propriedades originais e constitutivas.

D – Adam Smith e David Ricardo

“Na análise de Adam Smith, o trabalho devia seu privilégio ao poder que se lhe reconhecia de estabelecer entre os valores das coisas uma medida constante: permitia fazer equivaler na troca objetos de necessidade cujo aferimento de outro modo teria sido exposto à mudança ou submetido a uma essencial relatividade. No entanto, só podia assumir tal papel à custa de uma condição: era preciso supor que a quantidade de trabalho indispensável para produzir uma coisa fosse igual à quantidade de trabalho que essa coisa, em retorno, pudesse comprar no processo da troca. Ora, como justificar essa identidade, em que fundá-la a não ser sobre uma certa assimilação, admitida na sombra mais que esclarecida, entre o trabalho como atividade de produção e o trabalho como mercadoria que se pode comprar e vender? Nesse segundo sentido, ele não pode ser utilizado como medida constante, pois “experimenta tantas variações quanto as mercadorias ou bens com os quais pode ser comparado”1. Essa confusão, em Adam Smith, tinha sua origem no primado concedido à representação: toda mercadoria representava certo trabalho, e todo trabalho podia representar certa quantidade de mercadoria. A atividade dos homens e o valor das coisas comunicavam-se no elemento transparente da representação. É aí que a análise de Ricardo encontra seu lugar e a razão de sua importância decisiva. Ela não é a primeira a organizar um lugar importante para o trabalho no jogo da economia; mas faz explodir a unidade da noção, e distingue, pela primeira vez, de uma forma radical, essa força, esse esforço, esse tempo do operário que se compram e se vendem, e essa atividade que está na origem do valor das coisas. Ter-se-á pois, por um lado, o trabalho que os operários oferecem, que os empresários aceitam ou demandam e que é retribuído pelos salários; por outro, ter-se-á o trabalho que extrai os metais, produz os bens, fabrica os objetos, transporta as mercadorias e forma assim valores permutáveis que antes dele não existiam e sem ele não teriam aparecido. Certamente, para Ricardo como para Smith, o trabalho pode realmente medir a equivalência das mercadorias que passam pelo circuito das trocas: “Na infância das sociedades, o valor permutável das coisas ou a regra que fixa a quantidade que se deve dar de um objeto por outro só depende da quantidade comparativa de trabalho que foi empregada na produção de cada um deles.” A diferença, porém, entre Smith e Ricardo está no seguinte: para o primeiro, o trabalho, porque analisável em jornadas de subsistência, pode servir de unidade comum a todas as outras mercadorias (de que fazem parte os próprios bens necessários à subsistência); para o segundo, a quantidade de trabalho permite fixar o valor de uma coisa, não apenas porque este seja representável em unidades de trabalho, mas primeiro e fundamentalmente porque o trabalho como atividade de produção é “a fonte de todo valor”. Já não pode este ser definido, como na idade clássica, a partir do sistema total de equivalências e da capacidade que podem ter as mercadorias de se representarem umas às outras. O valor deixou de ser signo, tomou-se um produto.” Cap. 8 – Trabalho, Vida e Linguagem; tópico II. Ricardo

Insistindo com 4 citações de Foucault e comentários

Insistindo com Christian, com 4 citações de Foucault

Insisto em que leia o comentário que fiz sobre os objetos dos temas abordados nos vídeos Falando nisso 150 e 254, buscando estabelecer entre eles um paralelo. Faço isso antes de tudo pelo seu trabalho, pela sua capacidade de comunicação com as pessoas, pela seriedade que todo esse seu comportamento me transmite. 

Eu vejo o ‘As palavras e as coisas’ um livro seminal. Quem lê esse livro e entende o que nele é dito, não volta mais a ser o mesmo depois disso.

Isso significa entre outras coisas o seguinte:

Há uma unanimidade na utilização frequente de certas ideias quando se trata de modelos sócio-econômico-políticos: Mercado, Processo, Riquezas são largamente usados.

Mas ‘em Foucault’ como dizem os acadêmicos, 

  • Mercado nos remete imediatamente ao ‘Circuito das trocas’; 
  • Processo nos remete a um tipo de verbo que atua sobre um sistema relativo de anterioridade ou simultaneidade  das coisas entre si – a famosa estrutura Input-Output; 
  • e Riquezas nos remete não a um conceito mas a um domínio confuso que abrange uma quantidade de conceitos todos sob o pensamento clássico, o de antes de 1775.

E há uma outra unanimidade, agora da não utilização de outros conceitos: Lugar de nascimento do que é empírico, Forma de produção, a estrutura de conceitos do pensamento moderno, o de depois de 1825 que integram a Análise da produção.

Lugar de nascimento do que é empírico; Forma de produção; Análise da produção 

Dou a palavra a Michel Foucault em quatro passagens desse grande livro e depois comento rapidamente:

  1. “Antes do fim do século XVIII, o homem não existia. Não mais que a potência da vida, a fecundidade do trabalho ou a espessura histórica da linguagem. (…) Certamente poder-se-ia dizer que a gramática geral, a história natural, a análise das riquezas eram, num certo sentido, maneiras de reconhecer o homem, mas é preciso discernir. Sem dúvida, as ciências naturais trataram do homem como de uma espécie ou de um gênero: a discussão sobre o problema das raças, no século XVIII, o testemunha.” IX – O homem e seus duplos; tópico II – O lugar do rei
  2. “Nem vida, nem ciência da vida na época clássica; tampouco filologia. Mas sim uma história natural, uma gramática geral. Do mesmo modo, não há economia política porque, na ordem do saber, a produção não existe. Em contrapartida, existe, nos séculos XVII e XVIII, uma noção que nos permaneceu familiar, embora tenha perdido para nós sua precisão essencial. Nem é de “noção” que se deveria falar a seu respeito, pois não tem lugar no interior de um jogo de conceitos econômicos que ela deslocaria levemente, confiscando um pouco de seu sentido ou corroendo sua extensão. Trata-se antes de um domínio geral: de uma camada bastante coerente e muito bem estratificada, que compreende e aloja, como tantos objetos parciais, as noções de valor, de preço, de comércio, de circulação, de renda, de interesse. Esse domínio, solo e objeto da “economia” na idade clássica, é o da riqueza. Inútil colocar-lhe questões vindas de uma economia de tipo diferente, organizada, por exemplo, em torno da produção ou do trabalho; inútil igualmente analisar seus diversos conceitos (mesmo e sobretudo se seus nomes em seguida se perpetuaram, com alguma analogia de sentido), sem levar em conta o sistema em que assumem sua positividade. Cap. 6 – Trocar; tópico I – A análise das riquezas
  3. “Instaura-se uma forma de reflexão bastante afastada do cartesianismo e da análise kantiana, em que está em questão, pela primeira vez, o ser do homem, nessa dimensão segundo a qual o pensamento se dirige ao impensado e com ele se articula.” Cap. IX – O homem e seus duplos; tópico V. O “cogito” e o impensado
  4. “A partir de Ricardo, o trabalho, desnivelado em relação à representação, e instalando-se em uma região onde ela não tem mais domínio, organiza-se segundo uma causalidade que lhe é própria.” Cap. VIII. Trabalho, Vida e Linguagem; tópico II. Ricardo
  5. “Classificar, portanto, não será mais referir o visível a si mesmo, encarregando um de seus elementos de representar os outros; será, num movimento que faz revolver a análise, reportar o visível ao invisível, como à sua razão profunda, depois alçar de novo dessa secreta arquitetura em direção aos seus sinais manifestos, que são dados à superfície dos corpos.” Cap. VII – Os limites da representação; Tópico III – A organização dos seres

Sobre as citações (A), (B) e (C)

Não consigo vislumbrar como é possível falar de subjetividade ou de subjetivação hoje, nos mesmos termos de autores imersos em uma cultura em que o homem era tratado como uma espécie, ou um gênero.

E Foucault é claríssimo em posicionar Adam Smith, Locke, Hume, Bentham, Rousseau, como autores clássicos tendo como critério o tratamento dado ao homem nos respectivos trabalhos todos antes da descontinuidade epistemológica de 1775-1825. Nenhum deles utilizava esta forma de reflexão da citação (C).

Sobre as citações (C) e (D).

Eu associo – usando o pensamento de Foucault– o pensamento de Lacan em sua psicanálise fora da representação ao que dizem as citações (B) e (C):

  1. a essa forma de reflexão que se instaura (B) é também construída em região em que a representação não tem mais domínio; e
  2. E esse locus e esse tipo de organização do trabalho atribuídas a David Ricardo, cuja formulação assim como a de Lacan, instala-se em uma região onde a representação não tem mais domínio e organiza-se segundo uma causalidade que lhe é própria.

“A partir de Lacan, a psicanálise, desnivelada em relação à representação, e instalando-se em uma região onde ela não tem mais domínio, organiza-se segundo uma causalidade que lhe é própria”

Aí Michel Foucault ajuda muito: ele posiciona Adam Smith, 1776 e David Ricardo, 1817 de lados opostos de uma descontinuidade epistemológica descrita por ele como tendo ocorrido entre 1775 e 1825. Daí que a pretensão e o objetivo do vídeo 254, citando Michel Foucault como referência, não deveriam permitir o tratamento de Adam Smith e David Ricardo no mesmo bloco.

de um lado, e os autores chamados de pais do liberalismo Locke, Hume, etc. como imersos em uma cultura de antes do século XVIII,   

Discussão relacionada aos vídeos Falando nisso 150 e 254

Discussão relacionada aos vídeos Falando nisso 150 e 254

Michel Foucault em ‘As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas’ posiciona produções de pensamento baseadas na representação e desde fora dela de lados opostos com relação a uma descontinuidade epistemológica descrita por ele como tendo ocorrido entre os anos de 1775 e 1825 em nossa cultura. E identifica já no trabalho de David Ricardo, em 1817, exatamente movimento como esse percebido por Lacan, entre 1953 e 1960: abandono do primado concedido à representação e formulação a partir de uma região em que ela não tem mais domínio. Veja isso aqui.

Dado que a linguagem está presente tanto na psicanálise de Freud como na de Lacan, o movimento de pensamento de Lacan, para fazer sentido precisava formular sua psicanálise sobre uma linguagem transformada quanto às origens do valor carregado em suas proposições obtido agora desde fora da representação. 

Isso corresponde a uma alteração profunda na linguagem, que exige a instauração de uma nova forma de reflexão, e implica em uma grande extensão na visão que temos do que sejam operações no sentido amplo, e pode ser entendido como duas possibilidades de inserção do ponto de início da leitura do fenômeno operações em função da operação de troca

  • no instante da troca, no cruzamento entre o que é dado e o que é recebido; 
  • ou na prospecção da permutabilidade agora tendo como origem de valor
    • as designações primitivas 
    • e a linguagem de ação.

Quero insistir na conveniência de uma verificação da existência – entre essas teorias, modelos e sistemas relacionadas ao liberalismo e variantes -, de produções do pensamento: 

  • fundadas na representação, como o trabalho em Adam Smith, segundo Foucault e a psicanálise de Freud segundo Lacan, 
  • e também de outras fundadas fora da representação, como o trabalho em David Ricardo, segundo Foucault e a psicanálise na visão de Lacan, 

verificação esta feita em todo o extenso período de tempo abrangido pela discussão no vídeo 254. 

Como dito, ao fazer essa referência tenho em mente o livro ‘As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas’ de Michel Foucault, que também tenho estudado, e ainda um desenvolvimento com o título ‘Projeto Formulador’. Com esses elementos  e com esse escopo, faço um resumo do que poderia ser um cotejo  entre as ideias expostas nesses dois vídeos ‘Falando nisso’ 150 e 254 com esses critérios.  

Sumariamente, uma verificação como essa consistiria em fazer o seguinte:

  • partindo da arqueologia das ciências humanas feita por Foucault no ‘As palavras e as coisas’, e identificar as diferentes configurações do pensamento em nossa cultura descritas nesse livro, fazendo comparações e identificação de cada uma delas por meio de características de características (características de segunda ordem) explicitamente mencionadas no texto de Foucault.
  • tomar em seguida uma coleção de modelos práticos existentes, alguns antológicos e muito utilizados atualmente, outros nem tanto, no domínio da produção/economia principalmente, e também no campo econômico-financeiro; no Projeto Formulador procuro entender como esses modelos funcionam – do ponto de vista da origem condições de possibilidade e generalidade dentro de limites, do pensamento utilizado em cada um -, para a seguir relacioná-los a uma daquelas configurações de pensamento extraídas do texto de Foucault, e que integram a arqueologia feita por ele.

Trata-se de fazer algo bastante semelhante ao que Lacan certamente fez ao perceber problemas na psicanálise de Freud ao identificar que  esta estava baseada na representação; e seguir esse mesmo caminho só que para modelos no domínio da produção/economia ao longo do tempo .

Com esse trabalho ‘Projeto Formulador’, e o apoio de Michel Foucault com o ‘As palavras e as coisas’, encontro em nosso meio – muito claramente identificados -, 

Uns e outros com diferentes visões do que seja uma operação, mas tomados sem distinção e utilizados no mesmo ambiente e até simultaneamente embora fundados em bases tão distintas.

Noto, porém, que a utilização desses modelos tão diversos é feita sem discernimento, por parte de seus usuários, sobre qual seja a forma de reflexão filosófica com a qual foram feitos e a estrutura de conceitos que está em suas bases. 

Não é feito um alinhamento filosófico entre eles e como diz Foucault, seu uso se dá sem ‘consciência epistemológica do homem’ (o que fica evidenciado pelo uso de modelos em cuja estrutura essa entidade homem não tem lugar).

Teorias, modelos e sistemas econômicos, sociais, políticos são formidavelmente complexos, muito exigentes do analista e cada um deles admite, para uma mesma formulação mantendo determinada fundamentação, uma grande quantidade de configurações diferentes. O livro ‘As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas’ a meu ver funciona como uma cartilha de inestimável utilidade no entendimento deles. 

Pode ser que os questionamentos feitos no vídeo 254 sobre o liberalismo e neoliberalismo tomem como objeto instâncias prontas desses modelos, vistos formulados, já configurados e em efetiva utilização em determinadas épocas, sem entrar nas condições de possibilidade sobre as quais foram formulados.

Nesse vídeo no ponto 11:20 vejo a afirmativa de que a teoria liberal não é só uma teoria econômica: ela é o que a gente poderia chamar de uma psicologia. Um pouco adiante desse ponto, o áudio afirma que a alteração influi em nossas trocas.

Há hoje em dia, algumas unanimidades quanto aos conceitos utilizados:

O movimento do pensamento de Lacan com a mudança de base desde a representação para a linguagem usando conceitos atinentes à fala arrasta para o centro da cena, em vez de ‘Processo’, a ‘Forma de produção’ como elemento central de uma operação. Estamos na etapa da Construção de representação nova, parte da visão expandida que temos do que sejam operações, as de pensamento ou outras de qualquer tipo.

Agora a operação ‘na linguagem’, pensada com ideias atinentes à fala, abrange a construção de representações novas (David Ricardo foi o pioneiro em fazer isso, no que é consistente com Lacan); essas operações transcorrem no interior do espaço referido por Foucault como o ‘Lugar de nascimento do que é empírico’, surgido ao tempo da prospecção da permutabilidade possível, antes portanto da existência dos objetos envolvidos em uma operação de troca. (nunca vi ninguém falar nesse espaço ‘Lugar de nascimento do que é empírico’ o substituto de ‘Mercado’ em uma visão de Lacan generalizada, a menos de Foucault)

O Circuito onde ocorrem as trocas, ou ‘Mercado’, virá somente na etapa seguinte das operações, a do Instanciamento de representações já existentes.

Ressalto aqui a visão de subjetividade como instância capaz de representação das coisas; imagino que essa visão seja original de Lacan, acho que é.

Essa visão combina à perfeição com a visão de operações em qualquer campo, como um processamento de informação no qual Entradas são transformadas em Saídas e a estrutura do sistema é a Input-Output. Esse modelo é consistente com o pensamento clássico, está baseado na representação, e o abandono dele, indica o abandono do pensamento clássico por parte de Lacan.

De uma configuração de pensamento para outra as mudanças são muito grandes.  O caminho que o pensamento deve percorrer é mais extenso do que parece ser à primeira vista.

As mudanças podem ser avaliadas mais de perto vendo as ideias, ou elementos de imagem, colocados em figuras representativas das operações, de suas propriedades emergentes, etc. b) 

Links para algumas páginas do ‘Projeto Formulador’

Carta aos Professores Christian Dunker e Vladimir Safatle

Links para algumas páginas do ‘Projeto Formulador’

Sobre o estudo denominado ‘Projeto Formulador

Carta ao Professor Christian Dunker

Carta aos Professores Christian Dunker e Vladimir Safatle

coordenadores do Latesfip – Laboratório de Teorias sociais, Filosofia e Psicanálise da USP

Prezados Professores 

Com a intenção de contribuir para o debate da forma o mais fundamentada que posso, coloco em foco dois pontos tomados em dois vídeos do canal Falando nisso:

  • no vídeo Falando nisso – 150: Signo, significante e significado de 08/10/2017, vejo em destaque um movimento no pensamento de Lacan:
    • que parte do incômodo dele com a base fundamental da psicanálise de Freud, que ele via sediada na representação
    • e vai até a decisão por ele tomada de criar uma nova psicanálise, no campo da linguagem usando conceitos atinentes à fala, e agora desde fora da representação
  • no vídeo Falando nisso – 254: Neoliberalismo e sofrimento de 31/08/2019, noto que não são feitos questionamentos desse mesmo teor do movimento de pensamento feito por Lacan, porque faltam verificações sobre quais sejam as bases em que se sustentam cada uma das teorias, modelos e sistemas relacionados ao liberalismo e neoliberalismo (com variantes), em todo o período abrangido na discussão, quanto a estarem na representação ou fora dela. 

Usando um critério muito amplo para identificação e comparação de modelos inclusive quanto às suas bases, definido com a ajuda de Michel Foucault no livro ‘As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas’, é possível afirmar que sim, existem, no período histórico coberto pelo vídeo 254, teorias, modelos e sistemas construídos sobre essas duas opções de embasamento – na e desde fora da representação; e há ocorrências de modelos assim em todas as áreas do conhecimento atingindo todo o espaço do saber em nossa cultura.

Os links abaixo mostram exemplos de teorias, modelos e sistemas – na chamada área técnica e na filosofia – e em cada uma, modelos com esses dois embasamentos: base na representação e base fora da representação, cujas ocorrências estão nesse período histórico de tempo, 

“Assim esses três pares, função e norma,, conflito e regra, significação e sistema, cobrem, por completo, o domínio inteiro do conhecimento do homem.” As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas; Cap. X – As ciências humanas; tópico III. Os três modelos 

No vídeo 150 estão em destaque os dois conceitos para inconsciente, nas psicanálises de Freud e de Lacan.

  • para a psicanálise de Freud o inconsciente é uma instância capaz de representação das coisas; (veja exemplos desse tipo de modelo nos itens 1.a e 2.a )
    • essa visão do que seja o inconsciente em Freud combina perfeitamente bem com a visão de operações metaforicamente imaginadas como um processamento de informações, construídas sobre a estrutura input-output com elemento central Processo – um verbo, ladeado por Entradas que se transformam em Saídas.  Sobre esse tipo de verbo Foucault diz o seguinte:

“A única coisa que o verbo [esse tipo de verbo] afirma é a coexistência de duas representações: por exemplo, a do verde e da árvore, a do homem e da existência ou da morte; é por isso que o tempo dos verbos não indica aquele em que as coisas existiram no absoluto, mas um sistema relativo de anterioridade ou de simultaneidade das coisas entre si. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas; Cap. IV – Falar; tópico III. A teoria do verbo  

  • em Lacan o inconsciente é estruturado como uma linguagem e é uma forma social, o efeito das trocas sociais, estas, simbólicas. (veja exemplos desse tipo de modelo nos itens 1.b e 2.b)
    • essa visão do inconsciente em Lacan combina perfeitamente bem com a nova forma de reflexão assinalada por Foucault como tendo surgido na virada dos séculos XVIII para o XIX:

“Instaura-se uma forma de reflexão bastante afastada do cartesianismo e da análise kantiana, em que está em questão, pela primeira vez, o ser do homem, nessa dimensão segundo a qual o pensamento se dirige ao impensado e com ele se articula.” As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas; Cap. IX – O homem e seus duplos; tópico V. O “cogito” e o impensado.

Esta forma de reflexão tem como elemento central também um verbo, mas de um novo tipo, que figura como elemento central do princípio dual de trabalho de David ricardo  chamado por ele de Forma de produção. 

“É preciso, portanto, tratar esse verbo como um ser misto, [Forma de produção, este, um tipo de verbo mais ao agrado de Lacan] ao mesmo tempo palavra entre as palavras, preso às mesmas regras, obedecendo como elas às leis de regência e de concordância; e depois, em recuo em relação a elas todas, numa região que não é aquela do falado mas aquela donde se fala. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas; Cap. IV – Falar; tópico III. A teoria do verbo

A propósito da grande importância das ‘operações de troca’ e da própria ‘troca’ como conceito, há no texto de Foucault, (veja ‘As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Cap. VI – Trocar; tópico V. A formação de valor), esclarecimento importante sobre a operação de troca em sua complexidade bem como sua relação com a linguagem em duas diferentes configurações:

Dependendo da visão que temos do fenômeno como um todo, podemos posicionar o início da operação de troca:

  1. no ato mesmo da troca, isto é, ‘no ponto de cruzamento entre o que é dado e o que é recebido, no exato momento da disponibilidade simultânea dos dois objetos da troca;
    • neste caso a operação transcorre no Circuito das trocas’, ou ‘Mercado‘ contido no domínio do Discurso e da Representação
    • toda a essência da linguagem está colocada e encerrada na proposição;
  2. ou em um ponto anterior ao momento da troca, numa prospecção da possibilidade futura dessa operação, investigando não propriamente a troca, mas a permutabilidade, ou a ocorrência de uma condição primeira para que a troca, possa vir a ocorrer;
    •  neste caso a operação transcorre no ‘Lugar de nascimento do que é empírico’ espaço integrado por dois sub-espaços, cada um deles em um domínio distinto:
      • o ‘Lugar desde onde se fala’, no interior do domínio do Pensamento e da língua;
      • e o ‘Lugar do falado’, no interior do domínio do ‘Discurso e da Representação’.
    • e a essência da linguagem, o valor carregado na proposição, terá origem desde fora da linguagem:
      • a) através das designações primitivas; 
      • b) e da linguagem de ação ou raiz
    • e toda a etapa de Construção da representação sob o pensamento moderno, está incluída na visão de operações ampliando sobremaneira o seu escopo.

Para um paralelo rápido entre esse movimento do pensamento feito por Lacan e a filosofia de Foucault:

em As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas; 
Cap. 8 – Trabalho, Vida e Linguagem; tópico II – Ricardo

“A atividade dos homens
e o valor das coisas 
comunicavam-se
no elemento transparente
da representação. 

este, o espaço onde Lacan via a psicanálise de Freud: ponto de início de operações no cruzamento entre o que é dado e o que é recebido em uma operação de troca

É aí que a análise de Ricardo
encontra seu lugar
e a razão de sua importância decisiva. 
Ela não é a primeira
a organizar um lugar importante
para o trabalho no jogo da economia;
mas faz explodir a unidade da noção,
e distingue, pela primeira vez,
de uma forma radical,

a disposição de Lacan com relação à psicanálise de Freud prognosticando uma outra psicanálise modelada em outras bases que não a representação pode ser comparada à disposição pioneira de David Ricardo, em 1817, que segundo Michel Foucault deu origem à economia política

  • essa força, esse esforço, esse tempo do operário que se compram e se vendem, 

homem no papel de
elemento do que é empírico
viabilizando a Forma de produção como mão de obra nos elementos de suporte na experiência, nas atividades;

  • e essa atividade que está
    na origem do valor das coisas.

homem no papel de
raiz e fundamento de toda positividade
como sujeito de operações de construção de representações novas para empiricidades objeto.

Ter-se-á pois, 

  • (1) por um lado,
    o trabalho que os operários oferecem,
    que os empresários aceitam ou demandam e que é retribuído pelos salários; 
  • (2) por outro, ter-se-á
    o trabalho que extrai os metais,
    produz os bens, fabrica os objetos,
    transporta as mercadorias
    e forma assim valores permutáveis
    que antes dele não existiam
    e sem ele não teriam aparecido. 

A visão completa expandida de operações agora preparadas para abranger:

  • (1) a etapa do Instanciamento de representações anteriormente construídas;
  • (2) a etapa de Construção da representação;

“A partir de Ricardo,
o trabalho, 

desnivelado em relação à representação, 
e instalando-se em uma região
onde ela não tem mais domínio, 
organiza-se
segundo uma causalidade que lhe é própria.”

Parafraseando Foucault

A partir de Lacan,
a psicanálise,
desnivelada em relação à representação,
e instalando-se em uma região
onde ela não tem mais domínio,
organiza-se segundo uma causalidade
que lhe é própria.

A percepção de Lacan, em 1953-1960 sobre a psicanálise de Freud, que ele via baseada na representação, consistente com a visão de David Ricardo, de 1817, este em alteração do modo como Adam Smith, de 1776, via trabalho, vislumbrando esse conceito também desde fora da representação.

As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas; 
Cap. 8 – Trabalho, Vida e Linguagem;
tópico II – Ricardo

Veja também os seguintes links:

Psicanálise e etnologia – APC

V. Psicanálise, etnologia

[da psicanálise]

“A psicanálise e a etnologia ocupam, no nosso saber, um lugar privilegiado. 

Não certamente 

  • porque teriam, melhor que qualquer outra ciência humana, embasado sua positividade e realizado enfim o velho projeto de serem verdadeiramente científicas; 

antes porque, 

  • nos confins de todos os conhecimentos sobre o homem, elas formam seguramente um tesouro inesgotável de experiências e de conceitos, mas, sobretudo, um perpétuo princípio de inquietude, de questionamento, de crítica e de contestação daquilo que, por outro lado, pôde parecer adquirido. 

Ora, há para isto uma razão que tem a ver com o objeto que respectivamente cada uma se atribui, mas tem mais ainda a ver com a posição que ocupam e com a função que exercem no espaço geral da epistémê. 

A psicanálise, com efeito, mantém-se o mais próximo possível desta função crítica acerca da qual se viu que era interior a todas as ciências humanas.

Dando-se por tarefa fazer falar através da consciência o discurso do inconsciente, 

a psicanálise avança na direção desta região fundamental onde se travam as relações entre a representação e a finitude. 

Enquanto todas as ciências humanas

  •  só se dirigem ao inconsciente virando-lhe as costas, esperando que ele se desvele à medida que se faz, como que por recuos, a análise da consciência, 

já a psicanálise 

  • aponta diretamente para ele, de propósito deliberado – 
    • não em direção ao que deve explicitar-se pouco a pouco na iluminação progressiva do implícito, 
    • mas em direção ao que está aí e se furta, que existe com a solidez muda de uma coisa, de um texto fechado sobre si mesmo, ou de uma lacuna branca num texto visível e que assim se defende. 

Não há que supor que o empenho freudiano seja o componente de uma interpretação do sentido e de uma dinâmica da resistência ou da barreira; 

  • seguindo o mesmo caminho que as ciências humanas, 

mas com o olhar voltado em sentido contrário, 

  • a psicanálise se encaminha 

em direção ao momento –inacessível, por definição, a todo conhecimento teórico do homem, a toda apreensão contínua em termos 

        • de significação
        • de conflito 
        • ou de função

– em que os conteúdos da consciência se articulam com,
ou antes, ficam abertos para a finitude do homem. 

Isto quer dizer que, 

  • ao contrário das ciências humanas que, 
    • retrocedendo embora em direção ao inconsciente, 
      • permanecem sempre no espaço do representável, 
  • a psicanálise 
    • avança para transpor a representação, extravasá-la do lado da finitude
    • e fazer assim surgir, lá onde se esperavam 
      • as funções portadoras de suas normas
      • os conflitos carregados de regras 
      • e as significações formando sistema
    • o fato nu de que pode haver 
      • sistema (portanto, significação), 
      • regra (portanto, oposição), 
      • norma (portanto, função). 

E, nessa região onde a representação fica em suspenso, à margem dela mesma, aberta, de certo modo ao fechamento da finitude, desenham-se as três figuras pelas quais 

  • a vida, com suas funções e suas normas, vem fundar-se na repetição muda da Morte, 
  • os conflitos e as regras, na abertura desnudada do Desejo, 
  • as significações e os sistemas, numa linguagem que é ao mesmo tempo Lei. “

[a etnologia)]

Sabe-se como psicólogos e filósofos denominaram tudo isso: mitologia freudiana. 

Era realmente necessário que este empenho de Freud assim lhes parecesse; 

  • para um saber que se aloja no representável, 
  • aquilo que margeia e define, em direção ao exterior, a possibilidade mesma da representação 
  • não pode ser senão mitologia. 

Mas, quando se segue, no seu curso, o movimento da psicanálise, ou quando se percorre o espaço epistemológico em seu conjunto, vê-se bem que estas figuras – imaginárias, sem dúvida, para um olhar míope – são as próprias formas da finitude, tal como é analisada no pensamento moderno: 

não é a morte aquilo a partir de que o saber em geral é possível de sorte tal que ela seria, do lado da psicanálise, a figura desta reduplicação empírico-transcendental que caracteriza na finitude o modo de ser do homem? 

Não é o desejo o que permanece sempre impensado no coração do pensamento? 

E esta Lei-Linguagem (ao mesmo tempo fala e sistema da fala) que a psicanálise se esforça por fazer falar, não é aquilo em que toda significação assume uma origem mais longínqua que ela mesma, mas também aquilo cujo retorno é prometido no ato mesmo da análise? 

É bem verdade que nem esta Morte, nem este Desejo, nem esta Lei podem jamais encontrar-se no interior do saber que percorre em sua positividade o domínio empírico do homem; mas a razão disto é que designam as condições de possibilidade de todo saber sobre o homem. 

E precisamente 

  • quando esta linguagem se mostra em estado nu, 
    • mas se furta ao mesmo tempo para fora de toda significação como se fosse um grande sistema despótico e vazio, 
  • quando o Desejo reina em estado selvagem, 
    • como se o rigor de sua regra tivesse nivelado toda oposição, 
  • quando a Morte domina toda função psicológica e se mantém acima dela 
    • como sua norma única e devastadora 

então reconhecemos a loucura em sua forma presente, a loucura tal como se dá à experiência moderna, como sua verdade e sua alteridade. 

Nessa figura empírica, e contudo estranha a (e em) tudo o que podemos experimentar, nossa consciência 

  • não encontra mais, como no século XVI, o vestígio de um outro mundo; 
  • ela não constata mais o vaguear da razão extraviada; 
  • ela vê surgir o que nos é perigosamente o mais próximo – como se subitamente se perfilasse, em relevo, o recôncavo mesmo de nossa existência; 

a finitude, a partir da qual nós somos, pensamos e sabemos, está subitamente diante de nós, existência a um tempo real e impossível, pensamento que não podemos pensar, objeto para nosso saber mas que a ele se furta sempre. 

É por isso que a psicanálise encontra nesta loucura por excelência – a que os psiquiatras chamam esquizofrenia – o seu íntimo, o seu mais invencível tormento: pois nesta loucura se dão, sob uma forma absolutamente manifesta e absolutamente retraída, as formas da finitude em direção à qual, de ordinário, ela avança indefinidamente (e no interminável), a partir do que lhe é voluntária-involuntariamente oferecido na linguagem do paciente. 

De sorte que a psicanálise “reconhece-se aí”, quando é colocada diante destas mesmas psicoses às quais, no entanto (ou antes, por essa mesma razão) ela quase não tem acesso: como se a psicose expusesse numa iluminação cruel e oferecesse de um modo demasiado longínquo, mas justamente demasiado próximo, aquilo em cuja direção a análise deve lentamente caminhar. 

Mas esta relação da psicanálise com o que torna possível todo saber em geral na ordem das ciências humanas tem ainda uma outra consequência. 

É que ela não pode desenvolver-se como puro conhecimento especulativo ou teoria geral do homem. Não pode atravessar o campo inteiro da representação, tentar contornar suas fronteiras, apontar para o mais fundamental, na forma de uma ciência empírica construída a partir de observações cuidadosas; 

essa travessia só pode ser feita no interior de uma prática em que não é apenas o conhecimento que se tem do homem que está empenhado, mas o próprio homem – 

  • o homem com essa Morte que age no seu sofrimento, 
  • esse Desejo que perdeu seu objeto 
  • e essa linguagem pela qual, através da qual se articula silenciosamente sua Lei. 

Todo saber analítico é, pois, invencivelmente ligado a uma prática, a este estrangulamento da relação entre dois indivíduos, em que um escuta a linguagem do outro, libertando assim seu desejo do objeto que ele perdeu (fazendo-o entender que o perdeu) e libertando-o da vizinhança sempre repetida da morte (fazendo-o entender que um dia morrerá). 

É por isso que nada é mais estranho à psicanálise que alguma coisa como uma teoria geral do homem ou uma antropologia. 

Assim como 

  • a psicanálise se coloca na dimensão do inconsciente 
    (dessa animação crítica que inquieta interiormente todo o domínio das ciências humanas), 
  • a etnologia se coloca na da historicidade 
    (desta perpétua oscilação que faz com que as ciências humanas sejam sempre contestadas, do exterior, por sua própria história). 

É sem dúvida difícil sustentar que a etnologia tem uma relação fundamental com a historicidade, já que ela é tradicionalmente o conhecimento dos povos sem história; em todo o caso, ela estuda nas culturas (ao mesmo tempo por escolha sistemática e por falta de documentos) antes as invariantes de estrutura que a sucessão dos acontecimentos. 

Suspende o longo discurso “cronológico” pelo qual tentamos refletir nossa própria cultura no interior dela mesma, para fazer surgir correlações sincrônicas em outras formas culturais. E, contudo, a própria etnologia só é possível a partir de uma certa situação, de um acontecimento absolutamente singular, em que se acham empenhadas a um tempo a nossa historicidade e a de todos os homens que podem constituir o objeto de uma etnologia (ficando entendido que podemos perfeitamente fazer a etnologia de nossa própria sociedade): a etnologia se enraíza, com efeito, numa possibilidade que pertence propriamente à história de nossa cultura, mais ainda, à sua relação fundamental com toda história, e que lhe permite ligar-se às outras culturas à maneira da pura teoria. 

Há uma certa posição da ratio ocidental que se constituiu na sua história e que funda a relação que ela pode ter com todas as outras sociedades, mesmo com aquela sociedade em que ela historicamente apareceu. Isto não quer dizer, evidentemente, que a situação colonizadora seja indispensável à etnologia: nem a hipnose, nem a alienação do doente na personagem fantasmática do médico são constitutivos da psicanálise; mas, assim como esta só pode desenvolver-se na violência calma de uma relação singular e da transferência que ela requer, do mesmo modo a etnologia só assume suas dimensões próprias na soberania histórica – sempre retida, mas sempre atual – do pensamento europeu e da relação que o pode confrontar com todas as outras culturas e com ele próprio. 

Mas essa relação (na medida em que a etnologia não busca apagá- Ia, mas, ao contrário, escava-a, instalando-se definitivamente nela) não a encerra nos jogos circulares do historicismo; coloca-a, antes, em posição de contornar seu perigo, invertendo o movimento que os faz nascer: com efeito, em vez de reportar os conteúdos empíricos, tais como psicologia, a sociologia ou a análise das literaturas e dos mitos podem fazê-los aparecer, à positividade histórica do sujeito que os percebe, a etnologia coloca as formas singulares de cada cultura, as diferenças que as opõem às outras, os limites pelos quais se define e se fecha sobre sua própria coerência na dimensão em que se estabelecem suas relações com cada uma das três grandes positividades (a vida, a necessidade e o trabalho, a linguagem); 

assim, a etnologia mostra como se faz numa cultura 

  • a normalização das grandes funções biológicas, 
  • as regras que tornam possíveis ou obrigatórias todas as formas de troca, de produção e de consumo, 
  • o sistemas que se organizam em torno ou sobre o modelo das estruturas linguísticas. 

A etnologia avança, pois, em direção à região onde as ciências humanas se articulam com aquela biologia, com aquela economia, com aquela filologia e aquela linguística acerca das quais se viu de que altura as dominavam: é por isto que o problema geral de toda etnologia é exatamente aquele das relações (de continuidade ou de descontinuidade) entre a natureza e a cultura. 

Mas, neste tipo de interrogação, o problema da história se acha invertido: pois trata-se então de determinar, 

  • segundo os sistemas simbólicos utilizados, 
  • segundo as regras prescritas, 
  • segundo as normas funcionais escolhidas e estabelecidas, 

de que espécie de devir histórico cada cultura é suscetível; ela busca retomar, desde raiz, o modo de historicidade que aí pode aparecer, as razões pelas quais a história aí será necessariamente cumulativa ou circular, progressiva ou submetida a oscilações reguladoras, capaz de ajustamentos espontâneos ou submetida a crises. 

E assim se acha esclarecido o fundamento deste fluir histórico em cujo interior as diferentes ciências humanas assumem sua validade e podem ser aplicadas a uma dada cultura e numa dada região sincrônica. 

A etnologia, como a psicanálise, interroga 

  • não o próprio homem tal como pode aparecer nas ciências humanas, 
  • mas a região que torna possível, em geral, um saber sobre o homem; 

como a psicanálise, ela atravessa todo o campo desse saber num movimento que tende a atingir seus limites. 

Mas a psicanálise 

  • se serve da relação singular da transferência para descobrir, nos confins exteriores da representação, o Desejo, a Lei, a Morte que desenham, no extremo da linguagem e da prática analíticas, as figuras concretas da finitude; 

já a etnologia 

  • aloja-se no interior da relação singular que a ratio ocidental estabelece com todas as outras culturas; e, a partir daí, ela traça o contorno das representações que os homens, numa civilização, se podem dar de si mesmos, de sua vida, de suas necessidades, das significações depositadas em sua linguagem; e ela vê surgir, por trás destas representações, 
    • as normas a partir das quais os homens cumprem as funções da vida, mas repelindo sua pressão imediata, 
    • as regras através das quais experimentam e mantêm suas necessidades, 
    • os sistemas sobre cujo fundo toda significação lhes é dada. 

O privilégio da etnologia e da psicanálise, a razão de seu profundo parentesco e de sua simetria – não devem, pois, ser buscados numa certa preocupação que uma e outra teriam em penetrar o profundo enigma, a parte mais secreta da natureza humana; de fato, o que se espelha no espaço de seu discurso é muito mais o a priori histórico de todas as ciências humanas – as grandes cesuras, os sulcos, as partilhas que, na epistémê ocidental, desenharam o perfil do homem e o dispuseram para um saber possível. 

Era, portanto, muito necessário que ambas fossem ciências do inconsciente: 

  • não porque atingem no homem o que está por sob a sua consciência, 
  • mas porque se dirigem ao que, fora do homem, permite que se saiba, com um saber positivo, o que se dá ou escapa à sua consciência. 

Pode-se compreender, a partir daí, um certo número de fatos decisivos. 

E, no primeiro plano, o seguinte: 

que a psicanálise e a etnologia não são tanto ciências humanas ao lado das outras, 

mas percorrem o domínio inteiro destas, o animam em toda a sua superfície, expandem por toda a parte seus conceitos, podem propor em todos os lugares seus métodos de decifração e suas interpretações. 

Nenhuma ciência humana pode assegurar-se de nada lhes dever, nem de ser totalmente independente do que elas puderam descobrir, nem estar certa de não depender delas de uma forma ou de outra. 

Porém seu desenvolvimento tem a particularidade de que 

  • por mais que pretendam ter um “alcance” quase universal, 
  • nem por isso se aproximam de um conceito geral do homem: 
    • em nenhum momento elas tendem a delimitar o que nele poderia haver de específico, 
    • de irredutível, 
    • de uniformemente válido em toda a parte onde ele é dado à experiência. 

A ideia de uma “antropologia psicanalítica”, a ideia de uma “natureza humana” restituída pela etnologia não passam de pretensões piegas. Não apenas elas podem dispensar o conceito de homem, como ainda não podem passar por ele, pois se dirigem sempre ao que constitui seus limites exteriores. 

Em relação às “ciências humanas”, a psicanálise e a etnologia são antes “contraciências”; 

  • o que não quer dizer que sejam menos “racionais” ou “objetivas” que as outras, 
  • mas que elas as assumem no contra-fluxo, 
  • reconduzem-nas a seu suporte epistemológico 
  • e não cessam de “desfazer” esse homem que, nas ciências humanas, faz e refaz sua positividade. 

Compreende-se, enfim, que psicanálise e etnologia sejam estabelecidas uma em face da outra, numa correlação fundamental: desde Totem e tabu, a instauração de um campo que lhes seria comum, a possibilidade de um discurso que poderia ir de uma à outra sem descontinuidade, a dupla articulação 

  • da história dos indivíduos com o inconsciente das culturas 
  • e da historicidade destas com o inconsciente dos indivíduos 

abrem, sem dúvida, os problemas mais gerais que se podem levantar a propósito do homem. 

Adivinha-se o prestígio e a importância de uma etnologia que, 

  • em vez de se definir primeiramente, como o fez até então, pelo estudo das sociedades sem história, 
  • buscasse deliberadamente seu objeto do lado dos processos inconscientes que caracterizam o sistema de uma dada cultura;

ela poria em jogo, assim, 

  • a relação da historicidade, relação essa constitutiva de toda etnologia em geral, 
  • no interior da dimensão em que sempre se desenrolou a psicanálise. 

Assim fazendo, ela não assimilaria os mecanismos e as formas de uma sociedade à pressão e à repressão de fantasmas coletivos, reencontrando deste modo, mas a uma escala mais larga, o que a análise pode descobrir ao nível dos indivíduos; 

  • definiria como sistema dos inconscientes culturais o conjunto das estruturas formais que tornam significantes os discursos míticos, 
  • dão às regras que regem as necessidades sua coerência e sua imprescindibilidade, 
  • fundam, não na natureza, não nas puras funções biológicas, as normas de vida. 

Adivinha-se a importância simétrica de uma psicanálise que, por seu lado, encontrasse a dimensão de uma etnologia, não pela instauração de uma “psicologia cultural”, não pela explicação sociológica de fenômenos manifestados ao nível dos indivíduos, mas pela descoberta de que também o inconsciente possui – ou, antes de que ele próprio é uma certa estrutura formal. 

Por aí etnologia e psicanálise viriam, não a se superpor nem mesmo talvez a se reunir, mas a se cruzar como duas linhas diferentemente orientadas: 

  • uma, indo da elisão aparente do significado na neurose à lacuna no sistema significante por onde esta vem a manifestar-se; 
  • a outra, indo da analogia dos significados múltiplos (nas mitologias, por exemplo) à unidade de uma estrutura, cujas transformações formais liberariam a diversidade de narrativas. 

Não seria, portanto, ao nível das relações entre indivíduos e sociedade, como frequentemente se acreditou, que a psicanálise e a etnologia poderiam articular-se uma com a outra; 

  • não é porque o indivíduo faz parte de seu grupo, 
  • não é porque uma cultura se reflete e se exprime de um modo mais ou menos refratado no indivíduo, 

que essas duas formas de saber são vizinhas. 

Na verdade, elas têm somente um ponto comum, porém essencial e inevitável: é aquele em que elas se cortam em ângulo reto; pois a cadeia significante pela qual se constitui a experiência única do indivíduo é perpendicular ao sistema formal a partir do qual se constituem as significações de uma cultura; 

  • a cada instante a estrutura própria da experiência individual encontra nos sistemas da sociedade certo número de escolhas possíveis (e de possibilidades excluídas); 

inversamente,

  • as estruturas sociais encontram, em cada um de seus pontos de escolha, certo número de indivíduos possíveis (e outros que não o são) – 
  • assim como na linguagem a estrutura linear torna sempre possível, em dado momento, a escolha entre várias palavras ou vários fonemas (mas exclui todos os outros). 

Forma-se, então, o tema de uma teoria pura da linguagem, que daria à etnologia e à psicanálise assim concebidas seu modelo formal. Haveria assim uma disciplina que poderia cobrir, no seu único percurso, 

  • tanto esta dimensão da etnologia que refere as ciências humanas às positividades que as margeiam, 
  • quanto esta dimensão da psicanálise que refere o saber do homem à finitude que o funda. 

Com a linguística, 

ter-se-ia uma ciência perfeitamente fundada na ordem das positividades exteriores ao homem (pois que se trata de linguagem pura) e que, atravessando todo o espaço das ciências humanas, atingiria a questão da finitude (pois que é através da linguagem e nela que o pensamento pode pensar: de sorte que ela é, em si mesma, uma positividade que vale como o fundamental). 

Acima da etnologia e da psicanálise, mais exatamente intrincada com elas, uma terceira “contraciência” viria percorrer, animar, inquietar todo o campo constituído das ciências humanas e, extravasando-o, tanto do lado das positividades quanto do lado da finitude, formaria sua contestação mais geral. Como as duas outras contraciências, ela faria aparecer, num modo discursivo, as formas-limites das ciências humanas; como elas, alojaria sua experiência nestas regiões iluminadas e perigosas onde o saber do homem trava, sob as espécies do inconsciente e da historicidade, sua relação com o que as torna possíveis. 

Todas as três põem em risco, “expondo-o”, aquilo mesmo que permitiu ao homem ser conhecido. 

Assim se tece sob nossos olhos o destino do homem, mas tece-se às avessas; nestes estranhos fusos, é ele reconduzido às formas de seu nascimento, à pátria que o tornou possível. 

Mas não é essa uma forma de conduzi-Io ao seu fim? 

Pois a linguística, tanto quanto a psicanálise ou a etnologia, não fala do próprio homem. 

Dir-se-á talvez que, desempenhando este papel, a linguística não faz mais que retomar as funções que foram outrora as da biologia ou da economia quando, no século XIX e no começo do século XX, se pretendeu unificar as ciências humanas sob conceitos tomados à biologia ou à economia.

Mas a linguística arrisca-se a ter um papel muito mais fundamental. E por várias razões. 

Primeiro porque ela permite – esforça-se, ao menos, por tornar possível – a estruturação dos próprios conteúdos; 

  • não é, pois, uma retomada teórica dos conhecimentos adquiridos alhures, interpretação de uma leitura já feita dos fenômenos; 
  • não propõe uma “versão linguística” de fatos observados nas ciências humanas, é o princípio de uma decifração primeira; 
  • sob um olhar armado por ela, as coisas só acedem à existência na medida em que podem formar os elementos de um sistema significante. 

A análise linguística é mais uma percepção que uma explicação: isso quer dizer que é constitutiva de seu objeto mesmo. 

Ademais, eis que, por esta emergência da estrutura (como relação invariante num conjunto de elementos), a relação das ciências humanas com as matemáticas acha-se novamente aberta e segundo uma dimensão totalmente nova; 

  • não se trata mais de saber se se podem quantificar resultados, ou se os comportamentos humanos são suscetíveis de entrar no campo de uma probabilidade mensurável; 
  • a questão que se coloca é a de saber se se pode utilizar sem jogo de palavras a noção de estrutura, 
  • ou, ao menos, se é da mesma estrutura que se fala em matemáticas e nas ciências humanas; 

questão que é central, se se quiser conhecer as possibilidades e os direitos, as condições e os limites de uma formalização justificada; vê-se que a relação das ciências humanas com o eixo das disciplinas formais e a priori – relação que não fora essencial até então e se torna fundamental agora que, no espaço das ciências humanas, surge igualmente sua relação com a positividade empírica da linguagem e com a analítica da finitude; os três eixos que definem o volume próprio às ciências do homem tornam-se assim visíveis, e quase simultaneamente, nas questões que elas colocam. 

Enfim, a importância da linguística e de sua aplicação ao conhecimento do homem faz reaparecer, em sua insistência enigmática, a questão do ser da linguagem acerca da qual se viu quanto estava ligada aos problemas fundamentais de nossa cultura. 

Questão que a utilização cada vez mais ampliada das categorias linguísticas avoluma ainda mais, uma vez que é necessário doravante indagar o que deve ser a linguagem, para assim estruturar o que não é, todavia, por si mesmo, nem palavra nem discurso, e para articular-se com as formas puras do conhecimento. 

Por um caminho muito mais longo e muito mais imprevisto, somos reconduzidos a esse lugar que Nietzsche e Mallarmé haviam indicado quando um deles perguntara: Quem fala? e o outro vira cintilar a resposta na própria Palavra. A interrogação sobre o que é a linguagem em seu ser reassume, ainda uma vez, seu tom imperativo. 

Neste ponto em que a questão da linguagem ressurge com uma tão forte superdeterminação e em que ela parece investir, por todas as partes, a figura do homem 

(esta figura que justamente tomara outrora
o lugar do Discurso clássico),

 a cultura contemporânea está se fazendo numa parte importante de seu presente e talvez de seu porvir. 

De um lado aparecem, como que subitamente, muito próximas de todos estes domínios empíricos, questões que pareciam, até então, bastante afastadas deles: estas questões são aquelas de uma formalização geral do pensamento e do conhecimento; e no momento em que se julgava que elas ainda estavam votadas tão somente à relação entre a lógica e as matemáticas, eis que elas se abrem à possibilidade e também à tarefa de purificar a velha razão empírica, pela constituição de linguagens formais, e de exercer uma segunda crítica da razão pura, a partir de formas novas do a priori matemático. 

Entrementes, na outra extremidade de nossa cultura, a questão da linguagem se acha confiada àquela forma de palavra que, sem dúvida, não cessou de colocá-Ia, mas que, pela primeira vez, coloca-a a si mesma. 

Que a literatura de nossos dias seja fascinada pelo ser da linguagem – isso não é nem o sinal de um fim nem a prova de uma radicalização: é um fenômeno que enraíza sua necessidade numa bem vasta configuração em que se desenha toda a nervura de nosso pensamento e de nosso saber. 

Mas se a questão das linguagens formais faz valer a possibilidade ou a impossibilidade de estruturar os conteúdos positivos, uma literatura votada à linguagem faz valer, em sua vivacidade empírica, as formas fundamentais da finitude. 

Do interior da linguagem experimentada e percorrida como linguagem, no jogo de suas possibilidades estiradas até seu ponto extremo, 

  • o que se anuncia é que o homem é “finito” e que, 
  • alcançando o ápice de toda palavra possível, não é ao coração de si mesmo que ele chega, 
  • mas às margens do que o limita: 
    • nesta região onde ronda a morte, 
    • onde o pensamento se extingue, 
    • onde a promessa da origem recua indefinidamente. 

Era imprescindível que esse novo modo de ser da literatura fosse desvelado em obras como as de Artaud ou de Roussel – e por homens como eles; 

  • em Artaud, a linguagem, recusada como discurso e retomada na violência plástica do choque, e remetida ao grito, ao corpo torturado, à materialidade do pensamento, à carne; 
  • em Roussel, a linguagem, pulverizada por um acaso sistematicamente manejado, conta indefinidamente a repetição da morte e o enigma das origens desdobradas. 

E, como se essa prova das formas da finitude na linguagem não pudesse ser suportada, ou como se ela fosse insuficiente (talvez sua insuficiência mesma fosse insuportável), foi no interior da loucura que ela se manifestou – oferecendo-se assim a figura da finitude na linguagem (como o que nela se desvela), mas também antes dela, aquém dela, como esta região informe, muda, não-significante onde a linguagem pode liberar-se. 

E é realmente neste espaço assim posto a descoberto que a literatura, com o surrealismo primeiramente (mas sob uma forma ainda bem travestida), depois, cada vez mais puramente, com Kafka, com Bataille, com Blanchot, se deu como experiência: como experiência da morte (e no elemento da morte), do pensamento impensável (e na sua presença inacessível), da repetição (da inocência originária, sempre lá, no extremo mais próximo da linguagem e sempre o mais afastado); como experiência da finitude (apreendida na abertura e na coerção dessa finitude). 

Vê-se que este “retorno” da linguagem não tem em nossa cultura valor de interrupção súbita; não é a descoberta irruptiva de uma evidência há muito escondida; não é a marca de uma dobra do pensamento sobre si mesmo, no movimento pelo qual ele se liberta de todo conteúdo, nem de um narcisismo da literatura, liberando-se enfim do que ela teria a dizer para não mais falar senão do fato de que ela é linguagem posta a nu. 

De fato, trata-se aí do desdobramento rigoroso da cultura ocidental, segundo a necessidade que ela atribuiu a si própria no início do século XIX. 

Seria falso ver, neste índice geral de nossa experiência a que se pode chamar o “formalismo”, o sinal de uma petrificação, de uma rarefação do pensamento incapaz de reassumir a plenitude dos conteúdos; não seria menos falso colocá-lo de imediato no horizonte de um novo pensamento e de um novo saber. 

Foi no interior do desenho muito cerrado, muito coerente da epistémê moderna que essa experiência contemporânea encontrou sua possibilidade; foi mesmo ele que, por sua lógica, suscitou-a, constituiu-a de parte a parte e tornou impossível que ela não existisse. 

O que se passou na época de Ricardo, de Cuvier e de Bopp, esta forma de saber que se instaurou com a economia, a biologia e a filologia, o pensamento da finitude que a critica kantiana prescreveu como tarefa para a filosofia, tudo isto forma ainda o espaço imediato de nossa reflexão. 

É neste lugar que nós pensamos. 

E, contudo, a impressão de acabamento e de fim, o sentimento surdo que sustenta, anima nosso pensamento, acalenta-o talvez assim com a facilidade de suas promessas, e que nos faz crer que alguma coisa de novo está em vias de começar, de que apenas se suspeita um leve traço de luz na orla do horizonte – este sentimento e esta impressão talvez não sejam infundados. 

Dir-se-á que existem, que não cessaram de se formular sempre de novo desde o começo do século XIX; dir-se-á que Hôlderlin, que Hegel, que Feuerbach e Marx já tinham, todos eles, esta certeza de que neles um pensamento e talvez uma cultura findavam, e que, do fundo de uma distância que talvez não fosse invencível, uma outra se aproximava – no recato da aurora, no fulgor do meio-dia, ou no contraste do dia que acaba. 

Mas esta próxima, esta perigosa iminência cuja promessa hoje tememos, cujo perigo acolhemos, não é, sem dúvida, da mesma ordem. O que este anúncio prescrevia então ao pensamento era estabelecer para o homem uma morada estável nesta terra, donde os deuses se tinham evadido ou desaparecido. 

Em nossos dias, e ainda aí Nietzsche indica de longe o ponto de inflexão, 

  • não é tanto a ausência ou a morte de Deus que é afirmada, mas sim o fim do homem (este tênue, este imperceptível desnível este recuo na forma da identidade que fazem com que a finitude do homem se tenha tornado o seu fim); 
  • descobre-se então que a morte de Deus e o último homem estão vinculados: não é acaso o último homem que anuncia ter matado Deus, colocando assim sua linguagem, seu pensamento, seu riso no espaço do Deus já morto, mas também se apresentando como aquele que matou Deus e cuja existência envolve a liberdade e a decisão deste assassínio? 

Assim, o último homem é ao mesmo tempo mais velho e mais novo que a morte de Deus; uma vez que matou Deus, é ele mesmo que deve responder por sua própria finitude; mas, uma vez que é na morte de Deus que ele fala, que ele pensa e existe, seu próprio assassinato está condenado a morrer; deuses novos, os mesmos, já avolumam o Oceano futuro; o homem vai desaparecer. 

Mais que a morte de Deus – ou antes, no rastro desta morte e segundo uma correlação profunda com ela, o que anuncia o pensamento de Nietzsche é o fim de seu assassino; é o esfacelamento do rosto do homem no riso e o retorno das máscaras; é a dispersão do profundo escoar do tempo, pelo qual ele se sentia transportado e cuja pressão ele suspeitava no ser mesmo das coisas; é a identidade do Retomo do Mesmo e da absoluta dispersão do homem. 

Durante todo o século XIX, o fim da filosofia e a promessa de uma cultura próxima constituíam, sem dúvida, uma única e mesma coisa, juntamente com o pensamento da finitude e o aparecimento do homem no saber; hoje, o fato de que a filosofia esteja sempre e ainda em via de acabar e o fato de que nela talvez, porém mais ainda fora dela e contra ela, na literatura como na reflexão formal, a questão da linguagem se coloque, provam sem dúvida que o homem está em via de desaparecer. 

É que toda a epistémê moderna – aquela que se formou por volta do fim do século XVIII e serve ainda de solo positivo ao nosso saber, aquela que constituiu o modo de ser singular do homem e a possibilidade de conhecê-lo empiricamente – toda essa epistémê estava ligada ao desaparecimento do Discurso e de seu reino monótono, ao deslizar da linguagem para o lado da objetividade e ao seu reaparecimento múltiplo. 

Se essa mesma linguagem surge agora com insistência cada vez maior numa unidade que devemos mas não podemos ainda pensar, não será isto o sinal de que toda essa configuração vai agora deslocar-se, e que o homem está em via de perecer, na medida em que brilha mais forte em nosso horizonte o ser da linguagem? 

Tendo o homem se constituído quando a linguagem estava votada à dispersão, não vai ele ser disperso quando a linguagem se congrega? 

E se isto fosse verdade, não seria um erro – um erro profundo, pois que nos esconderia o que cumpre pensar agora – interpretar a experiência atual como uma aplicação das formas da linguagem à ordem do humano? 

Não seria antes preciso renunciar a pensar o homem, ou, para ser mais rigoroso, pensar mais de perto este desaparecimento do homem – e o solo de possibilidade de todas as ciências do homem – na sua correlação com nossa preocupação com a linguagem? 

Não se deve admitir que, estando a linguagem novamente aí, o homem retomará àquela existência serena em que outrora o mantivera a unidade Imperiosa do Discurso? 

O homem fora uma figura entre dois modos de ser da linguagem; ou antes, ele não se constituiu senão no tempo em que a linguagem, após ter sido alojada no interior da representação e como que dissolvida nela, dela só se liberou despedaçando-se: o homem compôs sua própria figura nos interstícios de uma linguagem em fragmentos. 

Certamente, não se trata aí de afirmações quando muito e questões às quais não é possível responder; é preciso deixá-Ias em suspenso Iá onde elas se colocam, sabendo apenas que a possibilidade de as colocar abre sem dúvida, para um pensamento futuro.

Comentários

    Influências, inspiração, um roteiro com alterações de rota

    • 0. Influências e inspirações;
      • Humberto Maturana;
      • Vilém Flusser em Filosofia da caixa preta;
      • Michel Foucault em As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas.

    • 1. Plataforma adotada para exposição de ideias;
      • A figura 2 – Diagrama ontológico, do capítulo Reflexões epistemológicas do livro Cognição, Ciência e Vida cotidiana de Humberto Maturana que é a mesma Figura 2 – O Explicar e a Experiência, do capítulo Linguagem, Emoções e Ética nos afazeres políticos do livro Emoções e linguagem na educação e na política

    com alterações de conteúdo e layout que fizemos.




    Elementos de comparação, um modelo experimental e um passo adiante

    • Funcionamento das operações em modelos feitos sob as configurações de pensamento de antes e de depois da descontinuidade epistemológica de 1775-1825;


    • Sistema Formulador – uma alteração no modelo de dados clássico de um SDGP – Sistema Dedicado à Gestão de Projetos  – como o MS Project 4.0 por exemplo, fazendo com que ele passe a funcionar a partir de banco de dados 9com a linguagem de uso) e com um modelo sim-discriminativo com relação ao elemento componente do objeto que se pretende concretizar.

    exemplos de modelos para operações e organizações

    • modelos com estrutura clássica
      • o modelo descritivo de operações de produção de Elwood S. Buffa;
      • o Diagrama FEPSC(SIPOC)/Six Sigma;
      • os modelos na visão contábil-financeira:
        • de operações (Débito/Crédito)
        • e de organização (Ativo – Passivo – Resultados) ;

    • modelos com estrutura moderna
      • o modelo descritivo de operações de produção do Kanban;
      • o modelo expresso na Figura 7.1 – mapa da atividade semicondutores da Texas Instruments, do livro Reengenharia, de Michael Hammer;

    As palavras e as coisas: conceitos homônimos com significados diferentes




    • 3. dois papéis atribuídos ao homem  com a forma de reflexão que se instaura em nossa cultura depois da descontinuidade epistemológica;
        • raiz  e fundamento de toda empiricidade;
        • elemento do que é empírico.




    • 8. dois conceitos para tempo dependendo do posicionamento do modelo no espectro de modelos e da etapa da operação;
      • tempo calendário em um sistema relativo de anterioridade ou simultaneidade das coisas entre si, (sistema Input-Output) sob o deus Chronos, no pensamento clássico e no pensamento moderno no caminho do Instanciamento da representação;
      • tempo absoluto, em um sistema absoluto sob o deus Kairós – aquele que acontece no interior do ‘Lugar de nascimento do que é empírico‘ lugar em que ‘aquém de toda cronologia ele [o objeto] assume o ser que lhe é próprio‘