Capítulo VI - Trocar; tópico III. O mercantilismo
Para que o domínio das riquezas se constituísse como objeto de reflexão no pensamento clássico, foi preciso que se desfizesse a configuração estabelecida no século XVI.
Para os “economistas” do Renascimento e até mesmo Davanzatti, a aptidão da moeda para medir as mercadorias e sua permutabilidade repousavam em seu valor intrínseco: sabia-se bem que os metais preciosos tinham pouca utilidade fora da moedagem; porém, se foram escolhidos como estalões, se eram utilizados na troca, se, por consequência, atingiam um preço elevado, é porque, na ordem natural e em si próprios, tinham um preço absoluto, fundamental, mais elevado que qualquer outro, ao qual se podia referir o valor de cada mercadoria.(11)
O insigne metal era, por si, marca da riqueza; seu brilho oculto indicava suficientemente que ele era ao mesmo tempo presença escondida e visível assinalação de todas as riquezas do mundo.
- Por essa razão é que tinha um preço;
- por essa razão, também media todos os preços;
- por essa razão, enfim, era possível trocá-lo por tudo o que tinha um preço.
Era o precioso por excelência.
No século XVII, atribuem-se sempre estas três propriedades à moeda fazendo-as repousar porém, todas três, não mais sobre a primeira (ter preço) mas sobre a última (substituir o que tem preço).
Enquanto
- o Renascimento fundava as duas funções do metal monetizado (medida e substituto) sobre a reduplicação de seu caráter intrínseco (o fato de ser precioso),
- o século XVII desloca a análise; é a função de troca que serve de fundamento para os dois outros caracteres (a aptidão para medir e a capacidade de receber um preço surgindo então como qualidades que derivam dessa função).
Essa reviravolta é obra de um conjunto de reflexões e de práticas que se distribuem ao longo de todo o século XVII (desde Scipion de Grammont até Nicolas Barbon) e que se agrupam sob o termo um pouco aproximativo de “mercantilismo”.
Apressadamente tem-se o costume de caracteriza-Io por um “monetarismo” absoluto, isto é, por uma confusão sistemática (ou obstinada) entre riquezas e espécies monetárias.
Na realidade, não é uma identidade mais ou menos confusa que o “mercantilismo” instaura entre umas e outras, mas uma articulação refletida,
- que faz da moeda o instrumento de representação e de análise das riquezas
- e faz, por sua vez, das riquezas o conteúdo representado pela moeda.
Assim como a velha configuração circular das similitudes e das marcas se desfizera para desenvolver-se segundo as duas superfícies correlativas da representação e dos signos, assim o círculo do “precioso” se desfaz na época do mercantilismo,
- as riquezas se desenvolvem como objetos das necessidades e dos desejos;
- dividem-se e substituem umas às outras pelo jogo das espécies monetizadas que as significam;
- e as relações recíprocas entre a moeda e a riqueza se estabelecem sob a forma da circulação e das trocas.
Se se pôde crer que o mercantilismo confundia riqueza e moeda é, sem dúvida,
- porque, para ele, a moeda tem o poder de representar toda riqueza possível,
- porque ela é o seu instrumento universal de análise e de representação,
- porque ela cobre por inteiro o conjunto de seu domínio.
Toda riqueza é monetizável; e é assim que ela entra em circulação. Da mesma forma,
Da mesma forma,
- todo ser natural era caracterizável e podia entrar numa taxinomia;
- todo indivíduo era nomeável e podia entrar numa linguagem articulada;
- toda representação era significável e podia entrar, para ser conhecida, num sistema de identidades e de diferenças.
Mas isso exige um exame mais minucioso. Entre todas as coisas que existem no mundo, quais são aquelas que o mercantilismo poderá chamar de “riquezas”? Todas as que,
- além de representáveis,
- são também objetos de desejo.
Quer dizer ainda, aquelas que são marcadas
- pela “necessidade,
- ou pela utilidade,
- ou pelo prazer,
- ou pela raridade”.(12)
Ora, pode-se dizer que os metais que servem para fabricar peças de moeda (não se trata aqui da moeda de cobre que serve apenas para troco em certas regiões, mas das que são utilizadas no comércio exterior) fazem parte das riquezas?
Muito pouca é a utilidade do ouro e da prata – “quando muito poderiam ser utilizados nos serviços da casa”; e, por raros que sejam, sua abundância excede ainda o que é requerido para essas utilizações.
Se são procurados, se os homens acham que lhes fazem falta, se escavam minas e guerreiam pela sua posse, é porque a fabricação das moedas de ouro e prata lhes deram uma utilidade e uma raridade que, por si mesmos, esses metais não detêm.
“A moeda não empresta seu valor da matéria de que é composta, mas sim da forma, que é a imagem ou a marca do príncipe.”(13)
É por ser moeda que o ouro é precioso. Não o inverso.
Desde logo, a relação tão estreitamente fixada no século XVI é invertida: a moeda (e mesmo o metal de que é feita) recebe seu valor de sua pura função de signo. O que acarreta duas consequências.
Primeiro, não é mais do metal que virá o valor das coisas. Este se estabelece por si mesmo, sem referência à moeda, segundo critérios de utilidade, de prazer ou de raridade; é na relação de umas com as outras que as coisas assumem valor; o metal permitirá somente representar esse valor, como um nome representa uma imagem ou uma ideia, mas não a constitui:
“O ouro é apenas o signo e o instrumento usual para pôr em prática o valor das coisas; mas a verdadeira estimação desse valor tem sua origem no juízo humano e nessa faculdade a que se chama estimativa.”(14)
As riquezas são riquezas porque as estimamos, assim como nossas ideias são o que são porque no-Ias representamos. Os signos monetários ou verbais são a elas somados por acréscimo.
Mas, por que o ouro e a prata, que em si mesmos dificilmente são riquezas, receberam ou assumiram esse poder significante?
Sem dúvida, poder-se-ia utilizar uma outra mercadoria para esse efeito “por muito vil e abjeta que fosse”(15). O cobre, que em muitas nações permanece em estado de matéria de baixo preço, torna-se precioso em algumas, na medida em que é transformado em moeda(16). De maneira geral, porém, utilizam-se o ouro e a prata porque encerram em si mesmos uma “perfeição própria”. Perfeição que não é da ordem do preço, mas provém de sua capacidade indefinida de representação. São duros, imperecíveis, inalteráveis; podem dividir-se em parcelas minúsculas; são capazes de reunir um grande peso sob um volume frágil; podem ser facilmente transportados; são fáceis de perfurar.
Tudo isso faz do ouro e da prata um instrumento privilegiado para representar todas as outras riquezas e estabelecer, por análise, uma comparação rigorosa entre elas.
Assim se acha definida a relação da moeda com as riquezas. Relação arbitrária, porque não é o valor intrínseco do metal que dá preço às coisas; todo objeto, mesmo sem preço, pode servir de moeda; mas é preciso ainda que tenha qualidades próprias de representação e capacidades de análise que permitam estabelecer entre as riquezas relações de igualdade e de diferença.
Parece então que a utilização do ouro e da prata está justamente fundada. Como diz Bouteroue, a moeda “é uma porção de matéria à qual a autoridade pública deu um peso e um valor certo, para servir de preço e igualar no comércio a desigualdade de todas as coisas”(17).
O “mercantilismo” ao mesmo tempo
- liberou a moeda do postulado do valor próprio do metal – “loucura daqueles para quem o dinheiro é uma mercadoria como outra qualquer”(18)-
- e estabeleceu entre ela e a riqueza uma relação rigorosa de representação e de análise.
“O que visamos na moeda, diz Barbon, não é tanto a quantidade de prata que ela contém, mas o fato de que tenha curso.”(19)
Comumente somos injustos, e duas vezes, com o que se convencionou chamar o “mercantilismo”;
- quer porque se denuncie nele o que ele não cessou de criticar (o valor intrínseco do metal como princípio de riqueza),
- quer porque se descubra nele uma série de imediatas contradições:
- não definiu ele a moeda na sua pura função de signo, enquanto requeria sua acumulação como uma mercadoria?
- não reconheceu a importância das flutuações quantitativas do numerário e desprezou a sua ação sobre os preços?
- não foi protecionista, fundando, no entanto, sobre a troca o mecanismo de aumento das riquezas?
De fato, essas contradições ou essas hesitações só existem se se colocar o mercantilismo num dilema que, para ele, não podia ter sentido: o da moeda mercadoria ou signo.
Para o pensamento clássico, em via.de se constituir, a moeda é o que permite representar as riquezas. Sem tais signos, as riquezas ficariam imóveis, inúteis e como que silenciosas; nesse sentido, o ouro e a prata são criadores de tudo o que o homem pode cobiçar. Mas, para poder desempenhar esse papel de representação, é preciso que a moeda apresente propriedades (físicas e não econômicas) que a tornam adequada à sua tarefa e, por isso, preciosa. É a título de signo universal que ela se toma mercadoria rara e desigualmente repartida:
“O curso e valor impostos a toda moeda é sua verdadeira validade intrínseca.” (20)
Assim como, na ordem das representações, os signos que as substituem e as analisam devem ser, também eles, representações, a moeda não pode significar as riquezas sem ser ela própria uma riqueza.
Porém torna-se riqueza porque é signo; ao passo que uma representação deve ser primeiro representada para depois tomar-se signo. Daí as aparentes contradições entre os princípios da acumulação e as regras da circulação.
Em um dado momento do tempo, o número de espécies que existem é determinado; Colbert pensava mesmo, malgrado a exploração das minas, malgrado o metal americano, que “a quantidade de prata que circula na Europa é constante”. Ora, é dessa prata que se tem necessidade para representar as riquezas, isto é, atraí-Ias, fazê-Ias aparecer, trazendo-as do estrangeiro ou fabricando-as no local; é dela também que se tem necessidade para fazê-Ias passar de mão em mão no processo de troca.
É preciso, pois, importar metal, tomando-o dos Estados vizinhos:
“Somente o comércio e tudo o que dele depende pode produzir esse grande efeito.”(21)
A legislação deve, portanto, velar por duas coisas:
- “Interditar a transferência do metal ao estrangeiro ou sua utilização para outros fins que não a moedagem,
- e fixar direitos alfandegários tais que permitam à balança comercial ser sempre positiva, favorecer a importação de mercadorias brutas, evitar quanto possível a de objetos fabricados, exportar os produtos manufaturados de preferência aos próprios produtos cujo desaparecimento conduz à escassez e provoca a alta dos preços.”(22)
Ora, o metal que se acumula não é destinado a se engrossar nem a dormir; se é atraído a um Estado é para aí ser consumido pela troca.
Como dizia Becher, tudo o que é despesa para um dos parceiros é receita para o outro(23); e Thomas Mun identificava o negócio seguro com a fortuna(24).
É que o dinheiro só se torna riqueza real na exata medida em que cumpre sua função representativa:
- quando substitui as mercadorias,
- quando lhes permite deslocarem-se ou aguardarem,
- quando dá às matérias brutas a ocasião de se tornarem consumíveis,
- quando retribui o trabalho.
Não é, pois, de temer que a acumulação de dinheiro num Estado faça subir os preços; e o princípio estabelecido por Bodin de que a grande carestia do século XVI era devida ao afluxo do ouro americano não é válida;
- se é verdade que a multiplicação do numerário provoca inicialmente uma alta dos preços, estimula contudo o comércio e as manufaturas;
- a quantidade de riquezas cresce e o número de elementos entre os quais se repartem as espécies se acha proporcionalmente aumentado.
Não há que temer a alta dos preços: ao contrário, agora que os objetos preciosos se multiplicaram, agora que os burgueses, como diz Scipion de Grammont, podem usar “cetim e veludo”, o valor das coisas, mesmo as mais raras, só pôde baixar em relação à totalidade das outras; do mesmo modo, cada fragmento de metal perde em valor perante os outros, na medida em que aumenta a massa das espécies em circulação(25).
As relações entre riqueza e moeda estabelecem-se, pois, na circulação e na troca, não mais na “preciosidade” do metal.
Quando os bens podem circular (e isso graças à moeda), eles se multiplicam e as riquezas aumentam; quando as espécies se tornam mais numerosas por efeito de uma boa circulação e de uma balança favorável, podem-se atrair novas mercadorias e multiplicar as culturas e as fábricas. Portanto, é preciso dizer com Horneck que o ouro e a prata “são o mais puro de nosso sangue, a medula de nossas forças”, “os mais indispensáveis instrumentos da atividade humana e de nossa existência”(26).
Reencontra-se aqui a velha metáfora de uma moeda que seria para a sociedade o que o sangue é para o corpo(27). Mas, em Davanzatti, as espécies não tinham outro papel senão o de irrigar as diversas partes da nação.
Agora que moeda e riqueza são tomadas ambas no interior do espaço das trocas e da circulação, o mercantilismo pode ajustar sua análise conforme o modelo recentemente fornecido por Harvey.
Segundo Hobbes(28), o circuito venoso da moeda é o dos impostos e das taxas que subtraem das mercadorias transportadas, compradas ou vendidas, uma certa massa metálica; esta é conduzida até o coração do Homem-Leviatã – isto é, até os cofres do Estado. É lá que o metal recebe o “princípio vital”: o Estado, com efeito, pode fundi-Io ou tornar a pô-Io em circulação.
Em todo o caso, somente sua autoridade lhe dará curso; e, redistribuído aos particulares (sob forma de pensões, de emolumentos ou de retribuição por provisões compradas pelo Estado), estimulará, no segundo circuito, agora arterial, as trocas, as fabricações e as culturas.
A circulação torna-se assim uma das categorias fundamentais da análise.
Mas a transferência desse modelo fisiológico só se tornou possível pela abertura mais profunda de um espaço comum à moeda e aos signos, às riquezas e às representações.
A metáfora, tão assídua em nosso Ocidente, da cidade e do corpo, só assumiu, no século XVII, seus poderes imaginários com base em necessidades arqueológicas muito mais radicais. Através da experiência mercantilista, o domínio das riquezas se constitui do mesmo modo que o das representações. Viu-se que estas tinham o poder de se representarem a partir de si mesmas: de abrir em si um espaço onde elas se analisavam e de formar, com seus próprios elementos, substitutos que permitiam, a um tempo, estabelecer um sistema de signos e um quadro das identidades e das diferenças.
Do mesmo modo, as riquezas têm o poder de se permutarem; de se analisarem em partes que autorizam relações de igualdade ou de desigualdade; de se significarem umas às outras por esses elementos de riquezas perfeitamente comparáveis que são os metais preciosos.
E assim como o mundo inteiro da representação se cobre de representações de segundo grau que as representam, e isso numa cadeia ininterrupta, assim também todas as riquezas do mundo estão em relação umas com as outras, na medida em que fazem parte de um sistema de troca. De uma representação a outra não há ato autônomo de significação, mas uma simples e indefinida possibilidade de troca.
Quaisquer que tenham sido suas determinações e consequências econômicas, o mercantilismo, se interrogado ao nível da epistémê, aparece como o lento, o longo esforço para colocar a reflexão sobre os preços e a moeda na linha reta da análise das representações.
Ele fez surgir
- um domínio de “riquezas” que é conexo àquele que, por volta da mesma época, abriu-se diante da história natural, e àquele, igualmente, que se desenrolou diante da gramática geral. Todavia, enquanto nestes dois últimos casos, a mutação se fez bruscamente (um certo modo de ser da linguagem se erige subitamente na Grammaire de Port- Royal, um certo modo de ser dos indivíduos naturais se manifesta quase de repente com Jonston e Tournefort) –
- em contrapartida, o modo de ser da moeda e da riqueza, porque ligado a toda uma práxis, a todo um conjunto institucional, tinha um índice de viscosidade histórica muito mais elevado.
Os seres naturais e a linguagem não necessitaram do equivalente da longa operação mercantilista para entrar no domínio da representação, submeter-se às suas leis, dela receber seus signos e seus princípios de ordem.