Capítulo VI - Trocar; tópico VII. Quadro geral
A organização geral das ordens empíricas pode agora ser delineada em seu conjunto(80).
Constata-se, de início, que a análise das riquezas obedece à mesma configuração que a história natural e a gramática geral.
A teoria do valor permite, com efeito, explicar (seja pela carência e pela necessidade, seja pela prolixidade da natureza)
- como certos objetos podem ser introduzidos no sistema das trocas,
- como, pelo gesto primitivo da permuta, uma coisa pode ser dada como equivalente a outra,
- como a estimação da primeira pode ser reportada à estimação da segunda conforme
- uma relação de igualdade (A e B têm o mesmo valor)
- ou de analogia (o valor de A. de posse do meu parceiro, está para minha necessidade como está para ele o valor de B que eu possuo).
O valor corresponde portanto à função atributiva que, para a gramática geral, está assegurada pelo verbo e que, fazendo aparecer a proposição, constitui o limiar primeiro a partir do qual há linguagem.
Quando, porém, o valor apreciativo se torna valor de estimação, isto é, quando se define e se limita no interior do sistema constituído por todas as trocas possíveis, então cada valor se acha estabelecido e demarcado por todos os outros: a partir desse momento, o valor assegura o papel articulatório que a gramática geral reconhecia em todos os elementos não-verbais da proposição (isto é, nos nomes e em cada uma das palavras que, visivelmente ou em segredo, detêm uma função nominal).
No sistema das trocas, no jogo que permite a cada parte de riqueza significar as outras ou ser por elas significada, o valor é ao mesmo tempo
- verbo e nome,
- poder de ligar e princípio de análise,
- atribuição e determinação.
O valor, na análise das riquezas, ocupa, pois, exatamente a mesma posição que a estrutura na história natural; como esta, reúne numa única e mesma operação a função que permite
- atribuir um signo a outro signo,
- uma representação a outra representação
- e a que permite articular os elementos que compõem o conjunto das representações ou os signos que as decompõem.
Por seu lado, a teoria da moeda e do comércio explica
- como uma matéria qualquer pode assumir uma função significante reportando-se a um objeto e servindo-lhe de signo permanente;
- explica também (pelo jogo do comércio, do aumento e da diminuição do numerário)
- como essa relação de signo a significado pode se alterar sem jamais desaparecer,
- como um mesmo elemento monetário pode significar mais ou menos riquezas,
- como pode ele deslizar, estender-se, estreitar-se em relação aos valores que lhe compete representar.
A teoria do preço monetário corresponde, pois, ao que na gramática geral aparece sob a forma de uma análise das raízes e da linguagem de ação (função de designação) e ao que aparece sob a forma de tropos e de desvios de sentido (função de derivação). A moeda, como as palavras, tem por papel designar, mas não cessa de oscilar em torno desse eixo vertical:
- as variações de preço estão para a instauração primeira da relação entre metal e riquezas
- como os deslocamentos retóricos estão para o valor primitivo dos signos verbais.
Porém há mais:
- assegurando a partir de suas próprias possibilidades a designação das riquezas,
- o estabelecimento dos preços,
- a modificação dos valores nominais,
- o empobrecimento e o enriquecimento das nações,
a moeda funciona em relação às riquezas como o caráter em relação aos seres naturais: ela permite, ao mesmo tempo,
- impor-lhes uma marca provisória
- e indicar-Ihes um lugar, sem dúvida provisório, no espaço atualmente definido pelo conjunto das coisas e dos signos de que se dispõe.
A teoria da moeda e dos preços ocupa na análise das riquezas a mesma posição que a teoria do caráter na história natural.
Como esta última, reúne numa única e mesma função
- a possibilidade de dar um signo às coisas,
- de fazer representar uma coisa por outra
- e a possibilidade de fazer desviar um signo em relação ao que ele designa.
As quatro funções que definem em suas propriedades singulares o signo verbal e o distinguem de todos os outros signos que a representação pode referir a si mesma encontram-se, pois, na sinalização teórica da história natural e na utilização prática dos signos monetários.
A ordem das riquezas e a ordem dos seres naturais se instauram e se descobrem na medida em que se estabelecem entre os objetos de necessidade, entre os indivíduos visíveis, sistemas de signos que permitem
- a designação das representações umas pelas outras,
- a derivação das representações significantes em relação aos significados,
- a articulação do que é representado,
- a atribuição de determinadas representações a determinadas outras.
Nesse sentido, pode-se dizer que, para o pensamento clássico,
- os sistemas da história natural e as teorias da moeda ou do comércio
- têm as mesmas condições de possibilidade que a própria linguagem.
O que quer dizer duas coisas:
- primeiro, que a ordem na natureza e a ordem nas riquezas têm, para a experiência clássica, o mesmo modo de ser que a ordem das representações tal como é manifestada pelas palavras;
- em seguida, que as palavras formam um sistema de signos suficientemente privilegiado, quando se trata de fazer aparecer a ordem das coisas,
- para que a história natural, se bem-feita,
- e para que a moeda, se bem regulada, funcionem à maneira da linguagem.
O que a álgebra é para a máthêsis, os signos, e em particular as palavras, o são para a taxinomia: constituição e manifestação evidente da ordem das coisas.
Existe, entretanto, uma diferença fundamental que impede que a classificação seja a linguagem espontânea da natureza, e os preços, o discurso natural das riquezas. Ou antes, existem duas diferenças,
- uma que permite distinguir os domínios dos signos verbais daquele das riquezas ou dos seres naturais,
- e outra que permite distinguir a teoria da história natural e a do valor ou dos preços.
Os quatro momentos que definem as funções essenciais da linguagem (atribuição, articulação, designação, derivação) estão solidamente ligados entre si, pois são requeridos uns pelos outros a partir do momento em que se transpôs, com o verbo, o limiar de existência da linguagem.
Mas, na gênese real das línguas, o percurso não se faz no mesmo sentido nem com o mesmo rigor: a partir de designações primitivas, a imaginação dos homens (segundo os climas em que vivem, as condições de sua existência, seus sentimentos e paixões, as experiências que fazem) suscita derivações que são diferentes conforme os povos e que explicam, sem dúvida, além da diversidade das línguas, a relativa instabilidade de cada uma.
Num dado momento dessa derivação e no interior de uma língua singular, os homens têm à sua disposição um conjunto de palavras, de nomes que se articulam uns com os outros e determinam suas representações; mas essa análise é tão imperfeita, deixa subsistir tantas imprecisões e tantas imbricações que, com as mesmas representações, os homens utilizam palavras diversas e formulam proposições diferentes: sua reflexão não está ao abrigo do erro.
Entre a designação e a derivação,
- multiplicam-se os deslizes da imaginação;
entre a articulação e a atribuição,
- prolifera o erro da reflexão.
É por isso que, no horizonte talvez indefinidamente recuado da linguagem, projeta-se a ideia de uma língua universal em que o valor representativo das palavras seria fixado com bastante nitidez, fundado bastante bem, reconhecido com suficiente evidência para que a reflexão pudesse decidir, com toda a clareza, sobre a verdade de qualquer proposição – língua por meio da qual “os camponeses poderiam julgar a verdade das coisas melhor do que o fazem agora os filósofos”(81); uma linguagem perfeitamente distinta permitiria um discurso inteiramente claro:
- essa língua seria, em si mesma, uma Ars combinatoria.
É por isso também que o exercício de toda língua real deve ser duplicado por uma Enciclopédia que defina o percurso das palavras, prescreva as vias mais naturais, desenhe os deslizes legítimos do saber, codifique as relações de vizinhança e de semelhança.
O Dicionário é feito
- para controlar o jogo das derivações
- a partir da designação primeira das palavras,
assim como a Língua universal é feita
- para controlar, a partir de uma articulação bem estabelecida,
- os erros da reflexão quando ela formula um juízo.
A Ars combinatoria e a Enciclopédia se correspondem, de um lado e de outro, pela imperfeição das línguas reais. A história natural, uma vez que precisa realmente ser uma ciência, a circulação das riquezas, uma vez que é uma instituição criada pelos homens e por eles controlada, devem escapar a esses perigos inerentes às linguagens espontâneas.
Não há erro possível entre articulação e atribuição na ordem da história natural, pois que a estrutura se dá numa visibilidade imediata; também não há deslizes imaginários, falsas semelhanças, vizinhanças incongruentes que colocariam um ser natural corretamente designado num espaço que não fosse o seu, pois que o caráter é estabelecido quer pela coerência do sistema, quer pela exatidão do método.
A estrutura e o caráter asseguram, na história natural, o fechamento teórico do que fica em aberto na linguagem e faz nascer em suas fronteiras os projetos de artes essencialmente inacabados.
Do mesmo modo o valor que, de estimativo, torna-se automaticamente apreciativo, e a moeda que, por sua quantidade crescente ou decrescente provoca mas limita sempre a oscilação dos preços, garantem, na ordem das riquezas, o ajustamento entre a atribuição e a articulação, entre a designação e a derivação.
O valor e os preços asseguram o fechamento prático dos segmentos que permanecem em aberto na linguagem.
A estrutura permite à história natural achar-se de imediato no elemento de uma combinatória, e o caráter lhe permite estabelecer, a propósito dos seres e de suas semelhanças, uma poética exata e definitiva. O valor combina as riquezas umas com as outras, a moeda permite sua troca real.
Lá onde a ordem desordenada da linguagem implica a relação contínua com uma arte e com suas tarefas infinitas, a ordem da natureza e a das riquezas se manifestam na existência pura e simples
- da estrutura e do caráter,
- do valor e da moeda.
Entretanto, deve-se notar que a ordem natural se formula numa teoria que vale como a justa leitura de uma série ou de um quadro real:
- a estrutura dos seres é, ao mesmo tempo, tanto a forma imediata do visível quanto sua articulação;
- do mesmo modo, o caráter designa e localiza num único e mesmo movimento.
Em contrapartida,
- o valor estimativo só se torna apreciativo mediante uma transformação;
- e a relação inicial entre o metal e a mercadoria só pouco a pouco se torna um preço sujeito a variações.
No primeiro caso, trata-se de
- uma superposição exata entre a atribuição e a articulação, entre a designação e a derivação;
no outro caso,
- de uma passagem que está ligada à natureza das coisas e à atividade dos homens.
Com a linguagem, o sistema de signos é recebido passivamente em sua imperfeição e somente uma arte o pode retificar: a teoria da linguagem é imediatamente prescritiva.
A história natural instaura, de si mesma, para designar os seres, um sistema de signos e, por isso, é uma teoria.
As riquezas são signos que são produzidos, multiplicados, modificados pelos homens; a teoria das riquezas está ligada, de ponta a ponta, a uma política.
No entanto, os dois outros lados do quadrilátero fundamental permanecem abertos.
Como se explica que a designação (ato singular e pontual) permita uma articulação entre a natureza, as riquezas, as representações?
Como se explica, de um modo geral, que os dois segmentos opostos (do juízo e da significação para a linguagem, da estrutura e do caráter para a história natural, do valor e dos preços para a teoria das riquezas) se reportem um ao outro e autorizem assim uma linguagem, um sistema da natureza e o movimento ininterrupto das riquezas?
É aí que é realmente preciso supor que as representações se assemelham entre si e se evocam umas às outras na imaginação; que os seres naturais estão numa relação de vizinhança e de semelhança, que as necessidades dos homens se correspondem e encontram com que se satisfazer.
O encadeamento das representações, a superfície sem ruptura dos seres, a proliferação da natureza são sempre requeridos para que haja linguagem, para que haja uma história natural e para que possa haver riquezas e prática das riquezas.
O continuum da representação e do ser, uma ontologia definida negativamente como ausência do nada, uma representabilidade geral do ser e o ser manifestado pela presença da representação – tudo isso faz parte da configuração de conjunto da epistémê clássica.
Poder-se-á reconhecer, nesse princípio do contínuo, o momento metafisicamente forte do pensamento dos séculos XVII e XVIII (o que permite à forma da proposição ter um sentido efetivo, à estrutura ordenar-se em caráter, ao valor das coisas calcular-se em preço); já as relações entre articulação e atribuição, designação e derivação (o que funda o juízo de um lado e o sentido de outro, a estrutura e o caráter, o valor e os preços) definem, para esse pensamento, o momento cientificamente forte (o que torna possíveis a gramática, a história natural, a ciência das riquezas).
A ordenação da empiricidade se acha assim ligada à ontologia que caracteriza o pensamento clássico; este, com efeito, se acha desde logo no interior de uma ontologia, tornada transparente pelo fato de que o ser é dado sem ruptura à representação; e no interior de uma representação iluminada pelo fato de que ela libera o contínuo do ser.
Quanto à mutação que, por volta do final do século XVIII, se produziu em toda a epistémê ocidental, é possível caracterizá-Ia de longe, desde agora, dizendo
- que um momento cientificamente forte se constituiu lá onde a epistémê clássica conhecia um tempo metafisicamente forte;
- e que, em contrapartida, se apurou um espaço filosófico lá onde o classicismo havia estabelecido suas mais sólidas travas epistemológicas.
Com efeito,
- a análise da produção, como projeto novo da nova “economia política”, tem essencialmente por papel analisar a relação entre o valor e os preços;
- os conceitos de organismos e organização, os métodos da anatomia comparada, em suma, todos os temas da “biologia” nascente explicam de que modo estruturas observáveis em indivíduos podem valer, a título de caracteres gerais, para gêneros, famílias, ramificações;
- enfim, para unificar as disposições formais de uma linguagem (sua capacidade para constituir proposições) e o sentido que pertence a suas palavras, a ‘filologia” estudará não mais as funções representativas do discurso, mas um conjunto de constantes morfológicas submetidas a uma história.
Filologia, biologia e economia política se constituem não no lugar da Gramática geral, da História natural e da Análise das riquezas, mas lá onde esses saberes não existiam, no espaço que deixavam em branco, na profundidade do sulco que separava seus grandes segmentos teóricos e que o rumor do contínuo ontológico preenchia.
O objeto do saber, no século XIX, se forma lá mesmo onde acaba de se calar a plenitude clássica do ser.
Inversamente, um espaço filosófico novo vai libertar-se lá onde se desfazem os objetos do saber clássico.
- O momento da atribuição (como forma do juízo) e o da articulação (como recorte geral dos seres)
- se separam, fazendo nascer o problema das relações entre
- uma apofântica e
- uma ontologia formais;
- se separam, fazendo nascer o problema das relações entre
- o momento da designação primitiva e o da derivação através do tempo se separam,
- abrindo um espaço onde se coloca a questão das relações entre
- o sentido originário
- e a história.
- abrindo um espaço onde se coloca a questão das relações entre
Assim se acham posicionadas as duas grandes formas da reflexão filosófica moderna.
Uma interroga as relações entre a lógica e a ontologia; procede pelos caminhos da formalização e encontra sob um novo aspecto o problema da máthêsis.
A outra interroga as relações entre a significação e o tempo; empreende um desvelamento que não é e, sem dúvida, jamais será acabado, e traz de novo à luz os temas e os métodos da interpretação.
Sem dúvida, a questão mais fundamental que então se pode colocar para a filosofia concerne à relação entre essas duas formas de reflexão.
Por certo não compete à arqueologia dizer se essa relação é possível nem como pode fundar-se;
- mas ela pode designar a região onde essa relação busca estabelecer-se, qual o lugar da epistémê em que a filosofia moderna tenta encontrar sua unidade, em que ponto do saber descobre seu mais amplo domínio: esse lugar é aquele onde
- o formal (do apofântico e da ontologia)
- se reuniria ao significativo tal como ele se aclara na interpretação.
O problema essencial do pensamento clássico se alojava nas relações entre o nome e a ordem:
- descobrir uma nomenclatura que fosse uma taxinomia, ou, ainda,
- instaurar um sistema de signos que fosse transparente à continuidade do ser.
O que o pensamento moderno vai colocar fundamentalmente em questão é a relação do sentido com a forma da verdade e a forma do ser:
- no céu de nossa reflexão, reina um discurso – um discurso talvez inacessível – que seria a um tempo uma ontologia e uma semântica.
O estruturalismo não é um método novo; é a consciência desperta e inquieta do saber moderno.
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