III. A analítica da finitude
Quando
- a história natural se torna biologia,
- quando a análise das riquezas se torna economia,
- quando sobretudo a reflexão sobre a linguagem se faz filologia
- e se desvanece esse discurso clássico
em que o ser e a representação
encontravam seu lugar-comum,
então, no movimento profundo de uma tal mutação arqueológica, o homem aparece com sua posição ambígua
- de objeto para um saber
- e de sujeito que conhece:
soberano submisso, espectador olhado, surge ele aí, nesse lugar do Rei que, antecipadamente, lhe designavam Las meninas, mas donde, durante longo tempo, sua presença real foi excluída.
Como se nesse espaço vacante, em cuja direção estava voltado todo o quadro de Velásquez, mas que ele, contudo, só refletia pelo acaso de um espelho e como que por violação, todas as figuras de que se suspeitava a alternância, a exclusão recíproca, o entrelaçamento e a oscilação (o modelo, o pintor, o rei, o espectador) cessassem de súbito sua imperceptível dança, se imobilizassem numa figura plena e exigissem que fosse enfim reportado a um olhar de carne todo o espaço da representação.
O motivo dessa presença nova, a modalidade que lhe é própria, a disposição singular da epistémê que a autoriza, a relação nova que através dela se estabelece entre as palavras, as coisas e sua ordem – tudo isso pode ser agora trazido à luz.
- Cuvier e seus contemporâneos haviam requerido à vida que ela mesma definisse, na profundidade de seu ser, as condições de possibilidade do ser vivo;
- do mesmo modo, Ricardo havia requerido ao trabalho as condições de possibilidade da troca, do lucro e da produção;
- os primeiros filólogos haviam buscado, na profundidade histórica das línguas, a possibilidade do discurso e da gramática.
Por isso mesmo, a representação deixou de valer para os seres vivos, para as necessidades e para as palavras, como seu lugar de origem e a sede primitiva de sua verdade; em relação a eles, ela nada mais é, doravante, que um efeito, seu acompanhante mais ou menos confuso numa consciência que os apreende e os restitui.
A representação que se faz das coisas não tem mais que desdobrar, num espaço soberano, o quadro de sua ordenação; ela é, do lado desse indivíduo empírico que é o homem, o fenômeno – menos ainda talvez, a aparência – de uma ordem que pertence agora às coisas mesmas e à sua lei interior. Na representação, os seres não manifestam mais sua identidade, mas a relação exterior que estabelecem com o ser humano.
Este, com seu ser próprio, com seu poder de se fornecer representações, surge num vão disposto pelos seres vivos, pelos objetos de troca e pelas palavras quando, abandonando a representação que fora até então seu lugar natural, retiram-se na profundidade das coisas e se enrolam sobre si mesmos segundo as leis da vida, da produção e da linguagem.
Em meio a todos eles, comprimido pelo círculo que formam, o homem é designado – bem mais, é requerido – por eles, já que é ele quem fala, já que é visto residindo entre os animais (e num lugar que não é somente privilegiado, mas ordenador do conjunto que eles formam: mesmo se não é concebido como termo da evolução, nele se reconhece a extremidade de uma longa série), já que, enfim, a relação entre as necessidades e os meios que ele possui para satisfazê-las é tal que ele é necessariamente princípio e meio de toda produção.
Mas essa imperiosa designação é ambígua. Em certo sentido, o homem é dominado pelo trabalho, pela vida e pela linguagem: sua existência concreta neles encontra suas determinações; só se pode ter acesso a ele através de suas palavras, de seu organismo, dos objetos que ele fabrica – como se eles primeiramente (e somente eles talvez) detivessem a verdade; e ele próprio, desde que pensa, só se desvela a seus próprios olhos sob a forma de um ser que, numa espessura necessariamente subjacente, numa irredutível anterioridade, é já um ser vivo, um instrumento de produção, um veículo para palavras que lhe preexistem.
Todos esses conteúdos que seu saber lhe revela exteriores a ele e mais velhos que seu nascimento antecipam-no, vergam-no com toda a sua solidez e o atravessam como se ele não fosse nada mais do que um objeto da natureza ou um rosto que deve desvanecer-se na história.
A finitude do homem se anuncia – e de uma forma imperiosa – na positividade do saber; sabe-se que o homem é finito, como se conhecem a anatomia do cérebro, o mecanismo dos custos de produção ou o sistema da conjugação indo-européia; ou, antes, pela filigrana de todas essas figuras sólidas, positivas e plenas, percebem-se a finitude e os limites que elas impõem, adivinha-se como que em branco tudo o que elas tornam impossível.
Na verdade, porém, essa primeira descoberta da finitude é instável; nada permite detê-la sobre si; e não se poderia supor que ela promete também esse mesmo infinito que ela recusa, segundo o sistema da atualidade?
A evolução da espécie não está talvez concluída;
- as formas da produção e do trabalho não cessam de modificar-se e, talvez um dia, o homem não encontre mais no seu labor o princípio de sua alienação, nem nas suas necessidades a constante evocação de seus limites;
- e nada prova, tampouco, que ele não descobrirá sistemas simbólicos suficientemente puros para dissolver a velha opacidade das linguagens históricas.
Anunciada na positividade, a finitude do homem se perfila sob a forma paradoxal do indefinido; ela indica, mais que o rigor do limite, a monotonia do caminhar que, sem dúvida, não tem limite mas que talvez não seja sem esperança.
No entanto, todos esses conteúdos, com o que encobrem e com o que também deixam apontar em direção aos confins do tempo, só têm positividade no espaço do saber, só se oferecem à tarefa de um conhecimento possível, se ligados inteiramente à finitude. Pois eles não estariam aí, nessa luz que os ilumina parcialmente, se o homem que se descobre através deles estivesse preso na abertura muda, noturna, imediata e feliz da vida animal; mas tampouco se dariam sob o ângulo agudo que os dissimula a partir deles próprios, se o homem pudesse percorrê-los por inteiro no clarão de um entendimento infinito.
Mas, à experiência do homem é dado
- um corpo que é seu corpo – fragmento de espaço ambíguo, cuja espacialidade própria e irredutível se articula contudo com o espaço das coisas;
- a essa mesma experiência é dado o desejo, como apetite primordial a partir do qual todas as coisas adquirem valor e valor relativo;
- a essa mesma experiência é dada uma linguagem em cujo fio todos os discursos de todos os tempos, todas as sucessões e todas as simultaneidades podem ser franqueados.
Isso quer dizer que cada uma dessas formas positivas, em que o homem pode aprender que é finito, só lhe é dada com base na sua própria finitude. Ora, esta não é a essência mais bem purificada da positividade, mas aquilo a partir do que é possível que ela apareça.
O modo de ser da vida e aquilo mesmo que faz com que a vida não exista sem me prescrever suas formas me são dados, fundamentalmente, por meu corpo;
- o modo de ser da produção, o peso de suas determinações sobre minha existência me são dados pelo meu desejo;
- e o modo de ser da linguagem, todo o rastro da história que as palavras fazem luzir no instante em que são pronunciadas e, talvez, até num tempo mais imperceptível ainda,
só me são dados ao longo da tênue cadeia de meu pensamento falante.
No fundamento de todas as positividades empíricas e do que se pode indicar como limitações concretas à existência do homem, descobre-se uma finitude – que em certo sentido é a mesma: ela é marcada
- pela espacialidade do corpo,
- pela abertura do desejo
- e pelo tempo da linguagem;
e, contudo, ela é radicalmente outra: nela o limite não se manifesta como determinação imposta ao homem do exterior (por ter uma natureza ou uma história), mas como finitude fundamental que só repousa sobre seu próprio fato e se abre para a positividade de todo limite concreto.
Assim, do coração mesmo da empiricidade, indica-se a obrigação de ascender ou, se se quiser, de descer até urna analítica da finitude, em que o ser do homem poderá fundar, na possibilidade delas, todas as formas que lhe indicam que ele não é infinito. E o primeiro caráter com que essa analítica marcará o modo de ser do homem, ou, antes, o espaço no qual ela se desenrolará por inteiro, será o da repetição – da identidade e da diferença entre o positivo e o fundamental: a morte que corrói anonimamente a existência cotidiana do ser vivo é a mesma que aquela, fundamental, a partir da qual se dá a mim mesmo minha vida empírica; o desejo que liga e separa os homens na neutralidade do processo econômico é o mesmo a partir do qual alguma coisa me é desejável; o tempo que transporta as linguagens, nelas se aloja e acaba por desgastá-las, é esse tempo que alonga meu discurso antes mesmo que eu o tenha pronunciado numa sucessão que ninguém pode dominar. De um extremo ao outro da experiência, a finitude responde a si mesma; ela é, na figura do Mesmo, a identidade e a diferença das positividades e de seu fundamento. Vê-se como a reflexão moderna, desde o primeiro esboço dessa analítica, se inclina em direção a certo pensamento do Mesmo – em que a Diferença é a mesma coisa que a Identidade – exposição da representação, com sua realização em quadro, tal como o ordenava o saber clássico. É nesse espaço estreito e imenso, aberto pela repetição do positivo no fundamental, que toda essa analítica da finitude – tão ligada ao destino do pensamento moderno – vai desdobrar-se: é aí que se verá sucessivamente o transcendental repetir o empírico, o cogito repetir o impensado, o retorno da origem repetir seu recuo; é aí que se afirmará, a partir dele próprio, um pensamento do Mesmo irredutível à filosofia clássica.
Dir-se-á talvez que não era preciso esperar o século XIX para que a idéia da finitude fosse trazida à luz. É verdade que ele talvez a tenha somente deslocado no espaço do pensamento, fazendo-a desempenhar um papel mais complexo, mais ambíguo, de contorno menos fácil: para o pensamento dos séculos XVII e XVIII, era sua finitude que constrangia o homem a viver uma existência animal, a trabalhar com o suor de seu rosto, a pensar com palavras opacas; era essa mesma finitude que o impedia de conhecer de modo absoluto os mecanismos de seu corpo, os meios de satisfazer suas necessidades, o método para pensar sem o perigoso auxílio de uma linguagem toda tramada de hábitos e de imaginações. Como inadequação ao infinito, o limite do homem explicava tanto a existência desses conteúdos empíricos quanto a impossibilidade de conhecê-los imediatamente. E, assim, a relação negativa com o infinito – quer fosse concebida como criação, ou queda, ou ligação da alma e do corpo, ou determinação no interior do ser infinito, ou ponto de vista singular sobre a totalidade, ou liame da representação com a impressão – dava-se como anterior à empiricidade do homem e ao conhecimento que dela ele pode ter. Aquele limite fundava, num só movimento, mas sem retorno recíproco nem circularidade, a existência dos corpos, das necessidades e das palavras e a impossibilidade de dominá-los num conhecimento absoluto. A experiência que se forma no começo do século XIX aloja a descoberta da finitude não mais no interior do pensamento do infinito, mas no coração mesmo desses conteúdos que são dados, por um saber [mito, como as formas concretas da existência finita. Daí o jogo interminável de uma referência reduplicada: se o saber do homem é finito, é porque ele está preso, sem liberação possível, nos conteúdos positivos da linguagem, do trabalho e da vida; e inversamente, se a vida, o trabalho e a linguagem se dão em sua positividade, é porque o conhecimento tem formas finitas. Em outros termos, para o pensamento clássico, a finitude (como determinação positivamente constituída a partir do infinito) explica essas formas negativas que são o corpo, a necessidade, a linguagem, e o conhecimento limitado que deles se pode ter; para o pensamento moderno, a positividade da vida, da produção e do trabalho (que têm sua existência, sua historicidade e suas leis próprias) funda, como sua correlação negativa, o caráter limitado do conhecimento; e, inversamente, os limites do conhecimento fundam positivamente a possibilidade de saber, mas numa experiência sempre limitada, o que são a vida, o trabalho e a linguagem. Enquanto esses conteúdos empíricos estivessem alojados no espaço da representação, uma metafisica do infinito era não somente possível, mas exigida: com efeito, era realmente necessário que eles fossem as formas manifestas da finitude humana e que, no entanto, pudessem ter seu lugar e sua verdade no interior da representação; a ideia do infinito e a da sua determinação na finitude permitiam uma coisa e outra. Mas, quando os conteúdos empíricos foram desligados da representação e envolveram em si mesmos o princípio de sua existência, então a metafisica do infinito tomou-se inútil; a finitude não cessou mais de remeter a ela própria (da positividade dos conteúdos às limitações do conhecimento, e da positividade limitada deste ao saber limitado dos conteúdos). Então, todo o campo do pensamento ocidental foi invertido. Lá onde outrora havia correlação entre uma metafisica da representação e do infinito e uma análise dos seres vivos, dos desejos do homem, e das palavras de sua língua, vê-se constituir-se uma analítica da finitude e da existência humana, e em oposição a ela (mas numa oposição correlativa) uma perpétua tentação de constituir uma metafisica da vida, do trabalho e da linguagem. Mas isso não passa jamais de tentações, logo contestadas e como que minadas por dentro, pois não pode haver metafísicas medidas pelas finitudes humanas: metafisica de uma vida que converge para o homem, ainda que nele não se detenha; metafisica de um trabalho que libera o homem, de modo que o homem, em troca, possa dele liberar-se; metafisica de uma linguagem de que o homem pode reapropriar-se na consciência de sua própria cultura. De sorte que o pensamento moderno se contestará nos seus próprios arrojos metafísicos e mostrará que as reflexões sobre a vida, o trabalho e a linguagem, na medida em que valem como analíticas da finitude, manifestam o fim da metafisica: a filosofia da vida denuncia a metafisica como véu da ilusão, a do trabalho a denuncia como pensamento alienado e ideologia, a da linguagem, como episódio cultural.
Mas o fim da metafisica não é senão a face negativa de um acontecimento muito mais complexo que se produziu no pensamento ocidental. Esse acontecimento foi o aparecimento do homem. Não se deveria contudo crer que ele surgiu de súbito no horizonte, impondo de maneira irruptiva e absolutamente embaraçosa para nossa reflexão, o fato brutal de seu corpo, de seu labor, de sua linguagem; não foi a miséria positiva do homem que reduziu violentamente a metafisica. Sem dúvida, ao nível das aparências, a modernidade começa quando o ser humano começa a existir no interior de seu organismo, na concha de sua cabeça, na armadura de seus membros e em meio a toda a nervura de sua fisiologia; quando ele começa a existir no coração de um trabalho cujo princípio o domina e cujo produto lhe escapa; quando aloja seu pensamento nas dobras de uma linguagem, tão mais velha que ele não pode dominar-lhe as significações, reanimadas, contudo, pela insistência de sua palavra. Porém, mais fundamentalmente, nossa cultura transpôs o limiar a partir do qual reconhecemos nossa modernidade, no dia em que a finitude foi pensada numa referência interminável a si mesma. Se é verdade, ao nível dos diferentes saberes, que a finitude é sempre designada a partir do homem concreto e das formas empíricas que se podem atribuir à sua existência, ao nível arqueológico, que descobre o a priori histórico e geral de cada um dos saberes, o homem moderno – esse homem determinável em sua existência corporal, laboriosa e falante – só é possível a título de figura da finitude. A cultura moderna pode pensar o homem porque ela pensa o finito a partir dele próprio.
Compreende-se, nessas condições, que o pensamento clássico e todos os que o procederam tenham podido falar do espírito e do corpo, do ser humano, de seu lugar tão limitado no universo, de todos os limites que medem seu conhecimento ou sua liberdade, mas que nenhum dentre eles jamais conheceu o homem tal como é dado ao saber moderno.
O “humanismo” do Renascimento, o “racionalismo” dos clássicos podem realmente ter conferido um lugar privilegiado aos humanos na ordem do mundo,
- mas não puderam pensar o homem.
As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
capítulo IX – O homem e seus duplos;
tópico III – A analítica da finitude