Capítulo III. Representar; tópico I. Dom Quixote



Com suas voltas e reviravoltas, as aventuras de Dom Quixote traçam o limite:
- nelas terminam os jogos antigos da semelhança e dos signos;
- nelas já se travam novas relações.
Dom Quixote não é o homem da extravagância, mas antes o peregrino meticuloso que se detém diante de todas as marcas da similitude.
Ele é o herói do Mesmo.
Assim como de sua estreita província, não chega a afastar-se da planície familiar que se estende em torno do Análogo. Percorre-a indefinidamente, sem transpor jamais as fronteiras nítidas da diferença, nem alcançar o coração da identidade.
Ora, ele próprio é semelhante a signos. Longo grafismo magro como uma letra, acaba de escapar diretamente da fresta dos livros. Seu ser inteiro é só linguagem, texto, folhas impressas, história já transcrita. É feito de palavras entrecruzadas; é escrita errante no mundo em meio à semelhança das coisas.
Não porém inteiramente: pois, em sua realidade de pobre fidalgo, só pode tornar-se cavaleiro, escutando de longe a epopeia secular que formula a Lei.
- O livro é menos sua existência que seu dever.
- Deve incessantemente consultá-lo, a fim de saber o que fazer e dizer, e quais signos dar a si próprio e aos outros para mostrar que ele é realmente da mesma natureza que o texto donde saiu.
Os romances de cavalaria escreveram de uma vez por todas a prescrição de sua aventura. E cada episódio, cada decisão, cada façanha serão signos, de que Dom Quixote é de fato semelhante a todos esses signos que ele decalcou.
Mas se ele quer ser-lhes semelhante
- é porque deve prová-los,
- é porque os signos (legíveis)
- já não são semelhantes a seres (visíveis).
Todos esses textos escritos, todos esses romances extravagantes são justamente incomparáveis:
- nada no mundo jamais se lhes assemelhou;
- sua linguagem infinita fica em suspenso, sem que nenhuma similitude venha jamais preenchê-la;
- podem ser queimados todos e inteiramente, mas a figura do mundo não será por isso alterada.
Assemelhando-se aos textos de que é o testemunho, o representante, o real análogo, Dom Quixote deve fornecer a demonstração e trazer a marca indubitável de que eles dizem a verdade, de que são realmente a linguagem do mundo. Compete-lhe preencher a promessa dos livros. Cabe-lhes refazer a epopeia, mas em sentido inverso:
- esta narrava (pretendia narrar) façanhas reais prometidas à memória;
- já Dom Quixote deve preencher com realidade os signos sem conteúdo da narrativa.
Sua aventura será uma decifração do mundo: um percurso minucioso para recolher em toda a superfície da terra as figuras que mostram que os livros dizem a verdade.
A façanha deve ser prova: consiste não em triunfar realmente é por isso que a vitória não importa no fundo -, mas em transformar a realidade em signo. Em signo de que os signos da linguagem são realmente conformes às próprias coisas.
Dom Quixote lê o mundo para demonstrar os livros. E não concede a si outras provas senão o espelhamento das semelhanças. Seu caminho todo é uma busca das similitudes: as menores analogias são solicitadas como signos adormecidos que cumprisse despertar para que se pusessem de novo a falar. Os rebanhos, as criadas, as estalagens tornam a ser a linguagem dos livros, na medida imperceptível em que se assemelham aos castelos, às damas e aos exércitos. Semelhança sempre frustrada, que transforma a prova buscada em irrisão e deixa indefinidamente vazia a palavra dos livros.
Mas a própria não-similitude tem seu modelo que ela imita servilmente:
- encontra-o na metamorfose dos encantadores.
De sorte que todos os indícios da não-semelhança, todos os signos que mostram que os textos escritos não dizem a verdade assemelham-se a este jogo de enfeitiçamento que introduz, por ardil, a diferença no indubitável da similitude.
E, como essa magia foi prevista e descrita nos livros, a diferença ilusória que ela introduz nunca será mais que uma similitude encantada. Um signo suplementar, portanto, de que os signos realmente se assemelham à verdade.
Dom Quixote desenha o negativo do mundo do Renascimento;
- a escrita cessou de ser a prosa do mundo;
- as semelhanças e os signos romperam sua antiga aliança;
- as similitudes decepcionam, conduzem à visão e ao delírio;
- as coisas permanecem obstinadamente na sua identidade irônica: não são mais do que o que são;
- as palavras erram ao acaso, sem conteúdo, sem semelhança para preenchê-las;
- não marcam mais as coisas;
- dormem entre as folhas dos livros, no meio da poeira.
A magia, que permitia a decifração do mundo descobrindo as semelhanças secretas sob os signos, não serve mais senão para explicar de modo delirante por que as analogias são sempre frustradas.
A erudição, que lia como um texto único a natureza e os livros, é reconduzida às suas quimeras: depositados nas páginas amarelecidas dos volumes, os signos da linguagem não têm como valor mais do que a tênue ficção daquilo que representam.
A escrita e as coisas não se assemelham mais. Entre elas, Dom Quixote vagueia ao sabor da aventura. A linguagem, no entanto, não se tornou completamente impotente.
Doravante, detém novos poderes e que lhe são próprios. Na segunda parte do romance, Dom Quixote reencontra personagens que leram a primeira parte do texto e que o reconhecem, a ele, homem real, como o herói do livro.
O texto de Cervantes se dobra sobre si mesmo, se enterra na sua própria espessura e torna-se para si objeto de sua própria narrativa. A primeira parte das aventuras desempenha na segunda o papel que assumiam no início os romances de cavalaria.
Dom Quixote deve ser fiel a esse livro em que ele realmente se tornou;
- deve protegê-lo dos erros, das falsificações, das sequências apócrifas;
- deve acrescentar os detalhes omitidos;
- deve manter sua verdade.
Esse livro, porém, Dom Quixote mesmo não o leu nem pode lê-lo, já que ele o é em carne e osso. Ele, que à força de ler livros tornara-se um signo errante num mundo que não o reconhecia, ei-lo tornado, malgrado ele e sem o saber, um livro que detém sua verdade, reúne exatamente tudo o que ele fez e disse, viu e pensou e permite enfim que o reconheçam, de tal modo se assemelha a todos esses signos cujo sulco indelével deixou atrás de si.
Entre a primeira e a segunda parte do romance, no interstício desses dois volumes e somente pelo poder deles, Dom Quixote assumiu sua realidade. Realidade que ele deve somente à linguagem e que permanece totalmente interior às palavras.
A verdade de Dom Quixote não está na relação das palavras com o mundo,
mas nessa tênue e constante relação que as marcas verbais tecem de si para si mesmas.
A ficção frustrada das epopeias tornou-se no poder representativo da linguagem. As palavras acabam de se fechar na sua natureza de signos.
Dom Quixote é a primeira das obras modernas,
- pois que aí se vê a razão cruel das identidades e das diferenças desdenhar infinitamente dos signos e das similitudes:
- pois que aí a linguagem rompe seu velho parentesco com as coisas, para entrar nessa soberania solitária donde só reaparecerá, em seu ser absoluto, tornada literatura;
- pois que aí a semelhança entra numa idade que é, para ela, a da desrazão e da imaginação.
Uma vez desligados a similitude e os signos, duas experiências podem se constituir e duas personagens aparecer face a face.
O louco,
- entendido não como doente,
- mas como desvio constituído e mantido, como função cultural indispensável,
tornou-se, na experiência ocidental, o homem das semelhanças selvagens.
Essa personagem, tal como é bosquejada nos romances ou no teatro da época barroca e tal como se institucionalizou pouco a pouco até a psiquiatria do século XIX, é aquela que se alienou na analogia.
É o jogador desregrado do Mesmo e do Outro.
Toma as coisas pelo que não são e as pessoas umas pelas outras; ignora seus amigos, reconhece os estranhos; crê desmascarar e impõe uma máscara. Inverte todos os valores e todas as proporções, porque acredita, a cada instante, decifrar signos: para ela, os ouropéis fazem um rei.
Segundo a percepção cultural que se teve do louco até o fim do século XVIII, ele só é o Diferente na medida em que não conhece a Diferença; por toda a parte vê semelhanças e sinais da semelhança; todos os signos para ele se assemelham e todas as semelhanças valem como signos.
Na outra extremidade do espaço cultural, mas totalmente próximo por sua simetria,
o poeta
- é aquele que, por sob as diferenças nomeadas e cotidianamente previstas, reencontra os parentescos subterrâneos das coisas, suas similitudes dispersadas.
- Sob os signos estabelecidos e apesar deles, ouve um outro discurso, mais profundo, que lembra o tempo em que as palavras cintilavam na semelhança universal das coisas: a Soberania do Mesmo, tão difícil de enunciar, apaga na sua linhagem a distinção dos signos.
Daí sem dúvida, na cultura ocidental moderna, o face-a-face da poesia e da loucura.
Mas já não se trata do velho tema platônico do delírio inspirado.
Trata-se da marca de uma nova experiência da linguagem e das coisas.
Às margens de um saber que separa os seres, os signos e as similitudes, e como que para limitar seu poder, o louco garante a função do homossemantismo: reúne todos os signos e os preenche com uma semelhança que não cessa de proliferar.
O poeta garante a função inversa; sustenta o papel alegórico; sob a linguagem dos signos e sob o jogo de suas distinções bem determinadas, põe-se à escuta de “outra linguagem”, aquela, sem palavras nem discursos, da semelhança.
O poeta faz chegar a similitude até os signos que a dizem,
o louco carrega todos os signos com uma semelhança que acaba por apagá-los.
Assim, na orla exterior da nossa cultura e na proximidade maior de suas divisões essenciais, estão ambos nessa situação de “limite” – postura marginal e silhueta profundamente arcaica – onde suas palavras encontram incessantemente seu poder de estranheza e o recurso de sua contestação.
Entre eles abriu-se o espaço de um saber onde, por uma ruptura essencial no mundo ocidental,
- a questão não será mais a das similitudes,
- mas a das identidades e das diferenças.