Capapítulo VI - Trocar; tópico II. Moeda e preço
No século XVI, o pensamento econômico está limitado, ou quase, ao problema dos preços e ao da substância monetária.
A questão dos preços concerne
- ao caráter absoluto ou relativo do encarecimento das mercadorias
- e ao efeito que porventura tiveram sobre os preços as desvalorizações sucessivas ou o afluxo dos metais americanos.
O problema da substância monetária
- é o da natureza do estalão, da relação de preço entre os diferentes metais utilizados,
- da distorção entre o peso das moedas e seus valores nominais.
Mas essas duas séries de problemas estavam ligadas, pois que o metal só aparecia como signo, e como signo medindo riquezas, na medida em que ele próprio era uma riqueza. Se ele podia significar é porque era uma marca real. E assim como as palavras tinham a mesma realidade daquilo que diziam, assim como as marcas dos seres vivos estavam inscritas sobre seu corpo à maneira de marcas visíveis e positivas, assim os signos que indicavam as riquezas e as mediam deviam trazer, eles próprios, a sua marca real.
Para poderem dizer o preço,
- era necessário que fossem preciosos.
- Era necessário que fossem raros, úteis, desejáveis.
- Era necessário também que todas essas qualidades fossem estáveis,
para que a marca por eles imposta fosse uma verdadeira assinalação, universalmente legível.
Daí essa correlação entre o problema dos preços e a natureza da moeda, que constitui o objeto privilegiado de toda reflexão sobre as riquezas, desde Copérnico até Bodin e Davanzatti.
Na realidade material da moeda fundam-se suas duas funções
- de medida comum entre as mercadorias
- e de substituto no mecanismo de troca.
Uma medida é estável reconhecida por todos e válida em todos os lugares, se tiver por estalão uma realidade assinalável que se possa comparar com a diversidade das coisas que se quer medir: assim, diz Copérnico, a toesa e o alqueire, cujo comprimento e volume materiais servem de unidade.(1)
Por consequência, a moeda só mede verdadeiramente, se sua unidade for uma realidade que existe realmente e à qual se pode referir toda e qualquer mercadoria.
Nesse sentido, o século XVI retoma à teoria admitida ao menos durante uma parte da Idade Média e que se deixava ao príncipe ou ainda ao consenso popular o direito de fixar o valor impositus da moeda, de modificar-lhe a taxa, de demonetizar uma categoria de peças ou qualquer metal que se desejasse.
É preciso que o valor da moeda seja regulado pela massa metálica que ela contém; isto é, que retome ao que era outrora, quando os príncipes não tinham ainda imprimido sua efígie nem seu selo sobre fragmentos metálicos; naquela ocasião, “nem o cobre, nem o ouro, nem a prata eram monetizados, mas estimados somente segundo seu peso”(2); não se fazia valer signos arbitrários por marcas reais; a moeda era uma justa medida, porque não significava nada mais que seu poder de aferir as riquezas a partir de sua própria realidade material de riqueza.
Foi sobre essa base epistemológica que se operaram as reformas no século XVI e que os debates assumiram suas dimensões próprias.
Busca-se reconduzir os signos monetários à sua exatidão de medida: é preciso que os valores nominais conferidos às peças sejam conformes à quantidade de metal que se escolheu como estalão e que nelas se acha incorporada; a moeda então não significará nada mais que seu valor de medida.
Nesse sentido, o autor anônimo do Compendious requer que “toda moeda atualmente corrente não o seja mais a partir de uma certa data”, pois as “altas” do valor nominal haviam alterado desde muito tempo suas funções de medida; será preciso que as peças já monetizadas não sejam mais aceitas senão “segundo a estimação do metal contido”; quanto à nova moeda, terá por valor nominal seu próprio peso: “a partir desse momento, só serão correntes a antiga e a nova moeda, segundo um mesmo valor, um mesmo peso, uma mesma denominação, e, assim, a moeda será restabelecida na sua antiga taxa e na sua antiga validade”.(3)
Não se sabe se o texto do Compendious, que não foi publicado antes de 1581, mas que certamente existiu e circulou em manuscrito uns 30 anos antes, inspirou a política monetária sob o reinado de Elisabeth.
Uma coisa é certa, é que após uma série de “altas” (de desvalorizações) entre 1544 e 1559, a proclamação de março de 1561 “baixa” o valor nominal das moedas e o reconduz à quantidade de metal que elas contêm.
Do mesmo modo, na França, os Estados Gerais de 1575 requerem e obtêm a supressão das unidades de conta (que introduziam uma terceira definição da moeda, puramente aritmética e que se acrescentava à definição do peso e à do valor nominal: essa relação suplementar escondia, aos olhos dos que eram mal instruídos a esse respeito, o sentido das manipulações sobre a moeda); o edito de setembro de 1577 estabelece o escudo de ouro ao mesmo tempo como peça real e como unidade de conta, decreta a subordinação ao ouro de todos os outros metais – da prata em particular, que guarda valor liberatório mas perde sua imutabilidade de direito. Assim, as moedas se acham reaferidas a partir de seu peso metálico. o signo que trazem – o valor impositus – é tão-somente a marca exata e transparente da medida que elas constituem.
Todavia, ao mesmo tempo em que esse retorno é exigido, por vezes realizado, põe-se à luz um certo número de fenômenos que são próprios à moeda-signo e comprometem talvez definitivamente seu papel de medida.
Primeiro, o fato de que uma moeda circula tanto mais depressa quanto menos valiosa, ao passo que as peças de alto teor de metal se acham escondidas e não figuram no comércio: é a chamada lei de Gresham(4), que Copérnico(5) e o autor do Compendious(6) já conheciam.
Em seguida e sobretudo, a relação entre os fatos monetários e o movimento dos preços: foi com isso que a moeda surgiu como uma mercadoria entre as outras – não como estalão absoluto de todas as equivalências, mas mercadoria cuja capacidade de troca e, por conseguinte, cujo valor de substituto nas trocas se modificam segundo sua frequência e sua raridade: a moeda também tem seu preço. Malestroit(7) fez ver que, apesar da aparência, não houve aumento dos preços no decurso do século XVI: posto que as mercadorias são sempre o que são, e que a moeda, em sua natureza própria, é um estalão constante, o encarecimento das mercadorias só pode ser devido ao aumento dos valores nominais investidos por uma mesma massa metálica; mas, para uma mesma quantidade de trigo, dá-se sempre um mesmo peso de ouro e de prata. De sorte que “nada é encarecido”: como o escudo de ouro valia em moeda de conta 20 soldos torneses no reinado de Filipe VI e vale agora 50, é realmente necessário que uma vara de veludo, que custava outrora quatro libras, hoje valha dez. “O encarecimento de todas as coisas não provém de dar mais, mas de receber menos em quantidade de ouro e de prata fina do que se estava acostumado.”
Mas, a partir dessa identificação do papel da moeda com a massa de metal que ela faz circular, concebe-se perfeitamente que ela está submetida às mesmas variações que todas as outras mercadorias. E se Malestroit admitia implicitamente que a quantidade e o valor mercantil dos metais permaneciam estáveis, Bodin, alguns poucos anos mais tarde(8), constata um aumento da massa metálica importada do Novo Mundo e, por consequência, um encarecimento real das mercadorias, posto que os príncipes, possuindo ou recebendo de particulares lingotes em maior quantidade, cunharam peças mais numerosas e de melhor quilate; para uma mesma mercadoria, dá-se, portanto, uma quantidade de metal mais importante.
A subida dos preços tem, pois, uma “causa principal e quase a única em que ninguém até aqui tocou”: é “a abundância de ouro e de prata”, “a abundância daquilo que dá estimativa e preço às coisas”. O próprio estalão das equivalências é assumido no sistema de trocas e o poder de compra da moeda só significa o valor mercantil do metal. A marca que distingue a moeda determina-a, torna-a certa e aceitável por todos, é, portanto, reversível, e pode ser lida nos dois sentidos: ela remete a Uma quantidade de metal que é medida constante (é assim que a decifra Malestroit); mas remete também a essas mercadorias variáveis em quantidade e em preço que são os metais (é a leitura de Bodin).
Tem-se aí uma disposição análoga à que caracteriza o regime geral dos signos no século XVI; os signos, como se sabe, eram constituídos por semelhanças que, por sua vez, para serem reconhecidas, necessitavam de signos.
Aqui, o signo monetário só pode definir seu valor de troca, só pode estabelecer-se como marca, segundo uma massa metálica que, por sua vez, define seu valor na ordem de outras mercadorias.
Se se admitir que a troca, no sistema das necessidades, corresponde à similitude no dos conhecimentos, vê-se que uma única e mesma configuração da epistémê controlou, durante o Renascimento, o saber da natureza e a reflexão ou as práticas que concerniam à moeda.
E, assim como a relação entre o microcosmo e o macrocosmo era indispensável para deter a oscilação indefinida da semelhança e do signo, assim também foi preciso estabelecer uma certa relação entre metal e mercadoria que, ao cabo, permitia fixar o valor mercantil total dos metais preciosos e, por conseguinte, aferir de uma forma certa e definitiva o preço de todas as mercadorias.
Foi essa a relação estabelecida pela Providência, quando entranhou na terra as minas de ouro e de prata e as fez crescer lentamente, da maneira como sobre a terra medram as plantas e multiplicam-se os animais. Entre todas as coisas de que o homem pode ter necessidade ou desejo, e os veios cintilantes, ocultos, onde crescem obscuramente os metais, há uma correspondência absoluta.
“A natureza”, diz Davanzatti, “fez boas todas as coisas terrestres; a soma destas, em virtude do acordo concluído pelos homens, vale todo o ouro que se trabalha; todos os homens, portanto, desejam tudo para adquirir todas as coisas…
Para constatar cada dia a regra e proporções matemáticas que as coisas têm entre si e o ouro, seria preciso, do alto do céu ou de algum observatório muito elevado, poder contemplar as coisas que existem e que se fazem sobre a terra, ou, antes, suas imagens reproduzidas e refletidas no céu como num fiel espelho. Abandonaríamos então todos os nossos cálculos e diríamos: há na terra tanto ouro quanto tantas coisas, tantos homens, tantas necessidades; na medida em que cada coisa satisfaz necessidades, seu valor será o de tantas coisas ou de tanto ouro.”(9) Esse cálculo celeste e exaustivo, só Deus pode fazê-Io: ele corresponde àquele outro cálculo que põe em relação cada elemento do microcosmo com um elemento do macrocosmo – com a única diferença de que este reúne o terrestre ao celeste e vai das coisas, dos animais ou do homem até as estrelas; já o outro reúne a terra às suas cavernas e às suas minas; faz corresponder as coisas que nascem entre as mãos dos homens com os tesouros enterrados desde a criação do mundo.
As marcas da similitude, porque guiam o conhecimento, endereçam-se à perfeição do céu; os signos da troca, porque satisfazem o desejo, apóiam-se na cintilação negra, perigosa e maldita do metal. Cintilação equívoca, pois reproduz no fundo da terra aquela que rutila na extremidade da noite: aí reside como uma promessa invertida da felicidade, e, porque o metal se assemelha aos astros, o saber de todos esses perigosos tesouros é ao mesmo tempo o saber do mundo. E a reflexão sobre as riquezas propende assim para a grande especulação sobre o cosmos, assim como, inversamente, o profundo conhecimento da ordem do mundo deve conduzir ao segredo dos metais e à posse das riquezas.
Vê-se a densa rede de necessidades que, no século XVI, liga os elementos do saber:
- de que modo a cosmologia dos signos duplica e funda finalmente a reflexão sobre os preços e a moeda,
- de que modo ela autoriza também uma especulação teórica e prática sobre os metais,
- de que modo estabelece uma comunicação entre as promessas do desejo e as do conhecimento, da mesma forma como se respondem e se aproximam por secretas afinidades os metais e os astros.
Nos confins do saber, lá onde ele se faz todo-poderoso e quase divino, três grandes funções se juntam:
- as do Basileús,
- do Philósophos
- e do Metallikós.
Mas, assim como esse saber só é dado por fragmentos e na fulguração atenta da divinatio, assim também, no que se refere às relações singulares e parciais entre as coisas e o metal, o desejo e os preços, o conhecimento divino ou o que se poderia adquirir “de algum observatório elevado” não é dado ao homem. Salvo por instantes e como que por sorte, aos espíritos que sabem espreitar: isto é, os mercadores.
O que os adivinhos eram no jogo indefinido das semelhanças e dos signos, os mercadores o são no jogo, também este sempre aberto, das trocas e das moedas.
“Aqui embaixo descobrimos com dificuldade as poucas coisas que nos cercam e lhes damos um preço conforme percebemos sua maior ou menor procura em cada lugar e em cada tempo. Quanto a isso os mercadores estão prontamente e muito bem advertidos, e é por isso que conhecem admiravelmente o preço das coisas.”(10)