Condições de possibilidade das ciências humanas: consciência epistemológica do homem
“Antes do fim do século XVIII,
o homem não existia.
Não mais que a potência da vida,
a fecundidade do trabalho
ou a espessura histórica da linguagem.
É uma criatura muito recente que a demiurgia do saber fabricou com suas mãos há menos de 200 anos: mas ele envelheceu tão depressa que facilmente se imaginou que ele esperara na sombra, durante milênios, o momento de iluminação em que seria enfim conhecido.
Certamente poder-se-ia dizer que
- a gramática geral,
- a história natural,
- a análise das riquezas
eram, num certo sentido, maneiras de reconhecer o homem, mas é preciso discernir.
Sem dúvida, as ciências naturais
trataram do homem
- como de uma espécie
- ou de um gênero:
a discussão sobre o problema das raças, no século XVIII,
o testemunha.”
A gramática e a economia, por outro lado,
utilizavam noções como
as de necessidade, de desejo,
ou de memória e de imaginação.
Mas não havia
consciência epistemológica
do homem como tal.A epistémê clássica
se articula segundo linhas
que de modo algum
isolam o domínio próprio e específico do homem.
E se se insistir ainda,
se se objetar que nenhuma época, porém,
concedeu tanto à natureza humana,
deu-lhe estatuto mais estável, mais definitivo,
mais bem ofertado ao discurso
– poder-se-á responder dizendo que
o próprio conceito de natureza humana
e a maneira como ele funcionava
excluíam que houvesse
uma ciência clássica do homem.
As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo IX – O homem e seus duplos;
tópico II – O lugar do rei
“Vê-se que as ciências humanas
- não são uma análise do que o homem é por natureza;
- são antes uma análise que se estende entre
- o que o homem é em sua positividade (ser que vive, trabalha, fala)
- e o que permite a esse mesmo ser saber (ou buscar saber)
- o que é a vida,
- em que consistem
a essência do trabalho e suas leis, - e de que modo ele pode falar.
As ciências humanas ocupam, pois, essa distância que separa (não sem uni-las)
- a biologia, a economia, a filologia
- daquilo que lhes dá possibilidade no ser mesmo do homem.
Seria errôneo, portanto,
- fazer das ciências humanas o prolongamento, interiorizado na espécie humana, no seu organismo complexo, na sua conduta e na sua consciência, dos mecanismos biológicos;
não menos errôneo
- colocar, no interior das ciências humanas, a ciência da economia e da linguagem (cuja irredutibilidade às ciências humanas é manifestada pelo esforço para constituir uma economia e uma linguística puras).
De fato,
- nem as ciências humanas estão no interior dessas ciências, nem as interiorizam, inclinando-as em direção à subjetividade do homem;
- se as retomam na dimensão da representação, é antes reassumindo-as em sua vertente exterior, deixando-as na sua opacidade, acolhendo como coisas os mecanismos e os funcionamentos que elas isolam, interrogando estes últimos não no que são, mas no que deixam de ser quando se abre o espaço da representação;
- e, a partir daí, elas mostram como pode nascer e desdobrar-se uma representação do que eles sejam.
Elas reconduzem sub-repticiamente as ciências da vida, do trabalho e da linguagem, para o lado dessa analítica da finitude que mostra como pode o homem haver-se, no seu ser, com essas coisas que ele conhece e conhecer essas coisas que determinam, na positividade, seu modo de ser.
Mas aquilo que a analítica requer na interioridade ou ao menos na dependência profunda de um ser que não deve sua finitude senão a si mesmo, as ciências humanas o desenvolvem na exterioridade do conhecimento.
É por isso que o específico das ciências humanas
- não é o direcionamento a certo conteúdo (esse objeto singular que é o ser humano);
- é muito mais um caráter puramente formal: o simples fato de estarem, em relação às ciências em que o ser humano é dado como objeto
- (exclusivo para a economia e a filologia,
- ou parcial para a biologia),
- numa posição de reduplicação, e de que essa reduplicação possa valer a fortiori para elas mesmas.
As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo X – As ciências humanas;
tópico II – A forma das ciências humanas