Capítulo VIII - Trabalho, vida e linguagem; tópico II. Ricardo
Afirma-se facilmente que Adam Smith fundou a economia política moderna – poder-se-ia dizer a economia simplesmente – introduzindo o conceito de trabalho num domínio de reflexão que ainda não o conhecia: de imediato, todas as velhas análises da moeda, do comércio e da troca teriam sido remetidas a uma idade pré-histórica do saber – com exceção talvez unicamente da fisiocracia, à qual se concede o mérito de ter tentado ao menos a análise da produção agrícola.
É verdade que Adam Smith refere, logo de início, a noção de riqueza à de trabalho:
“O trabalho anual de uma nação é o fundo primitivo que fornece ao consumo anual todas as coisas necessárias e cômodas à vida; e essas coisas são sempre ou o produto imediato desse trabalho ou compradas de outras nações com esse produto”(1);
é também verdade que Smith reporta o “valor em uso” das coisas à necessidade dos homens, e o “valor em troca” à quantidade de trabalho aplicada para produzi-lo:
“O valor de uma mercadoria qualquer, para aquele que a possui e que não pretenda pessoalmente dela fazer uso ou consumi-Ia, mas que tem a intenção de trocá-Ia por outra coisa, é igual à quantidade de trabalho que essa mercadoria lhe permite comprar ou encomendar.”(2)
De fato, a diferença entre as análises de Smith e as de Turgot ou Cantillon é menor do que se crê; ou, antes, não reside lá onde se imagina.
Desde Cantillon e antes dele já se distinguiam perfeitamente o valor de uso e o valor de troca; desde Cantillon igualmente, utilizava-se a quantidade de trabalho para medir este último.
Mas a quantidade de trabalho inscrita no preço das coisas não passava de um instrumento de medida, ao mesmo tempo relativo e redutível. Com efeito, o trabalho de um homem valia a quantidade de alimento que era necessária a ele e à sua família para os manter durante o tempo que durava a obra(3). De sorte que, em última instância, a necessidade – o alimento, o vestuário, a habitação – definia a medida absoluta do preço de mercado.
Ao longo de toda a idade clássica, é a necessidade que mede as equivalências, o valor de uso que serve de referência absoluta aos valores de troca; é o alimento que afere os preços, dando à produção agrícola, ao trigo e à terra o privilégio que todos lhes reconheceram.
Adam Smith não inventou portanto o trabalho como conceito econômico, porquanto já o encontramos em Cantillon, em Quesnay, em Condillac;
nem mesmo lhe faz desempenhar um papel novo, pois dele também se serve como medida do valor de troca:
“O trabalho é a medida real do valor permutável de toda mercadoria.”(4)
Desloca-o porém:
- conserva-lhe sempre a função de análise das riquezas permutáveis;
- essa análise, entretanto, não é mais um puro e simples momento para reconduzir a troca à necessidade (e o comércio ao gesto primitivo da permuta);
- ela descobre uma unidade de medida irredutível, insuperável e absoluta.
- Desde logo, as riquezas não estabelecerão mais a ordem interna de suas equivalências por uma comparação dos objetos a trocar, nem por uma estimação do poder próprio a cada um de representar um objeto de necessidade (e, em último recurso, o mais fundamental de todos, o alimento);
- elas se decomporão segundo as unidades de trabalho que realmente as produziram.
As riquezas são sempre elementos representativos que funcionam: mas o que representam finalmente
- não é mais o objeto do desejo,
- é o trabalho.
Duas objeções, porém, logo se apresentam:
como pode o trabalho ser medida fixa do preço natural das coisas, se ele próprio tem um preço – e que é variável?
Como pode o trabalho ser uma unidade insuperável, se ele muda de forma e se o progresso das manufaturas o torna incessantemente mais produtivo, dividindo-o sempre mais?
Ora, é justamente através dessas objeções e como que por seu intermédio que podemos trazer à luz a irredutibilidade do trabalho e seu caráter primeiro.
Com efeito, há regiões no mundo e momentos numa mesma região em que o trabalho é caro: os operários são pouco numerosos, os salários elevados; em outras partes e em outros momentos, a mão-de-obra abunda, é mal retribuída, o trabalho é barato.
Mas o que se modifica nessas alternâncias é a quantidade de alimento que se pode obter com um dia de trabalho;
- se há poucas mercadorias e muitos consumidores, cada unidade de trabalho só será recompensada por uma fraca quantidade de subsistência;
- em contrapartida, ela será bem paga se as mercadorias se encontram em abundância.
Isso não passa de conseqüências de uma situação de mercado; o próprio trabalho, as horas passadas, o esforço e a fadiga são, de todo modo, os mesmos; e quanto mais necessárias forem essas unidades, tanto mais caros serão os produtos.
“As quantidades iguais de trabalho são sempre iguais para aquele que trabalha.”(5)
E contudo poder-se-ia dizer que essa unidade não é fixa, já que, para produzir um único e mesmo objeto, será preciso, conforme a perfeição das manufaturas (isto é, segundo a divisão do trabalho que se instaurou), um labor mais ou menos longo.
Mas, na verdade, não foi o trabalho em si mesmo que mudou; foi a relação do trabalho com a produção de que ele é suscetível.
O trabalho, entendido como jornada, esforço e fadiga, é um numerador fixo: só o denominador (o número de objetos produzidos) é capaz de variações.
Um operário que tivesse de fazer sozinho as 18 operações distintas de que necessita a fabricação de um alfinete não produziria, sem dúvida, mais que cerca de 20 deles no curso de todo um dia.
Mas dez operários que tivessem de efetuar cada qual somente uma ou duas operações poderiam fazer juntos mais de 48 mil alfinetes num dia; portanto, cada operário, realizando uma décima parte desse produto, pode ser considerado como fazendo em seu dia 4.800 alfinetes(6).
A potência produtiva do trabalho foi multiplicada; numa mesma unidade (a jornada de um assalariado), os objetos fabricados aumentaram; seu valor de troca vai portanto baixar, isto é, cada um deles, por sua vez, só poderá comprar uma quantidade de trabalho proporcionalmente menor.
O trabalho não diminuiu em relação às coisas; foram as coisas que como que se estreitaram em relação à unidade de trabalho.
Troca-se, é verdade, porque se têm necessidades; sem elas, o comércio não existiria, nem tampouco o trabalho, nem sobretudo essa divisão que o torna mais produtivo. Inversamente, são as necessidades que, quando satisfeitas, limitam o trabalho e seu aperfeiçoamento:
“Uma vez que é a faculdade de trocar que dá lugar à divisão do trabalho, o aumento dessa divisão deve, por conseqüência, ser sempre limitado pela extensão da faculdade de trocar ou, em outros termos, pela extensão do mercado.”(7)
As necessidades e a troca de produtos que podem responder a elas são sempre o princípio da economia: são seu primeiro motor e a circunscrevem; o trabalho e a divisão que o organiza não passam de seus efeitos.
Mas, no interior da troca, na ordem das equivalências, a medida que estabelece as igualdades e as diferenças é de natureza diversa da necessidade. Não está ligada apenas ao desejo dos indivíduos, modificada com ele e variável como ele. É uma medida absoluta, se com isso se entender que não depende do coração dos homens ou de seu apetite; impõe-se-lhes do exterior: é seu tempo e é seu esforço.
Em relação à de seus predecessores, a análise de Adam Smith representa um desfecho essencial:
- ela distingue a razão da troca e a medida do permutável,
- a natureza do que é trocado e as unidades que permitem sua decomposição.
Troca-se porque se tem necessidade, e os objetos precisamente de que se tem necessidade, mas a ordem das trocas, sua hierarquia e as diferenças que aí se manifestam são estabelecidas pelas unidades de trabalho que foram depositadas nos objetos em questão.
Se,
- para a experiência dos homens – ao nível do que se vai incessantemente chamar de psicologia – o que eles trocam é o que lhes é “indispensável, cômodo ou agradável”,
- para o economista, o que circula sob a forma de coisas é trabalho.
Não mais objetos de necessidade que se representam uns aos outros, mas tempo e fadiga, transformados, ocultos, esquecidos.
Esse desfecho é de grande importância.
- Certamente, Adam Smith analisa ainda, como seus predecessores, esse campo de positividade a que o século XVIII chamou “riquezas”; e, com isso, entendia também ele objetos de necessidade – os objetos portanto de uma certa forma de representação – representando-se a si próprios nos movimentos e nos processos da troca.
- Mas, no interior dessa reduplicação e para regular sua lei, as unidades e as medidas da troca, ele formula um princípio de ordem que é irredutível à análise da representação:
- traz à luz o trabalho, isto é, o esforço e o tempo, essa jornada que, ao mesmo tempo talha e gasta a vida de um homem.
A equivalência dos objetos do desejo não é mais estabelecida por intermédio de outros objetos e de outros desejos, mas por uma passagem ao que lhes é radicalmente heterogêneo;
se há uma ordem nas riquezas, se isto pode comprar aquilo, se o ouro vale duas vezes mais que a prata, não é mais porque os homens têm desejos comparáveis;
não é porque através de seu corpo eles experimentam a mesma fome ou porque o coração de todos obedece às mesmas seduções;
é porque todos eles são submetidos ao tempo, ao esforço, à fadiga e, indo ao extremo, à própria morte.
Os homens trocam porque experimentam necessidades e desejos; mas podem trocar e ordenar essas trocas porque são submetidos ao tempo e à grande fatalidade exterior.
Quanto à fecundidade desse trabalho, não é ela devida tanto à habilidade pessoal ou ao cálculo dos interesses; funda-se em condições, também estas, exteriores à sua representação:
progresso da indústria, aumento da divisão de tarefas, acúmulo de capitais, divisão do trabalho produtivo e do trabalho não-produtivo.
Vê-se de que maneira a reflexão sobre as riquezas começa, com Adam Smith, a extravasar o espaço que lhe era designado na idade clássica;
- era então alojada no interior da “ideologia” – da análise da representação;
- doravante, ela se refere, como que de viés, a dois domínios que escapam, tanto um quanto o outro, às formas e às leis da decomposição das idéias:
- de um lado, ela desponta já para uma antropologia que põe em questão a essência do homem (sua finitude, sua relação com o tempo, a iminência da morte) e o objeto no qual ele investe as jornadas de seu tempo e de seu esforço sem poder nele reconhecer o objeto de sua necessidade imediata;
- e, de outro, indica, ainda no vazio, a possibilidade de uma economia política que não mais teria por objeto a troca das riquezas (e o jogo das representações que a cria), mas sua produção real: formas do trabalho e do capital.
Compreende-se como, entre essas positividades recentemente formadas –
- uma antropologia que fala de um homem tornado estranho a si mesmo
- e uma economia que fala de mecanismos exteriores à consciência humana
– a Ideologia ou a Análise das representações se reduzirá, em breve, a ser não mais que uma psicologia, ao mesmo tempo em que, diante dela, contra ela e dominando-a bem logo do alto de si mesma, se abre a dimensão de uma história possível.
A partir de Smith,
- o tempo da economia não será mais aquele, cíclico, dos empobrecimentos e dos enriquecimentos;
- também não será o crescimento linear das políticas hábeis que, aumentando sempre ligeiramente as espécies em circulação, aceleram a produção mais rapidamente do que elevam os preços;
- será o tempo interior de uma organização que cresce segundo sua própria necessidade e se desenvolve segundo leis autóctones – o tempo do capital e do regime de produção.