Carta ao site 'Inconsciente coletivo'
O prefácio do ‘As palavras e as coisas’
Desde o Prefácio do ‘As palavras e as coisas’ Foucault nos oferece dois momentos muito ricos:
- · O primeiro momento é a visão, extraída de um excerto do livro, de como ele via o papel que ocupa o estudo em estilo de arqueologia realizado no ‘As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas’, com a descrição do que seja o seu trabalho nesse livro, e a inserção dessa obra no seu projeto intelectual (dele, Foucault) ;
- · O segundo momento, é a História do nascimento desse livro, contada por ele mesmo também no Prefácio, e aqui inserida no formato de uma animação,
Essa animação pretende associar as ideias encontradas nesse texto, e respectivos elementos de imagem, plotados em figuras, a modelos de operações e de organizações existentes, que permitem reduzir seu alto grau de abstração e com isso facilitam o entendimento daquilo que Foucault coloca diante de nós com esse livro e ressalta a força da sua arqueologia.
A animação à qual o link acima dá acesso tem 7 min:27 seg de duração procurando relacionar o texto com modelos de operações e suas estruturas. E fala de coisas como:
- Limites do nosso pensamento pela comparação quase que caricatural com outra configuração de pensamento e a impossibilidade de pensar determinadas coisas;
- – Que coisa é impossível pensar? e
- – De que impossibilidades se trata?
- Que há desordem pior do que a do incongruente e a da aproximação do que não convém:
é a desordem em que consistem os fragmentos de um grande número de ordens possíveis todas presentes na dimensão sem lei nem geometria do heteróclito,
(a animação mostra um par de modelos, um para a operações de produção e outro para uma organização empresarial típica, na qual esse grande número de ordens fica evidenciado)
· o papel fundamental das Utopias no pensamento
· a inquietação causada pelas heterotopias (modelos clássicos em geral) que:
-
- solapam secretamente a linguagem
- impedem de nomear isto e aquilo;
- fracionam os nomes comuns ou os emaranham;
- arruínam de antemão a sintaxe –
(note bem, arruínam duas sintaxes e não apenas uma!):- não somente aquela sintaxe que constrói as frases;
- mas aquela outra sintaxe, menos manifesta, que autoriza manter juntas, ao lado e em frente, umas das outras, as palavras e as coisas.
(esta sintaxe só funciona na configuração do pensamento moderno, o de depois de 1825, e com a noção de objeto presente na estrutura do modelo de operações)
A – A minha questão propriamente dita
Falta um alinhamento filosófico entre argumentos usados nas discussões feitas sobre teorias, modelos e sistemas relacionados ao liberalismo e variantes, e isso não se restringe à discussão conduzida no vídeo 254.
-
- pelo uso unanime no domínio da economia, de conceitos característicos do pensamento filosófico clássico, o de antes de 1775, segundo Michel Foucault, como ‘Mercado‘, ‘Processo‘, ‘Riquezas‘;
- e pela não utilização, também unânime, de conceitos que caracterizam a configuração de pensamento surgida depois de 1825, segundo esse mesmo autor, como
‘Lugar de nascimento do que é empírico’, ‘Forma de produção‘, e ‘Análise de produção’
Há entre os vídeos ‘Falando nisso’ 150 e 254 tomados em conjunto, um exemplo desse tratamento inconsistente e heterogêneo porque diferente em cada um, a respeito do mesmo movimento fundamental de pensamento, presente igualmente em nossa cultura: o movimento feito por Lacan, ao alterar, desde na representação, em que ele via estar a psicanálise de Freud, para fora da representação, na psicanálise por ele formulada, encontra congêneres em outras áreas do pensamento.
Esse movimento feito por Lacan na psicanálise não é restrito a esse domínio, mas antes caracteriza a configuração do pensamento no pós descontinuidade epistemológica situada entre os anos de 1775 e 1825, e todas as áreas do saber em nossa cultura ocidental.
Tomo esses dois vídeos, o 150 e o 254, do canal Falando nisso, de Christian Dunker, como elementos de explanação dessa questão: a necessidade de alinhamento filosófico das discussões, levando em conta as mudanças como diz Foucault ‘do modo de ser fundamental das positividades’ antes e depois desse evento ao qual esse autor atribui a força de evento fundador da nossa modernidade no pensamento.
Sobre essas discussões:
I. no vídeo Falando nisso – 150: Signo, significante e significado de 08/10/2017,
está em destaque um movimento no pensamento feito por Lacan:
I.1 manifestado pelo incômodo dele, Lacan, com a base fundamental da psicanálise de Freud, que ele via como sediada na representação;
I.2 e consumado pela decisão dele de criar uma outra psicanálise, no campo da linguagem, usando conceitos atinentes à fala, e agora sediada fora da representação.
II. no vídeo Falando nisso – 254: Neoliberalismo e sofrimento de 31/08/2019,
teorias, modelos e sistemas ligados ao liberalismo não são questionados quanto às respectivas bases fundamentais – se fundados na representação ou se fora dela, e portanto sem uma verificação se mudança do mesmo teor e fundamentalidade que o desse movimento de pensamento feito por Lacan na psicanálise teria ou não ocorrido com essas produções do pensamento ligadas ao liberalismo. Note-se que o vídeo 150 é anterior ao 254.
-
- II.1 Faltam as necessárias verificações, a serem feitas em todo o período de tempo abrangido pela discussão, sobre quais são as bases no pensamento em que se sustentam cada uma das teorias, modelos e sistemas relacionados ao liberalismo e neoliberalismo (e suas variantes).
- II.2 Ao final do áudio deste vídeo 254 está a afirmação de que o liberalismo envolve uma psicologia. Entretanto, ao tempo em que a alteração feita por Lacan implica em uma alteração no modo como conhecemos o que dizemos conhecer, – uma alteração epistemológica, fica-se à espera do surgimento de mais do que uma psicologia, do mesmo modo que teríamos, e coexistentes, duas psicanálises diferentes.
Reflexões sobre o movimento feito por Lacan em sua psicanálise – desde modelo com base na representação para modelo baseado fora dela
À primeira vista podem parecer duas coisas:
- que a psicanálise de Lacan está ‘na linguagem’ e modelada com elementos atinentes à fala; e que a de Freud não está, ou que esta independa da linguagem ao contrário daquela.
- e que a representação é a base da psicanálise de Freud, mas que a psicanálise de Lacan prescinde totalmente dessa ideia de representação, o que é falso.
Esta ideia, a representação, está em ambas as duas psicanálises, como não poderia deixar de ser dada a nossa condição humana. E a linguagem também está presente em ambas, obviamente, e o que muda é a configuração da linguagem usada em cada caso; melhor dizendo, muda a origem do valor carregado pela proposição às representações, em cada caso. E valor é o parâmetro que é considerado na decisão sobre se a troca pode ou não ser efetuada.
Dado que a alteração feita por Lacan em sua psicanálise está em que as proposições na linguagem por ele escolhida, carregam às representações valor cuja origem é externa à linguagem. Essa origem externa à linguagem do valor carregado na representação permite uma operação – de qualquer tipo inclusive de troca – muito mais ampla, porque pode se iniciar em um ponto em que a representação não existe.
E aí está o interesse dessa linguagem, porque ela permite vislumbrar uma operação de troca que no lugar de analisar assim, diretamente, a troca de um objeto por outro, permite prospectar a permutabilidade de um objeto cuja representação ainda não existe, e dependendo dessa prospecção, levar o objeto ao Circuito das trocas, ou ao Mercado.
Ou seja, a operação clássica do pensamento, que tinha como pressuposto a existência de todas as representações no início da operação, agora foi muito ampliada – exatamente pela alteração feita na linguagem, para considerar a operação de construção de representações para objetos ainda não representados.
O significado e o funcionamento do movimento feito por Lacan na psicanálise, à luz do pensamento de Michel Foucault no livro ‘As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas.
Michel Foucault discorre sobre o significado e o funcionamento, com as razões e porquês, de um movimento de pensamento como o feito por Lacan e descreve
as duas possibilidades de leitura do fenômeno ‘operações’ e as correspondentes origens de valor das proposições e da representação tanto na linguagem da psicanálise de Freud como na outra linguagem sobre a qual estaria a psicanálise de Lacan. Esse texto está em ‘As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas, no Capítulo 6 – Trocar; tópico V. A formação do valor.
Por atingir a linguagem em seu âmago – nas origens do valor atribuído à proposição e carregado por ela para a representação, esse movimento é absolutamente geral e atinge todas as regiões do saber. Em resumo, o pensamento de Foucault nesse texto diz o seguinte:
Uma operação de troca envolve dois objetos, um deles dado pelo outro em operação de troca. Essa operação de troca, como fenômeno, guarda, portanto, relação próxima com as operações de obtenção de cada um desses dois objetos.
Podemos ver o que sejam operações, – sejam elas as de troca ou aquelas outras de obtenção de objetos eventualmente destinados a operações de trocas, segundo duas possibilidades de inserção do ponto de início de leitura dos fenômenos ‘operações’ e ‘operações de troca’. A escolha do posicionamento desses pontos de início de leitura do fenômeno operações, as de obtenção ou as de troca, é feita (se nos posicionamos do ponto de vista da troca) em função da disponibilidade ou não dos dois objetos requeridos para que essa operação de troca possa ocorrer,
- Se sim, existem os dois objetos requeridos pela operação de troca:
o ponto de leitura da operação pode ser posicionado no exato momento do cruzamento (do andamento das respectivas operações de obtenção) entre o que é dado e o que é recebido na operação de troca; ou então
- Se não existe pelo menos um dos objetos requeridos pela operação de troca:
o ponto de leitura da operação precisa ser posicionado antes desse momento do cruzamento quando o objeto ainda não existe; e nesse momento inicia-se a prospecção da permutabilidade desse objeto ainda inexistente quando sua representação for construída, instanciada, e então for levado ao Circuito das trocas (ou Mercado). Faz-se, então, uma aposta de que esse objeto poderá, no futuro, fazer par com um outro em uma operação de troca em que um é dado e outro é recebido.
Obviamente que na segunda possibilidade – objeto ainda não disponível – o valor não pode ser proveniente da representação dele, que também não existe. O pensamento precisa, então, descobrir outra origem de valor para a representação que terá de construir, e isso se dá pela incorporação daquele tipo de atividade ‘que está na origem do valor das coisas’ e que só aparece com David Ricardo. E a operação de obtenção do objeto faltante é acionada e a representação para esse objeto é construída.
A cada uma dessas possibilidades de inserção do ponto de início de leitura do fenômeno ‘operações’ corresponde uma diferente origem do valor carregado pela proposição para a representação – existente ou em construção. E valor é o parâmetro que deve ser considerado para a decisão sobre se a troca será efetivada ou não.
As duas origens de valor atribuído à proposição e por ela carregado para a representação são os seguintes:
- no ponto de cruzamento entre o objeto que é dado e o objeto que é recebido,
o valor é atribuído diretamente à proposição que o carrega para a representação;
- no ponto de início da prospecção da permutabilidade do objeto ainda não disponível para troca, – e portanto da operação de construção da representação para o objeto não disponível -,
o valor é carregado para a proposição a partir de sua origem obtida em:
-
- designações primitivas;
- linguagem de ação ou raiz (linguagem de uso).
Mercado, Processo, Riquezas: unanimidades como conceitos;
falta uma cartografia do espaço em que ocorrem operações: ‘Circuito das trocas’, ‘Lugar de nascimento do que é empírico’, ‘Forma de produção’, Lugar desde onde se fala’, ‘Lugar do falado’
Há uma série de unanimidades quando se fala de teorias, modelos e sistemas ligados ao liberalismo e variantes; e ao mesmo tempo falta uma cartografia que mapeie o espaço em que ocorrem operações, seja aquelas de obtenção de coisas, sejam as operações de troca de objetos uns pelos outros:
- A primeira é quanto à utilização da ideia de Mercado.
Entendendo Mercado como diz Foucault, como o ‘Circuito das trocas’, essa segunda possibilidade com o posicionamento do ponto de início de leitura da operação antes de o objeto estar disponível – a usada por Lacan, arrasta para o centro do cenário de operações o ‘Lugar de nascimento do que é empírico’, anterior ao ‘Circuito das trocas’ ou Mercado.
- outra unanimidade é a ideia de Processo.
O elemento central de operações que ocorrem no ‘Circuito das trocas’, ou Mercado é Processo.
“Assim como a Ordem no pensamento clássico não era a harmonia visível das coisas, seu ajustamento, sua regularidade ou sua simetria constatados, mas o espaço próprio de seu ser e aquilo que, antes de todo conhecimento efetivo, as estabelecia no saber, assim também a História, a partir do século XIX, define o lugar de nascimento do que é empírico, lugar onde, aquém de toda cronologia estabelecida, ele assume o ser que lhe é próprio.” As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas; Cap. 7 – Os limites da representação; tópico I – A idade da história
Michel Foucault fala de um certo ‘Lugar de nascimento do que é empírico’, lugar onde exatamente aquele objeto que ainda não está disponível para uma operação de troca, como na segunda possibilidade acima, ‘assume o ser que lhe é próprio’, isto é, tem a respectiva representação construída. Veja a citação acima.
- Forma de produção: o elemento central do modelo de operações sob o pensamento moderno
Mas entendendo o que ocorre no ‘Lugar de nascimento do que é empírico’, com seus subespaços ‘Lugar desde onde se fala’ e ‘Lugar do falado’, vemos que o elemento central desta operação de obtenção do objeto faltante para troca, que pode ser entendida como uma prospecção da permutabilidade desse objeto, esse elemento central agora é ‘Forma de produção’ em vez de ‘Processo’. E logo será possível associar ‘Lugar de nascimento do que é empírico’ e ‘Forma de produção’; e estas duas ideias, ao Princípio Dual de Trabalho de David Ricardo.
E praticamente ninguém fala do que seja ‘Lugar de nascimento do que é empírico’, e pouco se fala de ‘Forma de produção‘ porque não cabem no pensamento monolítico de Adam Smith.
Processo e Forma de produção como verbos, segundo a teoria do verbo no ‘As palavras e as coisas’ de Michel Foucault
Com a intenção de diminuir possíveis dúvidas entre os conceitos de ‘Processo’ e o de ‘Forma de produção’, essas duas ideias, elementos centrais em configurações de pensamento diferentes, têm a natureza de verbos. Pois veja abaixo dois tratamentos dados por Foucault a verbos.
- Para o verbo ‘Processo’
“A única coisa que o verbo afirma é a coexistência de duas representações: por exemplo, a do verde e da árvore, a do homem e da existência ou da morte; é por isso que o tempo dos verbos não indica aquele em que as coisas existiram no absoluto, mas um sistema relativo de anterioridade ou de simultaneidade das coisas entre si.” As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas; Cap. IV – Falar; tópico III. A teoria do verbo
Não por acaso, a estrutura Input-Output e seu sistema combinam à perfeição com um sistema relativo de anterioridade ou de simultaneidade das coisas entre si, e a visão de operações como uma transformação de Entradas em Saídas.
- Para o verbo ‘Forma de produção’
“É preciso, portanto, tratar esse verbo como um ser misto, ao mesmo tempo palavra entre as palavras, preso às mesmas regras, obedecendo como elas às leis de regência e de concordância; e depois, em recuo em relação a elas todas, numa região que não é aquela do falado mas aquela donde se fala.” As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas; Cap. IV – Falar; tópico III. A teoria do verbo
Estamos diante da Forma de produção, um ser misto que habita o interior do ‘Lugar de nascimento do que é empírico’, e neste, o interior do ‘Lugar desde onde se fala’, pertencente ao domínio do Pensamento e da Língua.
- e há uma unanimidade fortemente associada às teorias liberais: Riquezas
“Nem vida, nem ciência da vida na época clássica;
tampouco filologia.
Mas sim uma história natural, uma gramática geral.Do mesmo modo, não há economia política
porque, na ordem do saber, a produção não existe.Em contrapartida, existe, nos séculos XVII e XVIII,
uma noção que nos permaneceu familiar,
embora tenha perdido para nós sua precisão essencial.Nem é de “noção” que se deveria falar a seu respeito,
pois não tem lugar no interior de um jogo de conceitos econômicos
que ela deslocaria levemente, confiscando um pouco de seu sentido
ou corroendo sua extensão.Trata-se antes de um domínio geral:
de uma camada bastante coerente e muito bem estratificada,
que compreende e aloja, como tantos objetos parciais,
as noções de valor, de preço, de comércio, de circulação, de renda, de interesse.Esse domínio, solo e objeto da “economia” na idade clássica, é o da riqueza.
Inútil colocar-lhe questões vindas de uma economia de tipo diferente, organizada, por exemplo, em torno da produção ou do trabalho; inútil igualmente analisar seus diversos conceitos (mesmo e sobretudo se seus nomes em seguida se perpetuaram, com alguma analogia de sentido), sem levar em conta o sistema em que assumem sua positividade.” As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas; Cap. 6 – Trocar; tópico I – A análise das riquezas
As visões de operações de todo tipo, incluindo as operações de troca envolvendo pares de objetos, quando na representação e quando fora da representação
Essas duas possibilidades de leitura da operação de troca correspondem a visões do fenômeno da troca e das operações de obtenção e de instanciamento dos dois objetos envolvidos e portanto são refletidas nos modelos das operações que ocorrem em cada caso. O fenômeno da troca sobrepõe-se ao fenômeno da obtenção e instanciamento respectivamente dos dois objetos.
Relação dessas duas visões de operações e de origens da linguagem com o pensamento de Adam Smith e David Ricardo
Podemos considerar o fenômeno operações como operação de obtenção de objeto, simplesmente, e também como operação de troca, com o par de objetos que também precisam ser obtidos. O posicionamento do ponto inicial de leitura do fenômeno operações, – nos dois casos -, pode ser feito no ponto em que um dos objetos envolvidos na troca ainda não está disponível, antes da possibilidade da troca. Isso implica em uma formidável ampliação da visão que temos do fenômeno ‘operação’ e ‘operação de troca’.
A visão desse fenômeno se expande e passa a incluir todo o caminho da Construção da representação (projeto) do objeto ainda não disponível.
Esse ponto de início está posicionado antes do momento em que uma troca é possível.
Pois foi exatamente essa formidável expansão de horizontes tanto na ‘operação de obtenção’ de um dos objetos, como também na ‘operação de troca’ de um par de objetos um pelo outro, em que esse objeto esteja envolvido, que foi feita por David Ricardo, em 1817, ampliando o conceito de trabalho se tivermos como referência o pensamento de Adam Smith, de 1776.
E exatamente por isso Ricardo e Smith não podem ser tratados em um mesmo bloco.
Se a cartilha do liberalismo for a de Adam Smith e Locke, como comumente se propala, Ricardo está fora.
Não pertencem ao mesmo bloco se considerarmos como critério o modo como cada um deles ‘conhece’ o que seja trabalho, epistemologicamente distinto. Não dá para entender uma teoria, modelo ou sistema que tenha como fundadores simultaneamente Smith e Ricardo sem perceber que, a despeito de muitas semelhanças e congruências, toma-los no mesmo bloco é desconhecer o movimento feito por Lacan na psicanálise.
Veja nesta página os dois princípios de trabalho, o de Adam Smith, de 1776, e o de David Ricardo, de 1817, posicionados por Michel Foucault de lados opostos da Descontinuidade epistemológica por ele situada entre os anos de 1775 e 1825.
B – A ausência do homem nas teorias, modelos e sistemas sob o pensamento filosófico clássico, o de antes de 1775, segundo Michel Foucault
Michel Foucault é direto, claro e taxativo sem deixar margem a dúvidas. Veja as seguintes citações dele no ‘As palavras e as coisas”:
“Antes do fim do século XVIII, o homem não existia. Não mais que a potência da vida, a fecundidade do trabalho ou a espessura histórica da linguagem. É uma criatura muito recente que a demiurgia do saber fabricou com suas mãos há menos de 200 anos: mas ele envelheceu tão depressa que facilmente se imaginou que ele esperara na sombra, durante milênios, o momento de iluminação em que seria enfim conhecido. Certamente poder-se-ia dizer que a gramática geral, a história natural, a análise das riquezas eram, num certo sentido, maneiras de reconhecer o homem, mas é preciso discernir. Sem dúvida, as ciências naturais trataram do homem como de uma espécie ou de um gênero: a discussão sobre o problema das raças, no século XVIII, o testemunha. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas; Cap. IX – O homem e seus duplos; tópico II – O lugar do rei
“É por isso, sem dúvida, que a história natural, na época clássica, não se pode constituir como biologia. Com efeito, até o fim do século XVIII, a vida não existe. Apenas existem seres vivos. Estes formam uma, ou antes, várias classes na série de todas as coisas do mundo: e se se pode falar da vida, é somente como de um caráter – no sentido taxinômico da palavra – na universal distribuição dos seres.” Cap. V – Classificar; VII – O discurso da natureza
O surgimento do homem em nossa cultura: o tipo de reflexão que se instaura em nossa cultura, marcando a entrada em nossa modernidade no pensamento
“Instaura-se uma forma de reflexão, bastante afastada do cartesianismo e da análise kantiana, em que está em questão, pela primeira vez, o ser do homem, nessa dimensão segundo a qual o pensamento, se dirige ao impensado, e com ele se articula.” Cap. 9. O homem e seus duplos; tópico V – O “cogito” e o impensado
“A partir de Ricardo, o trabalho, desnivelado em relação à representação, e instalando-se em uma região onde ela não tem mais domínio, organiza-se segundo uma causalidade que lhe é própria.” Cap. 8. Trabalho, Vida e Linguagem; tópico II. Ricardo
Todos os autores considerados como fundamentos do liberalismo estão posicionados por Foucault no período clássico do pensamento filosófico em nossa cultura.
C – Os dois obstáculos enfrentados por Foucault: a impossibilidade de fundar as sínteses no espaço da representação e a obrigação de constituir, para além do objeto, os quase transcendentais Vida, Trabalho e Linguagem:
- obstáculo 1: a impossibilidade encontrada em certa configuração do pensamento, de fundar as sínteses – do objeto da operação de pensamento, através de sua representação (projeto) -,
no espaço da representação; - obstáculo 2: a obrigação de abrir o campo transcendental da subjetividade e constituir, para além do objeto, dos quase-transcendentais Vida, Trabalho e Linguagem
um espectro de modelos pode ser traçado entendendo esses obstáculos descritos por Foucault
Esses são os dois obstáculos ou pedras de tropeço que Foucault teve de enfrentar em seu trabalho no ‘As palavras e as coisas’. Veja aqui o que ele diz:
“Eis que nos adiantamos bem para além do acontecimento histórico que se impunha situar – bem para além das margens cronológicas dessa ruptura que divide, em sua profundidade, a epistémê do mundo ocidental e isola para nós o começo de certa maneira moderna de conhecer as empiricidades. É que o pensamento que nos é contemporâneo e com o qual, queiramos ou não, pensamos, se acha ainda muito dominado pela impossibilidade, trazida à luz por volta do fim do século XVIII, de fundar as sínteses no espaço da representação e pela obrigação correlativa, simultânea, mas logo dividida contra si mesma, de abrir o campo transcendental da subjetividade e de constituir inversamente, para além do objeto, esses “quase-transcendentais” que são para nós a Vida, o Trabalho, a Linguagem.” Cap. 8 – Trabalho, Vida e Linguagem; tópico I – As novas empiricidades
Segmentos de um espectro de modelos:
- AQUÉM do objeto: modelos incapazes de fundar as sínteses no espaço da representação
- DIANTE do objeto: modelos capazes de fundar as sínteses no espaço da representação;
- Para ALÉM do objeto: modelos nos quais os “quase-transcendentais Vida, Trabalho e Linguagem estão constituídos
Um primeiro critério ‘macro’ para separar teorias, modelos e sistemas quanto a suas propriedades originais e constitutivas.
D – Adam Smith e David Ricardo
“Na análise de Adam Smith, o trabalho devia seu privilégio ao poder que se lhe reconhecia de estabelecer entre os valores das coisas uma medida constante: permitia fazer equivaler na troca objetos de necessidade cujo aferimento de outro modo teria sido exposto à mudança ou submetido a uma essencial relatividade. No entanto, só podia assumir tal papel à custa de uma condição: era preciso supor que a quantidade de trabalho indispensável para produzir uma coisa fosse igual à quantidade de trabalho que essa coisa, em retorno, pudesse comprar no processo da troca. Ora, como justificar essa identidade, em que fundá-la a não ser sobre uma certa assimilação, admitida na sombra mais que esclarecida, entre o trabalho como atividade de produção e o trabalho como mercadoria que se pode comprar e vender? Nesse segundo sentido, ele não pode ser utilizado como medida constante, pois “experimenta tantas variações quanto as mercadorias ou bens com os quais pode ser comparado”1. Essa confusão, em Adam Smith, tinha sua origem no primado concedido à representação: toda mercadoria representava certo trabalho, e todo trabalho podia representar certa quantidade de mercadoria. A atividade dos homens e o valor das coisas comunicavam-se no elemento transparente da representação. É aí que a análise de Ricardo encontra seu lugar e a razão de sua importância decisiva. Ela não é a primeira a organizar um lugar importante para o trabalho no jogo da economia; mas faz explodir a unidade da noção, e distingue, pela primeira vez, de uma forma radical, essa força, esse esforço, esse tempo do operário que se compram e se vendem, e essa atividade que está na origem do valor das coisas. Ter-se-á pois, por um lado, o trabalho que os operários oferecem, que os empresários aceitam ou demandam e que é retribuído pelos salários; por outro, ter-se-á o trabalho que extrai os metais, produz os bens, fabrica os objetos, transporta as mercadorias e forma assim valores permutáveis que antes dele não existiam e sem ele não teriam aparecido. Certamente, para Ricardo como para Smith, o trabalho pode realmente medir a equivalência das mercadorias que passam pelo circuito das trocas: “Na infância das sociedades, o valor permutável das coisas ou a regra que fixa a quantidade que se deve dar de um objeto por outro só depende da quantidade comparativa de trabalho que foi empregada na produção de cada um deles.” A diferença, porém, entre Smith e Ricardo está no seguinte: para o primeiro, o trabalho, porque analisável em jornadas de subsistência, pode servir de unidade comum a todas as outras mercadorias (de que fazem parte os próprios bens necessários à subsistência); para o segundo, a quantidade de trabalho permite fixar o valor de uma coisa, não apenas porque este seja representável em unidades de trabalho, mas primeiro e fundamentalmente porque o trabalho como atividade de produção é “a fonte de todo valor”. Já não pode este ser definido, como na idade clássica, a partir do sistema total de equivalências e da capacidade que podem ter as mercadorias de se representarem umas às outras. O valor deixou de ser signo, tomou-se um produto.” Cap. 8 – Trabalho, Vida e Linguagem; tópico II. Ricardo
Comentários