“O poeta
faz chegar a similitude até os signos
que a dizem,
o louco
carrega todos os signos com uma semelhança
que acaba por apagá-los
Dom Quixote é a primeira das obras modernas,
- pois que aí se vê a razão cruel das identidades e das diferenças desdenhar infinitamente dos signos e das similitudes:
- pois que aí a linguagem rompe seu velho parentesco com as coisas, para entrar nessa soberania solitária donde só reaparecerá, em seu ser absoluto, tornada literatura;
- pois que aí a semelhança entra numa idade que é, para ela, a da desrazão e da imaginação.
Uma vez desligados a similitude e os signos,
- duas experiências podem se constituir
- e duas personagens aparecer face a face.
O louco,
- entendido não como doente,
- mas como desvio constituído e mantido, como função cultural indispensável,
tornou-se, na experiência ocidental, o homem das semelhanças selvagens.
Essa personagem, tal como é bosquejada nos romances ou no teatro da época barroca e tal como se institucionalizou pouco a pouco até a psiquiatria do século XIX, é aquela que se alienou na analogia.
É o jogador desregrado do Mesmo e do Outro.
Toma as coisas pelo que não são e as pessoas umas pelas outras; ignora seus amigos, reconhece os estranhos; crê desmascarar e impõe uma máscara. Inverte todos os valores e todas as proporções, porque acredita, a cada instante, decifrar signos: para ela, os ouropéis fazem um rei.
Segundo a percepção cultural que se teve do louco até o fim do século XVIII, ele só é o Diferente na medida em que não conhece a Diferença; por toda a parte vê semelhanças e sinais da semelhança; todos os signos para ele se assemelham e todas as semelhanças valem como signos.
Na outra extremidade do espaço cultural, mas totalmente próximo por sua simetria,
o poeta
- é aquele que, por sob as diferenças nomeadas e cotidianamente previstas, reencontra os parentescos subterrâneos das coisas, suas similitudes dispersadas.
- Sob os signos estabelecidos e apesar deles, ouve um outro discurso, mais profundo, que lembra o tempo em que as palavras cintilavam na semelhança universal das coisas: a Soberania do Mesmo, tão difícil de enunciar, apaga na sua linhagem a distinção dos signos.
Daí sem dúvida, na cultura ocidental moderna, o face-a-face da poesia e da loucura.
Mas já não se trata do velho tema platônico do delírio inspirado.
Trata-se da marca de uma nova experiência da linguagem e das coisas.
Às margens de um saber que separa os seres, os signos e as similitudes, e como que para limitar seu poder, o louco garante a função do homossemantismo: reúne todos os signos e os preenche com uma semelhança que não cessa de proliferar.
O poeta garante a função inversa; sustenta o papel alegórico; sob a linguagem dos signos e sob o jogo de suas distinções bem determinadas, põe-se à escuta de “outra linguagem”, aquela, sem palavras nem discursos, da semelhança.
O poeta faz chegar a similitude até os signos que a dizem,
o louco carrega todos os signos com uma semelhança que acaba por apagá-los.
Assim, na orla exterior da nossa cultura e na proximidade maior de suas divisões essenciais, estão ambos nessa situação de “limite” – postura marginal e silhueta profundamente arcaica – onde suas palavras encontram incessantemente seu poder de estranheza e o recurso de sua contestação.
Entre eles abriu-se o espaço de um saber onde, por uma ruptura essencial no mundo ocidental,
- a questão não será mais a das similitudes,
- mas a das identidades e das diferenças.
As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas;
Cap. 3 – Representar;
tópico I. Dom Quixote
de Michel Foucault
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