VII. O quadrilátero da linguagem

Capítulo IV - Falar; tópico VII. O quadrilátero da linguagem

Os 4 momentos que fixam
as funções essenciais da linguagem
atribuição, articulação, designação e derivação.
nos Séculos XVII e XVIII
Os 4 momentos que fixam
as funções essenciais da linguagem
atribuição, articulação, designação e derivação.
no Século XIX

Algumas observações para terminar.

As quatro teorias –

  • da proposição,
  • da articulação,
  • da designação
  • e da derivação

– formam como que os segmentos de um quadrilátero.

Opõem-se duas a duas e duas a duas se apoiam.

A articulação

  • é o que dá conteúdo à pura forma verbal, vazia ainda, da proposição;
  • preenche-a, mas a ela se opõe
    • como uma nomeação que diferencia as coisas
    • se opõe à atribuição que as religa.

A teoria da designação

  • manifesta o ponto de ligação de todas as formas nominais que a articulação recorta;
  • mas opõe-se a esta
  • como a designação instantânea, gestual, perpendicular
    • se opõe ao recorte das generalidades.

A teoria da derivação

  • mostra o movimento contínuo das palavras a partir de sua origem,
  • mas o desvio na superfície da representação
    • se opõe ao liame único e estável que liga uma raiz a uma representação.

Enfim, a derivação retorna à proposição, pois que

  • sem ela a designação permaneceria dobrada sobre si própria
  • e não poderia adquirir essa generalidade que autoriza um laço de atribuição;
    • contudo a derivação se faz segundo uma figura espacial,
    • enquanto a proposição se desenrola segundo uma ordem sucessiva.

É preciso notar que, entre os vértices opostos desse retângulo, existem como que relações diagonais.

Primeiro entre articulação e derivação:

se pode haver uma linguagem articulada, com palavras que se justapõem, ou se encaixam ou se ordenam umas às outras, é na medida em que,

  • a partir de seu valor de origem e do ato simples de designação que as fundou,
    • as palavras não cessaram de derivar, adquirindo uma extensão variável;
  • daí um eixo que atravessa todo o quadrilátero da linguagem; é ao longo dessa linha que se fixa o estado de uma língua:
    • suas capacidades de articulação são prescritas pelo ponto de derivação ao qual ela chegou;
    • aí se definem, ao mesmo tempo, sua postura histórica e seu poder de discriminação.

A outra diagonal vai da proposição à origem, isto é,

da afirmação envolvida em todo ato de julgar

à designação implicada em todo ato de nomear;

  • é ao longo desse eixo que se estabelece a relação das palavras com o que representam:
  •  mostra-se aí que as palavras
    • jamais dizem senão o ser da representação,
    • mas nomeiam sempre algo de representado.

A primeira diagonal

  • marca o progresso da linguagem em seu poder de especificação;

a segunda,

  • o enredamento indefinido entre a linguagem e a representação – o desdobramento que faz com que o signo verbal represente sempre uma representação.

Nesta última linha, a palavra funciona como substituto (com seu poder de representar); na primeira, como elemento (com seu poder de compor e de decompor).

No ponto de cruzamento dessas duas diagonais,

  • no centro do quadrilátero,
    • ali onde o desdobramento da representação se descobre como análise e onde o substituto tem o poder de repartir,
    • ali onde se alojam, por conseguinte, a possibilidade e o princípio de uma taxinomia geral da representação,
  • ali há o nome.

Nomear é, ao mesmo tempo,

  • dar a representação verbal de uma representação
  • e colocá-la num quadro geral.

Toda a teoria clássica da linguagem se organiza em torno desse ser privilegiado e central.

Nele se cruzam todas as funções da linguagem, pois é por ele que as representações podem vir a figurar numa proposição. Portanto, é por ele também que o discurso se articula com o conhecimento.

É claro que só o juízo pode ser verdadeiro ou falso.

Porém, se todos os nomes fossem exatos, se a análise em que repousam fosse perfeitamente refletida, se a língua fosse “bem-feita”, não haveria nenhuma dificuldade para pronunciar juízos verdadeiros, e o erro, no caso em que ocorresse, seria tão fácil de desvendar e tão evidente quanto num cálculo algébrico.

Mas a imperfeição da análise e todos os desvios da derivação impuseram nomes a análises, a abstrações ou a combinações ilegítimas. O que não teria inconveniente (como emprestar um nome aos monstros da fábula), se a palavra não se apresentasse como representação de uma representação:

  • de sorte que não se pode pensar uma palavra – por mais abstrata, geral e vazia que seja –
  • sem afirmar a possibilidade daquilo que ela representa.

É por isso que,

  • no meio do quadrilátero da linguagem, o nome aparece a um tempo
    • como o ponto para o qual convergem todas as estruturas da língua
      • (é sua figura mais íntima,
      • a mais bem protegida,
      • o puro resultado interior de todas as suas convenções, de todas as suas regras,
      • de toda a sua história)
    • e como o ponto a partir do qual toda a linguagem pode entrar numa relação com a verdade pela qual será julgada.

Aí se trava toda a experiência clássica da linguagem:

  • o caráter reversível da análise gramatical que é, num só movimento,
    • ciência e prescrição,
    • estudo das palavras e regra para construí-las, utilizá-las, reformá-las na sua função representativa;
  • o nominalismo fundamental da filosofia desde Hobes até a Ideologia, nominalismo que não é separável de uma crítica da linguagem e de toda essa desconfiança em relação às palavras gerais e abstratas que se encontra em Malebranche, em Berkeley, em Condillac e em Hume;
  • a grande utopia de uma linguagem perfeitamente transparente em que as próprias coisas seriam nomeadas sem confusão, quer por um sistema totalmente arbitrário mas exatamente refletido (língua artificial), quer por uma linguagem tão natural que traduzisse o pensamento como o rosto quando exprime uma paixão (é com essa linguagem feita de signos imediatos que Rousseau sonhou no primeiro de seus Diálogos).

Pode-se dizer que é o Nome que organiza todo o discurso clássico;

  • falar ou escrever não é dizer as coisas ou se exprimir, não é jogar com a linguagem,
  • é encaminhar-se em direção ao ato soberano de nomeação, é ir, através da linguagem, até o lugar onde as coisas e as palavras se ligam em sua essência comum, e que permite dar-lhes um nome.
  • Mas, uma vez enunciado esse nome,
    • toda a linguagem que a ele conduziu ou que se atravessou para atingi-lo,
    • nele se reabsorve e se desvanece.

De sorte que, em sua essência profunda, o discurso clássico tende sempre a esse limite; mas só subsiste se o recuar. Ele caminha no adiamento incessantemente mantido do Nome.

É por isso que, em sua possibilidade mesma, está ligado à retórica, isto é, a todo esse espaço que rodeia o nome, fá-lo oscilar em torno daquilo que ele representa, deixa aparecer os elementos ou a vizinhança ou as analogias daquilo que ele nomeia. As figuras que o discurso atravessa asseguram o retardamento do nome, que vem no último momento preenchê-las e aboli-las.

O nome é o termo do discurso.

E talvez toda a literatura clássica resida nesse espaço, nesse movimento para atingir um nome sempre temível porque mata, ao mesmo tempo que esgota, a possibilidade de falar.

É esse movimento que conduziu a experiência da linguagem desde a confissão tão discreta da Princesse de Cleves até a imediata violência de Juliette.

Aqui, a nomeação se oferece enfim na sua mais simples nudez,

  • e as figuras da retórica, que até então a mantinham em suspenso, oscilam
  • e se tornam as figuras indefinidas do desejo
    • que os  mesmos nomes sempre repetidos se exaurem em percorrer,
    • sem que jamais lhes seja dado atingir-lhes o limite.

Toda a literatura clássica se aloja no movimento que vai

  • da figura do nome ao próprio nome,
    • passando da tarefa de nomear ainda a mesma coisa por novas figuras (é o preciosismo)
    • à de nomear por palavras enfim precisas o que jamais o fora ou permanecera adormecido nas dobras de longínquas palavras:
      • tais como esses segredos da alma,
      • essas impressões nascidas no limite das coisas e do corpo,
      • para as quais a linguagem da Cinquieme promenade tornou-se espontaneamente límpida.

O romantismo acreditará ter rompido com a era precedente, porque terá aprendido a nomear as coisas por seu nome. Na verdade, todo o classicismo tendia a isso: Hugo cumpriu a promessa de Voiture.

Mas por isso mesmo o nome deixa de ser a recompensa da linguagem; toma-se sua enigmática matéria.

O único momento – intolerável e por longo tempo enterrado no segredo – em que o nome foi ao mesmo tempo

  • realização e substância da linguagem,
  • promessa e matéria bruta,
deu-se quando, com Sade, foi ele atravessado em toda a sua extensão pelo desejo, do qual era o lugar de aparição, a saciedade e o indefinido recomeço.
 

Daí o fato de que a obra de Sade desempenhe em nossa cultura o papel de um incessante murmúrio primordial.

Com essa violência do nome enfim pronunciado por si mesmo, a linguagem emerge na sua brutalidade de coisa;

  • as outras “partes da oração”, por sua vez, ganham autonomia,
  • escapam à soberania do nome,
  • deixam de formar em torno dele uma ronda acessória de ornamentos.

E, visto que não há mais beleza singular em

“reter” a linguagem em torno e à margem do nome, em fazê-la mostrar o que ela não diz,

  • haverá um discurso não-discursivo, cujo papel consistirá em manifestar a linguagem em seu ser bruto.

É a esse ser próprio da linguagem que o século XIX chamará

o Verbo
(por oposição ao “verbo” dos clássicos, cuja função é vincular, discreta mas continuamente, a linguagem ao ser da representação).

E o discurso que detém esse ser e o libera para ele próprio é a literatura.

Em torno desse privilégio clássico do nome, os segmentos teóricos (proposição, articulação, designação e derivação) definem a moldura do que foi então a experiência da linguagem.

Analisando-os passo a passo, não se tratava de fazer uma história das concepções gramaticais dos séculos XVII e XVIII, nem de estabelecer o perfil geral daquilo que os homens puderam pensar a propósito da linguagem.

Tratava-se de determinar sob que condições a linguagem podia tornar-se objeto de um saber e entre que limites se desdobrava esse domínio epistemológico.

Não calcular o denominador comum das opiniões, mas definir a partir de que era possível haver opiniões – tais ou quais – sobre a linguagem.

É por isso que esse retângulo desenha mais uma periferia que uma largura interior, e mostra de que modo a linguagem se imbrica com o que lhe é exterior e indispensável.

Viu-se que só havia linguagem em virtude da proposição:

  • sem a presença, ao menos implícita, do verbo ser e da relação de atribuição que ele autoriza, não se está lidando com linguagem mas com signos iguais aos outros.
  • A forma proposicional estabelece como condição da linguagem a afirmação de uma relação de identidade ou de diferença: só se fala na medida em que essa relação é possível.

Mas os outros três segmentos teóricos

  • envolvem uma exigência totalmente diversa:
    • para que haja derivação das palavras a partir de sua origem,
    • para que já haja pertença originária de uma raiz à sua significação,
    • para que haja, enfim, um recorte articulado das representações,
  •  é preciso haver, desde a mais imediata experiência, um rumor analógico das coisas, semelhanças que se dão de início.

Se tudo fosse absoluta diversidade, o pensamento seria votado à singularidade, e, como a estátua de Condillac antes de ter começado a se lembrar e a comparar, seria ele votado à dispersão absoluta e à absoluta monotonia.

Não haveria nem memória nem imaginação possíveis, nem, por consequência, reflexão.

E seria impossível comparar as coisas entre si, definir-lhes os traços idênticos e fundar um nome comum.

Não haveria linguagem.

Se a linguagem existe é que, por sob identidades e diferenças, há o fundo das continuidades, das semelhanças, das repetições, dos entrecruzamentos naturais.

A semelhança, que é excluída do saber desde o começo do século XVII, constitui sempre a orla exterior da linguagem: o anel que contorna o domínio daquilo que se pode analisar, pôr em ordem e conhecer. É o murmúrio que o discurso dissipa, mas sem o qual ele não poderia falar.

Pode-se apreender agora qual seja a unidade sólida e cerrada da linguagem na experiência clássica.

É ela que, pelo jogo de uma designação articulada, faz entrar a semelhança na relação proposicional.

Quer dizer, num sistema de identidades e de diferenças, tal como é fundado pelo verbo ser e manifestado pela rede dos nomes.

A tarefa fundamental do “discurso” clássico consiste em atribuir um nome às coisas e com esse nome nomear o seu ser:

Durante dois séculos, o discurso ocidental foi o lugar da ontologia.

  • Quando ele nomeava o ser de toda representação em geral, era filosofia: teoria do conhecimento e análise das ideias.
  • Quando atribuía a cada coisa representada o nome que convinha e, sobre todo o campo da representação, dispunha a rede de uma língua bem-feita, era ciência – nomenclatura e taxinomia.