VIII. O sono antropológico

VIII. O sono antropológico

A antropologia como analítica do homem teve indubitavelmente um papel constituinte no pensamento moderno, pois que em grande parte ainda não nos desprendemos dela. 

Ela se tornara necessária a partir do momento em que a representação perdera o poder de determinar, por si só e num movimento único, 

  • o jogo de suas sínteses 
  • e de suas análises. 

Era preciso que as sínteses empíricas fossem asseguradas em qualquer outro lugar que não na soberania do “Eu penso”. 

Deviam ser requeridas onde precisamente essa soberania encontra seu limite, isto é, na finitude do homem – finitude que é tanto a da consciência quanto a do indivíduo que vive, fala, trabalha. 

Kant já formulara isso na Lógica quando acrescentara à sua trilogia tradicional uma última interrogação: as três questões críticas

  • (que posso eu saber?
  • que devo fazer?
  • que me é permitido esperar?)

acham- se então reportadas a uma quarta e postas, de certo modo, “à sua custa”:

  • Was ist der Mensch?

Essa questão, como se viu, percorre o pensamento desde o começo do século XIX: é ela que opera, furtiva e previamente, a confusão entre o empírico e o transcendental, cuja distinção, porém, Kant mostrara. 

Por ela, constituiu-se uma reflexão de nível misto que caracteriza a filosofia moderna. A preocupação que ela tem com o homem e que reivindica não só nos seus discursos como ainda no seu páthos, o cuidado com que tenta defini-lo como ser vivo, indivíduo que trabalha ou sujeito falante, só para as boas almas assinalam o tempo de um reino humano que finalmente retorna; trata-se, de fato – o que é mais prosaico e menos moral de uma reduplicação empírico-crítica pela qual se tenta fazer valer o homem da natureza, da permuta ou do discurso como o fundamento de sua própria finitude. 

Nessa Dobra, 

  • a função transcendental vem cobrir, com sua rede imperiosa, o espaço inerte e sombrio da empiricidade; 
  • inversamente, os conteúdos empíricos se animam, se refazem, erguem-se e são logo subsumidos num discurso que leva longe sua presunção transcendental. 

E eis que nessa Dobra a filosofia adormeceu num sono novo; 

  • não mais o do Dogmatismo, 
  • mas o da Antropologia. 

Todo conhecimento empírico, desde que concernente ao homem, vale como campo filosófico possível, em que se deve descobrir o fundamento do conhecimento, a definição de seus limites e, finalmente, a verdade de toda verdade. 

A configuração antropológica da filosofia moderna consiste em desdobrar o dogmatismo, reparti-lo em dois níveis diferentes que se apoiam um no outro e se limitam um pelo outro:

  • a análise pré-critica do que é o homem em sua essência
  • converte-se na analítica de tudo o que pode dar-se em geral à experiência do homem.

Para despertar o pensamento de tal sono

– tão profundo que ele o experimenta paradoxalmente como vigilância, de tal modo confunde a circularidade de um dogmatismo que se desdobra para encontrar em si mesmo seu próprio apoio com a agilidade e a inquietude de um pensamento radicalmente filosófico –

para chamá-lo às suas mais matinais possibilidades, não há outro meio senão destruir, até seus fundamentos, o “quadrilátero” antropológico. 

Sabe-se bem, em todo o caso, que todos os esforços para pensar de novo investem precisamente contra ele: 

  • seja porque se trate de atravessar o campo antropológico e, apartando-se dele a partir do que ele enuncia, reencontrar uma ontologia purificada ou um pensamento radical do ser; 
  • seja ainda porque, colocando fora de circuito, além do psicologismo e do historicismo, todas as formas concretas do preconceito antropológico, se tente reintegrar os limites do pensamento e reatar assim com o projeto de uma crítica geral da razão. 

Talvez se devesse ver o primeiro esforço desse desenraizamento da Antropologia ao qual, sem dúvida, está votado o pensamento contemporâneo, na experiência de Nietzsche:

  • através de uma crítica filológica, 
  • através de uma certa forma de biologismo, 

Nietzsche reencontrou o ponto onde o homem e Deus pertencem um ao outro, onde a morte do segundo é sinônimo do desaparecimento do primeiro, e onde a promessa do super-homem significa, primeiramente e antes de tudo, a iminência da morte do homem. 

Com isso, Nietzsche, propondo-nos esse futuro, ao mesmo tempo como termo e como tarefa, marca o limiar a partir do qual a filosofia contemporânea pode recomeçar a pensar; ele continuará sem dúvida, por muito tempo, a orientar seu curso. 

Se a descoberta do Retorno é, realmente, o fim da filosofia, então o fim do homem é o retorno do começo da filosofia. Em nossos dias não se pode mais pensar senão no vazio do homem desaparecido. Pois esse vazio não escava uma carência; não prescreve uma lacuna a ser preenchida. Não é mais nem menos que o desdobrar de um espaço onde, enfim, é de novo possível pensar.

A Antropologia constitui talvez a disposição fundamental que comandou e conduziu o pensamento filosófico desde Kant até nós. Disposição essencial, pois que faz parte de nossa história; mas em via de se dissociar sob nossos olhos, pois começamos a nela reconhecer, a nela denunciar de um modo crítico, a um tempo, o esquecimento da abertura que a tornou possível e o obstáculo tenaz que se opõe obstinadamente a um pensamento por vir. 

  • A todos os que pretendem ainda falar do homem, de seu reino ou de sua liberação, 
  • a todos os que formulam ainda questões sobre o que é o homem em sua essência, 
  • a todos os que pretendem partir dele para ter acesso à verdade, 
  • a todos os que, em contrapartida, reconduzem todo conhecimento às verdades do próprio homem, 
  • a todos os que não querem formalizar sem antropologizar, 
  • que não querem mitologizar sem desmistificar, 
  • que não querem pensar sem imediatamente pensar que é o homem quem pensa, 

a todas essas formas de reflexão canhestras e distorcidas, só se pode opor um riso filosófico – isto é, de certo modo, silencioso.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
capítulo IX – O homem e seus duplos;
tópico VIII. O sono antropológico.