Capítulo VI - Trocar; tópico V. A formação do valor
A teoria da moeda e do comércio responde à questão:
- como podem os preços, no movimento das trocas, caracterizar as coisas –
- como pode a moeda estabelecer entre as riquezas um sistema de signos e de designação?
A teoria do valor responde a uma questão que se cruza com esta, interrogando, como que em profundidade e verticalmente, a região horizontal onde as trocas se efetuam indefinidamente:
- por que há coisas que os homens buscam trocar,
- por que umas valem mais que outras,
- por que algumas, que são inúteis, têm um valor elevado, enquanto outras, indispensáveis, têm valor nulo?
Já não se trata, pois, de saber segundo qual mecanismo as riquezas podem se representar entre si (e mediante essa riqueza universalmente representativa que é o metal precioso), mas
- por que os objetos do desejo e da necessidade hão de ser representados,
- como se estabelece o valor de uma coisa
- e por que se pode afirmar que ela vale tanto ou tanto.
Valer, para o pensamento clássico, é primeiramente valer alguma coisa, poder substituir essa coisa num processo de troca. A moeda só foi inventada, os preços só foram fixados e só se modificam na medida em que essa troca existe.
Ora, a troca é um fenômeno simples apenas na aparência.
Com efeito, só se troca numa permuta, quando cada um dos dois parceiros reconhece um valor para aquilo que o outro possui.
Num sentido,
- é preciso, pois, que as coisas permutáveis, com seu valor próprio, existam antecipadamente nas mãos de cada um, para que a dupla cessão e a dupla aquisição finalmente se produzam.
Mas, por outro lado,
- o que cada um come e bebe, aquilo de que precisa para viver não tem valor enquanto não o cede;
- e aquilo de que não tem necessidade é igualmente desprovido de valor enquanto não for usado para adquirir alguma coisa de que necessite.
Em outras palavras,
- para que, numa troca, uma coisa possa representar outra, é preciso que elas existam já carregadas de valor;
- e, contudo, o valor só existe no interior da representação (atual ou possível),
- isto é, no interior da troca ou da permutabilidade.
Daí duas possibilidades simultâneas de leitura:
- uma analisa o valor no ato mesmo da troca, no ponto de cruzamento entre
- o dado
- e o recebido;
- outra analisa-o como anterior à troca
- e como condição primeira para que esta possa ocorrer.
1. A primeira dessas duas leituras corresponde a uma análise que coloca e encerra toda a essência da linguagem no interior da proposição;
2. a outra, a uma análise que descobre essa mesma essência da linguagem do lado das
-
- designações primitivas –
- linguagem de ação ou raiz;
no primeiro caso, com efeito,
- a linguagem encontra seu lugar de possibilidade numa atribuição assegurada pelo verbo – isto é, por esse elemento da linguagem em recuo relativamente a todas as palavras mas que as reporta umas às outras;
- o verbo, tornando possíveis todas as palavras da linguagem a partir de seu liame proposicional, corresponde à troca que funda, como um ato mais primitivo que os outros, o valor das coisas trocadas e o preço pelo qual são cedidas;
na outra forma de análise,
- a linguagem está enraizada fora de si mesma e como que na natureza ou nas analogias das coisas;
- a raiz, o primeiro grito que dera nascimento às palavras antes mesmo que a linguagem tivesse nascido, corresponde à formação imediata do valor, antes da troca e das medidas recíprocas da necessidade.
Mas, para a gramática, estas duas formas de análise –
- a partir da proposição
- ou a partir das raízes
– são perfeitamente distintas, porque se trata da linguagem – isto é, de um sistema de representações que é encarregado ao mesmo tempo de designar e de julgar ou, ainda, que tem relação ao mesmo tempo com um objeto e com uma verdade.
Na ordem da economia, essa distinção não existe, pois, para o desejo,
- a relação com seu objeto
- e a afirmação de que ele é desejável
constituem uma única e mesma coisa; designá-Io já é estabelecer o liame.
De sorte que onde a gramática dispunha de dois segmentos teóricos separados e ajustados um ao outro, formando
- primeiro uma análise da proposição
(ou do juízo), - depois uma análise da designação
(do gesto ou da raiz),
a economia só conhece um único segmento teórico, mas que é suscetível simultaneamente de duas leituras feitas em sentido inverso.
Uma
- analisa o valor a partir da troca dos objetos da necessidade – objetos úteis;
a outra,
- a partir da formação e do nascimento de objetos cujo valor a troca definirá em seguida – a partir da prolixidade da natureza.
Reconhece-se, entre essas duas leituras possíveis, um ponto de heresia que nos é familiar: ele separa
- o que se chama “teoria psicológica” de Condillac, de Galiani, de Graslin,
- da dos fisiocratas, com Quesnay e sua escola.
Certamente, a fisiocracia não tem a importância que lhe atribuíram os economistas na primeira metade do século XIX, quando nela buscavam o ato de fundação da economia política; mas seria igualmente vão, sem dúvida, atribuir o mesmo papel – como o fizeram os marginalistas – à “escola psicológica”.
Entre esses dois modos de análise, as únicas diferenças são o ponto de origem e a direção escolhidos para percorrer uma rede de necessidade que permanece idêntica.
Para que haja valores e riquezas, é preciso, dizem os fisiocratas, que uma troca seja possível: isto é,
- que se disponha de um supérfluo
- de que o outro tenha precisão.
O fruto de que tenho fome, que colho e que como é um bem que me oferece a natureza; só haverá riqueza se os frutos de minha árvore forem numerosos o bastante para excederem meu apetite.
É preciso ainda que um outro tenha fome e os peça a mim.
“O ar que respiramos”, diz Quesnay, “a água que obtemos do rio e todos os outros bens ou riquezas superabundantes e comuns a todos os homens não são comerciáveis: são bens, não riquezas.”(56)
Antes da troca, há somente essa realidade, rara ou abundante, que a natureza fornece; unicamente
- a demanda de um
- e a renúncia de outro
são capazes de fazer aparecer valores.
Ora, as trocas têm precisamente por fim repartir os excedentes de maneira que sejam distribuídos aos que deles carecem.
Não são, pois, “riquezas” senão a título provisório, durante o tempo em que, presentes em uns e ausentes em outros, começam e realizam o trajeto que, conduzindo-os aos consumidores, os restituirá à sua natureza primitiva de bens.
“A finalidade da troca”, diz Mercier de La Riviere, “é o desfrute, o consumo, de sorte que o comércio pode ser definido sumariamente: troca das coisas usuais para chegar à sua distribuição entre as mãos de seus consumidores.”(57)
Ora, essa constituição do valor pelo comércio(58) não se pode fazer sem uma subtração de bens: com efeito, o comércio transporta as coisas, acarreta gastos de transporte, de conservação, de transformação, de colocação à venda(59): em suma, custa um certo consumo de bens para que os próprios bens sejam transformados em riquezas.
O único comércio que nada custaria seria a permuta pura e simples; os bens aí só são riquezas e valores por um tempo ínfimo, durante o instante da troca:
“Se a troca pudesse ser feita imediatamente e sem gastos, só podia haver mais vantagem para os dois permutadores: por isso há um enorme equívoco em tomar por comércio mesmo as operações intermediárias que servem para efetuar o comércio.”(60)
Os fisiocratas só contam com a realidade material dos bens: e a formação do valor nas trocas torna-se então dispendiosa e se estabelece mediante a dedução dos bens existentes. Constituir valor não é, pois, satisfazer necessidades mais numerosas; é sacrificar bens em troca de outros.
Os valores formam o negativo dos bens.
- Mas como pode o valor assim se constituir?
- Qual a origem deste excedente que permite aos bens se transformarem em riquezas sem com isso se exaurirem e desaparecerem por força de trocas sucessivas e de circulação?
- Como ocorre que o custo dessa formação incessante de valor não esgote os bens que estão à disposição dos homens?
- Pode o comércio encontrar em si mesmo esse suplemento necessário? Certamente não, pois que ele se propõe trocar valor por valor e segundo a maior igualdade possível.
“Para receber muito é preciso dar muito; e para dar muito é preciso receber muito. Eis aí toda a arte do comércio. O comércio, por sua natureza, não faz mais que trocar conjuntamente coisas de valor igual.”(61)
Por certo, uma mercadoria, alcançando um mercado distante, pode ser trocada por um preço superior ao que obteria no lugar de origem: mas esse aumento corresponde às despesas reais de transporte; e, se ela nada perde com isso, é porque a mercadoria estagnada pela qual foi trocada perdeu esses gastos de transporte no seu próprio preço. Por mais que se conduzam as mercadorias de um extremo ao outro do mundo, o curso da troca é sempre subtraído dos bens trocados.
Não é o comércio que produziu esse supérfluo. É necessário que essa pletora exista para que o comércio se torne possível.
Tampouco a indústria é capaz de retribuir o custo de formação do valor. Com efeito, os produtos das manufaturas podem ser postos à venda segundo dois regimes.
1. Se os preços são livres, a concorrência tende a fazer baixar o valor, de sorte que, além da matéria-prima, eles cobrem quase estritamente o trabalho do operário que a transformou; conforme a definição de Cantillon, esse salário corresponde à subsistência do operário durante o tempo em que ele trabalha; sem dúvida, é preciso acrescentar ainda a subsistência e os benefícios do empresário; mas, de todo modo, o aumento de valor devido à manufatura representa o consumo daqueles que ela retribui; para fabricar riquezas, foi preciso sacrificar bens:
“O artesão destrói em subsistência tanto quanto o que produz por seu trabalho.”(62)
2. Quando há um preço de monopólio, os preços de venda dos objetos podem elevar-se consideravelmente. Mas não é então que o trabalho dos operários é mais bem retribuído: a concorrência entre eles tende a manter seus salários ao nível do que é estritamente indispensável para sua subsistência(63); quanto aos benefícios dos empresários, é verdade que os preços de monopólio os fazem crescer, na medida em que aumenta o valor dos objetos postos no mercado; mas esse aumento não é senão a baixa proporcional do valor de troca das outras mercadorias:
“Todos esses empresários só fazem fortunas porque outros fazem despesas.”(64)
Aparentemente, a indústria aumenta os valores; de fato, ela subtrai da própria troca o preço de uma ou de várias subsistências. O valor não se forma nem cresce graças à produção, mas ao consumo. Quer seja o do operário que garante sua subsistência, quer o do empresário que colhe benefícios, quer o do ocioso que compra:
“O crescimento do valor venal que é devido à classe estéril é o efeito da despesa do operário e não do seu trabalho. Pois o homem ocioso que despende sem trabalhar produz, sob esse aspecto, o mesmo efeito.”(65) o valor só aparece onde os bens desaparecem; e o trabalho funciona como uma despesa: ele constitui um preço da subsistência que ele próprio consumiu.
Isso é verdade mesmo para o trabalho agrícola. O operário que lavra não tem um estatuto diferente daquele que tece ou que transporta; ele é apenas uma “das ferramentas do trabalho ou do cultivo”(66) – ferramenta que necessita de uma subsistência e a subtrai dos produtos da terra. Como em todos os outros casos, a retribuição do trabalho agrícola tende a se ajustar exatamente a essa subsistência.
Contudo, há um privilégio, não econômico – no sistema de trocas -, mas físico, na ordem da produção de bens: é que a terra, quando trabalhada, fornece uma quantidade de subsistência possível bem superior ao que é necessário ao cultivador. Enquanto trabalho retribuído, o labor do operário agrícola é, pois, tão negativo e dispendioso quanto o dos operários de manufatura; mas, enquanto “comércio físico” com a natureza(67), nela suscita uma fecundidade imensa.
E se é verdade que essa prolixidade é retribuída de antemão pelos preços de lavoura, de sementeiras, de alimento para os animais, sabe-se bem que se achará uma espiga onde se semeou um grão; e os rebanhos “engordam cada dia, mesmo durante o seu repouso, o que não pode ser dito de um fardo de seda ou de lã nos depósitos”(68).
A agricultura é o único domínio onde o crescimento de valor devido à produção não é equivalente à manutenção do produtor. É que, na verdade, há um produtor invisível que não precisa de nenhuma retribuição; é a ele que o agricultor se acha associado sem o saber; e, no momento em que o lavrador consome tanto quanto trabalha, esse mesmo trabalho, por virtude de seu Co-Autor, produz todos os bens dos quais será subtraída a formação dos valores:
“A Agricultura é uma manufatura de instituição divina, em que o fabricante tem por sócio o Autor da natureza, o próprio Produtor de todos os bens e de todas as riquezas.”(69)
Compreende-se a importância teórica e prática que os fisiocratas conferiram à renda fundiária – e não ao trabalho agrícola. É que este é retribuído por um consumo, enquanto a renda fundiária representa, ou deve representar, o produto líquido: a quantidade de bens que a natureza fornece, além da subsistência que ela assegura ao trabalhador e da retribuição que ela própria requer para continuar a produzir. É essa renda que permite transformar os bens em valores ou em riquezas. Ela fornece aquilo com que retribuir todos os outros trabalhos e todos os consumos que lhes correspondem.
Daí, duas preocupações maiores:
- colocar à sua disposição uma grande quantidade de numerário para que ela possa alimentar o trabalho, o comércio e a indústria;
- velar para que seja absolutamente protegida a parte de adiantamento que deve retornar à terra para lhe permitir produzir mais.
O programa econômico e político dos fisiocratas comportará, pois, necessariamente:
- um aumento dos preços agrícolas, mas não dos salários daqueles que trabalham a terra;
- a subtração de todos os impostos da própria renda fundiária;
- uma abolição dos preços de monopólio e de todos os privilégios comerciais (a fim de que a indústria e o comércio, controlados pela concorrência, mantenham forçosamente o preço justo);
- um vasto retomo do dinheiro à terra para os adiantamentos que são necessários às colheitas futuras.
Todo o sistema de trocas, toda a formação dispendiosa dos valores são reportados a essa troca desequilibrada, radical e primitiva que se estabelece entre os adiantamentos do proprietário e a generosidade da natureza. Somente essa troca é absolutamente beneficiária e é no interior desse lucro líquido que podem ser subtraídas as despesas de que cada troca necessita, o aparecimento, pois, de cada elemento de riqueza.
Seria falso dizer que a natureza produz espontaneamente valores; mas ela é a fonte infatigável de bens que a troca transforma em valores, não sem despesas nem consumo.
Quesnay e seus discípulos analisam as riquezas a partir do que se dá na troca – isto é, desse supérfluo que existe sem nenhum valor mas que se torna valor ao entrar no circuito de substituições, em que deverá compensar cada um de seus deslocamentos, cada uma de suas transformações, com salários, alimento, subsistência, em suma, com uma parte desse excedente ao qual ele próprio pertence.
Os fisiocratas começam sua análise pela própria coisa que se acha designada no valor, mas que preexiste ao sistema das riquezas. O mesmo ocorre com os gramáticos quando analisam as palavras a partir da raiz, da relação imediata que une um som e uma coisa, e das abstrações sucessivas mediante as quais essa raiz se torna um nome numa língua.