Capítulo V - Classificar; tópico III. A estrutura
Assim disposta e entendida,
- a história natural tem por condição de possibilidade o pertencer comum das coisas e da linguagem à representação;
- mas só existe como tarefa, na medida em que coisas e linguagem se acham separadas.
Deverá, pois, reduzir essa distância,
- para conduzir a linguagem o mais próximo possível do olhar
- e, as coisas olhadas, o mais próximo possível das palavras.
A história natural não é nada mais que a nomeação do visível.
Daí sua aparente simplicidade e esse modo de proceder que, de longe, parece ingênuo, por ser tão simples e imposto pela evidência das coisas.
Tem-se a impressão de que, com Tournefort, com Lineu ou Buffon, se começou enfim a dizer o que desde sempre fora visível mas permanecera mudo ante uma espécie de distração invencível dos olhares.
De fato, não foi uma desatenção milenar que subitamente se dissipou, mas um campo novo de visibilidade que se constituiu em toda a sua espessura.
A história natural não se tornou possível porque se olhou melhor e mais de perto.
Em sentido estrito, pode-se dizer que a idade clássica se esforçou, se não por ver o menos possível, pelo menos por restringir voluntariamente o campo de sua experiência.
A observação, a partir do século XVII, é um conhecimento sensível combinado com condições sistematicamente negativas.
- Exclusão, sem dúvida, de ouvir-dizer;
- mas exclusão também do gosto e do sabor, porque com sua incerteza, com sua variabilidade, não permitem uma análise em elementos distintos que seja universalmente aceitável.
- Limitação muito estreita do tato na designação de algumas oposições bastante evidentes (como as do liso e do rugoso);
- privilégio quase exclusivo da vista, que é o sentido da evidência e da extensão, e, por consequência, de uma análise partes extra partes admitida por todo o mundo:
- o cego do século XVIII pode perfeitamente ser geômetra, não será naturalista(3).
E, ainda, nem tudo o que se oferece ao olhar é utilizável:
- as cores, em particular, quase não podem fundar comparações úteis.
O campo de visibilidade onde a observação vai assumir seus poderes não passa do resíduo dessas exclusões:
- uma visibilidade que, além de liberada de qualquer outra carga sensível, é parda.
Esse campo, muito mais que o acolhimento enfim atento às próprias coisas, define a condição de possibilidade da história natural e do aparecimento de seus objetos filtrados:
- linhas,
- superfícies,
- formas,
- relevos.
Dir-se-á talvez que o uso do microscópio compensa essas restrições; e que, se a experiência sensível se estreitava do lado de suas mais duvidosas margens, estendia-se em direção aos objetivos novos de uma observação tecnicamente controlada.
De fato, é o mesmo conjunto de condições negativas que limitou o domínio da experiência e tornou possível a utilização de instrumentos de óptica.
- Para tentar melhor observar através de uma lente, é preciso renunciar a conhecer pelos outros sentidos ou pelo “ouvir-dizer”.
- Uma mudança de escala ao nível do olhar deve ter mais valor que as correlações entre os diversos testemunhos que podem trazer as impressões, as leituras ou as lições.
- forma dos elementos,
- quantidade desses elementos,
- maneira como eles se distribuem no espaço uns em relação aos outros,
- grandeza relativa de cada um.
Como dizia Lineu, num texto capital,
“toda nota deve ser tirada do número, da figura, da proporção, da situação”(7).
Por exemplo, quando se estudarem os órgãos sexuais da planta, será suficiente, mas indispensável,
- enumerar estames e pistilo (ou eventualmente constatar sua ausência),
- definir a forma que eles mostram,
- segundo qual figura geométrica são distribuídos na flor (círculo, hexágono, triângulo),
- qual o seu tamanho em relação aos outros órgãos.
Essas quatro variáveis, que se podem aplicar da mesma forma às cinco partes da planta – raízes, caules, folhas, flores, frutos – especificam a extensão que se oferece à representação, o bastante para que seja possível articulá-Ia numa descrição aceitável por todos:
- perante o mesmo indivíduo, cada qual poderá fazer a mesma descrição;
- e, inversamente, a partir de tal descrição, cada um poderá reconhecer os indivíduos que a ela correspondem.
Nessa articulação fundamental do visível, o primeiro afrontamento entre a linguagem e as coisas poderá estabelecer-se de uma forma que exclui toda incerteza. Cada parte visivelmente distinta de uma planta ou de um animal é, portanto, descritível na medida em que pode tomar quatro séries de valores.
Esses quatro valores, que afetam um órgão ou elemento qualquer e o determinam, é o que os botânicos denominam sua estrutura.
“Por estruturas das partes das plantas entende-se a composição e a reunião das peças que formam seu corpo.”(8)
Ela permite descrever logo o que se vê e de duas maneiras que não são nem contraditórias nem exclusivas.
- O número e a grandeza podem sempre ser assinalados por um cálculo ou por uma medida; podemos, pois, exprimi-los em termos quantitativos.
- Em contrapartida, as formas e as disposições devem ser descritas por outros procedimentos: quer pela identificação a formas geométricas, quer por analogias que devem ser, todas elas, “da maior evidência”(9).
É assim que se podem descrever certas formas bastante complexas a partir de sua semelhança muito visível com o corpo humano, que serve como que de reserva aos modelos da visibilidade e constituiu espontaneamente juntura entre o que se pode ver e o que se pode dizer(10).
Limitando e filtrando o visível, a estrutura lhe permite transcrever-se na linguagem. Por ela, a visibilidade do animal ou da planta passa por inteiro para o discurso que a recolhe.
E, no final, talvez lhe ocorra restituir-se ela própria ao olhar, através das palavras, como nesses caligramas botânicos com que sonhava Lineu(11).
Ele queria que a ordem da descrição, sua repartição em parágrafos e até seus módulos tipográficos reproduzissem a figura da própria planta. Que o texto, nas suas variáveis de forma, de disposição e de quantidade, tivesse uma estrutura vegetal.
“É belo seguir a natureza: passar da Raiz aos Caules, aos Pecíolos, às Folhas, aos Pedúnculos, às Flores.”
- Era preciso que se separasse a descrição em tantas alíneas quantas são as partes da planta,
- que. se imprimisse em caracteres maiúsculos o que concerne às partes principais,
- em minúsculos, a análise das “partes das partes”.
Acrescentar-se-ia o que se conhece ainda da planta à maneira de um desenhista que complete seu esboço por jogos de sombra e de luz:
“O bosquejo conterá exatamente toda a história da planta, assim como seus nomes, sua estrutura, seu conjunto exterior, sua natureza, seu uso.”
Transposta na linguagem, a planta vem nela gravar-se e, sob os olhos do leitor, recompõe sua pura forma.
O livro torna-se o herbário das estruturas. E não se diga tratar-se de devaneio de um partidário do sistema que não representa a história natural em toda a sua extensão.
Em Buffon, que foi adversário constante de Lineu, a mesma estrutura existe e desempenha o mesmo papel:
“O método de investigação se exercerá sobre a forma, sobre a grandeza, sobre as diferentes partes, sobre seu número, sobre sua posição, sobre a substância mesma da coisa.”(12)
Buffon e Lineu estabelecem o mesmo crivo;
- seu olhar ocupa sobre as coisas a mesma superfície de contato;
- os mesmos vãos negros configuram o invisível;
- as mesmas plagas, claras e distintas, oferecem-se às palavras.
- Pela estrutura, aquilo que a representação fornece confusamente e na forma da simultaneidade acha-se assim analisado e oferecido ao desdobramento linear da linguagem.
Com efeito,
- a descrição está para o objeto que se olha
- como a proposição está para a representação que ela exprime:
- constitui sua colocação em série, elementos após elementos.
Recorde-se, porém, que a linguagem sob sua forma empírica implicava
- uma teoria da proposição
- e outra da articulação.
Em si mesma, a proposição permanecia vazia; quanto à articulação, só constituía verdadeiramente discurso sob a condição de ser ligada pela função aparente ou secreta do verbo ser:
A história natural é uma ciência, isto é, uma língua, mas fundada e bem-feita:
- seu desdobramento proposicional é, de pleno direito, uma articulação;
- a colocação em série linear dos elementos recorta a representação segundo um modo que é evidente e universal.
Enquanto uma mesma representação pode dar lugar a um número considerável de proposições, pois os nomes que a preenchem a articulam segundo modos diferentes, um único e mesmo animal, uma única e mesma planta serão descritos da mesma forma, na medida em que da representação à linguagem reina a estrutura.
A teoria da estrutura, que percorre, em toda a sua extensão, a história natural na idade clássica superpõe, numa única e mesma função, os papéis que, na linguagem, desempenham a proposição e a articulação.
E é por aí que ela liga a possibilidade de uma história natural à máthêsis.
Com efeito, ela remete todo o campo do visível a um sistema de variáveis, cujos valores podem todos ser assinalados, se não por uma quantidade, ao menos por uma descrição perfeitamente clara e sempre finita.
Pode-se, por conseguinte, estabelecer entre os seres naturais
- o sistema das identidades
- e a ordem das diferenças.
Adanson estimava que um dia se poderia tratar a Botânica como uma ciência rigorosamente matemática e que seria lícito formular-lhe problemas como se faz em álgebra ou em geometria:
“encontrar o ponto mais sensível que estabelece a linha de separação ou de discussão entre a família das escabiosas e a das madressilvas”;
ou, ainda,
encontrar um gênero de plantas conhecido (natural ou artificial, não importa) que está justamente no meio-termo entre a família das Apocináceas e a das Boragináceas(13).
A grande proliferação dos seres na superfície do globo pode entrar, graças à estrutura, ao mesmo tempo
- na sucessão de uma linguagem descritiva
- e no campo de uma máthêsis que seria ciência geral da ordem.
E essa relação constitutiva, tão complexa, instaura-se na simplicidade aparente de um visível descrito.
Tudo isso é de grande importância para a definição da história natural quanto ao seu objeto.
Este é dado
- por superfícies e linhas,
- não por funcionamentos ou invisíveis tecidos.
Vêem-se menos a planta e o animal
- em sua unidade orgânica
- que pelo recorte visível de seus órgãos.
Eles são
- patas e cascos, flores e frutos,
- antes de serem respiração ou líquidos internos.
A história natural percorre um espaço de variáveis visíveis, simultâneas, concomitantes, sem relação interna de subordinação ou de organização.
Nos séculos XVII e XVIII, a anatomia perdeu o papel diretivo que tinha no Renascimento e que reencontrará na época de Cuvier; não que nesse ínterim a curiosidade tenha diminuído, nem o saber regredido, mas sim que a disposição fundamental do visível e do enunciável não passa mais pela espessura do corpo.
Daí o primado epistemológico da botânica:
- é que o espaço comum às palavras e às coisas constituía para as plantas uma grade muito mais acolhedora, muito menos “negra” que para os animais;
- na medida em que muitos órgãos constitutivos são visíveis na planta e não o são nos animais, o conhecimento taxinômico a partir de variáveis imediatamente perceptíveis foi mais rico e mais coerente na ordem botânica que na ordem zoológica.
É preciso, pois, inverter o que se diz ordinariamente:
- não porque nos séculos XVII e XVIII houve interesse pela botânica que se conduziu o exame para os métodos de classificação.
- Mas porque não se podia saber e dizer senão num espaço taxinômico de visibilidade é que o conhecimento das plantas devia realmente ter primazia sobre o dos animais.
Jardins botânicos e gabinetes de história natural eram, ao nível das instituições, os correlatos necessários desse recorte.
E sua importância para a cultura clássica não lhes vem essencialmente do que eles permitem ver, mas do que escondem e do que, por essa obliteração, eles deixam surgir:
- disfarçam a anatomia e o funcionamento, ocultam o organismo,
- para suscitar, ante os olhos que esperam sua verdade, o visível relevo das formas, com seus elementos, seu modo de dispersão e suas medidas.
São o livro ordenado das estruturas, o espaço onde se combinam os caracteres e onde se desdobram as classificações.
Um dia, no final do século XVIII, Cuvier saqueará os frascos do Museu, quebrá-Ios-á e dissecará toda a grande conserva clássica da visibilidade animal. Esse gesto iconoclasta, ao qual Lamarck jamais se decidirá, não traduz uma curiosidade nova por um segredo a cujo propósito não se teria tido nem a preocupação, nem a coragem, nem a possibilidade de conhecer.
Trata-se, muito mais seriamente, de uma mutação no espaço natural da cultura ocidental:
- o fim da história, no sentido de Tournefort, de Lineu, de Buffon, de Adanson, no sentido igualmente em que Boissier de Sauvages a entendia quando opunha o conhecimento histórico do visível ao filosófico do invisível, do oculto e das causas14;
- e será também o começo do que,
- substituindo a anatomia à classificação,
- o organismo à estrutura,
- a subordinação interna ao caráter visível,
- a série ao quadro,
- permite precipitar no velho mundo plano e gravado em branco e preto, de animais e de plantas, toda uma massa profunda de tempo à qual se dará o nome renovado de história.