IV. Bopp

Capítulo VIII - Trabalho, vida e linguagem; tópico IV. Bopp

No domínio da história natural, as modificações que se podem constatar entre os anos 1775 e 1795 são do mesmo tipo. Não se repõe em questão o que está no princípio das classificações: estas têm sempre por finalidade determinar o “caráter” que agrupa os indivíduos e as espécies em unidades gerais, que distingue essas unidades umas das outras e que lhes permite enfim se encaixarem de maneira a formar um quadro em que todos os indivíduos e todos os grupos, conhecidos ou desconhecidos, poderão encontrar seu lugar. Esses caracteres são extraídos da representação total dos indivíduos; são sua análise e pennitem, representando essas representações, constituir uma ordem; os princípios gerais da taxinomia – aqueles mesmos que orientaram os sistemas de Tournefort e de Lineu, o método de Adanson – continuam a valer do mesmo modo para A.-L. de Jussieu, para Vicq d’Azyr, para Lamarck, para Candolle. E, contudo, a técnica que permite estabelecer o caráter, a relação entre estrutura visível e critérios de identidade são modificadas assim como foram modificadas por Adam Smith as relações da necessidade ou do preço. Ao longo de todo o século XVIII, os classificadores estabeleceram o caráter pela comparação de estruturas visíveis, isto é, relacionando elementos que eram homogêneos, pois que cada um podia, segundo o princípio ordenador que fosse escolhido, servir para representar todos os outros: a única diferença residia no fato de que, para os partidários do sistema, os elementos representativos eram fixados desde o início, e, para os partidários do método, eles se desprendiam pouco a pouco de uma confrontação progressiva. Mas a passagem da estrutura descrita para o caráter classificador se fazia inteiramente ao nível das funções representativas que o visível exercia em relação a si mesmo. A partir de Jussieu, de Lamarck e de Vicq d’ Azyr, o caráter, ou antes, a transformação da estrutura em caráter vai basear-se num princípio estranho ao domínio do visível – um princípio interno, irredutível ao jogo recíproco das representações. Esse princípio (ao qual corresponde, na ordem da economia, o trabalho) é a organização. Como fundamento das taxinomias, a organização aparece de quatro modos diferentes. 1. Primeiro, sob a forma de uma hierarquia dos caracteres. Com efeito, se não se expõem as espécies umas ao lado das outras e na sua maior diversidade, mas se se aceitam, para delimitar imediatamente o campo de investigação, os vastos agrupamentos que a evidência impõe – como as gramíneas, as compostas, as crucíferas, as leguminosas, para as plantas; ou, para os animais, os vermes, os peixes, as aves, os quadrúpedes -, vê-se que certos caracteres são absolutamente constantes e não estão ausentes em nenhum dos gêneros, nenhuma das espécies que se podem aí reconhecer: por exemplo, a inserção dos estames, sua situação em relação ao pistilo, a inserção da corola quando ela traz estames, o número de lóbulos que acompanham o embrião na semente. Outros caracteres são muito freqüentes numa família, mas não atingem o mesmo grau de constância; é que são formados por órgãos menos essenciais (número de pétalas, presença ou ausência da coro Ia, situação respectiva do cálice ou do pistilo): são os caracteres “secundários subuniformes”. Enfim, os caracteres “terciários semi-uniformes” são ora constantes ora variáveis (estrutura monófila ou polífila do cálice, número de compartimentos no fruto, situação das flores e das folhas, natureza do caule): com esses caracteres semi-uniformes não é possível definir famílias ou ordens – não que eles não sejam capazes, se os aplicássemos a todas as espécies, de formar entidades gerais, mas porque não concemem ao que há de essencial num grupo de seres vivos. Cada grande família natural tem requisitos que a definem, e os caracteres que permitem reconhecê-Ia são os mais próximos dessas condições fundamentais; assim, sendo a reprodução a função maior da planta, o embrião será sua parte mais importante, e poder-se-ão repartir os vegetais em três classes: acotilédones, monocotilédones e dicotilédones. Com base nesses caracteres essenciais e “primários”, os outros poderão aparecer e introduzir distinções mais sutis. Vê-se que o caráter já não é diretamente extraído da estrutura visível e sem outro critério senão sua presença ou ausência; funda-se na existência de funções essenciais ao ser vivo e nas relações de importância que já não procedem apenas da descrição. 2. Os caracteres estão, pois, ligados a funções. Volta-se, num sentido, à velha teoria das assinalações ou das marcas pelo que se supunha que os seres traziam, no ponto mais visível de sua superficie, o signo do que neles era o mais essencial. Aqui, porém, as relações de importância são relações de subordinação funcional. Se o número de cotilédones é decisivo para classificar os vegetais, é porque desempenham um papel determinado na função de reprodução, e porque estão ligados, por isso mesmo, a toda a organização interna da planta; indicam uma função que comanda toda a disposição do indivíduos8. Assim, para os animais, Vicq d’Azyr mostrou que as funções alimentares são, sem dúvida, as mais importantes; é por essa razão que “relações constantes existem entre a estrutura dos dentes dos carnívoros e a de seus músculos, de seus dedos, de suas unhas, de sua língua, de seu estômago, de seus intestinos”9. O caráter não é portanto estabelecido por uma relação do visível consigo próprio; em si mesmo, não é mais do que a saliência visível de uma organização complexa e hierarquizada, em que a função desempenha um papel essencial de comando e de determinação. Não é por ser freqüente nas estruturas observadas que um caráter é importante; é por ser funcionalmente importante que o encontramos com freqüência. Como observará Cuvier, resumindo a obra dos últimos grandes partidários do método do século, à medida que nos elevamos em direção às classes mais gerais, “mais também as propriedades que permanecem comuns são constantes; e, como as relações mais constantes são aquelas que pertencem às partes mais importantes, os caracteres das divisões superiores se acharão extraídos das partes mais importantes… Dessa forma, o método será natural, uma vez que leva em conta a importância dos órgãos”10. 3. Nessas condições, compreende-se como pôde a noção de vida tomar-se indispensável à ordenação dos seres naturais. Tomou-se indispensável por duas razões: primeiro, era preciso poder apreender na profundidade do corpo as relações que ligam os órgãos superficiais àqueles cuja existência e forma oculta asseguram as funções essenciais; assim, Storr propõe classificar os mamíferos segundo a disposição de seus cascos; é que esta está ligada aos modos de deslocamento e às possibilidades motoras do animal; ora, esses modos, por sua vez, estão em correlação com a forma de alimentação e os diferentes órgãos do sistema digestivo11. Ademais, pode ocorrer que os caracteres mais importantes sejam os mais escondidos; já na ordem vegetal, pôde-se constatar que não são as flores e os frutos – partes mais visíveis da planta – os elementos significativos, mas o aparelho embrionário e órgãos como os cotilédones. Esse fenômeno é mais freqüente ainda nos animais. Storr pensava ser preciso definir as grandes classes pelas formas da circulação; e Lamarck, que contudo não praticava pessoalmente a dissecação, recusa para os animais inferiores um princípio de classificação que só se fundasse em sua forma visível: “A consideração das articulações do corpo e dos membros dos crustáceos fez com que todos os naturalistas os olhassem como verdadeiros insetos, e eu próprio, durante muito tempo, segui a opinião comum a esse respeito. Mas, como é reconhecido que a organização é a mais essencial de todas as considerações para guiar numa distribuição metódica e natural dos animais, assim como para determinar entre eles as verdadeiras relações, resulta daí que os crustáceos, respirando unicamente por brânquias à maneira dos moluscos e, tendo como eles, um coração muscular, devem ser localizados imediatamente após eles, antes dos aracnídeos e dos insetos, que não têm uma semelhante organização.”12 Classificar, portanto, não será mais referir o visível a si mesmo, encarregando um de seus elementos de representar os outros; será, num movimento que faz revolver a análise, reportar o visível ao invisível, como à sua razão profunda, depois alçar de novo dessa secreta arquitetura em direção aos seus sinais manifestos, que são dados à superficie dos corpos. Como dizia Pinel, na sua obra de naturalista, “atermo-nos aos caracteres exteriores designados pelas nomenclaturas não é fechar para nós mesmos a mais fecunda fonte de instruções e nos recusar, por assim dizer, a abrir o grande livro da natureza que, contudo, nos propomos conhecer?”13. Doravante, o caráter reassume seu velho papel de sinal visível despontando em direção a uma profundidade escondida; mas o que ele indica não é um texto secreto, uma palavra encoberta ou uma semelhança demasiado preciosa para ser exposta; é o conjunto coerente de uma organização que retoma na trama única de sua soberania tanto o visível como o invisível. 4. O paralelismo entre classificação e nomenclatura é por isso mesmo rompido. Enquanto a classificação consistia numa repartição progressivamente encaixada no espaço visível, era muito concebível que a delimitação e a denominação desses conjuntos pudessem realizarse paralelamente. O problema do nome e o problema do gênero eram isomorfos. Mas agora que o caráter não pode mais classificar a não ser referindo-se primeiro à organização dos indivíduos, o “distinguir” não se faz mais segundo os mesmos critérios e as mesmas operações que o “denominar”. Para encontrar os conjuntos fundamentais que reagrupam os seres naturais, é necessário percorrer esse espaço em profundidade que conduz dos órgãos superficiais aos mais secretos e, destes, às grandes funções que eles asseguram. Em contrapartida, uma boa nomenclatura continuará a se desdobrar no espaço plano do quadro: a partir dos caracteres visíveis do indivíduo, será necessário chegar ao compartimento preciso onde se encontra o nome desse gênero e de sua espécie. Há uma distorção fundamental entre o espaço da organização e o da nomenclatura: ou, antes, em vez de se recobrirem exatamente, são doravante perpendiculares um ao outro; e no seu ponto de junção encontra-se o caráter manifesto, que indica, em profundidade, uma função e permite, na superficie, encontrar um nome. Essa distinção que, em alguns anos, tornará caducas a história natural e a preeminência da taxinomia, é devida ao gênio de Lamarck: no Discurso preliminar da Flore française, opôs ele como radicalmente distintas as duas tarefas da botânica: a “determinação”, que aplica as regras da análise e permite encontrar o nome pelo simples jogo de um método binário (ou tal caráter está presente no indivíduo que se examina e é preciso buscar situá- Io na parte direita do quadro; ou ele não está presente e é preciso buscar na parte esquerda; e isso até a última determinação); e a descoberta das relações reais de semelhança, que supõe o exame da organização inteira das espécies14. O nome e os gêneros, a designação e a classificação, a linguagem e a natureza deixam de ser entrecruzados de pleno direito. A ordem das palavras e a ordem dos seres não se recortam mais senão numa linha artificialmente definida. Sua velha interdependência que fundara a história natural na idade clássica e que conduzira, num só movimento, a estrutura até o caráter, a representação até o nome e o indivíduo visível até o gênero abstrato, começa a desfazer-se. Começa-se a falar sobre coisas que têm lugar num espaço diverso do das palavras. Ao fazer, e muito cedo, semelhante distinção, Lamarck encerrou a idade da história natural, entreabriu a da biologia muito melhor, de um modo bem mais certo e radical do que ao retomar, cerca de 20 anos mais tarde, o tema já conhecido da série única das espécies e de sua transformação progressiva. O conceito de organização já existia na história natural do século XVIII – assim como, na análise das riquezas, a noção de trabalho que tampouco foi inventada no desembocar da idade clássica; mas servia então para definir um certo modo de composição dos indivíduos complexos a partir de materiais mais elementares; Lineu, por exemplo, distinguia a “justaposição”, que faz crescer o mineral e a “intuscepção” pela qual o vegetal se desenvolve nutrindo-se15. Bonnet opunha o “agregado” dos “sólidos brutos” à “composição dos sólidos organizados” que “entrelaça num número quase infinito de partes, algumas fluidas, outras sólidas”16. Ora, esse conceito de organização jamais servira, antes do fim do século, para fundar a ordem da natureza, para definir seu espaço, ou para limitar-lhe as figuras. É através das obras de Jussieu, de Vicq d’ Azyr e de Lamarck, que ele começa a funcionar pela primeira vez como método de caracterização: subordina os caracteres uns aos outros; liga-os a funções; dispõe-nos segundo uma arquitetura tanto interna quanto externa e não menos invisível que visível; reparte-os num espaço diverso daquele dos nomes, do discurso e da linguagem. Não basta mais só para designar uma categoria de seres entre outros; não indica mais apenas um corte no espaço taxinômico; define para certos seres a lei interior, que permite a uma de suas estruturas assumir o valor de caráter. A organização se insere entre as estruturas que articulam e os caracteres que designam – introduzindo entre eles um espaço profundo, interior, essencial. Essa mutação importante se exerce ainda no elemento da história natural; ela modifica os métodos e as técnicas de uma taxinomia; não recusa suas condições fundamentais de possibilidade; não toca no modo de ser de uma ordem natural. Entretanto, acarreta uma conseqüência maior: a radicalização da divisão entre orgânico e inorgânico. No quadro dos seres que a história natural desdobrava, o organizado e o não-organizado definiam não mais que duas categorias; estas se entrecruzavam sem coincidirem necessariamente com a oposição entre o ser vivo e o não-vivo. A partir do momento em que a organização se torna conceito fundador da caracterização natural e permite passar da estrutura visível à designação, ela própria tem que deixar de ser apenas um caráter; contorna o espaço taxinômico onde estava alojada e é ela, por sua vez, que dá lugar a uma classificação possível. Por isso mesmo, a oposição entre o orgânico e o inorgânico torna-se fundamental. É, com efeito, a partir dos anos 1775-1795, que a velha articulação dos três ou quatro reinos desaparece; a oposição dos dois reinos – orgânico e inorgânico – não a substitui exatamente; torna-a antes impossível, impondo outra divisão, em outro nível e em outro espaço. PalIas e Lamarck 17formulam essa grande dicotomia, com a qual vem coincidir a oposição entre o ser vivo e o não-vivo. “Só há dois reinos na natureza”, escreve Vicq d’ Azyr, em 1786, “um que usufrui a vida e outro que dela está privado.”18 O orgânico torna-se o ser vivo e o ser vivo é o que produz, crescendo e reproduzindo-se; o inorgânico é o não-vivo, o que não se desenvolve nem se reproduz; é, nos limites da vida, o inerte e o infecundo – a morte. E se se mistura à vida, é como aquilo que nela tende a destruí-Ia e a matá-Ia. “Existem em todos os seres vivos duas forças poderosas, muito distintas e sempre em oposição entre si, de tal sorte que cada uma delas destrói perpetuamente os efeitos que a outra consegue produzir.”19 Vê-se como, fraturando em profundidade o grande quadro da história natural, alguma coisa como uma biologia vai tornar-se possível; e como também poderá emergir nas análises de Bichat a oposição fundamental entre a vida e a morte. Não se tratará do triunfo, mais ou menos precário, de um vitalismo sobre um mecanismo; o vitalismo e seu esforço para defmir a especificidade da vida não são mais que os efeitos de superficie desses acontecimentos arqueológicos.

V. A linguagem tornada objeto

Capítulo VIII - Trabalho, vida e linguagem; tópico V. A linguagem tornada objeto

Encontra-se a réplica exata desses acontecimentos do lado das análises da linguagem. Nisso, porém, têm elas, sem dúvida, uma forma mais discreta e também uma cronologia mais lenta. Há para isso uma razão fácil de descobrir; é que, durante toda a idade clássica, a linguagem foi posta e refletida como discurso, isto é, como análise espontânea da representação. De todas as formas de ordem não-quantitativa, era a mais imediata, a menos preparada, a mais profundamente ligada ao movimento próprio da representação. E, nessa medida, estava mais bem enraizada nela e no seu modo de ser do que estas ordens refletidas – sábias ou interessadas – que fundavam a classificação dos seres ou a troca das riquezas. Modificações técnicas como as que afetaram a medida dos valores de troca ou os procedimentos da caracterização bastaram para alterar consideravelmente a análise das riquezas ou a história natural. Para que a ciência da linguagem sofresse modificações tão importantes, foram necessários acontecimentos mais profundos, capazes de mudar, na cultura ocidental, até o ser mesmo das representações. Assim como a teoria do nome, nos séculos XVII e XVIII, se alojava o mais perto possível da representação e com isso comandava, até certo ponto, a análise das estruturas e do caráter nos seres vivos, a do preço e do valor nas riquezas, assim também, no fim da idade clássica, é ela que subsiste mais tempo, só se desfazendo tardiamente no momento em que a própria representação se modifica ao nível mais profundo de seu regime arqueológico. Até o começo do século XIX, as análises da linguagem só manifestam ainda poucas mudanças. As palavras são sempre interrogadas a partir de seus valores representativos, como elementos virtuais do discurso que lhes prescreve a todas um mesmo modo de ser. No entanto, esses conteúdos representativos já não são analisados somente na dimensão que a aproxima de uma origem absoluta, seja ela mítica ou não. Na gramática geral sob sua forma mais pura, todas as palavras de uma língua eram portadoras de uma significação mais ou menos oculta, mais ou menos derivada, mas cuja primitiva razão de ser residia numa designação inicial. Toda língua, por mais complexa que fosse, achava-se situada na abertura, disposta de uma vez por todas, pelos gritos arcaicos. As semelhanças laterais com as outras línguas – sonoridades vizinhas recobrindo significações análogas – só eram observadas e coligidas para confirmar a relação vertical de cada uma com esses valores profundos, encobertos, quase mudos. No último quartel do século XVIII a comparação horizontal entre as línguas adquire outra função: não mais permite saber o que cada uma pode comportar de memória ancestral, que marcas de antes de BabeI estão depositadas na sonoridade de suas palavras; deve permitir, porém, medir até que ponto elas se assemelham, qual a densidade de suas similitudes, em que limites são transparentes uma à outra. Daí essas grandes confrontações de línguas diversas que se vê surgirem no fim do século – e por vezes sob a pressão de motivos políticos, como as tentativas feitas na Rússia20 para estabelecer um levantamento das línguas do Império; em 1787, aparece em Petrogrado o primeiro volume do Glossarium comparatiuum totius orbis; ele contém referência a 279 línguas: 171 para a Ásia, 55 para a Europa, 30 para a África, 23 para a América21. Essas comparações fazem-se ainda exclusivamente a partir e em função dos conteúdos representativos; confronta-se um mesmo núcleo de significação – que serve de invariante – com as palavras pelas quais as diversas línguas podem designá-Io (Adelung22 dá 500 versões do pater em línguas e dialetos diferentes); ou então, escolhendo uma raiz como elemento constante através de formas ligeiramente variadas, determina-se o leque dos sentidos que ela pode assumir (são os primeiros ensaios de lexicografia, como a de Buthet de La Sarthe). Todas essas análises remetem sempre a dois princípios que eram já os da gramática geral: o de uma língua primitiva e comum que teria fornecido o lote inicial das raÍzes, e o de uma série de acontecimentos históricos, estranhos à linguagem e que, do exterior, a vergam, gastam-na, apuram-na, agilizam-na, multiplicam ou misturam suas formas (invasões, migrações, progressos dos conhecimentos, liberdade ou escravidão política etc.). Ora, a confrontação das línguas, no fim do século XVIII, traz à luz uma figura intermediária entre a articulação dos conteúdos e o valor das raÍzes: trata-se da tlexão. Certamente, os gramáticos conheciam desde muito tempo os fenômenos tlexionais (assim como, em história natural, conhecia-se o conceito de organização antes de PalIas ou Lamarck; e, em economia, o conceito de trabalho antes de Adam Smith); mas as tlexões só eram analisadas por seu valor representativo – quer fossem consideradas como representações anexas, quer se visse nelas uma forma de ligar entre si as representações (alguma coisa como uma outra ordem das palavras). Mas, quando se faz, como Coeurdoux23 e William Jones24 a comparação entre as diferentes formas do verbo ser em sânscrito e em latim ou em grego, descobre-se uma relação de constância que é inversa àquela que se admitia correntemente: a raiz é que é alterada e as tlexões é que são análogas. A série sânscrita asmi, asi, asti, smas, stha, santi, corresponde exatamente, mas por analogia flexional, à série latina sum, es, est, sumus, estis, sunt. Sem dúvida, Coeurdoux e Anquetil-Duperron permaneciam ao nível das análises da gramática geral quando o primeiro via nesse paralelismo os restos de uma língua primitiva; e o segundo, o resultado da mistura histórica que se teria feito entre hindus e mediterrâneos na época do reino de Bactriana. Mas o que estava em jogo nessa conjugação comparada já não era mais o liame entre sílaba primitiva e sentido primeiro, era uma relação mais complexa entre as modificações do radical e as funções da gramática; descobria-se que em duas línguas diferentes havia uma relação constante entre uma série determinada de alterações formais e uma série igualmente detern1inada de funções gramaticais, de valores sintáticos ou de modificações sem sentido. Por isso mesmo, a gramática geral começa a mudar de configuração: seus diversos segmentos teóricos não mais se encadeiam totalmente do mesmo modo uns nos outros; e a rede que os une desenha um percurso já ligeiramente diferente. Na época de Bauzée ou de Condillac, a relação entre as raízes de forma tão hábil e o sentido determinado nas representações, ou ainda o liame entre o poder de designar e o de articular, era assegurado pela soberania do Nome. Agora um novo elemento intervém: do lado do sentido ou da representação, ele indica apenas um valor acessório, necessariamente secundário (trata-se do papel de sujeito ou de complemento desempenhado pelo indivíduo ou pela coisa designada; trata-se do tempo da ação); mas, do lado da forma, ele constitui o conjunto sólido, constante, inalterável ou quase, cuja lei soberana se impõe às raízes representativas até modificar elas próprias. Mais ainda, esse elemento, secundário pelo valor significativo, primeiro pela consciência formal, não é, ele próprio, uma sílaba isolada, como uma espécie de raiz constante; é um sistema de modificações cujos segmentos diversos são solidários uns aos outros: a letra s não significa a segunda pessoa, como a letra e significava, segundo Court de Gébelin, a respiração, a vida e a existência; é o conjunto das modificações m, s, t, que dá à raiz verbal os valores da primeira, segunda e terceira pessoa. Essa nova análise, até o fim do século XVIII, se aloja na busca dos valores representativos da linguagem. É ainda do discurso que se trata. Já aparece porém, através do sistema das flexões, a dimensão do gramatical puro: a linguagem não é mais constituída somente de representações e de sons que, por sua vez, as representam e se ordenam entre si como o exigem os liames do pensamento; é, ademais, constituída de elementos formais, agrupados em sistema, e que impõem aos sons, às sílabas, às raízes, um regime que não é o da representação. Introduz-se assim na análise da linguagem um elemento que lhe é irredutível (como se introduz o trabalho na análise da troca ou a organização na dos caracteres). A título de conseqüência primeira, pode-se notar o aparecimento, no fim do século XVIII, de uma fonética que não é mais busca dos primeiros valores expressivos, mas análise dos sons, de suas relações e de sua transformação possível uns nos outros; Helwag, em 1781, define o triângulo vocálico25. Pode-se notar também o aparecimento dos primeiros esboços de gramática comparada; não se toma mais como objeto de comparação nas diversas linguas o par formado por um grupo de letras e por um sentido, mas conjuntos de modificações de valor gramatical (conjugações, declinações e afixações). As línguas são confrontadas não mais por aquilo que as palavras designam, mas pelo que as liga umas às outras; elas vão agora comunicar-se, não por intermédio desse pensamento anônimo e geral que devem representar, mas diretamente, urna com a outra, graças a esses finos instrumentos de aparência tão frágil, mas tão constantes, tão irredutíveis, que dispõem as palavras urnas em relação às outras. Como dizia Monboddo: “Sendo o mecanismo das línguas menos arbitrário e mais bem regulado que a pronúncia das palavras, aí encontramos urn excelente critério para determinar a afinidade das línguas entre si. É por isso que, quando vemos duas línguas empregarem da mesma forma esses grandes procedimentos da linguagem, a derivação, a composição, a inflexão, podemos disso concluir que urna deriva da outra ou que são, ambas, dialetos de urna mesma língua primitiva.”26 Enquanto a língua fora definida como discurso, não podia ter outra história senão a de suas representações: se as idéias, as coisas, os conhecimentos, os sentimentos, porventura mudavam, então e somente então a língua se modificava e na exata proporção de suas mudanças. Doravante, porém, há um “mecanismo” interior das línguas que determina não só a individualidade de cada urna, mas também suas semelhanças com as outras: é ele que, portador de identidade e de diferença, signo de vizinhança, marca do parentesco, vai tornar-se suporte da história. Por ele, a historicidade poderá introduzir-se na espessura da própria palavra.

III. Cuvier

Capítulo VIII - Trabalho, vida e linguagem; tópico III. Cuvier

Cuvier No seu projeto de estabelecer uma classificação tão fiel quanto um método e tão rigorosa quanto um sistema, Jussieu descobrira a regra de subordinação dos caracteres, assim como Smith utilizara o valor constante do trabalho para estabelecer o preço natural das coisas no jogo das equivalências. E assim como Ricardo libertou o trabalho de seu papel de medida para fazê-lo entrar, aquém de toda troca, nas formas gerais da produção, assim Cuvier6 libertou de sua função taxinômica a subordinação dos caracteres para fazê-Ia entrar, aquém de toda classificação eventual, nos diversos planos de organização dos seres vivos. O liame interno que faz as estruturas dependerem umas das outras não está mais situado no nível apenas das freqüências, torna-se o fundamento mesmo das correlações. É esse desnível e essa inversão que Geoffroy Saint-Hilaire devia um dia traduzir, dizendo: “A organização toma-se um ser abstrato… suscetível de formas numerosas.”7 O espaço dos seres vivos gira em tomo dessa noção e tudo o que até então pudera aparecer através do quadriculado da história natural (gêneros, espécies, indivíduos, estruturas, órgãos), tudo o que era dado ao olhar, assume doravante um modo novo de ser. E, em primeiro lugar, esses elementos ou esses grupos de elementos distintos que o olhar pode articular quando percorre o corpo dos indivíduos e a que se chama os órgãos. Na análise dos clássicos, o órgão se definia, a um tempo, por sua estrutura e por sua função; era como um sistema de dupla entrada que se podia ler exaustivamente, quer a partir do papel que desempenhava (por exemplo, a reprodução), quer a partir de suas variáveis morfológicas (forma, grandeza, disposição e número): os dois modos de decifração recobriam-se ajustadamente mas eram independentes um do outro – o primeiro enunciando o utilizável, o segundo, o identificável. É essa disposição que Cuvier altera; revogando tanto o postulado do ajustamento quanto o da independência, faz extravasar – e largamente – a função em relação ao órgão e submete a disposição do órgão à soberania da função. Dissolve, se não a individualidade, pelo menos a independência do órgão: é erro crer que “tudo é importante num órgão importante”; é preciso dirigir a atenção “mais para as próprias funções que para os órgãos”8; antes de definir estes últimos pelas suas variáveis, é necessário reportá-los à função que asseguram. Ora, essas funções são em número relativamente pouco elevado: respiração, digestão, circulação, locomoção… De sorte que a diversidade visível das estruturas não mais emerge do fundo de um quadro de variáveis, mas do fundo de grandes unidades funcionais suscetíveis de se realizarem e de cumprir seu fIm de maneiras diversas: “O que é comum a cada gênero de órgãos considerado, em todos os animais se reduz a muito pouca coisa e, freqüentemente, eles só se assemelham pelo efeito que produzem. Isso deve ter impressionado sobretudo no tocante à respiração que se opera nas diferentes classes por órgãos tão variados, que sua estrutura não apresenta nenhum ponto comum.”9 Considerando o órgão na sua relação com a função, vê-se, pois, aparecerem “semelhanças” onde não há nenhum elemento “idêntico”; semelhança que se constitui pela passagem à evidente invisibilidade da função. Pouco importa afinal que as brânquias e os pulmões tenham em comum algumas variáveis de forma, de grandeza, de número: assemelham-se por serem duas variedades desse órgão inexistente, abstrato, irreal, indeterminável, ausente de toda espécie descritível, presente contudo no reino animal inteiro e que serve para respirar em geral. Restauram-se assim, na análise do ser vivo, as analogias de tipo aristotélico: as brânquias são para a respiração na água o que são os pulmões para a respiração no ar. Certamente, semelhantes relações eram perfeitamente conhecidas na idade clássica; mas serviam apenas para determinar funções; não eram utilizadas para estabelecer a ordem das coisas no espaço da natureza. A partir de Cuvier, a função, definida sob a forma não perceptível do efeito a atingir, vai servir de meio-termo constante e permitir relacionar um a outro conjuntos desprovidas da menor identidade visível. Aquilo que, para o olhar clássico, não passava de puras e simples diferenças justapostas a identidades, deve agora ser ordenado e pensado a partir de uma homogeneidade funcional que o suporta em segredo. Há história natural quando o Mesmo e o Outro pertencem a um único espaço; alguma coisa como a biologia torna-se possível quando essa unidade de plano começa a desfazer-se e as diferenças surgem do fundo de uma identidade mais profunda e como que mais séria do que ela. Essa referência à função, essa disjunção entre o plano das identidades e o das diferenças fazem surgir relações novas: as de coexistência, de hierarquia interna, de dependência com respeito ao plano de organização. A coexistência designa o fato de que um órgão ou um sistema de órgãos não podem estar presentes num ser vivo sem que outro órgão ou outro sistema, de uma natureza e uma forma determinadas, o estejam igualmente: “Todos os órgãos de um mesmo animal formam um sistema único, cujas partes todas se sustentam, agem e reagem umas sobre as outras; não pode haver modificações numa delas que não acarretem modificações análogas em todas.”10 No interior do sistema da digestão, a forma dos dentes (o fato de serem cortantes ou mastigadores) varia ao mesmo tempo que “o comprimento, as curvas, as dilatações do sistema alimentar”; ou ainda, para dar um exemplo de coexistência entre sistemas diferentes, os órgãos da digestão não podem variar independentemente da morfologia dos membros (e, em particular, da forma das unhas): conforme houver garras ou cascos – portanto, conforme o animal possa ou não agarrar e despedaçar seu alimento – o canal alimentar, os “sucos dissolventes”, a forma dos dentes não serão os mesmos11. Trata-se aí de correlações laterais que estabelecem entre elementos do mesmo nível relações de concomitância fundadas por necessidades funcionais: por ser preciso que o animal se alimente, a natureza da presa e seu modo de captura não podem ficar estranhos aos aparelhos de mastigação e de digestão (e reciprocamente). Há, todavia, escalonamentos hierárquicos. Sabe-se como a análise clássica fora levada a suspender o privilégio dos órgãos mais importantes para só considerar sua eficácia taxinômica. Agora que não se trata mais de variáveis independentes, mas de sistemas comandados uns pelos outros, o problema da importância recíproca se acha novamente colocado. Assim, o canal alimentar dos mamíferos não está simplesmente numa relação de covariação eventual com os órgãos da locomoção e da preensão; é, ao menos em parte, prescrito pelo modo de reprodução. Esta, com efeito, sob sua forma vivípara, não implica simplesmente a presença de órgãos que lhe estão imediatamente ligados; exige também a existência de órgãos de lactação, a presença de lábios, a de uma língua carnuda igualmente; prescreve, por outro lado, a circulação de um sangue quente e bifocularidade do coração12. A análise dos organismos e a possibilidade de estabelecer entre eles semelhanças e distinções supõem, portanto, que se tenha fixado a tabela, não dos elementos que podem variar de espécie para espécie, mas das funções que, nos seres vivos em geral, se comandam, se ajustam, se ordenam umas às outras: não mais o polígono das modificações possíveis, mas a pirâmide hierárquica das importâncias. Cuvier pensou primeiro que as funções de existência se antepunham às de relações (“pois o animal primeiramente é, depois sente e age”): supunha portanto que a geração e a circulação deviam determinar, de início, certo número de órgãos aos quais a disposição dos outros se acharia submetida; aqueles formariam os caracteres primários, estes os caracteres secundários13. Depois, subordinou a circulação à digestão, pois esta existe em todos os animais (o corpo do pólipo é por inteiro apenas uma espécie de aparelho digestivo), ao passo que o sangue e os vasos se encontram “apenas nos animais superiores e desaparecem sucessivamente nos das últimas classes”14. Mais tarde, foi o sistema nervoso (com a existência ou a inexistência de um cordão espinhal) que lhe apareceu como determinante de todas as disposições orgânicas: “Ele é, em essência, todo o animal: os outros sistemas só estão lá para servi-lo e mantê-lo.”15 Essa preeminência de uma função sobre as outras implica que o organismo nas suas disposições visíveis obedeça a um plano. Tal plano garante o reino das funções essenciais e a elas vincula, mas com um grau maior de liberdade, os órgãos que asseguram funcionamentos menos capitais. Como princípio hierárquico, esse plano define as funções preeminentes, distribui os elementos anatõmicos que lhe permitem efetuar-se e os instala nas localizações privilegiadas do corpo: assim, no vasto grupo dos articulados, a classe dos insetos deixa aparecer a importância primordial das funções locomotoras e dos órgãos do movimento; nos três outros, são as funções vitais, em contrapartida, que têm primazia16. No controle regional que exerce sobre os órgãos menos fundamentais, o plano de organização não desempenha um papel tão determinante; liberaliza-se, de certo modo, na medida em que há um afastamento do centro, autorizando modificações, alterações, mudanças na forma ou a utilização possível. Reencontramo-lo, tomado porém mais flexível e mais permeável a outras formas de determinação. Isso é fácil de constatar nos mamíferos a propósito do sistema de locomoção. Os quatro membros motores fazem parte do plano de organização, mas a título somente do caráter secundário; não estão pois jamais suprimidos, nem ausentes nem substituídos, porém “disfarçados algumas vezes como nas asas dos morcegos e nas barbatanas posteriores das focas”; ocorre mesmo terem “degenerado pelo uso como nas barbatanas peitorais dos cetáceos… A natureza fez com um braço uma barbatana. Vedes que há sempre uma espécie de constância nos caracteres secundários conforme seu disfarce”17. Compreende-se como podem as espécies ao mesmo tempo assemelharse (para formar grupos como os gêneros, as classes e o que Cuvier chama as ramificações) e distinguir-se umas das outras. O que as aproxima não é certa quantidade de elementos superponíveis, mas uma espécie de foco de identidade que não se pode analisar em regiões visíveis, porque define a importância recíproca das funções; a partir desse ceme imperceptível das identidades, os órgãos se dispõem e, à medida que dele se afastam, ganham em flexibilidade, em possibilidades de variações, em caracteres distintivos. As espécies animais diferem pela periferia, assemelham-se pelo centro; o inacessível as religa, o manifesto as dispersa. Generalizam-se do lado do que é essencial à sua vida; singularizam-se do lado do que é mais acessório. Quanto mais se quiser atingir grupos extensos, mais é preciso entranharse na obscuridade do organismo, em direção ao pouco visível, nessa dimensão que escapa ao percebido; quanto mais se quiser cingir a individualidade, mais necessário é ascender à superfície e deixar cintilar, em sua visibilidade, as formas que a luz toca; pois a multiplicidade se vê e a unidade se esconde. Em suma, as espécies vivas “escapam” ao pulular dos indivíduos e das espécies, só podendo ser classificadas porque vivem e a partir do que ocultam. Avalia-se a imensa reviravolta que tudo isso supõe em relação à taxinomia clássica. Edificava-se esta inteiramente a partir das quatro variáveis de descrição (formas, número, disposição, grandeza) que eram percorridas, como num só movimento, pela linguagem e pelo olhar; e, nessa exposição do visível, a vida aparecia como o efeito de um recorte – simples fronteira classificatória. A partir de Cuvier, é a vida, no que tem de não-perceptível, de puramente funcional, que funda a possibilidade exterior de uma classificação. Não há mais, sobre a grande superfície da ordem, a classe daquilo que pode viver; mas sim, vindo da profundidade da vida, do que há de mais longínquo para o olhar, a possibilidade de classificar. O ser vivo era uma localidade da classificação natural; o fato de ser classificável é agora uma propriedade do ser vivo. Assim desaparece o projeto de uma taxinomia geral; assim desaparece a possibilidade de desenrolar uma grande ordem natural, que iria sem descontinuidade do mais simples e do mais inerte ao mais vivo e ao mais complexo; assim desaparece a procura da ordem como solo e fundamento de uma ciência geral da natureza. Assim desaparece a “natureza” – entendendo-se que, ao longo de toda a idade clássica, ela não existiu primeiramente como “tema”, como “idéia”, como fonte indefinida do saber, mas como espaço homogêneo das identidades e das diferenças ordenáveis. Esse espaço está agora dissociado e como que aberto em sua espessura. No lugar de um campo unitário de visibilidade e de ordem cujos elementos têm valor distintivo uns em relação aos outros, tem-se uma série de oposições cujos dois termos não são do mesmo nível: de um lado há os órgãos secundários, que são visíveis à superficie do corpo e se oferecem sem intervenção à imediata percepção, e os órgãos primários, que são essenciais, centrais, ocultos, e que só se podem atingir pela dissecção, isto é, destruindo materialmente o invólucro colorido dos órgãos secundários. Há também, mais profundamente, a oposição entre os órgãos em geral, que são espaciais, sólidos, direta ou indiretamente visíveis, e as funções, que não se dão à percepção, mas prescrevem, como que por debaixo, a disposição daquilo que se percebe. Há enfim, em última análise, a oposição entre identidades e diferenças: não são mais do mesmo veio, não mais se estabelecem em relação umas às outras sobre um plano homogêneo; mas as diferenças proliferam na superficie, enquanto em profundidade elas se desvanecem, se confundem, se tramam umas nas outras e se aproximam da grande, misteriosa, invisível unidade focal de que o múltiplo parece derivar como que por uma dispersão incessante. A vida não é mais o que se pode distinguir, de maneira mais ou menos certa, do mecânico; é aquilo em que se fundam todas as distinções possíveis entre os seres vivos. É essa passagem da noção taxinômica à noção sintética de vida que é assinalada, na cronologia das idéias e das ciências, pela recrudescência, no começo do século XIX, dos temas vitalistas. Do ponto de vista da arqueologia, o que naquele momento se instaura são as condições de possibilidade de uma biologia. Em todo o caso, essa série de oposições, dissociando o espaço da história natural, teve conseqüências de grande peso. Na prática, é o aparecimento de duas técnicas correlativas que se apóiam e se revezam mutuamente. A primeira dessas técnicas é constituída pela anatomia comparada: esta faz surgir um espaço interior, limitado, de um lado, pela camada superficial dos tegumentos e das cascas, e, de outro, pela quase-invisibilidade do que é infinitamente pequeno. Pois a anatomia comparada não é o puro e simples aprofundamento das técnicas descritivas que se utilizavam na idade clássica; não se contenta em procurar ver mais fundo, melhor e mais de perto; instaura um espaço que não é nem o dos caracteres visíveis nem o dos elementos microscópicos18. Ela faz aí aparecer a disposição recíproca dos órgãos, sua correlação, a maneira como se decompõem, como se especializam, como se ordenam uns aos outros os principais momentos de uma função. E assim, por oposição ao olhar simples que, percorrendo os organismos íntegros, vê desdobrar-se diante de si a profusão das diferenças, a anatomia, recortando realmente os corpos, fracionando-os em parcelas distintas, retalhando-os no espaço, faz surgir as grandes semelhanças que teriam permanecido invisíveis; ela reconstitui as unidades subjacentes às grandes dispersões visíveis. A formação das vastas unidades taxinômicas (classes e ordens) era, nos séculos XVII e XVIII, um problema de recorte lingüístico: era preciso encontrar um nome que fosse geral e fundado; agora, ela diz respeito a uma desarticulação anatômica; é preciso isolar o sistema funcional principal; são as divisões reais da anatomia que permitirão articular as grandes famílias do ser vivo. A segunda técnica repousa sobre a anatomia (pois que é seu resultado) mas a ela se opõe (porque permite dispensá-Ia); consiste em estabelecer relações de indicação entre elementos superficiais, portanto visíveis, e outros que estão encobertos na profundidade do corpo. É que, pela lei de solidariedade do organismo, pode-se saber que tal órgão periférico e acessório implica tal estrutura num órgão mais essencial; assim, é permitido “estabelecer a correspondência das formas exteriores e interiores que, umas e outras, fazem parte integrante da essência do animal”19. Nos insetos, por exemplo, a disposição das antenas só tem valor distintivo porque não está em correlação com nenhuma das grandes organizações internas; em contrapartida, a forma do maxilar inferior pode desempenhar um papel capital para distribuí-Ios segundo suas semelhanças e suas diferenças; pois está ligada à alimentação, à digestão e, por conseguinte, às funções essenciais do animal: “Os órgãos da mastigação deverão estar relacionados com os da nutrição, conseqüentemente com todo o gênero de vida e, conseqüentemente, com toda a organização.”20 Na verdade, essa técnica dos indícios não vai forçosamente da periferia visível às formas obscuras da interioridade orgânica: ela pode estabelecer redes de necessidade indo de um ponto qualquer do corpo a qualquer outro; de sorte que um único elemento pode bastar, em certos casos, para sugerir a arquitetura geral de um organismo; poder-se-á reconhecer um animal inteiro “por um só osso, por uma só faceta de osso: método que deu tão curiosos resultados acerca dos animais fósseis”21. Enquanto, para o pensamento do século XVIII, o fóssil era uma prefiguração das formas atuais e indicava assim a grande continuidade do tempo, será doravante a indicação da figura à qual realmente pertencia. A anatomia não somente quebrou o espaço tabular e homogêneo das identidades; rompeu a suposta continuidade do tempo. É que, do ponto de vista teórico, as análises de Cuvier recompõem inteiramente o regime das continuidades e das descontinuidades naturais. Com efeito, a anatomia comparada permite estabelecer, no mundo vivo, duas formas de continuidade perfeitamente distintas. A primeira concerne às grandes funções que se encontram na maioria das espécies (a respiração, a digestão, a circulação, a reprodução, o movimento…); estabelece em todo o mundo vivo uma vasta semelhança que se pode distribuir segundo uma escala de complexidade decrescente, indo do homem até o zoófito; nas espécies superiores estão presentes todas as funções, vemo-Ias desaparecer depois umas após outras e, no zoófito, finalmente, já “não há centro de circulação, não há nervos, não há centro de sensação; cada ponto parece nutrirse por sucção”22. Todavia, essa continuidade é fraca, relativamente frouxa, formando, pelo número restrito das funções essenciais, um simples quadro de presenças e de ausências. A outra continuidade é muito mais cerrada: concerne à maior ou menor perfeição dos órgãos. Mas, a partir daí, só se podem estabelecer séries limitadas, continuidades regionais logo interrompidas, e que, ademais, se imbricam umas nas outras em direções diferentes; é que, nas diversas espécies, “os órgãos não seguem todos a mesma ordem de gradação: um atinge seu mais alto grau de perfeição na sua espécie; outro o atinge numa espécie diferente”23. Tem-se pois, o que se poderia chamar de “microsséries” limitadas e parciais que dizem respeito menos às espécies que a tal ou tal órgão; e, na outra extremidade, uma “macrossérie”, descontínua, afrouxada e que diz respeito menos aos próprios organismos que ao grande registro fundamental das funções. Entre essas duas continuidades que não se superpõem nem se ajustam, vê-se a divisão de grandes massas descontínuas. Elas obedecem a planos de organização diferentes, encontrando-se as mesmas funções ordenadas segundo hierarquias variadas e realizadas por órgãos de tipo diverso. Por exemplo, é fácil encontrar no polvo “todas as funções que se exercem nos peixes e, no entanto, não há entre eles nenhuma semelhança, nenhuma analogia de disposição”24. É preciso, portanto, analisar cada um desses grupos em si mesmo, considerar não o fio estreito das semelhanças que podem vinculá-Io a outro, mas a forte coesão que o cerra em si mesmo; não se buscará saber se os animais de sangue vermelho estão na mesma linha que os animais de sangue branco, tendo apenas perfeições suplementares; estabelecer-se-á que todo animal de sangue vermelho – e é nisso que depende de um plano autônomo – possui sempre uma cabeça óssea, uma coluna vertebral, membros (com exceção das serpentes), artérias e veias, um fígado, um pâncreas, um baço, rins25. Vertebrados e invertebrados formam regiões perfeitamente isoladas, entre as quais não se podem encontrar formas intermediárias assegurando a passagem num sentido ou noutro: “Qualquer que seja a organização que se dê aos animais com vértebras e aos que não as têm, não se chegará jamais a encontrar no final de uma dessas grandes classes, nem encabeçando a outra, dois animais que se assemelhem o bastante para servirem de elo entre elas.”26 Vê-se, pois, que a teoria das ramificações não ajunta um quadro taxinômico suplementar às classificações tradicionais; ela está ligada à constituição de um espaço novo das identidades e das diferenças. Espaço sem continuidade essencial. Espaço que logo de início se dá na forma da fragmentação. Espaço atravessado por linhas que às vezes divergem e às vezes se recortam. Para designar-lhe a forma geral, é preciso, pois, substituir a imagem da escala continua que fora tradicional no século XVIII, de Bonnet a Lamarck, pela de uma irradiação, ou, antes, de um conjunto de centros a partir dos quais se desdobra uma multiplicidade de raios; poderse- ia assim recolocar cada ser “nessa imensa rede que constitui a natureza organizada mas dez ou vinte raios não bastariam para exprimir essas inumeráveis relações”27. É toda a experiência clássica da diferença que então se abala e, com ela, a relação entre o ser e a natureza. Nos séculos XVII e XVIII, a diferença tinha por função religar as espécies umas às outras e preencher assim a distância entre as extremidades do ser; desempenhava um papel de “catenária”: era tão limitada, tão tênue quanto possível; alojavase no quadriculado mais estreito; era sempre divisível e podia cair mesmo abaixo do limiar da percepção. A partir de Cuvier, ao contrário, ela própria se multiplica, adiciona formas diversas, difunde-se e se repercute através do organismo, isolando-o de todos os outros de diversas maneiras simultâneas; é que ela não se aloja no interstício dos seres para religálos entre si; funciona em relação ao organismo, para que ele possa “fazer corpo” consigo mesmo e manter-se em vida; não preenche o entremeio dos seres por tenuidades sucessivas; escava-o, aprofundando-se a si mesma, para definir em seu isolamento os grandes tipos de compatibilidade. A natureza do século XIX é descontínua na medida mesma em que é viva. Avalia-se a importância da reviravolta; na época clássica, os seres naturais formavam um conjunto contínuo porque eram seres e não havia razão para a interrupção de seu desdobramento. Não era possível representar o que separava o ser de si mesmo. O contínuo da representação (signos e caracteres) e o contínuo dos seres (a extrema proximidade das estruturas) eram, pois, correlativos. É essa trama, a um tempo ontológica e representativa, que se despedaça definitivamente com Cuvier: os seres vivos, porque vivem, não podem mais formar um tecido de diferenças progressivas e graduadas; devem concentrar-se em tomo de núcleos de coerência perfeitamente distintos uns dos outros e que constituem diferentes planos para manter a vida. O ser clássico era sem lacuna; já a vida é sem margem nem gradação. O ser se derramava num imenso quadro; a vida isola formas que se articulam consigo mesmas. O ser se dava no espaço sempre analisável da representação; a vida se recolhe no enigma de uma força inacessível em sua essência, captável apenas nos esforços que faz, aqui e ali, para manifestar-se e manter-se. Em suma, ao longo de toda a idade clássica, a vida estava sob a alçada de uma ontologia que concemia do mesmo modo a todos os seres materiais, submetidos à extensão, ao peso, ao movimento; e era nesse sentido que todas as ciências da natureza e singularmente do ser vivo tinham uma profunda vocação mecanicista; a partir de Cuvier, o ser vivo escapa, ao menos em primeira instância, às leis gerais do ser extenso; o ser biológico regionaliza-se e autonomiza-se; a vida é, nos confins do ser, o que lhe é exterior e que, contudo, se manifesta nele. E se se coloca a questão de suas relações com o não-vivo, ou a de suas determinações fisico-químicas, não é, de modo algum, na linha de um “mecanicismo” que se obstinasse em suas modalidades clássicas, mas sim, de maneira totalmente nova, para articular uma à outra duas naturezas. Mas, como as descontinuidades devem ser explicadas pela manutenção da vida e por suas condições, vê-se esboçar uma continuidade imprevista – ou, ao menos, um jogo de interações não ainda analisadas – entre o organismo e o que lhe permite viver. Se os ruminantes se distinguem dos roedores, e por todo um sistema de diferenças maciças que não se trata de atenuar, é porque têm outra dentição, outro aparelho digestivo, outra disposição dos dedos e das unhas; é porque não podem capturar o mesmo alimento, porque não podem tratá-Io do mesmo modo; é porque não têm de digerir a mesma natureza de alimentos. Portanto, o ser vivo não deve mais ser compreendido apenas como uma certa combinação de moléculas portadoras de caracteres definidos; ele delineia uma organização que se sustém em relações ininterruptas com elementos exteriores que ela utiliza (pela respiração, pela alimentação), a fim de manter ou desenvolver sua própria estrutura. Em torno do ser vivo, ou, antes, através dele e pelo filtro de sua superficie, efetua-se “uma circulação continua de fora para dentro e de dentro para fora, constantemente mantida e contudo fixada entre certos limites. Assim, Os corpos vivos devem ser considerados como espécies de focos nos quais as substâncias mortas são sucessivamente conduzidas, para ali se combinarem entre si de diversas maneiras”28. O ser vivo, pelo jogo e pela soberania dessa mesma força que o mantém em descontinuidade consigo mesmo, acha-se submetido a uma relação contínua com o que o cerca. Para que o ser vivo possa viver, é preciso que haja várias organizações irredutíveis umas às outras, como também um movimento ininterrupto entre cada uma e o ar que ela respira, a água que bebe, o alimento que absorve. Rompendo a antiga continuidade clássica entre o ser e a natureza, a força dividida da vida fará aparecer formas dispersas, ligadas todas, porém, a condições de existência. Em alguns anos, na curva dos séculos XVIII e XIX, a cultura européia modificou inteiramente a espacialização fundamental do ser vivo: para a experiência clássica, o ser vivo era um compartimento ou uma série de compartimentos na taxinomia universal do ser; se sua localização geográfica tinha um papel (como em Buffon), era para fazer aparecer variações que já eram possíveis. A partir de Cuvier, o ser vivo se envolve sobre si mesmo, rompe suas vizinhanças taxinômicas, se arranca ao vasto plano constringente das continuidades e se constitui um novo espaço: espaço duplo, na verdade – pois que é aquele, interior, das coerências anatômicas e das compatibilidades fisiológicas, e aquele, exterior, dos elementos onde ele reside para deles fazer seu corpo próprio. Todavia, esses dois espaços têm um comando unitário: não mais o das possibilidades do ser, mas o das condições de vida. Todo o a priori histórico de uma ciência dos seres vivos acha-se assim abalado e renovado. Considerada na sua profundidade arqueológica e não ao nível mais aparente das descobertas, das discussões, teorias, ou das opções filosóficas, a obra de Cuvier tende de longe para o que viria a ser o futuro da biologia. Freqüentemente, opõem-se as intuições “transformistas” de Lamarck, que parecem “prefigurar” o que será o evolucionismo, e o velho fixismo, todo impregnado de preconceitos tradicionais e de postulados teológicos, no qual se obstinava Cuvier. E por todo um jogo de amálgamas, de metáforas, de analogias mal controladas, desenha-se o perfil de um pensamento “reacionário” que se empenha apaixonadamente na imobilidade das coisas para garantir a ordem precária dos homens; tal seria a filosofia de Cuvier, homem de todos os poderes; de outro lado, descreve-se o destino dificil de um pensamento progressista, que crê na força do movimento, na incessante novidade, na vivacidade das adaptações: Lamarck, o revolucionário, estaria aí. Fornece-se assim, sob o pretexto de fazer história das idéias num sentido rigorosamente histórico, um belo exemplo de ingenuidade. Pois, na historicidade do saber, o que conta não são as opiniões, nem as semelhanças que, através das idades, se podem estabelecer entre elas (há, com efeito, uma “semelhança” entre Lamarck e um certo evolucionismo, assim como entre este e as idéias de Diderot, de Robinet ou de Benoit de Maillet); o que é importante, o que permite articular em si mesma a história do pensamento, são suas condições internas de possibilidade. Ora, basta tentar sua análise para logo se perceber que Lamarck só pensava as transformações das espécies a partir da continuidade ontológica que era a da história natural dos clássicos. Ele supunha uma gradação progressiva, um aperfeiçoamento ininterrupto, uma grande superflcie dos seres que podiam formar-se uns a partir dos outros. O que toma possível o pensamento de Lamarck não é a apreensão longínqua de um evolucionismo por vir, é a continuidade dos seres, tal como a descobriam e a supunham os “métodos” naturais. Lamarck é contemporâneo de A.-L. de Jussieu. Não de Cuvier. Este introduziu na escala clássica dos seres uma descontinuidade radical; e, por isso mesmo, fez surgir noções como as de incompatibilidade biológica, de relações com os elementos exteriores, de condições de existência; fez surgir também uma certa força que deve manter a vida e uma certa ameaça que a pune com a morte; aí se acham reunidas várias das condições que tornam possível alguma coisa como o pensamento da evolução. A descontinuidade das formas vivas permitiu conceber um grande fluxo temporal, que não autorizava, apesar das analogias de superfície, a continuidade das estruturas e dos caracteres. Pôde-se substituir a história natural por “história” da natureza, graças ao descontínuo espacial, graças à ruptura do quadro, graças ao fracionamento dessa superfície onde todos os seres naturais vinham, em ordem, achar seu lugar. Certamente, o espaço clássico, como se viu, não excluía a possibilidade de um devir, mas esse devir nada mais fazia que assegurar um percurso sobre o tablado discretamente prévio das variações possíveis. A ruptura desse espaço permitiu descobrir uma historicidade própria à vida: aquela de sua manutenção em suas condições de existência. O “fixismo” de Cuvier, como análise de tal manutenção, foi a maneira inicial de refletir essa historicidade no momento em que ela aflorava, pela primeira vez, no saber ocidental. A historicidade, pois, introduziu-se agora na natureza – ou, antes, no ser vivo; mas ela aí é bem mais do que uma forma provável de sucessão; constitui como que um modo de ser fundamental. Sem dúvida, na época de Cuvier não existe ainda história do ser vivo, como a que descreverá o evolucionismo; mas o ser vivo é pensado, logo de início, com as condições que lhe permitem ter uma história. É do mesmo modo que as riquezas receberam, na época de Ricardo, um estatuto de historicidade que ele tampouco formulara ainda como história econômica. A estabilidade próxima dos rendimentos industriais, da população e da renda tal como a previra Ricardo, a fixidez das espécies afirmada por Cuvier podem passar, após um exame superficial, por uma recusa da história; de fato, Ricardo e Cuvier só recusavam as modalidades da sucessão cronológica tais como foram pensadas no século XVIII; eles desfaziam a dependência do tempo em relação à ordem hierárquica ou classificatória das representações. Em contrapartida, essa imobilidade atual ou futura que descreviam ou anunciavam, só podiam concebê-Ia a partir da possibilidade de uma história; e esta lhes era dada quer pelas condições de existência do ser vivo, quer pelas condições de produção do valor. Paradoxalmente, o pessimismo de Ricardo, o fixismo de Cuvier só aparecem sobre um fundo histórico: eles definem a estabilidade dos seres que, doravante, têm direito, ao nível de sua modalidade profunda, a ter uma história; a idéia clássica de que as riquezas podiam crescer segundo um progresso contínuo, ou de que as espécies pudessem com o tempo transformar-se umas nas outras, definia, ao contrário, a mobilidade de seres que, antes mesmo de toda história, já obedeciam a um sistema de variáveis d: identidades ou de equivalências. Foi necessária a suspensão e como que a colocação entre parênteses daquela história, para que os seres da natureza e os produtos do trabalho recebessem uma historicidade que permitisse ao pensamento moderno apreendê-Ios e desenvolver, em seguida, a ciência dlscursiva de sua sucessão. Para o pensamento do século XYIII, as seqüências cronológicas não passam de uma propriedade e de uma manifestação mais ou menos confusa da ordem dos seres; a partir do século XIX, elas exprimem, de um modo mais ou menos direto e até na sua interrupção, o modo de ser profundamente histórico das coisas e dos homens. Em todo o caso, essa constituição de uma historicidade viva teve, para o pensamento europeu, vastas conseqüências. Tão vastas, sem dúvida, quanto aquelas acarretadas pela formação de uma historicidade econômica. Ao nível superficial dos grandes valores imaginários, a vida, doravante votada à história, se delineia sob a forma da animalidade. A besta, cuja grande ameaça ou estranheza radical tinham ficado suspensas e como que desarmadas no final da Idade Média ou pelo menos ao cabo do Renascimento, encontra, no século XIX, novos poderes fantásticos. Nesse ínterim, a natureza clássica privilegiara os valores vegetais – a planta trazendo sobre seu brasão visível a marca sem reticências de cada ordem eventual; com todas as suas figuras desdobradas, do caule à semente, da raiz ao fruto, o vegetal formava, para um pensamento em quadro, um puro objeto transparente aos segredos generosamente restituídos. A partir do momento em que caracteres e estruturas se escalonam em profundidade na direção da vida – esse ponto de fuga soberano, indefinidamente distante mas constituinte – é o animal então que se toma figura privilegiada, com seus arcabouços ocultos, seus órgãos encobertos, tantas funções invisíveis e essa força longínqua, no fundo de tudo, que o mantém em vida. Se o ser vivo é uma classe de seres, a erva, melhor que tudo, enuncia sua límpida essência; mas se o ser vivo é manifestação da vida, o animal deixa melhor perceber o que é o seu enigma. Mais que a imagem calma dos caracteres, ele mostra a passagem incessante do inorgânico ao orgânico, pela respiração ou pela nutrição, e a transformação inversa, sob o efeito da morte, das grandes arquiteturas funcionais em poeira sem vida: “As substâncias mortas são conduzidas para os corpos vivos”, dizia Cuvier, “para aí terem um lugar e aí exercerem uma ação, determinados pela natureza das combinações em que ingressaram, e para daí escaparem um dia, a fim de entrarem novamente sob as leis da natureza morta”29. A planta reinava nos confins do movimento e da imobilidade, do sensível e do insensível; já o animal mantém-se nos confins da vida e da morte. Esta o assedia de todos os lados; bem mais, ameaça-o também do interior, pois somente o organismo pode morrer, e é do fundo de sua vida que a morte sobrevém aos seres vivos. Daí, sem dúvida, os valores ambíguos assumidos, por volta do fim do século XVIII, pela animalidade: a besta aparece como portadora dessa morte, à qual, ao mesmo tempo, está sujeita; há nela uma devoração perpétua da vida por ela mesma. Ela só pertence à natureza quando encerra em si um núcleo de contranatureza. Transferindo sua mais secreta essência do vegetal ao animal, a vida abandona o espaço da ordem e volta a ser selvagem. Revela-se mortífera nesse mesmo movimento que a vota à morte. Mata porque vive. A natureza já não sabe ser boa. Que a vida não possa mais ser separada do assassínio, a natureza do mal, nem os desejos da contranatureza, Sade o anunciava ao século XVIII, cuja linguagem ele esgotava, bem como à idade moderna, que por longo tempo quis condená-lo ao mutismo. Que se desculpe a insolência (para com quem?): Les 120 journées são o reverso aveludado, maravilhoso, das Leçons d’anatomie comparée. Em todo. o caso, no calendário de nossa arqueologia, tem a mesma idade. Mas esse estatuto imaginário da animalidade, totalmente carregada de poderes inquietantes e noturnos, remete de maneira mais profunda às funções múltiplas e simultâneas da vida no pensamento do século XIX. Pela primeira vez talvez na cultura ocidental, a vida escapa às leis gerais do ser, tal como ele se dá e se analisa na representação. Do outro lado de todas as coisas que estão aquém mesmo daquelas que podem ser, suportando-as para fazê-Ias aparecer, e destruindo-as incessantemente pela violência da morte, a vida se torna uma força fundamental e que se opõe ao ser como o movimento à imobilidade, o tempo ao espaço, o querer secreto à manifestação visível. A vida é a raiz de toda existência, e o nãovivo, a natureza inerte, nada mais são que a vida decaída; o ser puro e simples é o não-ser da vida. Pois esta, e é por isso que ela tem um valor radical no pensamento do século XIX, é ao mesmo tempo núcleo do ser e do não-ser: só há ser porque há vida e, nesse movimento fundamental que os vota à morte, os seres dispersos e estáveis por instantes formam-se, detêm-se, imobilizam-na – e, num sentido, a matam -.:., mas são por sua vez destruídos por essa força inesgotável. A experiência da vida apresenta-se, pois, como a lei mais geral dos seres, o aclaramento dessa força primitiva a partir da qual eles são; ela funciona como uma ontologia selvagem que buscasse dizer o ser e o não-ser indissociáveis de todos os seres. Mas essa ontologia desvela menos o que funda os seres do que o que os leva, por um instante, a uma forma precária e secretamente já os mina por dentro, para os destruir. Em relação à vida, os seres não passam de figuras transitórias e o ser que eles mantêm, durante o episódio de sua existência, nada mais é que sua presunção, sua vontade de subsistir. De sorte que, para o conhecimento, o ser das coisas é ilusão, véu que se deve rasgar, para se reencontrar a violência muda e invisível que os devora na noite. A ontologia do aniquilamento dos seres vale, portanto, como crítica do conhecimento; mas trata-se menos de fundar o fenômeno, de dizer ao mesmo tempo seu limite e sua lei, de reportá10 à finitude que o toma possível, do que de dissipá-lo e destruí-lo como a própria vida destrói os seres: pois todo o seu ser é só aparência. Vê-se constituir-se assim um pensamento que se opõe, quase em cada um de seus termos, ao que estava ligado à formação de uma historicidade econômica. Vimos como esta última se apoiava sobre uma tríplice teoria das necessidades irredutíveis, da objetividade do trabalho e do fim da história. Aqui vemos, ao contrário, desenvolver-se um pensamento em que a individualidade, com suas formas, seus limites e suas necessidades, não passa de um momento precário, votado à destruição, formando, em tudo e por tudo, um simples obstáculo que, na via desse aniquilamento, tem de ser afastado; um pensamento em que a objetividade das coisas não passa de aparência, quimera da percepção, ilusão que é preciso dissipar e restituir à pura vontade sem fenômeno que as fez nascer e as suportou por um instante; um pensamento, enfim, para o qual o recomeço da vida, suas retomadas incessantes, sua obstinação, excluem que se lhe estabeleça um limite no curso do tempo, tanto mais que o próprio tempo, com suas divisões cronológicas e seu calendário quase espacial, não é, sem dúvida, mais que uma ilusão do conhecimento. Lá onde um pensamento prevê o fim da história, o outro anuncia o infinito da vida; onde um reconhece a produção real das coisas pelo trabalho, o outro dissipa as quimeras da consciência; onde um afirma com os limites do indivíduo as exigências de sua vida, o outro os apaga no murmúrio da morte. Será essa oposição o sinal de que, a partir do século XIX, o campo do saber não pode mais dar lugar a uma reflexão homogênea e uniforme em todos os seus pontos? Será preciso admitir que, doravante, cada forma de positividade tem a “filosofia” que lhe convém: a economia, a de um trabalho marcado pelo signo da necessidade, mas destinado finalmente à grande recompensa do tempo; a biologia, a de uma vida marcada por essa continuidade que só forma os seres para os desfazer, achando-se com isso liberada de todos os limites da História? E as ciências da linguagem, uma filosofia das culturas, de sua relatividade e de seu poder singular de manifestação?

II. Ricardo

Capítulo VIII - Trabalho, vida e linguagem; tópico II. Ricardo

Afirma-se facilmente que Adam Smith fundou a economia política moderna – poder-se-ia dizer a economia simplesmente – introduzindo o conceito de trabalho num domínio de reflexão que ainda não o conhecia: de imediato, todas as velhas análises da moeda, do comércio e da troca teriam sido remetidas a uma idade pré-histórica do saber – com exceção talvez unicamente da fisiocracia, à qual se concede o mérito de ter tentado ao menos a análise da produção agrícola. 

É verdade que Adam Smith refere, logo de início, a noção de riqueza à de trabalho: 

“O trabalho anual de uma nação é o fundo primitivo que fornece ao consumo anual todas as coisas necessárias e cômodas à vida; e essas coisas são sempre ou o produto imediato desse trabalho ou compradas de outras nações com esse produto”(1);

 é também verdade que Smith reporta o “valor em uso” das coisas à necessidade dos homens, e o “valor em troca” à quantidade de trabalho aplicada para produzi-lo: 

“O valor de uma mercadoria qualquer, para aquele que a possui e que não pretenda pessoalmente dela fazer uso ou consumi-Ia, mas que tem a intenção de trocá-Ia por outra coisa, é igual à quantidade de trabalho que essa mercadoria lhe permite comprar ou encomendar.”(2) 

De fato, a diferença entre as análises de Smith e as de Turgot ou Cantillon é menor do que se crê; ou, antes, não reside lá onde se imagina. 

Desde Cantillon e antes dele já se distinguiam perfeitamente o valor de uso e o valor de troca; desde Cantillon igualmente, utilizava-se a quantidade de trabalho para medir este último. 

Mas a quantidade de trabalho inscrita no preço das coisas não passava de um instrumento de medida, ao mesmo tempo relativo e redutível. Com efeito, o trabalho de um homem valia a quantidade de alimento que era necessária a ele e à sua família para os manter durante o tempo que durava a obra(3). De sorte que, em última instância, a necessidade – o alimento, o vestuário, a habitação – definia a medida absoluta do preço de mercado.

Ao longo de toda a idade clássica, é a necessidade que mede as equivalências, o valor de uso que serve de referência absoluta aos valores de troca; é o alimento que afere os preços, dando à produção agrícola, ao trigo e à terra o privilégio que todos lhes reconheceram. 

Adam Smith não inventou portanto o trabalho como conceito econômico, porquanto já o encontramos em Cantillon, em Quesnay, em Condillac; 

nem mesmo lhe faz desempenhar um papel novo, pois dele também se serve como medida do valor de troca: 

“O trabalho é a medida real do valor permutável de toda mercadoria.”(4)

 Desloca-o porém: 

  • conserva-lhe sempre a função de análise das riquezas permutáveis; 
  • essa análise, entretanto, não é mais um puro e simples momento para reconduzir a troca à necessidade (e o comércio ao gesto primitivo da permuta); 
  • ela descobre uma unidade de medida irredutível, insuperável e absoluta. 
  • Desde logo, as riquezas não estabelecerão mais a ordem interna de suas equivalências por uma comparação dos objetos a trocar, nem por uma estimação do poder próprio a cada um de representar um objeto de necessidade (e, em último recurso, o mais fundamental de todos, o alimento); 
  • elas se decomporão segundo as unidades de trabalho que realmente as produziram. 

As riquezas são sempre elementos representativos que funcionam: mas o que representam finalmente 

  • não é mais o objeto do desejo, 
  • é o trabalho. 

Duas objeções, porém, logo se apresentam: 

como pode o trabalho ser medida fixa do preço natural das coisas, se ele próprio tem um preço – e que é variável? 

Como pode o trabalho ser uma unidade insuperável, se ele muda de forma e se o progresso das manufaturas o torna incessantemente mais produtivo, dividindo-o sempre mais? 

Ora, é justamente através dessas objeções e como que por seu intermédio que podemos trazer à luz a irredutibilidade do trabalho e seu caráter primeiro. 

Com efeito, há regiões no mundo e momentos numa mesma região em que o trabalho é caro: os operários são pouco numerosos, os salários elevados; em outras partes e em outros momentos, a mão-de-obra abunda, é mal retribuída, o trabalho é barato. 

Mas o que se modifica nessas alternâncias é a quantidade de alimento que se pode obter com um dia de trabalho; 

  • se há poucas mercadorias e muitos consumidores, cada unidade de trabalho só será recompensada por uma fraca quantidade de subsistência; 
  • em contrapartida, ela será bem paga se as mercadorias se encontram em abundância. 

Isso não passa de conseqüências de uma situação de mercado; o próprio trabalho, as horas passadas, o esforço e a fadiga são, de todo modo, os mesmos; e quanto mais necessárias forem essas unidades, tanto mais caros serão os produtos.

 “As quantidades iguais de trabalho são sempre iguais para aquele que trabalha.”(5) 

E contudo poder-se-ia dizer que essa unidade não é fixa, já que, para produzir um único e mesmo objeto, será preciso, conforme a perfeição das manufaturas (isto é, segundo a divisão do trabalho que se instaurou), um labor mais ou menos longo. 

Mas, na verdade, não foi o trabalho em si mesmo que mudou; foi a relação do trabalho com a produção de que ele é suscetível. 

O trabalho, entendido como jornada, esforço e fadiga, é um numerador fixo: só o denominador (o número de objetos produzidos) é capaz de variações. 

Um operário que tivesse de fazer sozinho as 18 operações distintas de que necessita a fabricação de um alfinete não produziria, sem dúvida, mais que cerca de 20 deles no curso de todo um dia. 

Mas dez operários que tivessem de efetuar cada qual somente uma ou duas operações poderiam fazer juntos mais de 48 mil alfinetes num dia; portanto, cada operário, realizando uma décima parte desse produto, pode ser considerado como fazendo em seu dia 4.800 alfinetes(6). 

A potência produtiva do trabalho foi multiplicada; numa mesma unidade (a jornada de um assalariado), os objetos fabricados aumentaram; seu valor de troca vai portanto baixar, isto é, cada um deles, por sua vez, só poderá comprar uma quantidade de trabalho proporcionalmente menor. 

O trabalho não diminuiu em relação às coisas; foram as coisas que como que se estreitaram em relação à unidade de trabalho. 

Troca-se, é verdade, porque se têm necessidades; sem elas, o comércio não existiria, nem tampouco o trabalho, nem sobretudo essa divisão que o torna mais produtivo. Inversamente, são as necessidades que, quando satisfeitas, limitam o trabalho e seu aperfeiçoamento: 

“Uma vez que é a faculdade de trocar que dá lugar à divisão do trabalho, o aumento dessa divisão deve, por conseqüência, ser sempre limitado pela extensão da faculdade de trocar ou, em outros termos, pela extensão do mercado.”(7) 

As necessidades e a troca de produtos que podem responder a elas são sempre o princípio da economia: são seu primeiro motor e a circunscrevem; o trabalho e a divisão que o organiza não passam de seus efeitos. 

Mas, no interior da troca, na ordem das equivalências, a medida que estabelece as igualdades e as diferenças é de natureza diversa da necessidade. Não está ligada apenas ao desejo dos indivíduos, modificada com ele e variável como ele. É uma medida absoluta, se com isso se entender que não depende do coração dos homens ou de seu apetite; impõe-se-lhes do exterior: é seu tempo e é seu esforço. 

Em relação à de seus predecessores, a análise de Adam Smith representa um desfecho essencial: 

  • ela distingue a razão da troca e a medida do permutável, 
  • a natureza do que é trocado e as unidades que permitem sua decomposição. 

Troca-se porque se tem necessidade, e os objetos precisamente de que se tem necessidade, mas a ordem das trocas, sua hierarquia e as diferenças que aí se manifestam são estabelecidas pelas unidades de trabalho que foram depositadas nos objetos em questão. 

Se, 

  • para a experiência dos homens – ao nível do que se vai incessantemente chamar de psicologia – o que eles trocam é o que lhes é “indispensável, cômodo ou agradável”, 
  • para o economista, o que circula sob a forma de coisas é trabalho. 

Não mais objetos de necessidade que se representam uns aos outros, mas tempo e fadiga, transformados, ocultos, esquecidos. 

Esse desfecho é de grande importância. 

  • Certamente, Adam Smith analisa ainda, como seus predecessores, esse campo de positividade a que o século XVIII chamou “riquezas”; e, com isso, entendia também ele objetos de necessidade – os objetos portanto de uma certa forma de representação – representando-se a si próprios nos movimentos e nos processos da troca. 
  • Mas, no interior dessa reduplicação e para regular sua lei, as unidades e as medidas da troca, ele formula um princípio de ordem que é irredutível à análise da representação:
    • traz à luz o trabalho, isto é, o esforço e o tempo, essa jornada que, ao mesmo tempo talha e gasta a vida de um homem. 

A equivalência dos objetos do desejo não é mais estabelecida por intermédio de outros objetos e de outros desejos, mas por uma passagem ao que lhes é radicalmente heterogêneo; 

se há uma ordem nas riquezas, se isto pode comprar aquilo, se o ouro vale duas vezes mais que a prata, não é mais porque os homens têm desejos comparáveis; 

não é porque através de seu corpo eles experimentam a mesma fome ou porque o coração de todos obedece às mesmas seduções; 

é porque todos eles são submetidos ao tempo, ao esforço, à fadiga e, indo ao extremo, à própria morte. 

Os homens trocam porque experimentam necessidades e desejos; mas podem trocar e ordenar essas trocas porque são submetidos ao tempo e à grande fatalidade exterior. 

Quanto à fecundidade desse trabalho, não é ela devida tanto à habilidade pessoal ou ao cálculo dos interesses; funda-se em condições, também estas, exteriores à sua representação: 

progresso da indústria, aumento da divisão de tarefas, acúmulo de capitais, divisão do trabalho produtivo e do trabalho não-produtivo. 

Vê-se de que maneira a reflexão sobre as riquezas começa, com Adam Smith, a extravasar o espaço que lhe era designado na idade clássica; 

  • era então alojada no interior da “ideologia” – da análise da representação; 
  • doravante, ela se refere, como que de viés, a dois domínios que escapam, tanto um quanto o outro, às formas e às leis da decomposição das idéias:
    • de um lado, ela desponta já para uma antropologia que põe em questão a essência do homem (sua finitude, sua relação com o tempo, a iminência da morte) e o objeto no qual ele investe as jornadas de seu tempo e de seu esforço sem poder nele reconhecer o objeto de sua necessidade imediata; 
    • e, de outro, indica, ainda no vazio, a possibilidade de uma economia política que não mais teria por objeto a troca das riquezas (e o jogo das representações que a cria), mas sua produção real: formas do trabalho e do capital. 

Compreende-se como, entre essas positividades recentemente formadas –

  • uma antropologia que fala de um homem tornado estranho a si mesmo 
  • e uma economia que fala de mecanismos exteriores à consciência humana 

– a Ideologia ou a Análise das representações se reduzirá, em breve, a ser não mais que uma psicologia, ao mesmo tempo em que, diante dela, contra ela e dominando-a bem logo do alto de si mesma, se abre a dimensão de uma história possível. 

A partir de Smith, 

  • o tempo da economia não será mais aquele, cíclico, dos empobrecimentos e dos enriquecimentos; 
  • também não será o crescimento linear das políticas hábeis que, aumentando sempre ligeiramente as espécies em circulação, aceleram a produção mais rapidamente do que elevam os preços; 
  • será o tempo interior de uma organização que cresce segundo sua própria necessidade e se desenvolve segundo leis autóctones – o tempo do capital e do regime de produção.

I. As novas empiricidades

Capítulo VIII - Trabalho, vida e linguagem; tópico I. As novas empiricidades

Os últimos anos do século XVIII são rompidos por uma descontinuidade simétrica àquela que, no começo do século XVII, cindira o pensamento do Renascimento; 

  • então, as grandes figuras circulares em que se encerrava a similitude tinham-se deslocado e aberto para que o quadro das identidades pudesse desdobrar-se; 
  • e esse quadro agora vai por sua vez desfazer-se, alojando-se o saber num espaço novo. 

Descontinuidade tão enigmática em seu princípio, em seu primitivo despedaçamento, quanto a que separa os círculos de Paracelso da ordem cartesiana. 

Donde vem bruscamente essa mobilidade inesperada das disposições epistemológicas, o desvio das positividades umas em relação às outras, mais profundamente ainda a alteração de seu modo de ser? 

Como ocorre que o pensamento se desprenda daquelas plagas que habitava outrora – gramática geral, história natural, riquezas – e deixe oscilar no erro, na quimera, no não-saber aquilo mesmo que, menos de 20 anos antes, estava estabelecido e afirmado no espaço luminoso do conhecimento? 

A que acontecimento ou a que lei obedecem essas mutações que fazem com que de súbito as coisas não sejam mais percebidas, descritas, enunciadas, caracterizadas, classificadas e’ sabidas do mesmo modo e que, no interstício das palavras ou sob sua transparência, não sejam mais as riquezas, os seres vivos, o discurso que se oferecem ao saber, mas seres radicalmente diferentes? 

Se, para uma arqueologia do saber, essa abertura profunda na camada das continuidades deve ser analisada, e minuciosamente, não pode ser ela “explicada”, nem mesmo recolhida numa palavra única. É um acontecimento radical que se reparte por toda a superfície visível do saber e cujos signos, abalos, efeitos, podem-se seguir passo a passo. 

Somente o pensamento, assenhoreando-se de si mesmo na raiz de sua história, poderia fundar, sem nenhuma dúvida, o que foi, em si mesma, a verdade solitária desse acontecimento. 

A arqueologia, essa, deve percorrer o acontecimento segundo sua disposição manifesta; 

  • ela dirá como as configurações próprias a cada positividade se modificaram (ela analisa por exemplo,
    • para a gramática, o desaparecimento do papel maior atribuído ao nome e a importância nova dos sistemas de flexão; 
    • ou ainda, a subordinação, no ser vivo, do caráter à função); 
  • ela analisará a alteração dos seres empíricos que povoam as positividades
    • (a substituição do discurso pelas línguas, 
    • das riquezas pela produção); 
  • estudará o deslocamento das positividades umas em relação às outras
    • (por exemplo, a relação nova entre a biologia, as ciências da linguagem e a economia); 
  • enfim e sobretudo, mostrará que o espaço geral do saber
    • não é mais o das identidades e das diferenças, o das ordens não-quantitativas, o de uma caracterização universal, de uma taxinomia geral, de uma máthêsis do não-mensurável, 
    • mas um espaço feito de organizações, isto é, de relações internas entre elementos, cujo conjunto assegura uma função; 
  • mostrará que essas organizações são descontínuas,
    • que não formam, pois, um quadro de simultaneidades sem rupturas,
    • mas que algumas são do mesmo nível enquanto outras traçam séries ou sequências lineares. 

De sorte que se vêem surgir,
como princípios organizadores desse espaço de empiricidades,
a Analogia e a Sucessão:
de uma organização a outra,
o liame, com efeito,
não pode mais ser a identidade de um ou vários elementos,
mas a identidade da relação entre os elementos
(onde a visibilidade não tem mais papel)
e da função que asseguram;
ademais, se porventura essas organizações se avizinham
por efeito de uma densidade singularmente grande de analogias,
não é porque ocupem localizações próximas
num espaço de classificação,
mas sim porque foram formadas
uma ao mesmo tempo que a outra
e uma logo após a outra
no devir das sucessões. 

Enquanto, no pensamento clássico, 

a seqüência das cronologias não fazia mais que percorrer o espaço prévio e mais fundamental de um quadro que de antemão apresentava todas as suas possibilidades, 

doravante 

as semelhanças contemporâneas e observáveis simultaneamente no espaço não serão mais que as formas depositadas e fixadas de uma sucessão
que procede
de analogia em analogia. 

A ordem clássica 

distribuía num espaço permanente as identidades e as diferenças não-quantitativas que separavam e uniam as coisas: 

era essa a ordem que reinava soberanamente,
mas a cada vez segundo formas e leis ligeiramente diferentes,

  • sobre o discurso dos homens,
  • o quadro dos seres naturais
  • e a troca das riquezas. 

A partir do século XIX, 

a História vai desenrolar numa série temporal
as analogias que aproximam umas das outras
as organizações distintas. 

É essa História que, progressivamente, imporá suas leis 

  • à análise da produção, 
  • à dos seres organizados, 
  • enfim, à dos grupos linguísticos. 

A História dá lugar às organizações analógicas, 

assim como a Ordem abria o caminho das identidades
e das diferenças sucessivas. 

Mas vê-se bem que a História 

  • não deve ser aqui entendida como a coleta das sucessões de fatos, tais como se constituíram; 
  • ela é o modo de ser fundamental das empiricidades,
    • aquilo a partir de que elas são afirmadas, postas, dispostas e repartidas no espaço do saber para eventuais conhecimentos e para ciências possíveis. 

Assim como a Ordem no pensamento clássico 

não era a harmonia visível das coisas, seu ajustamento, sua regularidade ou sua simetria constatados, 

mas o espaço próprio de seu ser e aquilo que, antes de todo conhecimento efetivo, as estabelecia no saber, 

assim também a História, a partir do século XIX, 

define o lugar de nascimento do que é empírico,
lugar onde, aquém de toda cronologia estabelecida,
ele assume o ser que lhe é próprio.

 É por isso certamente que tão cedo a História se dividiu, segundo um equívoco que sem dúvida não é possível vencer, entre 

  • uma ciência empírica dos acontecimentos 
  • e esse modo de ser radical que prescreve seu destino a todos os seres empíricos e a estes seres singulares que somos nós. 

A História, como se sabe, é efetivamente a região mais erudita, mais informada, mais desperta, mais atravancada talvez de nossa memória; 

mas é igualmente a base a partir da qual todos os seres ganham existência e chegam à sua cintilação precária. 

Modo de ser de tudo o que nos é dado na experiência, a História tornou-se assim o incontornável de nosso pensamento: no que, sem dúvida, não é tão diferente da Ordem clássica. 

Essa também podia ser estabelecida num saber organizado mas era mais fundamentalmente o espaço onde todo ser vinha ao conhecimento; e a metafisica clássica alojava-se precisamente nessa distância 

  • da Ordem à ordem, 
  • das classificações à Identidade, 
  • dos seres naturais à Natureza: 
  • em suma,
    • da percepção (ou da imaginação) dos homens 
    • para com o entendimento e a vontade de Deus. 

A filosofia do século XIX se alojará na distância 

  • da história à História, 
  • dos acontecimentos à Origem, 
  • da evolução ao primeiro dilaceramento da fonte, 
  • do esquecimento ao Retorno. 

Portanto, 

  • ela só não será mais Metafisica na medida em que será Memória 
  • e, necessariamente, reconduzirá o pensamento à questão de saber o que é, para o pensamento, ter uma história. 

Essa questão infatigavelmente acossará a filosofia, de Hegel a Nietzsche, e para além desses. 

Não vejamos nisso o fim de uma reflexão filosófica autônoma, demasiado matinal e demasiado orgulhosa para se inclinar exclusivamente sobre o que foi dito antes dela e por outros; 

não tomemos isso como um pretexto para denunciar um pensamento impotente para manter-se de pé sozinho e sempre constrangido a enrolar-se a um pensamento já realizado. 

Basta reconhecer aí uma filosofia já desprendida de certa metafisica, porque desligada do espaço da ordem, mas votada ao Tempo, ao seu fluxo, a seus retornos, porque presa ao modo de ser da História. 

É preciso, porém, retomar, com um pouco mais de detalhe, ao que se passou na curva dos séculos XVIII e XIX: a essa mutação demasiado rapidamente desenhada da Ordem à História e à alteração fundamental dessas positividades que, durante quase um século e meio, deram lugar a tantos saberes vizinhos – análise das representações, gramática geral, história natural, reflexões sobre as riquezas e o comércio. 

Como essas maneiras de ordenar a empiricidade que foram o discurso, o quadro, as trocas, se desvaneceram? 

Em que outro espaço e segundo quais figuras as palavras, os seres, os objetos da necessidade tomaram lugar e se distribuíram uns em relação aos outros? 

Que novo modo de ser devem ter recebido para que todas essas mudanças fossem possíveis e para que aparecessem, ao cabo de alguns anos apenas, esses saberes agora familiares a que chamamos, desde o século XIX, 

 

  • filologia, 
  • biologia, 
  • economia política? 

Imaginamos facilmente que, se esses novos domínios foram definidos no século passado, é porque um pouco mais de objetividade no conhecimento, de exatidão na observação, de rigor no raciocínio, de organização na pesquisa e na informação cientifica – tudo isso ajudado, com um pouco de sorte ou de gênio, por algumas descobertas felizes, nos fez sair de uma idade pré-histórica em que o saber balbuciava ainda com a Gramática de Port-Royal, as classificações de Lineu e as teorias do comércio ou da agricultura. 

Mas se, do ponto de vista da racionalidade dos conhecimentos, podemos realmente falar em pré-história, para as positividades só podemos falar em história. 

E foi realmente necessário
um acontecimento fundamental
 – um dos mais radicais, sem dúvida,
que ocorreram na cultura ocidental,
para que se desfizesse a positividade do saber clássico
e se constituísse uma positividade de que, por certo,
não saímos inteiramente. 

Esse acontecimento, sem dúvida porque estamos ainda presos na sua abertura, nos escapa em grande parte. 

Sua amplitude, as camadas profundas que atingiu, todas as positividades que ele pode subverter e recompor, a potência soberana que lhe permitiu atravessar, em alguns anos apenas, o espaço inteiro de nossa cultura, tudo isso só poderia ser estimado e medido ao termo de uma inquirição quase infinita que só concerniria, nem mais nem menos, ao ser mesmo de nossa modernidade. 

  • A constituição de tantas ciências positivas, 
  • o aparecimento da literatura, 
  • a volta da filosofia sobre seu próprio devir, 
  • a emergência da história ao mesmo tempo
    • como saber 
    • e como modo de ser da empiricidade, 
  • não são mais que sinais de uma ruptura profunda. 

Sinais dispersos no espaço do saber, pois que se deixam perceber na formação, 

  • aqui de uma filologia, 
  • ali de uma economia política, 
  • ali ainda de uma biologia. 

Dispersão também na cronologia: 

  • certamente, o conjunto do fenômeno se situa entre datas facilmente assinaláveis (os pontos extremos são os anos 1775 e 1825); 
  • podem-se porém reconhecer, em cada um dos domínios estudados, duas fases sucessivas que se articulam uma à outra, mais ou menos por volta dos anos 1795-1800. 
  • Na primeira dessas fases, o modo de ser fundamental das positividades não muda;
    • as riquezas dos homens, 
    • as espécies da natureza, 
    • as palavras de que as línguas são povoadas 
  • permanecem ainda o que eram na idade clássica:
    • representações duplicadas – representações cujo papel consiste em designar representações, analisá-Ias, decompô-Ias e compô-Ias, para fazer nelas surgir, com o sistema de suas identidades e de suas diferenças, o princípio geral de uma ordem. 
  • É somente na segunda fase que as palavras, as classes e as riquezas adquirirão um modo de ser que não é mais compatível com o da representação. 

Em contra partida, o que se modifica muito cedo, desde as análises de Adam Smith, de A.-L. de Jussieu ou de Viq d’Azyr, na época de Jones ou de Anquetil- Duperron, é a configuração das positividades: 

  • a maneira como, no interior de cada uma, os elementos representativos funcionam uns em relação aos outros, 
  • a maneira como asseguram seu duplo papel de designação e de articulação, 
  • como chegam, pelo jogo das comparações, a estabelecer uma ordem. 

É essa primeira fase que será estudada no presente capítulo.