Capítulo II. A prosa do mundo; tópico IV. A escrita das coisas
No século XVI, a linguagem real não é um conjunto de signos independentes, uniforme e liso, em que as coisas viriam refletir-se como num espelho, para aí enunciar, uma a uma, sua verdade singular.
É antes coisa opaca, misteriosa, cerrada sobre si mesma, massa fragmentada e ponto por ponto enigmática, que se mistura aqui e ali com as figuras do mundo e se imbrica com elas: tanto e tão bem que, todas juntas, elas formam uma rede de marcas, em que cada uma pode desempenhar, e desempenha de fato, em relação a todas as outras, o papel de conteúdo ou de signo, de segredo ou de indicação.
No seu ser bruto e histórico do século XVI, a linguagem não é um sistema arbitrário; está depositada no mundo e dele faz parte, porque, ao mesmo tempo, as próprias coisas escondem e manifestam seu enigma como uma linguagem e porque as palavras se propõem aos homens como coisas a decifrar.
A grande metáfora do livro que se abre, que se soletra e que se lê para conhecer a natureza não é mais que o reverso visível de uma outra transferência, muito mais profunda, que constrange a linguagem a residir do lado do mundo, em meio às plantas, às ervas, às pedras e aos animais.
A linguagem faz parte da grande distribuição das similitudes e das assinalações. Por conseguinte, deve, ela própria, ser estudada como uma coisa da natureza. Seus elementos têm, como os animais, as plantas ou as estrelas, suas leis de afinidade e de conveniência, suas analogias obrigatórias.
Ramus dividia sua gramática em duas partes.
- A primeira era consagrada à etimologia, o que não quer dizer que se buscasse aí o sentido originário das palavras, mas sim as “propriedades” intrínsecas das letras, das sílabas, enfim, das palavras inteiras.
- A segunda parte tratava da sintaxe: seu propósito era ensinar
“a construção das palavras entre si mediante suas propriedades” e consistia “quase que apenas em conveniência e mútua comunhão das propriedades, como a do nome com o nome ou com o verbo, do advérbio com todas as palavras às quais é associado, da conjunção na ordem das coisas conjugadas”(29).
A linguagem não é o que é porque tem um sentido; seu conteúdo representativo que, para os gramáticos dos séculos XVII e XVIII terá tanta importância a ponto de servir de fio condutor para suas análises, não tem aqui papel a desempenhar.
As palavras agrupam sílabas e as sílabas, letras, porque há, depositadas nestas, virtudes que as aproximam e as desassociam, exatamente como no mundo as marcas se opõem ou se atraem umas às outras.
O estudo da gramática repousa, no século XVI, na mesma disposição epistemológica em que repousam a ciência da natureza ou as disciplinas esotéricas.
As Únicas diferenças são:
- há uma natureza e várias línguas;
- e, no esoterismo, as propriedades das palavras, das sílabas e das letras são descobertas por um outro discurso que permanece secreto,
- enquanto na gramática são as palavras e as frases de todos os dias que, por si mesmas, enunciam suas propriedades.
A linguagem está a meio caminho entre
- as figuras visíveis da natureza
- e as conveniências secretas dos discursos esotéricos.
É uma natureza fragmentada, dividida contra ela mesma e alterada, que perdeu sua transparência primeira; é um segredo que traz em si, mas na superfície, as marcas decifráveis daquilo que ele quer dizer. É, ao mesmo tempo, revelação subterrânea e revelação que, pouco a pouco, se restabelece numa claridade ascendente.
Sob sua forma primeira, quando foi dada aos homens pelo próprio Deus, a linguagem era um signo das coisas absolutamente certo e transparente, porque se lhes assemelhava. Os nomes eram depositados sobre aquilo que designavam, assim como a força está escrita no corpo do leão, a realeza no olhar da águia, como a influência dos planetas está marcada na fronte dos homens: pela forma da similitude.
Essa transparência foi destruída em BabeI para punição dos homens.
- As línguas foram separadas umas das outras e se tornaram incompatíveis,
- somente na medida em que antes se apagou essa semelhança com as coisas que havia sido a primeira razão de ser da linguagem.
Todas as línguas que conhecemos, só as falamos agora com base nessa similitude perdida e no espaço por ela deixado vazio. Só há uma língua que guarda sua memória, porque deriva diretamente desse primeiro vocabulário agora esquecido; porque Deus não quis que o castigo de Babel escapasse a lembrança dos homens; por que essa língua teve de servir para narrar a velha Aliança de Deus com seu povo; enfim, porque é nessa língua que Deus se dirigiu aos que o escutavam.
O hebreu carrega, pois, como resquícios as marcas da nomeação primeira. E aquelas palavras que Adão havia pronunciado, impondo-as aos animais, permaneceram, ao menos em parte, arrastando consigo na sua espessura, como um fragmento de saber silencioso, as propriedades imóveis dos seres:
“Assim a cegonha, tão louvada por causa da caridade para com seus pais e mães, é chamada em hebreu Chasida, que quer dizer bondosa, caridosa, dotada de piedade… O nome Sus, do cavalo, é considerado do verbo Hasas, se não for antes este verbo que deriva do nome e que significa altear-se, pois, entre todos os animais de quatro pés, aquele é altivo e bravo como Jó o descreve no capítulo 39”(30).
Mas isso não passa de monumentos fragmentários; as outras línguas perderam essas similitudes radicais que só o hebreu conserva, para mostrar que foi outrora a língua comum a Deus, a Adão e aos animais da primeira terra. Mas, se a linguagem não mais se assemelha imediatamente às coisas que ela nomeia, não está por isso separada do mundo; continua, sob uma outra forma, a ser o lugar das revelações e a fazer parte do espaço onde a verdade, ao mesmo tempo, se manifesta e se enuncia.
Certamente que não é mais a natureza na sua visibilidade de origem, mas também não é um instrumento misterioso, cujos poderes somente alguns privilegiados conheceriam. É antes a figura de um mundo em via de se redimir, colocando-se, enfim, à escuta da verdadeira palavra.
É por isso que Deus quis que o latim, linguagem de sua igreja, se expandisse por todo o globo terrestre. É por isso que todas as linguagens do mundo, tal como foi possível conhecê-las graças a essa conquista, formam, em conjunto, a imagem da verdade.
O espaço em que se desdobram e sua imbricação liberam o signo do mundo salvo, tal como a disposição dos primeiros nomes se assemelhava às coisas que Deus colocara a serviço de Adão.
Claude Duret observa que
- os hebreus, os cananeus, os samaritanos, os caldeus, os sírios, os egípcios, os púnicos, os cartagineses, os sarracenos, os turcos, os mouros, os persas, os tártaros escrevem da direita para a esquerda, seguindo assim
“o curso e movimento diário do primeiro céu, que é muito perfeito, conforme a opinião do grande Aristóteles, aproximando-se da unidade”;
- os gregos, os georgianos, os maronitas, os jacobitas, os coftitas, os tzvernianos, os posnanianos e, certamente, os latinos e todos os europeus escrevem da esquerda para a direita, seguindo
“o curso e movimento do segundo céu, conjunto dos sete planetas”;
- os indianos, os catânios, os chineses, os japoneses escrevem de cima para baixo, conforme
“a ordem da natureza, que deu aos homens a cabeça no alto e os pés embaixo”;
- “ao contrário dos supracitados”, os mexicanos escrevem
- quer de baixo para cima,
- quer em “linhas espirais, como as que o Sol faz em seu curso anual sobre o Zodíaco”.
E assim,
“por esses cinco diversos modos de escrever, os segredos e mistérios da janela do mundo e da forma da cruz, conjunto da redondeza do céu e da terra, são propriamente denotados e expressos”(31).
As línguas estão com o mundo
- numa relação mais de analogia que de significação;
- ou, antes, seu valor de signo e sua função de duplicação se sobrepõem;
- elas dizem o céu e a terra de que são a imagem;
- reproduzem, na sua mais material arquitetura, a cruz cujo advento anunciam – esse advento que, por sua vez, se estabelece pelas Escrituras e pela Palavra.
Há uma função simbólica na linguagem:
- mas, desde o desastre de BabeI, não devemos mais buscá-la senão em raras exceções(32) nas próprias palavras,
- mas antes na existência mesma da linguagem,
- na sua relação total com a totalidade do mundo,
- no entrecruzamento de seu espaço com os lugares e as figuras do cosmos.
Daí a forma do projeto enciclopédico, tal como aparece no fim do século XVI ou nos primeiros anos do século seguinte:
- não refletir o que se sabe no elemento neutro da linguagem – o uso do alfabeto como ordem enciclopédica arbitrária, mas eficaz, só aparecerá na segunda metade do século XVII(33) –
- mas reconstituir, pelo encadeamento das palavras e por sua disposição no espaço, a ordem mesma do mundo.
É esse projeto que se encontra em
- Gregório, no seu Syntaxeon artis mirabilis (1610),
- em Alstedius com sua Encyclopaedia (1630);
- ou ainda em Cristophe de Savigny (Tableau de tous les arts libéraux) que consegue espacializar os conhecimentos, ao mesmo tempo segundo a forma cósmica, imóvel e perfeita do círculo e aquela, sublunar, perecível, múltipla e dividida da árvore;
- encontramo-lo também em La Croix du Maine, que imagina um espaço ao mesmo tempo de Enciclopédia e de Biblioteca, que permitiria dispor os textos escritos segundo as figuras da vizinhança, do parentesco, da analogia e da subordinação, prescritas pelo próprio mundo(34).
De todo modo, um tal entrelaçamento da linguagem com as coisas, num espaço que lhes seria comum, supõe um privilégio absoluto da escrita. Esse privilégio dominou todo o Renascimento e, sem dúvida, foi um dos grandes acontecimentos da cultura ocidental.
A imprensa, a chegada à Europa dos manuscritos orientais, o aparecimento de uma literatura que não era mais feita pela voz ou pela representação nem comandada por elas, a primazia dada à interpretação dos textos religiosos sobre a tradição e o magistério da igreja – tudo isso testemunha, sem que se possam apartar os efeitos e as causas, o lugar fundamental assumido, no Ocidente, pela Escrita.
Doravante, a linguagem tem por natureza primeira ser escrita. Os sons da voz formam apenas sua tradução transitória e precária.
- O que Deus depositou no mundo são palavras escritas; quando Adão impôs os primeiros nomes aos animais, não fez mais que ler essas marcas visíveis e silenciosas;
- a Lei foi confiada a Tábuas, não à memória dos homens; e a verdadeira Palavra, é num livro que a devemos encontrar.
Tanto Vigenere como Duret(35) diziam – e em termos quase idênticos – que a escrita precedera sempre a fala, certamente na natureza, talvez mesmo no saber dos homens.
Pois poderia bem ser que antes de BabeI, antes do Dilúvio, houvesse uma escrita composta pelas marcas mesmas da natureza, de tal sorte que esses caracteres tivessem o poder de agir diretamente sobre as coisas, atraí-las ou repeli-las, figurar suas propriedades, suas virtudes e seus segredos.
Escrita primitivamente natural, da qual certos saberes esotéricos e a cabala, em primeiro lugar, conservaram a memória dispersada e tentam retomar os poderes desde muito tempo adormecidos.
O esoterismo do século XVI é um fenômeno de escrita, não de fala. Esta, em todo o caso, é despojada de seus poderes;
- ela só é, dizem Vigenère e Duret, a parte fêmea da linguagem, como seu intelecto passivo;
- já a Escrita é o intelecto agente, o “princípio macho” da linguagem.
Somente ela detém a verdade. Essa primazia da escrita explica a presença gêmea de duas formas que são indissociáveis no saber do século XVI, apesar de sua oposição aparente.
Trata-se, em primeiro lugar, da não-distinção entre o que se vê e o que se lê, entre o observado e o relatado, da constituição, pois, de uma superfície única e lisa, onde o olhar e a linguagem se entrecruzam ao infinito; e trata-se também, inversamente, da dissociação imediata de toda linguagem que desdobra, sem um termo jamais assinalável, a repetição do comentário.
Buffon, um dia, estranhará que se possa encontrar em um naturalista como Aldrovandi uma mistura inextrincável de descrições exatas de citações relatadas, de fábulas sem critica, de observações concernindo indiferentemente à anatomia, aos brasões, ao habitat, aos valores mitológicos de um animal, aos usos que dele se podem fazer na medicina ou na magia. E, com efeito, quando nos reportamos à Historia serpentum et draconum, vemos o capítulo “Da Serpente em Geral” desenvolver-se segundo as seguintes rubricas:
- equívoco (isto é, os diferentes sentidos da palavra serpente), sinônimos e etimologias, diferenças, forma e descrição, anatomia, natureza e costumes, temperamento, coito e geração, voz, movimentos, lugares, alimentação, fisionomia, antipatia, simpatia, modos de captura, morte e ferimentos pela serpente, modos e sinais de envenenamento, remédios, epítetos, denominações, prodígios e presságios, monstros, mitologia, deuses aos quais é consagrada, apólogos, alegorias e mistérios, hieróglifos, emblemas e símbolos, adágios, moedas, milagres, enigmas, divisas, signos heráldicos, fatos históricos, sonhos, simulacros e estátuas, usos nos alimentos, usos na medicina, usos diversos.
E Buffon diz:
“Que se julgue, a partir disso, que porção de história natural se pode encontrar em toda essa miscelânea de escrita. Tudo isso não é descrição, mas lenda.”
Com efeito, para Aldrovandi e seus contemporâneos, tudo isso é legenda – coisas para ler.
Mas a razão disso não está em que se prefira a autoridade dos homens à exatidão de um olhar não-prevenido, mas em que a natureza, em si mesma, é um tecido ininterrupto de palavras e de marcas, de narrativas e de caracteres, de discursos e de formas.
Quando se tem de fazer a história de um animal, inútil e impossível escolher entre o ofício de naturalista e o de compilador: o que é preciso é recolher, numa única e mesma forma do saber, tudo o que foi visto e ouvido, tudo o que foi contado pela natureza ou pelos homens, pela linguagem do mundo, das tradições ou dos poetas.
Conhecer um animal, ou uma planta, ou uma coisa qualquer da terra, é recolher toda a espessa camada dos signos que puderam ter sido depositados neles ou sobre eles; é reencontrar também todas as constelações de formas em que eles assumem valor de insígnia.
Aldrovandi não era nem melhor nem pior observador que Buffon; não era mais crédulo que ele nem menos empenhado na fidelidade do olhar ou na racionalidade das coisas.
Simplesmente o seu olhar não estava ligado às coisas pelo mesmo sistema, nem pela mesma disposição da epistémê. O próprio Aldrovandi contemplava meticulosamente uma natureza que era, toda ela, escrita.
Saber consiste, pois, em referir a linguagem à linguagem. Em restituir a grande planície uniforme das palavras e das coisas. Em fazer tudo falar. Isto é, em fazer nascer, por sobre todas as marcas, o discurso segundo do comentário.
O que é próprio do saber não é nem ver nem demonstrar, mas lnterpretar.
Comentário das Escrituras, comentários dos antigos, comentário do que relataram os viajantes, comentário das lendas e das fábulas:
- não se solicita a cada um desses discursos que se interpreta seu direito de enunciar uma verdade;
- só se requer dele a possibilidade de falar sobre ele.
A linguagem tem em si mesma seu princípio interior de proliferação.
“Há mais a fazer interpretando as interpretações que interpretando as coisas; e mais livros sobre os livros que sobre qualquer outro assunto; nós não fazemos mais que nos entreglosar.”(36)
Não se trata aí da constatação do malogro de uma cultura soterrada sob seus próprios monumentos; mas da definição da relação inevitável que a linguagem do século XVI entretinha consigo mesma.
De um lado, esta relação permite uma mobilização infinita da linguagem que não cessa de se desenvolver, de se retomar e de fazer imbricarem-se suas formas sucessivas.
Talvez pela primeira vez na cultura ocidental descobre-se essa dimensão absolutamente aberta de uma linguagem que não pode mais se deter porque, jamais encerrada numa palavra definitiva, só enunciará sua verdade num discurso futuro, inteiramente consagrado a dizer o que irá dizer; mas esse próprio discurso não tem o poder de se deter sobre si e encerra aquilo que diz como uma promessa legada ainda a um outro discurso…
A tarefa do comentário, por definição, não pode jamais ser completada. E, contudo, o comentário é inteiramente voltado para a parte enigmática, murmurada, que se oculta na linguagem comentada: faz nascer, por sob o discurso existente, um outro discurso, mais fundamental e como que “mais primeiro”, cuja restituição ele se propõe como tarefa.
Só há comentário se, por sob a linguagem que se lê e se decifra, corre a soberania de um Texto primitivo. E é esse texto que, fundando o comentário, lhe promete como recompensa sua descoberta final.
De tal sorte que a necessária proliferação da exegese é medida, idealmente limitada e, contudo, incessantemente animada por esse reino silencioso.
A linguagem do século XVI – entendida não como um episódio na história da língua, mas como uma experiência cultural global – foi sem dúvida tomada nesse jogo, nesse interstício entre o Texto primeiro e o infinito da Interpretação.
Fala-se sobre o fundo de uma escrita que se incorpora ao mundo; fala-se infinitamente sobre ela, e cada um de seus signos torna-se, por sua vez, escrita para novos discursos; mas cada discurso se endereça a essa primeira escrita, cujo retorno ao mesmo tempo promete e desvia.
Vê-se que a experiência da linguagem pertence à mesma rede arqueológica a que pertence o conhecimento das coisas da natureza. Conhecer essas coisas era patentear o sistema das semelhanças que as tornavam próximas e solidárias umas às outras; não se podia, porém, fazer o levantamento das similitudes senão na medida em que um conjunto de signos formava o texto de uma indicação peremptória. Ora, esses mesmos signos não eram senão um jogo de semelhanças e remetiam a uma tarefa infinita, necessariamente inacabada, de conhecer o similar.
Da mesma forma, mas com alguma transposição, a linguagem se dá por tarefa restituir um discurso absolutamente primeiro que, no entanto, ela só pode enunciar acercando-se dele, tentando dizer a seu propósito coisas semelhantes a ele, e fazendo nascer assim, ao infinito, as fidelidades vizinhas e similares da interpretação.
O comentário se assemelha indefinidamente ao que ele comenta e que jamais pode enunciar; assim como o saber da natureza encontra sempre novos signos da semelhança, porque a semelhança não pode ser conhecida por si mesma, já que os signos não podem ser outra coisa senão similitudes. E,
- assim como esse jogo infinito da natureza encontra seu liame, sua forma e sua limitação na relação do microcosmo com o macrocosmo,
- assim a tarefa infinita do comentário se assegura na promessa de um texto efetivamente escrito, que um dia a interpretação revelará por inteiro.