II. Moeda e preço

Capapítulo VI - Trocar; tópico II. Moeda e preço

No século XVI, o pensamento econômico está limitado, ou quase, ao problema dos preços e ao da substância monetária.

A questão dos preços concerne 

  • ao caráter absoluto ou relativo do encarecimento das mercadorias 
  • e ao efeito que porventura tiveram sobre os preços as desvalorizações sucessivas ou o afluxo dos metais americanos.

O problema da substância monetária 

  • é o da natureza do estalão, da relação de preço entre os diferentes metais utilizados, 
  • da distorção entre o peso das moedas e seus valores nominais.

Mas essas duas séries de problemas estavam ligadas, pois que o metal só aparecia como signo, e como signo medindo riquezas, na medida em que ele próprio era uma riqueza. Se ele podia significar é porque era uma marca real. E assim como as palavras tinham a mesma realidade daquilo que diziam, assim como as marcas dos seres vivos estavam inscritas sobre seu corpo à maneira de marcas visíveis e positivas, assim os signos que indicavam as riquezas e as mediam deviam trazer, eles próprios, a sua marca real.

Para poderem dizer o preço,

  • era necessário que fossem preciosos.
  • Era necessário que fossem raros, úteis, desejáveis.
  • Era necessário também que todas essas qualidades fossem estáveis,

para que a marca por eles imposta fosse uma verdadeira assinalação, universalmente legível.

Daí essa correlação entre o problema dos preços e a natureza da moeda, que constitui o objeto privilegiado de toda reflexão sobre as riquezas, desde Copérnico até Bodin e Davanzatti.

Na realidade material da moeda fundam-se suas duas funções

  • de medida comum entre as mercadorias
  • e de substituto no mecanismo de troca.

Uma medida é estável reconhecida por todos e válida em todos os lugares, se tiver por estalão uma realidade assinalável que se possa comparar com a diversidade das coisas que se quer medir: assim, diz Copérnico, a toesa e o alqueire, cujo comprimento e volume materiais servem de unidade.(1)

Por consequência, a moeda só mede verdadeiramente, se sua unidade for uma realidade que existe realmente e à qual se pode referir toda e qualquer mercadoria.

Nesse sentido, o século XVI retoma à teoria admitida ao menos durante uma parte da Idade Média e que se deixava ao príncipe ou ainda ao consenso popular o direito de fixar o valor impositus da moeda, de modificar-lhe a taxa, de demonetizar uma categoria de peças ou qualquer metal que se desejasse.

É preciso que o valor da moeda seja regulado pela massa metálica que ela contém; isto é, que retome ao que era outrora, quando os príncipes não tinham ainda imprimido sua efígie nem seu selo sobre fragmentos metálicos; naquela ocasião, “nem o cobre, nem o ouro, nem a prata eram monetizados, mas estimados somente segundo seu peso”(2); não se fazia valer signos arbitrários por marcas reais; a moeda era uma justa medida, porque não significava nada mais que seu poder de aferir as riquezas a partir de sua própria realidade material de riqueza.

Foi sobre essa base epistemológica que se operaram as reformas no século XVI e que os debates assumiram suas dimensões próprias.

Busca-se reconduzir os signos monetários à sua exatidão de medida: é preciso que os valores nominais conferidos às peças sejam conformes à quantidade de metal que se escolheu como estalão e que nelas se acha incorporada; a moeda então não significará nada mais que seu valor de medida.

Nesse sentido, o autor anônimo do Compendious requer que “toda moeda atualmente corrente não o seja mais a partir de uma certa data”, pois as “altas” do valor nominal haviam alterado desde muito tempo suas funções de medida; será preciso que as peças já monetizadas não sejam mais aceitas senão “segundo a estimação do metal contido”; quanto à nova moeda, terá por valor nominal seu próprio peso: “a partir desse momento, só serão correntes a antiga e a nova moeda, segundo um mesmo valor, um mesmo peso, uma mesma denominação, e, assim, a moeda será restabelecida na sua antiga taxa e na sua antiga validade”.(3)

Não se sabe se o texto do Compendious, que não foi publicado antes de 1581, mas que certamente existiu e circulou em manuscrito uns 30 anos antes, inspirou a política monetária sob o reinado de Elisabeth.

Uma coisa é certa, é que após uma série de “altas” (de desvalorizações) entre 1544 e 1559, a proclamação de março de 1561 “baixa” o valor nominal das moedas e o reconduz à quantidade de metal que elas contêm.

Do mesmo modo, na França, os Estados Gerais de 1575 requerem e obtêm a supressão das unidades de conta (que introduziam uma terceira definição da moeda, puramente aritmética e que se acrescentava à definição do peso e à do valor nominal: essa relação suplementar escondia, aos olhos dos que eram mal instruídos a esse respeito, o sentido das manipulações sobre a moeda); o edito de setembro de 1577 estabelece o escudo de ouro ao mesmo tempo como peça real e como unidade de conta, decreta a subordinação ao ouro de todos os outros metais – da prata em particular, que guarda valor liberatório mas perde sua imutabilidade de direito. Assim, as moedas se acham reaferidas a partir de seu peso metálico. o signo que trazem – o valor impositus – é tão-somente a marca exata e transparente da medida que elas constituem.

Todavia, ao mesmo tempo em que esse retorno é exigido, por vezes realizado, põe-se à luz um certo número de fenômenos que são próprios à moeda-signo e comprometem talvez definitivamente seu papel de medida.

Primeiro, o fato de que uma moeda circula tanto mais depressa quanto menos valiosa, ao passo que as peças de alto teor de metal se acham escondidas e não figuram no comércio: é a chamada lei de Gresham(4), que Copérnico(5) e o autor do Compendious(6) já conheciam.

Em seguida e sobretudo, a relação entre os fatos monetários e o movimento dos preços: foi com isso que a moeda surgiu como uma mercadoria entre as outras – não como estalão absoluto de todas as equivalências, mas mercadoria cuja capacidade de troca e, por conseguinte, cujo valor de substituto nas trocas se modificam segundo sua frequência e sua raridade: a moeda também tem seu preço. Malestroit(7) fez ver que, apesar da aparência, não houve aumento dos preços no decurso do século XVI: posto que as mercadorias são sempre o que são, e que a moeda, em sua natureza própria, é um estalão constante, o encarecimento das mercadorias só pode ser devido ao aumento dos valores nominais investidos por uma mesma massa metálica; mas, para uma mesma quantidade de trigo, dá-se sempre um mesmo peso de ouro e de prata. De sorte que “nada é encarecido”: como o escudo de ouro valia em moeda de conta 20 soldos torneses no reinado de Filipe VI e vale agora 50, é realmente necessário que uma vara de veludo, que custava outrora quatro libras, hoje valha dez. “O encarecimento de todas as coisas não provém de dar mais, mas de receber menos em quantidade de ouro e de prata fina do que se estava acostumado.”

Mas, a partir dessa identificação do papel da moeda com a massa de metal que ela faz circular, concebe-se perfeitamente que ela está submetida às mesmas variações que todas as outras mercadorias. E se Malestroit admitia implicitamente que a quantidade e o valor mercantil dos metais permaneciam estáveis, Bodin, alguns poucos anos mais tarde(8), constata um aumento da massa metálica importada do Novo Mundo e, por consequência, um encarecimento real das mercadorias, posto que os príncipes, possuindo ou recebendo de particulares lingotes em maior quantidade, cunharam peças mais numerosas e de melhor quilate; para uma mesma mercadoria, dá-se, portanto, uma quantidade de metal mais importante.

A subida dos preços tem, pois, uma “causa principal e quase a única em que ninguém até aqui tocou”: é “a abundância de ouro e de prata”, “a abundância daquilo que dá estimativa e preço às coisas”. O próprio estalão das equivalências é assumido no sistema de trocas e o poder de compra da moeda só significa o valor mercantil do metal. A marca que distingue a moeda determina-a, torna-a certa e aceitável por todos, é, portanto, reversível, e pode ser lida nos dois sentidos: ela remete a Uma quantidade de metal que é medida constante (é assim que a decifra Malestroit); mas remete também a essas mercadorias variáveis em quantidade e em preço que são os metais (é a leitura de Bodin).

Tem-se aí uma disposição análoga à que caracteriza o regime geral dos signos no século XVI; os signos, como se sabe, eram constituídos por semelhanças que, por sua vez, para serem reconhecidas, necessitavam de signos.

Aqui, o signo monetário só pode definir seu valor de troca, só pode estabelecer-se como marca, segundo uma massa metálica que, por sua vez, define seu valor na ordem de outras mercadorias.

Se se admitir que a troca, no sistema das necessidades, corresponde à similitude no dos conhecimentos, vê-se que uma única e mesma configuração da epistémê controlou, durante o Renascimento, o saber da natureza e a reflexão ou as práticas que concerniam à moeda.

E, assim como a relação entre o microcosmo e o macrocosmo era indispensável para deter a oscilação indefinida da semelhança e do signo, assim também foi preciso estabelecer uma certa relação entre metal e mercadoria que, ao cabo, permitia fixar o valor mercantil total dos metais preciosos e, por conseguinte, aferir de uma forma certa e definitiva o preço de todas as mercadorias.

Foi essa a relação estabelecida pela Providência, quando entranhou na terra as minas de ouro e de prata e as fez crescer lentamente, da maneira como sobre a terra medram as plantas e multiplicam-se os animais. Entre todas as coisas de que o homem pode ter necessidade ou desejo, e os veios cintilantes, ocultos, onde crescem obscuramente os metais, há uma correspondência absoluta.

“A natureza”, diz Davanzatti, “fez boas todas as coisas terrestres; a soma destas, em virtude do acordo concluído pelos homens, vale todo o ouro que se trabalha; todos os homens, portanto, desejam tudo para adquirir todas as coisas…

Para constatar cada dia a regra e proporções matemáticas que as coisas têm entre si e o ouro, seria preciso, do alto do céu ou de algum observatório muito elevado, poder contemplar as coisas que existem e que se fazem sobre a terra, ou, antes, suas imagens reproduzidas e refletidas no céu como num fiel espelho. Abandonaríamos então todos os nossos cálculos e diríamos: há na terra tanto ouro quanto tantas coisas, tantos homens, tantas necessidades; na medida em que cada coisa satisfaz necessidades, seu valor será o de tantas coisas ou de tanto ouro.”(9) Esse cálculo celeste e exaustivo, só Deus pode fazê-Io: ele corresponde àquele outro cálculo que põe em relação cada elemento do microcosmo com um elemento do macrocosmo – com a única diferença de que este reúne o terrestre ao celeste e vai das coisas, dos animais ou do homem até as estrelas; já o outro reúne a terra às suas cavernas e às suas minas; faz corresponder as coisas que nascem entre as mãos dos homens com os tesouros enterrados desde a criação do mundo.

As marcas da similitude, porque guiam o conhecimento, endereçam-se à perfeição do céu; os signos da troca, porque satisfazem o desejo, apóiam-se na cintilação negra, perigosa e maldita do metal. Cintilação equívoca, pois reproduz no fundo da terra aquela que rutila na extremidade da noite: aí reside como uma promessa invertida da felicidade, e, porque o metal se assemelha aos astros, o saber de todos esses perigosos tesouros é ao mesmo tempo o saber do mundo. E a reflexão sobre as riquezas propende assim para a grande especulação sobre o cosmos, assim como, inversamente, o profundo conhecimento da ordem do mundo deve conduzir ao segredo dos metais e à posse das riquezas.

Vê-se a densa rede de necessidades que, no século XVI, liga os elementos do saber:

  • de que modo a cosmologia dos signos duplica e funda finalmente a reflexão sobre os preços e a moeda,
  • de que modo ela autoriza também uma especulação teórica e prática sobre os metais,
  • de que modo estabelece uma comunicação entre as promessas do desejo e as do conhecimento, da mesma forma como se respondem e se aproximam por secretas afinidades os metais e os astros.

Nos confins do saber, lá onde ele se faz todo-poderoso e quase divino, três grandes funções se juntam:

  • as do Basileús,
  • do Philósophos
  • e do Metallikós.

Mas, assim como esse saber só é dado por fragmentos e na fulguração atenta da divinatio, assim também, no que se refere às relações singulares e parciais entre as coisas e o metal, o desejo e os preços, o conhecimento divino ou o que se poderia adquirir “de algum observatório elevado” não é dado ao homem. Salvo por instantes e como que por sorte, aos espíritos que sabem espreitar: isto é, os mercadores.

O que os adivinhos eram no jogo indefinido das semelhanças e dos signos, os mercadores o são no jogo, também este sempre aberto, das trocas e das moedas.

“Aqui embaixo descobrimos com dificuldade as poucas coisas que nos cercam e lhes damos um preço conforme percebemos sua maior ou menor procura em cada lugar e em cada tempo. Quanto a isso os mercadores estão prontamente e muito bem advertidos, e é por isso que conhecem admiravelmente o preço das coisas.”(10)

I. Análise das riquezas

Capítulo VI - Trocar; tópico I. Análise das riquezas

  • Nem vida,
  • nem ciência da vida 

na época clássica;

  • tampouco filologia.

Mas sim

  • uma história natural,
  • uma gramática geral.

Do mesmo modo, não há

  • economia política

porque, na ordem do saber, [na época clássica]

  • a produção não existe. 

Em contrapartida, existe, nos séculos XVII e XVIII, uma noção que nos permaneceu familiar, embora tenha perdido para nós sua precisão essencial.

Nem é de “noção” que se deveria falar a seu respeito, pois não tem lugar no interior de um jogo de conceitos econômicos que ela deslocaria levemente, confiscando um pouco de seu sentido ou corroendo sua extensão.

Trata-se antes de um domínio geral: de uma camada bastante coerente e muito bem estratificada, que compreende e aloja, como tantos objetos parciais, as noções

  • de valor,
  • de preço,
  • de comércio,
  • de circulação,
  • de renda,
  • de interesse.

Esse domínio, solo e objeto da “economia” na idade clássica, é o da riqueza.

Inútil colocar-lhe questões vindas de uma economia de tipo diferente, organizada, por exemplo, em torno da produção ou do trabalho; 

inútil igualmente analisar seus diversos conceitos (mesmo e sobretudo se seus nomes em seguida se perpetuaram, com alguma analogia de sentido), sem levar em conta o sistema em que assumem sua positividade.

Isso equivaleria a

  • analisar o gênero segundo Lineu fora do domínio da história natural,
  • ou a teoria dos tempos de Bauzée sem levar em conta o fato de que a gramática geral era sua condição histórica de possibilidade.

É necessário, pois, evitar uma leitura retrospectiva que só conferiria à análise clássica das riquezas a unidade ulterior de uma economia política em via de se constituir às apalpadelas.

É deste modo, entretanto, que os historiadores das ideias têm costume de restituir o nascimento enigmático desse saber que, no pensamento ocidental, teria surgido todo armado e já perigoso na época de Ricardo e de J.-B. Say.

Supõem eles que uma economia científica se tornara durante muito tempo impossível 

graças a uma problemática puramente moral do lucro e da renda (teoria do preço justo, justificação ou condenação do interesse)

e, em seguida, por causa de uma confusão sistemática 

    • entre moeda e riqueza, 
    • valor e preço de mercado: 

dessa assimilação, o mercantilismo teria sido um dos principais responsáveis e a mais destacada manifestação.

Mas, pouco a pouco, o século XVIII teria assegurado as distinções essenciais e discernido alguns dos grandes problemas que a economia positiva, em seguida, não cessaria de tratar com instrumentos mais bem adaptados:

1. a moeda teria assim descoberto seu caráter convencional, ainda que não-arbitrário (e isso através da longa discussão entre os metalistas e os antimetalistas:

    • entre os primeiros, contar-se-iam Child, Petty, Locke, Cantillon, Galiani;
    • entre os outros, Barbon, Boisguillebert e sobretudo Law, depois, mais discretamente, após o desastre de 1720, Montesquieu e Melon);

2. ter-se-ia também começado – e isto é a obra de Cantillon – a distinguir, uma da outra, 

  • a teoria do preço de troca 
  • e a do valor intrínseco;

3. ter-se-ia discernido o grande “paradoxo do valor”, opondo à inútil carestia do diamante a barateza dessa água sem a qual não podemos viver (com efeito, é possível encontrar esse problema rigorosamente formulado por Galiani);

4. ter-se-ia começado, prefigurando assim Jevons e Menger, a vincular o valor a uma teoria geral da utilidade (que é esboçada em Galiani, em Graslin, em Turgot);

5. ter-se-ia compreendido a importância dos preços altos para o desenvolvimento do comércio (é o “princípio de Becher” retomado na França por Boisguillebert e por Quesnay);

6. enfim – e eis os fisiocratas – ter-se-ia encetado a análise do mecanismo da produção.

E assim, peça por peça, pedaço por pedaço, a economia política teria silenciosamente estabelecido seus temas essenciais, até o momento em que, retomando num outro sentido a análise da produção,

  • Adam Smith teria trazido à luz o processo da divisão crescente do trabalho,
  • Ricardo, o papel desempenhado pelo capital,
  • J.-B. Say, algumas das leis fundamentais da economia de mercado.

Desde então, a economia política teria começado a existir com seu objeto próprio e sua coerência interior. Na realidade, os conceitos 

  • de moeda,
  • de preço,
  • de valor,
  • de circulação,
  • de mercado

não foram pensados nos séculos XVII e XVIII a partir de um futuro que os esperava na sombra, mas, sim, sobre o solo de uma disposição epistemológica rigorosa e geral.

É essa disposição que sustenta, na sua necessidade de conjunto, a “análise das riquezas”.

Esta está para a economia política como a gramática geral para a filologia, como a história natural para a biologia.

E, assim como não se pode compreender

  • a teoria do verbo e do nome,
  • a análise da linguagem de ação,
  • a das raízes e de sua derivação,
    • sem se referir, através da gramática geral, a essa rede arqueológica que as torna possíveis e necessárias,

assim como não se pode compreender, sem demarcar o domínio da história natural, o que foram

  • a descrição,
  • a caracterização e a taxinomia clássicas,
  • tanto quanto a oposição entre
    • sistema e método, 
    • ou “fixismo” e “evolução”,

assim também não seria possível encontrar o liame de necessidade que enlaça

  • a análise da moeda,
  • dos preços,
  • do valor,
  • do comércio,

se não se trouxesse à luz esse domínio das riquezas que é o lugar de sua simultaneidade.

Sem dúvida, a análise das riquezas não se constituiu segundo os mesmos meandros nem ao mesmo ritmo que a gramática geral ou que a história natural.

É que a reflexão sobre a moeda, o comércio e as trocas está ligada a uma prática e a instituições.

Mas, se for possível opor a prática à especulação pura, ambas, de todo modo, repousam sobre um único e mesmo saber fundamental.

Uma reforma da moeda, um uso bancário, uma prática comercial podem bem se racionalizar, se desenvolver, se manter ou desaparecer segundo formas próprias; mas estão sempre fundados sobre certo saber: saber obscuro que não se manifesta por si mesmo num discurso, mas cujas necessidades são igualmente as mesmas para as teorias abstratas ou as especulações sem relação aparente com a realidade.

Numa cultura e num dado momento, nunca há mais que uma epistémê, que define as condições de possibilidade de todo saber. 

Tanto aquele que se manifesta numa teoria quanto aquele que é silenciosamente investido numa prática.

A reforma monetária prescrita pelos Estados Gerais de 1575, as medidas mercantilistas ou a experiência de Law e sua liquidação têm o mesmo suporte arqueológico que as teorias de Davanzatti, de Bouteroue, de Petty ou de Cantillon.

E são essas necessidades fundamentais do saber que é preciso fazer falar.

VI. As sínteses objetivas

Capítulo VII - Os limites da representação; tópico VI. As sínteses objetivas

 Daí uma série quase infinita de consequências. De consequências, em todo o caso, ilimitadas, já que o nosso pensamento hoje pertence ainda à sua dinastia. 

Em primeiro plano, é preciso, sem dúvida, colocar a emergência simultânea de um tema transcendental e de campos empíricos novos – ou pelo menos distribuídos e fundados de maneira nova.

Viu-se como, no século XVII, o aparecimento da máthêsis como ciência geral da ordem não só tivera um papel fundador nas disciplinas matemáticas como também fora correlativo da formação de domínios diversos e puramente empíricos como a gramática geral, a história natural e a análise das riquezas; estes não foram construídos segundo um “modelo” que lhes teria prescrito a matematização ou a mecanização da natureza; constituíram-se e dispuseram-se sobre o fundo de uma possibilidade geral: aquela que permitia estabelecer entre as representações um quadro ordenado das identidades e das diferenças. 

É a dissolução, nos últimos anos do século XVIII, desse campo homogêneo de representações ordenáveis, que faz aparecer, correlativamente, duas formas novas de pensamentos. 

Uma interroga as condições de uma relação entre as representações do lado do que as torna em geral possíveis: põe assim a descoberto um campo transcendental onde 

  • o sujeito, 

que jamais é dado à experiência (pois não é empírico),
mas que é infinito (pois não tem intuição intelectual), 

  • determina na sua relação com um objeto = x todas as condições formais da experiência em geral; 

é a análise do sujeito transcendental que extrai o fundamento de uma síntese possível entre as representações. 

Em face dessa abertura para o transcendental, e simetricamente a ela, uma outra forma de pensamento interroga as condições de uma relação entre as representações do lado do ser mesmo que aí se acha representado: 

o que, no horizonte de todas as representações atuais, se indica por si mesmo como o fundamento da unidade delas são esses objetos jamais objetiváveis, essas representações jamais inteiramente representáveis, essas visibilidades ao mesmo tempo manifestas e invisíveis, essas realidades que estão em recuo na medida mesma em que são fundadoras daquilo que se oferece e se adianta até nós: 

  • a potência de trabalho, 
  • a força da vida, 
  • o poder de falar. 

É a partir dessas formas que rondam nos limites exteriores de nossa experiência 

  • que o valor das coisas, 
  • a organização dos seres vivos, 
  • a estrutura gramatical e a afinidade histórica das línguas 

vêm até nossas representações e solicitam de nós a tarefa talvez infinita do conhecimento. 

Buscam-se assim 

  • as condições de possibilidade da experiência 
  • nas condições de possibilidade do objeto e de sua existência, 

ao passo que, na reflexão transcendental, 

  • identificam-se as condições de possibilidade dos objetos da experiência 
  • às condições de possibilidade da própria experiência. 

A positividade nova das ciências da vida, da linguagem e da economia está em correspondência com a instauração de uma filosofia transcendental. 

O trabalho, a vida e a linguagem aparecem como tantos “transcendentais”, que tornam possível o conhecimento objetivo dos seres vivos, das leis da produção, das formas da linguagem. 

Em seu ser, estão fora do conhecimento, mas são, por isso mesmo, condições de conhecimentos; correspondem à descoberta, por Kant, de um campo transcendental e, no entanto, dele diferem em dois pontos essenciais: 

  • alojam-se do lado do objeto e, de certo modo, além dele; como a Ideia na Dialética transcendental, totalizam os fenômenos e dizem a coerência a priori das multiplicidades empíricas; 
  • fundam-nas, porém, num ser cuja realidade enigmática constitui, antes de todo conhecimento, a ordem e o liame daquilo que se presta a conhecer; 
  • ademais, eles concernem
    • ao domínio das verdades a posteriori e aos princípios de sua síntese – 
    • e não à síntese a priori de toda experiência possível. 

A primeira diferença (o fato de estarem os transcendentais alojados do lado do objeto) explica o nascimento dessas metafisicas que, apesar de sua cronologia pós-kantiana, aparecem como “pré-críticas”: 

com efeito, elas se desviam da análise das condições do conhecimento tais como se podem desvelar no nível da subjetividade transcendental; mas essas metafisicas se desenvolvem a partir de transcendentais objetivos (a Palavra de Deus, a Vontade, a Vida), que só são possíveis na medida em que o domínio da representação se acha previamente limitado; elas têm, portanto, o mesmo solo arqueológico que a própria Crítica. 

A segunda diferença (o fato de que esses transcendentais concernem às sínteses a posteriori) explica o aparecimento de um “positivismo”: 

é dada à experiência toda uma camada de fenômenos cuja racionalidade e cujo encadeamento repousam sobre um fundamento objetivo que não é possível trazer à luz; podem-se conhecer não as substâncias, mas os fenômenos; não as essências, mas as leis; não os seres, mas suas regularidades.

Instaura-se assim, a partir da crítica – ou, antes, a partir desse desnível do ser em relação à representação, de que o kantismo é a primeira constatação filosófica – uma correlação fundamental: 

  • de um lado, metafisicas do objeto, mais exatamente, metafisicas desse fundo jamais objetivável donde vêm os objetos ao nosso conhecimento superficial; 
  • e, do outro, filosofias que se dão por tarefa unicamente a observação daquilo mesmo que é dado a um conhecimento positivo. 

Vê-se de que modo os dois termos dessa oposição se dão apoio e se reforçam um ao outro; 

  • é no tesouro dos conhecimentos positivos (e sobretudo daqueles que a biologia, a economia ou a filologia podem liberar) 
  • que as metafisicas dos “fundos” ou dos “transcendentais” objetivos encontrarão seu ponto de investida; 

e, inversamente, 

  • é na divisão entre o fundo incognoscível e a racionalidade do cognoscível 
  • que os positivismos encontrarão sua justificação. 

O triângulo crítica-positivismo-metafisica do objeto é constitutivo do pensamento europeu desde o começo do século XIX até Bergson. 

Uma tal organização está ligada, na sua possibilidade arqueológica, à emergência desses campos empíricos de que, doravante, a pura e simples análise interna da representação não pode mais explicar. 

Ela é, portanto, correlativa de um certo número de disposições próprias à epistémê moderna. Antes de mais, vem à luz um tema que até então permanecera informulado, e, a bem dizer, inexistente. 

Pode parecer estranho que na época clássica não se tenha tentado matematizar as ciências de observação, ou os conhecimentos gramaticais, ou a experiência econômica. Como se a matematização galileana da natureza e o fundamento da mecânica fossem por si sós suficientes para cumprir o projeto de uma máthêsis. 

Não há nisso nada de paradoxal: a análise das representações segundo suas identidades e suas diferenças, sua ordenação em quadros permanentes situavam, de pleno direito, as ciências do qualitativo no campo de uma máthêsis universal. 

No fim do século XVIII, produz-se uma divisão fundamental e nova: 

  • agora que o liame das representações já não se estabelece no movimento mesmo que as decompõe, 
  • as disciplinas analíticas acham-se epistemologicamente distintas daquelas que devem recorrer à síntese. 

Ter-se-á, pois, 

  • um campo de ciências a priori, de ciências formais e puras, de ciências dedutivas que são da alçada da lógica e das matemáticas: 
  • por outro lado, vê-se destacar um domínio de ciências a posteriori, de ciências empíricas que só utilizam as formas dedutivas por fragmentos e em regiões estreitamente localizadas. 

Ora, essa divisão tem por consequência a preocupação epistemológica de reencontrar em outro nível a unidade que se perdera com a dissociação da máthêsis e da ciência universal da ordem. 

Daí certo número de esforços que caracterizam a reflexão moderna sobre as ciências: 

  • a classificação dos domínios do saber a partir das matemáticas, e a hierarquia que se instaura para se dirigir progressivamente ao mais complexo e ao menos exato; 
  • a reflexão sobre os métodos empíricos da indução e o esforço para, ao mesmo tempo,
    • fundá-los filosoficamente
    • e justificá-los de um ponto de vista formal; 
  • a tentativa para purificar, formalizar e talvez matematizar os domínios da economia, da biologia e finalmente da própria linguística. 

Contrapondo-se a essas tentativas para reconstituir um campo epistemológico unitário, encontra-se, em intervalos regulares, a afirmação de uma impossibilidade: 

esta seria devida 

  • quer a uma especificidade irredutível da vida (que se tenta cingir sobretudo no começo do século XIX), 
  • quer ao caráter singular das ciências humanas que resistiriam a toda redução metodológica (resistência essa que se tenta definir e medir sobretudo na segunda metade do século XIX). 

Sem dúvida, nessa dupla afirmação,
alternada ou simultânea,
de poder e de não poder
formalizar o empírico,
é preciso reconhecer o traço
desse acontecimento profundo que,
por volta do fim do século XVIII,
apartou do espaço das representações
a possibilidade da síntese. 

É esse acontecimento que coloca a formalização, ou a matematização, no cerne de todo projeto científico moderno; é ele igualmente que explica por que toda matematização apressada ou toda formalização ingênua do empírico torna a feição de um dogmatismo “pré-crítico”, e ressoa no pensamento como um retomo à insipidez da Ideologia. 

Seria preciso evocar ainda um segundo caráter da epistémê moderna. 

Durante a idade clássica, a relação constante e fundamental do saber, mesmo empírico, com uma máthêsis universal, justificava o projeto, incessantemente retomado sob formas diversas, de um corpus enfim unificado dos conhecimentos; esse projeto tomou alternativamente, mas sem que seu fundamento tenha sido modificado, a feição 

  • quer de uma ciência geral do movimento, 
  • quer de uma característica universal, 
  • quer de uma língua refletida e reconstituída em todos os seus valores de análise e em todas as suas possibilidades de sintaxe, 
  • quer, finalmente, de uma Enciclopédia alfabética ou analítica do saber; 

pouco importa que essas tentativas não tenham sido levadas a cabo ou que não tenham cumprido inteiramente o desígnio que as fizera nascer: manifestavam todas, na superfície visível dos acontecimentos ou dos textos, a profunda unidade que a idade clássica instaurara ao dar como suporte arqueológico ao saber a análise das identidades e das diferenças e a possibilidade universal da ordenação. 

De sorte que Descartes, Leibniz, Diderot e D’Alembert, naquilo que se pode chamar seu fracasso, em sua obra suspensa ou desviada, permaneciam o mais próximo possível do que era constitutivo do pensamento clássico. 

A partir do século XIX, a unidade da máthêsis é rompida.

 Duas vezes rompida: 

  • por um lado, segundo a linha que divide as formas puras da análise e as leis da síntese, 
  • por outro lado, segundo a linha que separa, quando se trata de fundar as sínteses,
    • a subjetividade transcendental
    • e o modo de ser dos objetos.

 Essas duas formas de ruptura fazem nascer duas séries de tentativas em que certo intuito de universalidade parece fazer eco aos empreendimentos cartesiano e leibniziano.

Porém, observando-se um pouco mais de perto, a unificação do campo do conhecimento não tem e não pode ter, no século XIX, nem as mesmas formas, nem as mesmas pretensões, nem os mesmos fundamentos que na época clássica. 

Na época de Descartes ou de Leibniz, a transparência recíproca entre o saber e a filosofia era total, a ponto de a universalização do saber num pensamento filosófico não exigir um modo de reflexão específica. 

A partir de Kant, o problema é inteiramente diverso; o saber não pode mais desenvolver-se sobre o fundo unificado e unificador de uma máthêsis. 

Por um lado, coloca-se o problema das relações entre o campo formal e o campo transcendental (e nesse nível todos os conteúdos empíricos do saber são postos entre parênteses e permanecem em suspenso no que diz respeito a toda validade); 

e, por outro lado, coloca-se o problema das relações entre o domínio da empiricidade e o fundamento transcendental do conhecimento (então, a ordem pura do formal é posta de lado como não-pertinente para explicar essa região onde se funda toda experiência, mesmo aquela das formas puras do pensamento). 

Mas, num caso como noutro, o pensamento filosófico da universalidade não está no mesmo nível que o campo do saber real; constitui-se, 

  • quer como uma reflexão pura suscetível de fundar, 
  • quer como uma retomada capaz de desvelar: 

A primeira forma de filosofia manifestou-se de início no empreendimento fichtiano em que a totalidade do domínio transcendental é geneticamente deduzida das leis puras, universais e vazias do pensamento: por aí se abriu um campo de pesquisas por onde se tenta, 

  • quer reduzir toda reflexão transcendental à análise dos formalismos, 
  • quer descobrir na subjetividade transcendental o solo de possibilidade de todo formalismo. 

Quanto à outra abertura filosófica, apareceu primeiramente com a fenomenologia hegeliana, quando a totalidade do domínio empírico foi retomada no interior de uma consciência que se revela a si própria como espírito, isto é, como campo ao mesmo tempo empírico e transcendental. 

Vê-se de que modo a tarefa fenomenológica, em que Husserl bem mais tarde se fixará, está ligada, no âmago de suas possibilidades e de suas impossibilidades, ao destino da filosofia ocidental tal como ele se estabeleceu desde o século XIX. 

Com efeito, ela tenta assentar os direitos e os limites de uma lógica formal numa reflexão de tipo transcendental e, por outro lado, ligar a subjetividade transcendental ao horizonte implícito dos conteúdos empíricos que só ela tem possibilidade de constituir, manter e abrir mediante explicitações infinitas. 

Mas talvez não escape ela ao perigo que ameaça, antes mesmo da fenomenologia, todo empreendimento dialético, e a faz, queira ou não, resvalar numa antropologia. 

Sem dúvida, não é possível conferir valor transcendental aos conteúdos empíricos nem deslocá-los para o lado de uma subjetividade constituinte, sem dar lugar, ao menos silenciosamente, a uma antropologia, isto é, a um modo de pensamento em que os limites de direito do conhecimento (e, conseqüentemente, de todo saber empírico) são ao mesmo tempo as formas concretas da existência, tais como elas se dão precisamente nesse mesmo saber empírico. 

As conseqüências mais longínquas e, para nós, as mais difíceis de circunscrever, do acontecimento fundamental que sobreveio à epistémê ocidental por volta do fim do século XVllI, podem assim se resumir: 

  • negativamente, o domínio das formas puras do conhecimento se isola, assumindo ao mesmo tempo autonomia e soberania em relação a todo saber empírico, fazendo nascer e renascer indefinidamente o projeto de formalizar o concreto e de constituir, a despeito de tudo, ciências puras; 
  • positivamente, os domínios empíricos se ligam a reflexões sobre a subjetividade, o ser humano e a finitude, assumindo valor e função de filosofia, tanto quanto de redução da filosofia ou de contrafilosofia.

V. Ideologia e crítica

Capítulo VII - Os limites da representação; tópico V. Ideologia e crítica

  • Na gramática geral, 
  • na história natural, 
  • na análise das riquezas, 

produziu-se, pois, nos últimos anos do século XVIII, um acontecimento que, em todas elas, foi do mesmo tipo. 

Os signos de que as representações eram afetadas, 

a análise das identidades e das diferenças que então se podia estabelecer, 

o quadro ao mesmo tempo contínuo e articulado que se instaurava na profusão das similitudes, 

a ordem definida entre as multiplicidades empíricas 

doravante não podem mais se fundar apenas na reduplicação da representação em relação a ela mesma. 

A partir desse acontecimento, 

  • o que valoriza os objetos do desejo não são mais apenas os outros objetos que o desejo pode representar, mas um elemento irredutível a essa representação: o trabalho; 
  • o que permite caracterizar um ser natural não são mais os elementos que se podem analisar sobre as representações que dele e de outros se fazem, mas certa relação interior a esse ser e a que se chama sua organização; 
  • o que permite definir uma língua não é a maneira como ela representa as representações, mas certa arquitetura interna, certa maneira de modificar as próprias palavras segundo a postura gramatical que ocupam umas em relação às outras: é seu sistema flexional. 

Em todos os casos, 

  • a relação da representação consigo mesma 
  • e as relações de ordem que ela permite determinar fora de toda medida quantitativa 

passam agora por condições exteriores à própria representação na sua atualidade. 

Para ligar a representação de um sentido com a de uma palavra, cumpre referir-se e recorrer às leis puramente gramaticais de uma linguagem que, fora de todo poder de representar as representações, está submetida ao sistema rigoroso de suas modificações fonéticas e de suas subordinações sintéticas; 

  • na idade clássica, as línguas tinham uma gramática porque tinham poder de representar; 
  • agora representam a partir dessa gramática, que é para elas como que
    • um reverso histórico, 
    • um volume interior e necessário 
  • cujos valores representativos não constituem mais que a face externa, cintilante e visível.

Para ligar num caráter definido

  • uma estrutura parcial 
  • e a visibilidade de conjunto de um ser vivo, 

é preciso agora referir-se às leis puramente biológicas que, fora de todas as marcas sinaléticas, está como que em recuo em relação a elas, organizam as relações entre funções e órgãos; 

  • os seres vivos não mais definem suas semelhanças, suas afinidades e suas famílias a partir de sua descritibilidade desdobrada; 
  • possuem caracteres que a linguagem pode percorrer e definir, porque têm uma estrutura que é como o reverso sombrio, volumoso e interior de sua visibilidade:
    • é na superfície clara e discursiva dessa massa secreta mas soberana que os caracteres emergem, espécie de depósito exterior à periferia de organismos agora enrolados sobre si mesmos. 

Enfim, quando se trata de ligar 

  • a representação de um objeto de necessidade 
  • a todos aqueles que podem figurar em face dele no ato de troca, 

é preciso recorrer 

  • à forma 
  • e à quantidade 

de um trabalho que lhe determinam o valor; 

  • o que hierarquiza as coisas nos movimentos contínuos do mercado não são os outros objetos nem as outras necessidades; 
  • é a atividade que as produziu e que, silenciosamente, nelas se depositou; 
  • são as jornadas e as horas necessárias para fabricá-Ias, para extraí-Ias ou transportá-Ias que constituem seu peso próprio, sua solidez mercantil, sua lei interior e, por conseguinte, o que se pode chamar seu preço real; 

a partir desse núcleo essencial, as trocas poderão efetuar-se e os preços de mercado, depois de oscilarem, encontrarão seu ponto fixo.

Esse acontecimento um pouco enigmático, esse acontecimento subterrâneo que, nos fins do século XVIII, se produziu nesses três domínios, submetendo-os num só lance a uma mesma ruptura, pode, pois, agora ser assinalado na unidade que funda suas formas diversas. 

Vê-se quão superficial seria buscar essa unidade do lado de um progresso na racionalidade ou da descoberta de um tema cultural novo. 

Nos últimos anos do século XVIII, 

  • não se introduziram os fenômenos complexos da biologia, ou da história das línguas ou da produção industrial em formas de análise racional a que, até então, elas teriam permanecido estranhas; 
  • tampouco se despertou de súbito o interesse – sob a “influência” de não se sabe que “romantismo” nascente – pelas figuras complexas da vida, da história e da sociedade; 
  • não se desprendeu, sob a instância de seus problemas, de um racionalismo submetido ao modelo da mecânica, às regras da análise e às leis do entendimento. 

Ou, antes, tudo isso se produziu efetivamente, mas como movimento de superfície: 

  • alteração e desvio dos interesses culturais, 
  • redistribuição das opiniões e dos juízos, 
  • aparecimento de novas formas no discurso científico, 
  • rugas traçadas pela primeira vez sobre a face esclarecida do saber. 

De maneira mais fundamental, e naquele nível em que os conhecimentos se enraízam em sua positividade, 

o acontecimento concerne 

  • não aos objetos visados, analisados e explicados no conhecimento, nem mesmo à maneira de os conhecer ou de os racionalizar, 
  • mas à relação da representação para com o que nela é dado. 

O que se produziu com Adam Smith, com os primeiros filólogos, com Jussieu, Vicq d’ Azyr ou Lamarck, foi um desnível ínfimo, mas absolutamente essencial e que abalou todo o pensamento ocidental: 

a representação perdeu o poder de criar, a partir de si mesma, no seu desdobramento próprio e pelo jogo que a reduplica sobre si, os liames que podem unir seus diversos elementos. 

Nenhuma composição, nenhuma decomposição, nenhuma análise em identidades e em diferenças pode mais justificar o liame das representações entre si; a ordem, o quadro onde ela se espacializa, as vizinhanças que ela define, as sucessões que autoriza como tantos percursos possíveis entre os pontos de sua superfície não têm mais o poder de ligar as representações entre si ou, entre si, os elementos de cada uma. 

A condição desses liames reside doravante no exterior da representação, para além de sua imediata visibilidade, numa espécie de mundo subjacente, mais profundo que ela própria e mais espesso. 

Para atingir esse ponto em que se vinculam 

  • as formas visíveis dos seres – a estrutura dos vivos, 
  • o valor das riquezas, 
  • a sintaxe das palavras – 

é preciso dirigir-se para esse cume, para essa extremidade necessária mas jamais acessível que se entranha fora do nosso olhar, no coração mesmo das coisas. 

Retiradas em direção à sua essência própria, habitando enfim na força que as anima, na organização que as mantém, na gênese que não cessou de produzi-Ias, as coisas escapam, na sua verdade fundamental, ao espaço do quadro; 

  • em vez de serem unicamente a constância que distribui segundo as mesmas formas as suas representações, 
  • elas se enrolam sobre si mesmas, 
  • dão-se um volume próprio, 
  • definem para si um espaço interno que, para nossa representação, está no exterior: 

É a partir da arquitetura
que escondem,
da coesão que mantém
seu reino soberano e secreto
sobre cada uma de suas partes,
é do fundo dessa força que as faz nascer
e nelas permanece como que imóvel
mas ainda vibrante,
que as coisas,
por fragmentos, perfis, pedaços, retalhos,
vêm oferecer-se
bem parcialmente
à representação. 
Desta sua inacessível reserva
ela só destaca, peça por peça,
tênues elementos
cuja Unidade
permanece travada
sempre aquém. 

O espaço de ordem 

  • que servia de lugar-comum à representação e às coisas, 
  • à visibilidade empírica e às regras essenciais, 
  • que unia as regularidades da natureza e as semelhanças da imaginação no quadriculado das identidades e das diferenças, 
  • que expunha a sequência empírica das representações num quadro simultâneo e permitia percorrer, passo a passo, segundo uma seqüência lógica, o conjunto dos elementos da natureza tornados contemporâneos deles próprios

 – esse espaço de ordem vai doravante ser rompido: 

  • haverá coisas, com sua organização própria, suas secretas nervuras, o espaço que as articula, o tempo que as produz; 
  • e, depois, a representação, pura sucessão temporal, em que elas se anunciam sempre parcialmente 
  • a uma subjetividade, a uma consciência, ao esforço singular de um conhecimento,
    • ao indivíduo “psicológico” que, do fundo de sua própria história, ou a partir da tradição que se lhe transmitiu, tenta saber. 

A representação está em via de não mais poder definir o modo de ser comum às coisas e ao conhecimento. O ser mesmo do que é representado vai agora cair fora da própria representação. Essa proposição, entretanto, é imprudente. Antecipa em todo o caso uma disposição do saber que não está ainda definitivamente estabelecida no final do século XVlII. 

Não se deve esquecer que, se Smith, Jussieu e W. Jones se serviram das noções de trabalho, de organização e de sistema gramatical, 

  • não foi para sair do espaço tabular definido pelo pensamento clássico, 
  • não foi para contornar a visibilidade das coisas e escapar ao jogo da representação que representa a si mesma; 
  • foi somente para aí instaurar uma forma de ligação que fosse ao mesmo tempo analisável, constante e fundada.

 Tratava-se sempre de encontrar a ordem geral das identidades e das diferenças. 

O grande desvio que irá buscar, do outro lado da representação, o ser mesmo do que é representado não se realizou ainda; 

somente já está instaurado o lugar a partir do qual ele será possível. 

Esse lugar, porém, figura sempre nas disposições interiores da representação. 

Sem dúvida, a essa configuração epistemológica ambígua corresponde uma dualidade filosófica que indica seu próximo desfecho. 

A coexistência, no final do século XVIII, 

  • da Ideologia 
  • e da filosofia crítica
    • – de Destutt de Tracy e de Kant – 

partilha, sob a forma de dois pensamentos exteriores um ao outro mas simultâneos, o que as reflexões científicas mantêm numa unidade destinada a dissociar-se dentro em breve. 

Em Destutt ou Gerando, a Ideologia se apresenta ao mesmo tempo 

  • como a única forma racional e científica que a filosofia possa revestir 
  • e como o único fundamento filosófico que possa ser proposto às ciências em geral e a cada domínio singular do conhecimento. 

Ciência das idéias, a Ideologia deve ser um conhecimento do mesmo tipo que aqueles que se dão por objeto os seres da natureza, ou as palavras da linguagem, ou as leis da sociedade. 

Mas, na medida mesma em que tem por objeto as idéias, a maneira de exprimi-Ias em palavras e de ligá-Ias em raciocínios, ela vale como a Gramática e a Lógica de toda ciência possível. 

A Ideologia não interroga o fundamento, os limites ou a raiz da representação; percorre o domínio das representações em geral; fixa as sucessões necessárias que aí aparecem; define os liames que aí se travam; manifesta as leis de composição e de decomposição que aí podem reinar. 

Aloja todo saber no espaço das representações e, percorrendo esse espaço, formula o saber das leis que o organiza. 

É, em certo sentido, o saber de todos os saberes. 

Mas essa reduplicação fundadora não a faz sair do campo da representação; tem por finalidade calcar todo saber sobre uma representação de cuja imediatez jamais se escapa: 

“Alguma vez vos apercebestes um pouco do que seja precisamente pensar, do que experimentais quando pensais em qualquer coisa que for?.. Vós vos dizeis: eu penso isto, quando tendes uma opinião, quando formais um juízo. Efetivamente, fazer um juízo verdadeiro ou falso é um ato do pensamento; esse ato consiste em sentir que existe uma ligação, uma relação… Pensar, como vedes, é sempre sentir e não é mais que sentir.”(27) 

É preciso notar entretanto que, 

  • definindo o pensamento de uma relação pela sensação dessa relação ou, mais sucintamente, o pensamento em geral pela sensação, Destutt cobre realmente, sem dele sair, o domínio inteiro da representação; 
  • atinge, porém, a fronteira em que a sensação, como forma primeira, absolutamente simples da representação, como conteúdo mínimo do que pode ser dado ao pensamento, cai na ordem das condições fisiológicas capazes de a explicarem.
    • Aquilo que, lido num sentido, aparece como a mais tênue generalidade do pensamento,
      • aparece, decifrado em outra direção, como o resultado complexo de uma singularidade zoológica: 

“Tem-se apenas um conhecimento incompleto de um animal se não se conhecerem as suas faculdades intelectuais. A ideologia é uma parte da zoologia, e é sobretudo no homem que essa parte é importante e merece ser aprofundada.”(28) 

A análise da representação, no momento em que atinge sua maior extensão, toca, em sua orla mais exterior, um domínio que seria mais ou menos – ou antes, que será, pois não existe ainda – o de uma ciência natural do homem. 

Por muito diferentes que sejam pela sua forma, seu estilo e seu intento, a questão kantiana e a dos Ideólogos têm o mesmo ponto de aplicação: 

  • a relação das representações entre si. 

Mas essa relação – o que a funda e a justifica -, 

  • Kant não a requer ao nível da representação,
    • mesmo atenuada em seu conteúdo até não ser mais, nos confins da passividade e da consciência, do que pura e simples sensação; 
  • interroga-a na direção do que a toma possível em sua generalidade. 

Em vez de fundar o liame entre as representações por uma espécie de escavação interna que o esvaziasse pouco a pouco até a pura impressão,

estabelece-o sobre as condições que definem sua forma universalmente válida. 

Dirigindo assim sua questão, 

  • Kant contorna a representação e o que nela é dado, 
  • para endereçar-se àquilo mesmo a partir do qual toda representação, seja ela qual for, pode ser dada. 

Não são, pois, as próprias representações que, segundo as leis de um jogo que lhes pertenceria propriamente, poderiam desenvolver-se a partir de si e, num só movimento, decompor-se (pela análise) e se recompor (pela síntese): somente juízos de experiência ou constatações empíricas podem fundar-se sobre os conteúdos da representação. 

Qualquer outra ligação, para ser universal, deve fundar-se para além de toda experiência, no a priori que a toma possível. 

Não que se trate de um outro mundo, mas das condições sob as quais pode existir qualquer representação do mundo em geral. 

Há, portanto, uma correspondência certa entre a crítica kantiana e o que, na mesma época, se apresentava como a primeira forma mais ou menos completa de análise ideológica. 

Mas a Ideologia, estendendo sua reflexão sobre todo o campo do conhecimento 

– desde as impressões originárias até a economia política, passando pela lógica, a aritmética, as ciências da natureza e a gramática -, 

tentava retomar na força da representação aquilo mesmo que estava em via de se constituir e de se reconstituir fora dela. 

Essa retomada só podia fazer-se sob a forma quase mítica de uma gênese ao mesmo tempo singular e universal: 

  • uma consciência, isolada, vazia e abstrata 
  • devia, a partir da mais tênue representação, desenvolver pouco a pouco o grande quadro de tudo o que é representável. 

Nesse sentido, 

a Ideologia é a última das filosofias clássicas 

– um pouco como Juliette é a última das narrativas clássicas. 

As cenas e os raciocínios de Sade retomam toda a nova violência do desejo, no desdobramento de uma representação transparente e sem falhas; as análises da Ideologia retomam, na narrativa de um nascimento, todas as formas, até as mais complexas, da representação. 

Em face da Ideologia, a critica kantiana marca, em contra partida, o limiar de nossa modernidade; interroga a representação, 

  • não segundo o movimento indefinido que vai do elemento simples a todas as suas combinações possíveis, 
  • mas a partir de seus limites de direito. 

Sanciona assim, pela primeira vez, este acontecimento da cultura européia que é contemporâneo do fim do século XVIII: 

a retirada do saber e do pensamento para fora do espaço da representação. 

Este é então posto em questão 

  • no seu fundamento, 
  • na sua origem 
  • e nos seus limites: 

por isso mesmo, o campo ilimitado da representação, que o pensamento clássico instaurara, que a Ideologia quisera percorrer num passo a passo discursivo e científico, aparece como uma metafísica. Mas como uma metafísica que jamais se teria delimitado a si mesma, que se teria assentado num dogmatismo desavisado, e jamais fizera vir à plena luz a questão de seu direito. 

Nesse sentido, a Critica ressalta a dimensão metafísica que a filosofia do século XVIII quisera reduzir unicamente pela análise da representação. 

Mas abre, ao mesmo tempo, a possibilidade de uma outra metafisica que teria por propósito interrogar, fora da representação, tudo o que constitui sua fonte e origem; ela permite essas filosofias da Vida, da Vontade, da Palavra, que o século XIX vai desenvolver na esteira da critica.

IV. A flexão das palavras

Capítulo VII - Os limites da representação; tópico IV. A flexão das palavras

Encontra-se a réplica exata desses acontecimentos do lado das análises da linguagem. 

Nisso, porém, têm elas, sem dúvida, uma forma mais discreta e também uma cronologia mais lenta. 

Há para isso uma razão fácil de descobrir; 

é que, durante toda a idade clássica, a linguagem foi posta e refletida como discurso, isto é, como análise espontânea da representação. 

De todas as formas de ordem não-quantitativa, era a mais imediata, a menos preparada, a mais profundamente ligada ao movimento próprio da representação. 

E, nessa medida, estava mais bem enraizada nela e no seu modo de ser do que estas ordens refletidas – sábias ou interessadas – que fundavam 

  • a classificação dos seres 
  • ou a troca das riquezas.

 Modificações técnicas como as que afetaram 

  • a medida dos valores de troca 
  • ou os procedimentos da caracterização 

bastaram para alterar consideravelmente a análise das riquezas ou a história natural. 

Para que a ciência da linguagem sofresse modificações tão importantes, foram necessários acontecimentos mais profundos, capazes de mudar, na cultura ocidental, até o ser mesmo das representações. 

Assim como a teoria do nome, nos séculos XVII e XVIII, 

se alojava o mais perto possível da representação e com isso comandava, até certo ponto,

a análise das estruturas e do caráter nos seres vivos, 

a do preço e do valor nas riquezas, 

assim também, no fim da idade clássica, 

é ela que subsiste mais tempo, só se desfazendo tardiamente no momento em que a própria representação se modifica ao nível mais profundo de seu regime arqueológico. 

Até o começo do século XIX, as análises da linguagem só manifestam ainda poucas mudanças. As palavras são sempre interrogadas a partir de seus valores representativos, como elementos virtuais do discurso que lhes prescreve a todas um mesmo modo de ser. 

No entanto, esses conteúdos representativos já não são analisados somente na dimensão que a aproxima de uma origem absoluta, seja ela mítica ou não. 

Na gramática geral sob sua forma mais pura, 

  • todas as palavras de uma língua eram portadoras de uma significação mais ou menos oculta, mais ou menos derivada, 
  • mas cuja primitiva razão de ser residia numa designação inicial. 

Toda língua, por mais complexa que fosse, achava-se situada na abertura, disposta de uma vez por todas, pelos gritos arcaicos. 

As semelhanças laterais com as outras línguas – sonoridades vizinhas recobrindo significações análogas – só eram observadas e coligidas para confirmar a relação vertical de cada uma com esses valores profundos, encobertos, quase mudos. 

No último quartel do século XVIII a comparação horizontal entre as línguas adquire outra função: 

  • não mais permite saber o que cada uma pode comportar de memória ancestral, que marcas de antes de BabeI estão depositadas na sonoridade de suas palavras; 
  • deve permitir, porém, medir até que ponto elas se assemelham, qual a densidade de suas similitudes, em que limites são transparentes uma à outra. 

Daí essas grandes confrontações de línguas diversas que se vê surgirem no fim do século – e por vezes sob a pressão de motivos políticos, como as tentativas feitas na Rússia(20) para estabelecer um levantamento das línguas do Império; 

em 1787, aparece em Petrogrado o primeiro volume do Glossarium comparatiuum totius orbis; 

ele contém referência a 279 línguas:
171 para a Ásia,
55 para a Europa,
30 para a África,
23 para a América(21). 

Essas comparações fazem-se ainda exclusivamente a partir e em função dos conteúdos representativos; 

  • confronta-se um mesmo núcleo de significação – que serve de invariante – com as palavras pelas quais as diversas línguas podem designá-Io (Adelung(22) dá 500 versões do pater em línguas e dialetos diferentes); 
  • ou então, escolhendo uma raiz como elemento constante através de formas ligeiramente variadas, determina-se o leque dos sentidos que ela pode assumir (são os primeiros ensaios de lexicografia, como a de Buthet de La Sarthe). 

Todas essas análises remetem sempre a dois princípios que eram já os da gramática geral: 

  • o de uma língua primitiva e comum que teria fornecido o lote inicial das raízes, 
  • e o de uma série de acontecimentos históricos, estranhos à linguagem e que, do exterior, a vergam, gastam-na, apuram-na, agilizam-na, multiplicam ou misturam suas formas (invasões, migrações, progressos dos conhecimentos, liberdade ou escravidão política etc.). 

Ora, a confrontação das línguas, no fim do século XVIII, traz à luz uma figura intermediária entre a articulação dos conteúdos e o valor das raÍzes: trata-se da flexão.

Certamente, os gramáticos conheciam desde muito tempo os fenômenos flexionais (assim como, em história natural, conhecia-se o conceito de organização antes de PalIas ou Lamarck; e, em economia, o conceito de trabalho antes de Adam Smith); 

mas as flexões só eram analisadas por seu valor representativo – quer fossem consideradas como representações anexas, quer se visse nelas uma forma de ligar entre si as representações (alguma coisa como uma outra ordem das palavras). 

Mas, quando se faz, como Coeurdoux(23) e William Jones(24) a comparação entre as diferentes formas do verbo ser em sânscrito e em latim ou em grego, descobre-se uma relação de constância que é inversa àquela que se admitia correntemente: a raiz é que é alterada e as flexões é que são análogas. 

A série sânscrita asmi, asi, asti, smas, stha, santi, corresponde exatamente, mas por analogia flexional, à série latina sum, es, est, sumus, estis, sunt. 

Sem dúvida, Coeurdoux e Anquetil-Duperron permaneciam ao nível das análises da gramática geral quando o primeiro via nesse paralelismo os restos de uma língua primitiva; e o segundo, o resultado da mistura histórica que se teria feito entre hindus e mediterrâneos na época do reino de Bactriana. 

Mas o que estava em jogo nessa conjugação comparada 

  • já não era mais o liame entre sílaba primitiva e sentido primeiro,
    • era uma relação mais complexa entre as modificações do radical e as funções da gramática; 
  • descobria-se que em duas línguas diferentes havia uma relação constante entre uma série determinada de alterações formais e uma série igualmente determinada de funções gramaticais, de valores sintáticos ou de modificações sem sentido. 

Por isso mesmo, a gramática geral começa a mudar de configuração: 

  • seus diversos segmentos teóricos não mais se encadeiam totalmente do mesmo modo uns nos outros; 
  • e a rede que os une desenha um percurso já ligeiramente diferente. 

Na época de Bauzée ou de Condillac, 

  • a relação entre as raízes de forma tão hábil e o sentido determinado nas representações, 
  • ou ainda o liame entre o poder de designar e o de articular, 

era assegurado pela soberania do Nome. 

Agora um novo elemento intervém: 

  • do lado do sentido ou da representação, ele indica apenas um valor acessório, necessariamente secundário (trata-se do papel de sujeito ou de complemento desempenhado pelo indivíduo ou pela coisa designada; trata-se do tempo da ação); 
  • mas, do lado da forma, ele constitui o conjunto sólido, constante, inalterável ou quase, cuja lei soberana se impõe às raízes representativas até modificar elas próprias. 

Mais ainda, esse elemento, secundário pelo valor significativo, primeiro pela consciência formal, não é, ele próprio, uma sílaba isolada, como uma espécie de raiz constante; é um sistema de modificações cujos segmentos diversos são solidários uns aos outros: a letra s não significa a segunda pessoa, como a letra e significava, segundo Court de Gébelin, a respiração, a vida e a existência; é o conjunto das modificações m, s, t, que dá à raiz verbal os valores da primeira, segunda e terceira pessoa. 

Essa nova análise, até o fim do século XVIII, se aloja na busca dos valores representativos da linguagem. 

É ainda do discurso que se trata. Já aparece porém, através do sistema das flexões, a dimensão do gramatical puro: 

  • a linguagem não é mais constituída somente de representações e de sons que, por sua vez, as representam e se ordenam entre si como o exigem os liames do pensamento; 
  • é, ademais, constituída de elementos formais, agrupados em sistema, e que impõem aos sons, às sílabas, às raízes, um regime que não é o da representação. 

Introduz-se assim na análise da linguagem um elemento que lhe é irredutível (como se introduz o trabalho na análise da troca ou a organização na dos caracteres). 

A título de consequência primeira, pode-se notar o aparecimento, no fim do século XVIII, de uma fonética que não é mais busca dos primeiros valores expressivos, mas análise dos sons, de suas relações e de sua transformação possível uns nos outros; Helwag, em 1781, define o triângulo vocálico(25). 

Pode-se notar também o aparecimento dos primeiros esboços de gramática comparada; 

  • não se toma mais como objeto de comparação nas diversas línguas o par formado por um grupo de letras e por um sentido, 
  • mas conjuntos de modificações de valor gramatical (conjugações, declinações e afixações). 

As línguas são confrontadas não mais por aquilo que as palavras designam, mas pelo que as liga umas às outras; elas vão agora comunicar-se, 

  • não por intermédio desse pensamento anônimo e geral que devem representar, 
  • mas diretamente, uma com a outra, graças a esses finos instrumentos de aparência tão frágil, mas tão constantes, tão irredutíveis, que dispõem as palavras umas em relação às outras. 

Como dizia Monboddo: 

“Sendo o mecanismo das línguas menos arbitrário e mais bem regulado que a pronúncia das palavras, aí encontramos um excelente critério para determinar a afinidade das línguas entre si. É por isso que, quando vemos duas línguas empregarem da mesma forma esses grandes procedimentos da linguagem, a derivação, a composição, a inflexão, podemos disso concluir que uma deriva da outra ou que são, ambas, dialetos de uma mesma língua primitiva.”(26) 

Enquanto a língua fora definida como discurso, não podia ter outra história senão a de suas representações: se as idéias, as coisas, os conhecimentos, os sentimentos, porventura mudavam, então e somente então a língua se modificava e na exata proporção de suas mudanças. 

Doravante, porém, há um “mecanismo” interior das línguas que determina 

  • não só a individualidade de cada uma, 
  • mas também suas semelhanças com as outras: 
  • é ele que, portador de 
    • identidade e de diferença, 
    • signo de vizinhança, 
    • marca do parentesco, 
  • vai tornar-se suporte da história. 

Por ele, a historicidade poderá introduzir-se na espessura da própria palavra.

III. A organização dos seres

Capítulo VII - Os limites da representação; tópico III. A organização dos seres

No domínio da história natural, as modificações que se podem constatar entre os anos 1775 e 1795 são do mesmo tipo.

Não se repõe em questão o que está no princípio das classificações: 

  • estas têm sempre por finalidade determinar o “caráter”
    • que agrupa os indivíduos e as espécies em unidades gerais, 
    • que distingue essas unidades umas das outras 
    • e que lhes permite enfim se encaixarem de maneira a formar um quadro em que todos os indivíduos e todos os grupos, conhecidos ou desconhecidos, poderão encontrar seu lugar. 

Esses caracteres são extraídos da representação total dos indivíduos; são sua análise e permitem, representando essas representações, constituir uma ordem; os princípios gerais da taxinomia – aqueles mesmos que orientaram os sistemas de Tournefort e de Lineu, o método de Adanson – continuam a valer do mesmo modo para A.-L. de Jussieu, para Vicq d’Azyr, para Lamarck, para Candolle. 

E, contudo, a técnica que permite estabelecer o caráter, a relação entre estrutura visível e critérios de identidade são modificadas assim como foram modificadas por Adam Smith as relações da necessidade ou do preço. 

Ao longo de todo o século XVIII, os classificadores estabeleceram o caráter pela comparação de estruturas visíveis, isto é, relacionando elementos que eram homogêneos, pois que cada um podia, segundo o princípio ordenador que fosse escolhido, servir para representar todos os outros: 

  • a única diferença residia no fato de que,
    • para os partidários do sistema, os elementos representativos eram fixados desde o início, 
    • e, para os partidários do método, eles se desprendiam pouco a pouco de uma confrontação progressiva. 

Mas a passagem da estrutura descrita para o caráter classificador se fazia inteiramente ao nível das funções representativas que o visível exercia em relação a si mesmo. 

A partir de Jussieu, de Lamarck e de Vicq d’ Azyr, 

  • o caráter, ou antes, a transformação da estrutura em caráter
    • vai basear-se num princípio estranho ao domínio do visível – um princípio interno, irredutível ao jogo recíproco das representações. 

Esse princípio (ao qual corresponde, na ordem da economia, o trabalho) é a organização. 

Como fundamento das taxinomias, a organização aparece de quatro modos diferentes. 

1. Primeiro, sob a forma de uma hierarquia dos caracteres. 

Com efeito, se não se expõem as espécies umas ao lado das outras e na sua maior diversidade, mas se se aceitam, para delimitar imediatamente o campo de investigação, os vastos agrupamentos que a evidência impõe 

  • – como as gramíneas, as compostas, as crucíferas, as leguminosas, para as plantas; 
  • ou, para os animais, os vermes, os peixes, as aves, os quadrúpedes – 

vê-se que certos caracteres são absolutamente constantes e não estão ausentes em nenhum dos gêneros, nenhuma das espécies que se podem aí reconhecer: 

por exemplo, a inserção dos estames, sua situação em relação ao pistilo, a inserção da corola quando ela traz estames, o número de lóbulos que acompanham o embrião na semente. 

Outros caracteres são muito freqüentes numa família, mas não atingem o mesmo grau de constância; 

é que são formados por órgãos menos essenciais (número de pétalas, presença ou ausência da corola, situação respectiva do cálice ou do pistilo): são os caracteres “secundários sub-uniformes”. 

Enfim, os caracteres “terciários semi-uniformes” são ora constantes ora variáveis (estrutura monófila ou polífila do cálice, número de compartimentos no fruto, situação das flores e das folhas, natureza do caule): 

com esses caracteres semi-uniformes não é possível definir famílias ou ordens – não que eles não sejam capazes, se os aplicássemos a todas as espécies, de formar entidades gerais, mas porque não concernem ao que há de essencial num grupo de seres vivos. 

Cada grande família natural tem requisitos que a definem, e os caracteres que permitem reconhecê-Ia são os mais próximos dessas condições fundamentais; assim, sendo a reprodução a função maior da planta, o embrião será sua parte mais importante, e poder-se-ão repartir os vegetais em três classes: acotilédones, monocotilédones e dicotilédones. 

Com base nesses caracteres essenciais e “primários”, os outros poderão aparecer e introduzir distinções mais sutis.

Vê-se que o caráter já não é diretamente extraído da estrutura visível e sem outro critério senão sua presença ou ausência; funda-se na existência de funções essenciais ao ser vivo e nas relações de importância que já não procedem apenas da descrição. 

2. Os caracteres estão, pois, ligados a funções. 

Volta-se, num sentido, à velha teoria das assinalações ou das marcas pelo que se supunha que os seres traziam, no ponto mais visível de sua superfície, o signo do que neles era o mais essencial. 

Aqui, porém, as relações de importância são relações de subordinação funcional. Se o número de cotilédones é decisivo para classificar os vegetais, é porque desempenham um papel determinado na função de reprodução, e porque estão ligados, por isso mesmo, a toda a organização interna da planta; indicam uma função que comanda toda a disposição do indivíduos(8). 

Assim, para os animais, Vicq d’Azyr mostrou que as funções alimentares são, sem dúvida, as mais importantes; é por essa razão que “relações constantes existem entre a estrutura dos dentes dos carnívoros e a de seus músculos, de seus dedos, de suas unhas, de sua língua, de seu estômago, de seus intestinos”(9). 

O caráter não é portanto estabelecido por uma relação do visível consigo próprio; em si mesmo, não é mais do que a saliência visível de uma organização complexa e hierarquizada, em que a função desempenha um papel essencial de comando e de determinação. 

Não é por ser frequente nas estruturas observadas que um caráter é importante; 

é por ser funcionalmente importante que o encontramos com frequência. 

Como observará Cuvier, resumindo a obra dos últimos grandes partidários do método do século, à medida que nos elevamos em direção às classes mais gerais, 

“mais também as propriedades que permanecem comuns são constantes; e, como as relações mais constantes são aquelas que pertencem às partes mais importantes, os caracteres das divisões superiores se acharão extraídos das partes mais importantes… Dessa forma, o método será natural, uma vez que leva em conta a importância dos órgãos”(10). 

3. Nessas condições, compreende-se como pôde a noção de vida tomar-se indispensável à ordenação dos seres naturais.

 Tornou-se indispensável por duas razões: 

  • primeiro, era preciso poder apreender na profundidade do corpo as relações que ligam os órgãos superficiais àqueles cuja existência e forma oculta asseguram as funções essenciais; 

assim, Storr propõe classificar os mamíferos segundo a disposição de seus cascos; é que esta está ligada aos modos de deslocamento e às possibilidades motoras do animal; ora, esses modos, por sua vez, estão em correlação com a forma de alimentação e os diferentes órgãos do sistema digestivo(11). 

  • Ademais, pode ocorrer que os caracteres mais importantes sejam os mais escondidos; 

já na ordem vegetal, pôde-se constatar que não são as flores e os frutos – partes mais visíveis da planta – os elementos significativos, mas o aparelho embrionário e órgãos como os cotilédones. 

Esse fenômeno é mais frequente ainda nos animais. 

Storr pensava ser preciso definir as grandes classes pelas formas da circulação; e Lamarck, que contudo não praticava pessoalmente a dissecação, recusa para os animais inferiores um princípio de classificação que só se fundasse em sua forma visível: 

“A consideração das articulações do corpo e dos membros dos crustáceos fez com que todos os naturalistas os olhassem como verdadeiros insetos, e eu próprio, durante muito tempo, segui a opinião comum a esse respeito. Mas, como é reconhecido que a organização é a mais essencial de todas as considerações para guiar numa distribuição metódica e natural dos animais, assim como para determinar entre eles as verdadeiras relações, resulta daí que os crustáceos, respirando unicamente por brânquias à maneira dos moluscos e, tendo como eles, um coração muscular, devem ser localizados imediatamente após eles, antes dos aracnídeos e dos insetos, que não têm uma semelhante organização.”(12) 

Classificar, portanto,
não será mais
referir o visível a si mesmo,
encarregando um de seus elementos
de representar os outros;
será, num movimento
que faz revolver a análise,
reportar o visível ao invisível,
como à sua razão profunda,
depois alçar de novo
dessa secreta arquitetura
em direção aos seus sinais manifestos,
que são dados à superfície dos corpos. 

Como dizia Pinel, na sua obra de naturalista, 

“atermo-nos aos caracteres exteriores designados pelas nomenclaturas não é fechar para nós mesmos a mais fecunda fonte de instruções e nos recusar, por assim dizer, a abrir o grande livro da natureza que, contudo, nos propomos conhecer?”13. 

Doravante, o caráter reassume seu velho papel de sinal visível despontando em direção a uma profundidade escondida; 

  • mas o que ele indica não é um texto secreto, uma palavra encoberta ou uma semelhança demasiado preciosa para ser exposta; 
  • é o conjunto coerente de uma organização que retoma na trama única de sua soberania tanto o visível como o invisível. 

4. O paralelismo entre classificação e nomenclatura é por isso mesmo rompido. 

Enquanto a classificação consistia numa repartição progressivamente encaixada no espaço visível, era muito concebível que a delimitação e a denominação desses conjuntos pudessem realizar-se paralelamente. 

O problema do nome e o problema do gênero eram isomorfos. 

Mas agora que o caráter não pode mais classificar a não ser referindo-se primeiro à organização dos indivíduos, 

o “distinguir” não se faz mais segundo os mesmos critérios e as mesmas operações que o “denominar”. 

Para encontrar os conjuntos fundamentais que reagrupam os seres naturais, é necessário percorrer esse espaço em profundidade que conduz 

  • dos órgãos superficiais aos mais secretos 
  • e, destes, às grandes funções que eles asseguram.

 Em contrapartida, uma boa nomenclatura continuará a se desdobrar no espaço plano do quadro: 

  • a partir dos caracteres visíveis do indivíduo, 
  • será necessário chegar ao compartimento preciso onde se encontra o nome desse gênero e de sua espécie. 

Há uma distorção fundamental entre o espaço da organização e o da nomenclatura: 
ou, antes,
em vez de se recobrirem exatamente,
são doravante perpendiculares um ao outro; e no seu ponto de junção
encontra-se o caráter manifesto,
que indica, em profundidade, uma função
e permite, na superfície,
encontrar um nome. 

Essa distinção que, em alguns anos, tornará caducas a história natural e a preeminência da taxinomia, é devida ao gênio de Lamarck: 

no Discurso preliminar da Flore française, opôs ele como radicalmente distintas as duas tarefas da botânica: 

  • a “determinação”, que aplica as regras da análise e permite encontrar o nome pelo simples jogo de um método binário
    • (ou tal caráter está presente no indivíduo que se examina e é preciso buscar situá- lo na parte direita do quadro;
    • ou ele não está presente e é preciso buscar na parte esquerda; e isso até a última determinação); 
  • e a descoberta das relações reais de semelhança, que supõe o exame da organização inteira das espécies(14). 

O nome e os gêneros, a designação e a classificação, a linguagem e a natureza deixam de ser entrecruzados de pleno direito. 

A ordem das palavras e a ordem dos seres não se recortam mais senão numa linha artificialmente definida. 

Sua velha interdependência que fundara
a história natural na idade clássica
e que conduzira, num só movimento,
– a estrutura até o caráter,
– a representação até o nome
– e o indivíduo visível até o gênero abstrato, começa a desfazer-se.

Começa-se a falar sobre coisas que têm lugar num espaço diverso do das palavras. 

Ao fazer, e muito cedo, semelhante distinção, Lamarck 

  • encerrou a idade da história natural, 
  • entreabriu a da biologia
    • muito melhor, de um modo bem mais certo e radical do que ao retomar, cerca de 20 anos mais tarde, o tema já conhecido da série única das espécies e de sua transformação progressiva. 

O conceito de organização já existia 

  • na história natural do século XVIII – 
  • assim como, na análise das riquezas, a noção de trabalho que tampouco foi inventada no desembocar da idade clássica; 

mas servia então para definir um certo modo de composição dos indivíduos complexos a partir de materiais mais elementares; 

Lineu, por exemplo, distinguia a “justaposição”, que faz crescer o mineral e a “intuscepção” pela qual o vegetal se desenvolve nutrindo-se(15). 

Bonnet opunha o “agregado” dos “sólidos brutos” à “composição dos sólidos organizados” que “entrelaça num número quase infinito de partes, algumas fluidas, outras sólidas”(16). 

Ora, esse conceito de organização jamais servira, antes do fim do século, para fundar a ordem da natureza, para definir seu espaço, ou para limitar-lhe as figuras. 

É através das obras de Jussieu, de Vicq d’ Azyr e de Lamarck, que ele começa a funcionar pela primeira vez como método de caracterização: 

  • subordina os caracteres uns aos outros; 
  • liga-os a funções; 
  • dispõe-nos segundo uma arquitetura tanto interna quanto externa e não menos invisível que visível; 
  • reparte-os num espaço diverso daquele dos nomes, do discurso e da linguagem. 

Não basta mais só para designar uma categoria de seres entre outros; 

não indica mais apenas um corte no espaço taxinômico; 

define para certos seres a lei interior, que permite a uma de suas estruturas assumir o valor de caráter. 

A organização se insere 

  • entre as estruturas que articulam 
  • e os caracteres que designam 

– introduzindo entre eles um espaço profundo, interior, essencial. 

Essa mutação importante se exerce ainda no elemento da história natural; 

  • ela modifica os métodos e as técnicas de uma taxinomia; 
  • não recusa suas condições fundamentais de possibilidade; 
  • não toca no modo de ser de uma ordem natural. 

Entretanto, acarreta uma consequência maior: a radicalização da divisão entre orgânico e inorgânico. 

No quadro dos seres que a história natural desdobrava, 

  • o organizado 
  • e o não-organizado 

definiam não mais que duas categorias; estas se entrecruzavam sem coincidirem necessariamente com a oposição entre 

  • o ser vivo 
  • e o não-vivo. 

A partir do momento em que a organização se torna conceito fundador da caracterização natural e permite passar da estrutura visível à designação, ela própria tem que deixar de ser apenas um caráter; contorna o espaço taxinômico onde estava alojada e é ela, por sua vez, que dá lugar a uma classificação possível. 

Por isso mesmo, a oposição entre o orgânico e o inorgânico torna-se fundamental. 

É, com efeito, a partir dos anos 1775-1795, 

  • que a velha articulação dos três ou quatro reinos desaparece; 
  • a oposição dos dois reinos – orgânico e inorgânico – não a substitui exatamente; 
  • torna-a antes impossível, impondo outra divisão, em outro nível e em outro espaço. 

PalIas e Lamarck (17) formulam essa grande dicotomia, com a qual vem coincidir a oposição entre o ser vivo e o não-vivo. 

“Só há dois reinos na natureza”, escreve Vicq d’ Azyr, em 1786, “um que usufrui a vida e outro que dela está privado.”(18) 

O orgânico torna-se o ser vivo e o ser vivo é o que produz, crescendo e reproduzindo-se; o inorgânico é o não-vivo, o que não se desenvolve nem se reproduz; é, nos limites da vida, o inerte e o infecundo – a morte. E se se mistura à vida, é como aquilo que nela tende a destruí-Ia e a matá-Ia. 

“Existem em todos os seres vivos duas forças poderosas, muito distintas e sempre em oposição entre si, de tal sorte que cada uma delas destrói perpetuamente os efeitos que a outra consegue produzir.”(19) 

Vê-se como, fraturando em profundidade o grande quadro da história natural, 

  • alguma coisa como uma biologia vai tornar-se possível; 
  • e como também poderá emergir nas análises de Bichat a oposição fundamental entre a vida e a morte. 

Não se tratará do triunfo, mais ou menos precário, de um vitalismo sobre um mecanismo; 

o vitalismo e seu esforço para definir a especificidade da vida não são mais que os efeitos de superfície desses acontecimentos arqueológicos.

II. A medida do trabalho

Capítulo VII - Os limites da representação; tópico II. A medida do trabalho

Afirma-se facilmente que Adam Smith fundou a economia política moderna – poder-se-ia dizer a economia simplesmente – introduzindo o conceito de trabalho num domínio de reflexão que ainda não o conhecia: de imediato, todas as velhas análises da moeda, do comércio e da troca teriam sido remetidas a uma idade pré-histórica do saber – com exceção talvez unicamente da fisiocracia, à qual se concede o mérito de ter tentado ao menos a análise da produção agrícola. 

É verdade que Adam Smith refere, logo de início, a noção de riqueza à de trabalho: 

“O trabalho anual de uma nação é o fundo primitivo que fornece ao consumo anual todas as coisas necessárias e cômodas à vida; e essas coisas são sempre ou o produto imediato desse trabalho ou compradas de outras nações com esse produto”(1); 

é também verdade que Smith reporta 

  • o “valor em uso” das coisas à necessidade dos homens, 
  • e o “valor em troca” à quantidade de trabalho aplicada para produzi-lo:

 “O valor de uma mercadoria qualquer, para aquele que a possui e que não pretenda pessoalmente dela fazer uso ou consumi-Ia, mas que tem a intenção de trocá-Ia por outra coisa, é igual à quantidade de trabalho que essa mercadoria lhe permite comprar ou encomendar.”(2) 

De fato, a diferença entre as análises de Smith e as de Turgot ou Cantillon é menor do que se crê; ou, antes, não reside lá onde se imagina. Desde Cantillon e antes dele já se distinguiam perfeitamente o valor de uso e o valor de troca; desde Cantillon igualmente, utilizava-se a quantidade de trabalho para medir este último. 

Mas a quantidade de trabalho inscrita no preço das coisas não passava de um instrumento de medida, ao mesmo tempo relativo e redutível. Com efeito, o trabalho de um homem valia a quantidade de alimento que era necessária a ele e à sua família para os manter durante o tempo que durava a obra(3). 

De sorte que, em última instância, a necessidade – o alimento, o vestuário, a habitação – definia a medida absoluta do preço de mercado. 

Ao longo de toda a idade clássica, é a necessidade que mede as equivalências, o valor de uso que serve de referência absoluta aos valores de troca; é o alimento que afere os preços, dando à produção agrícola, ao trigo e à terra o privilégio que todos lhes reconheceram. 

Adam Smith não inventou portanto o trabalho como conceito econômico, porquanto já o encontramos em Cantillon, em Quesnay, em Condillac; nem mesmo lhe faz desempenhar um papel novo, pois dele também se serve como medida do valor de troca: 

“O trabalho é a medida real do valor permutável de toda mercadoria.”(4) 

Desloca-o porém: 

  • conserva-lhe sempre a função de análise das riquezas permutáveis; 
  • essa análise, entretanto, não é mais um puro e simples momento para reconduzir a troca à necessidade (e o comércio ao gesto primitivo da permuta); 
  • ela descobre uma unidade de medida irredutível, insuperável e absoluta. 

Desde logo, as riquezas não estabelecerão mais a ordem interna de suas equivalências por uma comparação dos objetos a trocar, nem por uma estimação do poder próprio a cada um de representar um objeto de necessidade (e, em último recurso, o mais fundamental de todos, o alimento); elas se decomporão segundo as unidades de trabalho que realmente as produziram. 

As riquezas são sempre elementos representativos que funcionam: mas o que representam finalmente 

  • não é mais o objeto do desejo, 
  • é o trabalho.

 Duas objeções, porém, logo se apresentam: 

como pode o trabalho ser medida fixa do preço natural das coisas, se ele próprio tem um preço – e que é variável? 

Como pode o trabalho ser uma unidade insuperável, se ele muda de forma e se o progresso das manufaturas o torna incessantemente mais produtivo, dividindo-o sempre mais?

 Ora, é justamente através dessas objeções e como que por seu intermédio que podemos trazer à luz a irredutibilidade do trabalho e seu caráter primeiro. 

Com efeito, 

  • há regiões no mundo e momentos numa mesma região em que o trabalho é caro:
    • os operários são pouco numerosos, 
    • os salários elevados; 
  • em outras partes e em outros momentos,
    • a mão-de-obra abunda, é mal retribuída, 
    • o trabalho é barato. 

Mas o que se modifica nessas alternâncias é a quantidade de alimento que se pode obter com um dia de trabalho; 

  • se há poucas mercadorias e muitos consumidores, cada unidade de trabalho só será recompensada por uma fraca quantidade de subsistência; 
  • em contrapartida, ela será bem paga se as mercadorias se encontram em abundância. 

Isso não passa de conseqüências de uma situação de mercado; 

  • o próprio trabalho, 
  • as horas passadas, 
  • o esforço e a fadiga são, 

de todo modo, os mesmos; e quanto mais necessárias forem essas unidades, tanto mais caros serão os produtos. 

“As quantidades iguais de trabalho são sempre iguais para aquele que trabalha.”(5) 

E contudo poder-se-ia dizer que essa unidade não é fixa, já que, para produzir um único e mesmo objeto, será preciso, conforme a perfeição das manufaturas (isto é, segundo a divisão do trabalho que se instaurou), um labor mais ou menos longo. 

Mas, na verdade, não foi o trabalho em si mesmo que mudou; foi a relação do trabalho com a produção de que ele é suscetível. 

O trabalho, entendido como jornada, esforço e fadiga, é um numerador fixo: só o denominador (o número de objetos produzidos) é capaz de variações. 

  • Um operário que tivesse de fazer sozinho as 18 operações distintas de que necessita a fabricação de um alfinete não produziria, sem dúvida, mais que cerca de 20 deles no curso de todo um dia. 
  • Mas dez operários que tivessem de efetuar cada qual somente uma ou duas operações poderiam fazer juntos mais de 48 mil alfinetes num dia; portanto, cada operário, realizando uma décima parte desse produto, pode ser considerado como fazendo em seu dia 4.800 alfinetes(6). 

A potência produtiva do trabalho foi multiplicada; numa mesma unidade (a jornada de um assalariado), os objetos fabricados aumentaram; seu valor de troca vai portanto baixar, isto é, cada um deles, por sua vez, só poderá comprar uma quantidade de trabalho proporcionalmente menor. 

O trabalho não diminuiu em relação às coisas; foram as coisas que como que se estreitaram em relação à unidade de trabalho. Troca-se, é verdade, porque se têm necessidades; sem elas, o comércio não existiria, nem tampouco o trabalho, nem sobretudo essa divisão que o torna mais produtivo. Inversamente, são as necessidades que, quando satisfeitas, limitam o trabalho e seu aperfeiçoamento: 

“Uma vez que é a faculdade de trocar que dá lugar à divisão do trabalho, o aumento dessa divisão deve, por conseqüência, ser sempre limitado pela extensão da faculdade de trocar ou, em outros termos, pela extensão do mercado.”(7) 

As necessidades e a troca de produtos que podem responder a elas são sempre o princípio da economia: são seu primeiro motor e a circunscrevem; o trabalho e a divisão que o organiza não passam de seus efeitos. 

Mas, no interior da troca, na ordem das equivalências, a medida que estabelece as igualdades e as diferenças é de natureza diversa da necessidade. 

Não está ligada apenas ao desejo dos indivíduos, modificada com ele e variável como ele. É uma medida absoluta, se com isso se entender que não depende do coração dos homens ou de seu apetite; impõe-se-lhes do exterior: é seu tempo e é seu esforço. 

Em relação à de seus predecessores, a análise de Adam Smith representa um desfecho essencial: 

  • ela distingue a razão da troca e a medida do permutável, 
  • a natureza do que é trocado e as unidades que permitem sua decomposição.

Troca-se porque se tem necessidade, e os objetos precisamente de que se tem necessidade, mas a ordem das trocas, sua hierarquia e as diferenças que aí se manifestam são estabelecidas pelas unidades de trabalho que foram depositadas nos objetos em questão. 

Se, para a experiência dos homens – ao nível do que se vai incessantemente chamar de psicologia – o que eles trocam é o que lhes é “indispensável, cômodo ou agradável”, para o economista, o que circula sob a forma de coisas é trabalho. 

Não mais objetos de necessidade que se representam uns aos outros, mas tempo e fadiga, transformados, ocultos, esquecidos. Esse desfecho é de grande importância. 

Certamente, Adam Smith analisa ainda, como seus predecessores, esse campo de positividade a que o século XVIII chamou “riquezas”; e, com isso, entendia também ele objetos de necessidade – os objetos portanto de uma certa forma de representação – representando-se a si próprios nos movimentos e nos processos da troca. 

  • Mas, no interior dessa reduplicação e para regular sua lei, as unidades e as medidas da troca, ele formula um princípio de ordem que é irredutível à análise da representação:
    • traz à luz o trabalho, isto é, o esforço e o tempo, essa jornada que, ao mesmo tempo talha e gasta a vida de um homem. 

A equivalência dos objetos do desejo 

  • não é mais estabelecida por intermédio de outros objetos e de outros desejos, 
  • mas por uma passagem ao que lhes é radicalmente heterogêneo;
    • se há uma ordem nas riquezas, 
    • se isto pode comprar aquilo, 
    • se o ouro vale duas vezes mais que a prata, 
    • não é mais porque os homens têm desejos comparáveis; 
    • não é porque através de seu corpo eles experimentam a mesma fome ou porque o coração de todos obedece às mesmas seduções; 
    • é porque todos eles são submetidos ao tempo, ao esforço, à fadiga e, indo ao extremo, à própria morte. 

Os homens trocam porque experimentam necessidades e desejos; 

mas podem trocar e ordenar essas trocas porque são submetidos ao tempo e à grande fatalidade exterior. 

Quanto à fecundidade desse trabalho, não é ela devida tanto à habilidade pessoal ou ao cálculo dos interesses; funda-se em condições, também estas, exteriores à sua representação: progresso da indústria, aumento da divisão de tarefas, acúmulo de capitais, divisão do trabalho produtivo e do trabalho não-produtivo. 

Vê-se de que maneira a reflexão sobre as riquezas começa, com Adam Smith, a extravasar o espaço que lhe era designado na idade clássica; 

  • era então alojada no interior da “ideologia” – da análise da representação; 
  • doravante, ela se refere, como que de viés, a dois domínios que escapam, tanto um quanto o outro, às formas e às leis da decomposição das idéias:
    • de um lado, ela desponta já para uma antropologia que põe em questão a essência do homem (sua finitude, sua relação com o tempo, a iminência da morte) e o objeto no qual ele investe as jornadas de seu tempo e de seu esforço sem poder nele reconhecer o objeto de sua necessidade imediata; 
    • e, de outro, indica, ainda no vazio, a possibilidade de uma economia política
      • que não mais teria por objeto a troca das riquezas (e o jogo das representações que a cria), 
      • mas sua produção real: formas do trabalho e do capital. 

Compreende-se como, entre essas positividades recentemente formadas – 

uma antropologia que fala de um homem tornado estranho a si mesmo e uma economia que fala de mecanismos exteriores à consciência humana

 – a Ideologia ou a Análise das representações se reduzirá, em breve, a ser não mais que uma psicologia, ao mesmo tempo em que, diante dela, contra ela e dominando-a bem logo do alto de si mesma, se abre a dimensão de uma história possível. 

A partir de Smith, o tempo da economia 

  • não será mais aquele, cíclico, dos empobrecimentos e dos enriquecimentos; 
  • também não será o crescimento linear das políticas hábeis que, aumentando sempre ligeiramente as espécies em circulação, aceleram a produção mais rapidamente do que elevam os preços; 
  • será o tempo interior de uma organização que cresce segundo sua própria necessidade e se desenvolve segundo leis autóctones – o tempo do capital e do regime de produção.

I. A idade da história

Capítulo VII - Os limites da representação; tópico I. A idade da história

Os últimos anos do século XVIII são rompidos por uma descontinuidade simétrica àquela que, no começo do século XVII, cindira o pensamento do Renascimento;  

então, as grandes figuras circulares em que se encerrava a similitude tinham-se deslocado e aberto para que o quadro das identidades pudesse desdobrar-se; 

e esse quadro agora vai por sua vez desfazer-se,
alojando-se o saber num espaço novo. 

Descontinuidade tão enigmática
em seu princípio, em seu primitivo despedaçamento,
quanto a que separa os círculos de Paracelso
da ordem cartesiana. 

Donde vem bruscamente essa mobilidade inesperada das disposições epistemológicas, o desvio das positividades umas em relação às outras,
mais profundamente ainda
a alteração de seu modo de ser? 

Como ocorre que o pensamento se desprenda daquelas plagas que habitava outrora –
gramática geral, história natural, riquezas
– e deixe oscilar no erro, na quimera, no não-saber aquilo mesmo que, menos de 20 anos antes, estava estabelecido e afirmado no espaço luminoso do conhecimento? 

A que acontecimento ou a que lei obedecem essas mutações que fazem com que de súbito as coisas não sejam mais percebidas, descritas, enunciadas, caracterizadas, classificadas e’ sabidas do mesmo modo e que, no interstício das palavras ou sob sua transparência, não sejam mais as riquezas, os seres vivos, o discurso que se oferecem ao saber, mas seres radicalmente diferentes? 

Se, para uma arqueologia do saber, essa abertura profunda na camada das continuidades deve ser analisada, e minuciosamente, não pode ser ela “explicada”, nem mesmo recolhida numa palavra única. 

É um acontecimento radical que se reparte por toda a superfície visível do saber e cujos signos, abalos, efeitos, podem-se seguir passo a passo. 

Somente o pensamento, assenhoreando-se de si mesmo na raiz de sua história, poderia fundar, sem nenhuma dúvida, o que foi, em si mesma, a verdade solitária desse acontecimento. 

A arqueologia, essa, deve percorrer o acontecimento segundo sua disposição manifesta; 

  • ela dirá como as configurações próprias a cada positividade se modificaram 
  • (ela analisa por exemplo,
    • para a gramática, o desaparecimento do papel maior atribuído ao nome e a importância nova dos sistemas de flexão;
    • ou ainda, a subordinação, no ser vivo, do caráter à função); 
  • ela analisará a alteração dos seres empíricos que povoam as positividades
    • (a substituição do discurso pelas línguas, 
    • das riquezas pela produção); 
  • estudará o deslocamento das positividades umas em relação às outras 
  • (por exemplo,
    • a relação nova entre a biologia, as ciências da linguagem e a economia); 
  • enfim e sobretudo, mostrará que o espaço geral do saber não é mais
    •  o das identidades e  das diferenças, 
    • o das ordens não-quantitativas, 
    • o de uma caracterização universal, 
    • de uma taxinomia geral, 
    • de uma máthêsis do não-mensurável, 
  • mas
    • um espaço feito de organizações, isto é, de relações internas entre elementos, cujo conjunto assegura uma função; 
    • mostrará que essas organizações são descontínuas, 
    • que não formam, pois, um quadro de simultaneidades sem rupturas, 
    • mas que algumas são do mesmo nível 
    • enquanto outras traçam séries ou sequências lineares. 

De sorte que se vêem surgir,
como princípios organizadores
desse espaço de empiricidades,
a Analogia e a Sucessão:
de uma organização a outra, o liame, com efeito,
não pode mais ser 

a identidade de um ou vários elementos,

mas 

a identidade da relação entre os elementos
(onde a visibilidade não tem mais papel)
e da função que asseguram; 

ademais, se porventura essas organizações se avizinham por efeito de uma densidade singularmente grande de analogias, 

não é porque

ocupem localizações próximas num espaço de classificação, 

mas sim porque 

foram formadas uma ao mesmo tempo que a outra
e uma logo após a outra

no devir das sucessões.

 Enquanto, no pensamento clássico,

  • a seqüência das cronologias não fazia mais que percorrer o espaço prévio e mais fundamental de um quadro que de antemão apresentava todas as suas possibilidades,

doravante

  • as semelhanças contemporâneas e observáveis simultaneamente no espaço não serão mais que as formas depositadas e fixadas de uma sucessão que procede de analogia em analogia. 

A ordem clássica 

distribuía num espaço permanente as identidades e as diferenças não-quantitativas que separavam e uniam as coisas: 

era essa a ordem que reinava soberanamente, mas a cada vez segundo formas e leis ligeiramente diferentes, sobre o discurso dos homens, o quadro dos seres naturais e a troca das riquezas. 

A partir do século XIX, 

a História vai desenrolar numa série temporal as analogias que aproximam umas das outras as organizações distintas. 

É essa História que, progressivamente, imporá suas leis à análise da produção, à dos seres organizados, enfim, à dos grupos linguísticos. 

  • A História dá lugar às organizações analógicas, 
  • assim como a Ordem abria o caminho das identidades e das diferenças sucessivas. 

Mas vê-se bem que 

a História não deve ser aqui entendida como a coleta das sucessões de fatos, tais como se constituíram; 

ela é o modo de ser fundamental das empiricidades, aquilo a partir de que elas são afirmadas, postas, dispostas e repartidas no espaço do saber para eventuais conhecimentos e para ciências possíveis. 

Assim como a Ordem no pensamento clássico 

  • não era a harmonia visível das coisas, seu ajustamento, sua regularidade ou sua simetria constatados, 
  • mas o espaço próprio de seu ser e aquilo que, antes de todo conhecimento efetivo, as estabelecia no saber, 

assim também a História, a partir do século XIX, 

  • define o lugar de nascimento do que é empírico, lugar onde, aquém de toda cronologia estabelecida, ele assume o ser que lhe é próprio. 

É por isso certamente que tão cedo a História se dividiu, segundo um equívoco que sem dúvida não é possível vencer, entre 

  • uma ciência empírica dos acontecimentos 
  • e esse modo de ser radical que prescreve seu destino a todos os seres empíricos e a estes seres singulares que somos nós. 

A História, como se sabe, é efetivamente a região mais erudita, mais informada, mais desperta, mais atravancada talvez de nossa memória; mas é igualmente a base a partir da qual todos os seres ganham existência e chegam à sua cintilação precária. 

Modo de ser de tudo o que nos é dado na experiência, a História tornou-se assim o incontornável de nosso pensamento: no que, sem dúvida, não é tão diferente da Ordem clássica. 

  • Essa também podia ser estabelecida num saber organizado mas era mais fundamentalmente o espaço onde todo ser vinha ao conhecimento; 
  • e a metafisica clássica alojava-se precisamente nessa distância
    • da Ordem à ordem, 
    • das classificações à Identidade, 
    • dos seres naturais à Natureza:
    • em suma,
      • da percepção (ou da imaginação) dos homens 
      • para com o entendimento e a vontade de Deus. 

A filosofia do século XIX se alojará na distância 

  • da história à História, 
  • dos acontecimentos à Origem, 
  • da evolução ao primeiro dilaceramento da fonte, 
  • do esquecimento ao Retorno. 

Portanto, 

  • ela só não será mais Metafisica na medida em que será Memória 
  • e, necessariamente, reconduzirá o pensamento à questão de saber o que é, para o pensamento, ter uma história. 

Essa questão infatigavelmente acossará a filosofia, de Hegel a Nietzsche, e para além desses. 

Não vejamos nisso o fim de uma reflexão filosófica autônoma, demasiado matinal e demasiado orgulhosa para se inclinar exclusivamente sobre o que foi dito antes dela e por outros; não tomemos isso como um pretexto para denunciar um pensamento impotente para manter-se de pé sozinho e sempre constrangido a enrolar-se a um pensamento já realizado. 

Basta reconhecer aí uma filosofia 

  • já desprendida de certa metafisica, porque desligada do espaço da ordem, 
  • mas votada ao Tempo, ao seu fluxo, a seus retornos, porque presa ao modo de ser da História. 

É preciso, porém, retomar, com um pouco mais de detalhe, ao que se passou na curva dos séculos XVIII e XIX: 

  • a essa mutação demasiado rapidamente desenhada da Ordem à História 
  • e à alteração fundamental dessas positividades que, durante quase um século e meio, deram lugar a tantos saberes vizinhos –
    • análise das representações, 
    • gramática geral, 
    • história natural, 
    • reflexões sobre as riquezas 
    • e o comércio. 

Como essas maneiras de ordenar a empiricidade que foram o discurso, o quadro, as trocas, se desvaneceram? 

Em que outro espaço e segundo quais figuras as palavras, os seres, os objetos da necessidade tomaram lugar e se distribuíram uns em relação aos outros? 

Que novo modo de ser devem ter recebido para que todas essas mudanças fossem possíveis e para que aparecessem, ao cabo de alguns anos apenas, esses saberes agora familiares a que chamamos, desde o século XIX, filologia, biologia, economia política? 

Imaginamos facilmente que, se esses novos domínios foram definidos no século passado, é porque um pouco mais de objetividade no conhecimento, de exatidão na observação, de rigor no raciocínio, de organização na pesquisa e na informação cientifica – tudo isso ajudado, com um pouco de sorte ou de gênio, por algumas descobertas felizes, nos fez sair de uma idade pré-histórica em que o saber balbuciava ainda com a Gramática de Port-Royal, as classificações de Lineu e as teorias do comércio ou da agricultura. 

Mas 

  • se, do ponto de vista da racionalidade dos conhecimentos, podemos realmente falar em pré-história, 
  • para as positividades só podemos falar em história. 

E foi realmente necessário
um acontecimento fundamental
– um dos mais radicais, sem dúvida, que ocorreram na cultura ocidental,
para que se desfizesse
a positividade do saber clássico
e se constituísse uma positividade
de que, por certo, não saímos inteiramente. 

Esse acontecimento, sem dúvida porque estamos ainda presos na sua abertura, nos escapa em grande parte. 

Sua amplitude, as camadas profundas que atingiu, todas as positividades que ele pode subverter e recompor, a potência soberana que lhe permitiu atravessar, em alguns anos apenas, o espaço inteiro de nossa cultura, tudo isso só poderia ser estimado e medido ao termo de uma inquirição quase infinita que só concerniria, nem mais nem menos, ao ser mesmo de nossa modernidade. 

  • A constituição de tantas ciências positivas, 
  • o aparecimento da literatura, 
  • a volta da filosofia sobre seu próprio devir, 
  • a emergência da história
    • ao mesmo tempo como saber 
    • e como modo de ser da empiricidade, 
  • não são mais que sinais de uma ruptura profunda. 

Sinais dispersos no espaço do saber, pois que se deixam perceber na formação, 

  • aqui de uma filologia, 
  • ali de uma economia política, 
  • ali ainda de uma biologia. 

Dispersão também na cronologia: certamente, o conjunto do fenômeno se situa entre datas facilmente assinaláveis

  • (os pontos extremos são os anos 1775 e 1825); 
  • podem-se porém reconhecer, em cada um dos domínios estudados, duas fases sucessivas que se articulam uma à outra, mais ou menos por volta dos anos 1795-1800. 

Na primeira dessas fases, 

  • o modo de ser fundamental das positividades não muda; 
  • as riquezas dos homens, 
  • as espécies da natureza, 
  • as palavras de que as línguas são povoadas

 permanecem ainda o que eram na idade clássica:

  • representações duplicadas – representações cujo papel consiste em designar representações, analisá Ias, decompô-Ias e compô-Ias, para fazer nelas surgir, com o sistema de suas identidades e de suas diferenças, o princípio geral de uma ordem. 

É somente na segunda fase que as palavras, as classes e as riquezas adquirirão um modo de ser que não é mais compatível com o da representação. 

Em contra partida, o que se modifica muito cedo, desde as análises de Adam Smith, de A.-L. de Jussieu ou de Viq d’Azyr, na época de Jones ou de Anquetil- Duperron, é a configuração das positividades: 

a maneira como, no interior de cada uma, os elementos representativos funcionam uns em relação aos outros, a maneira como asseguram seu duplo papel de designação e de articulação, como chegam, pelo jogo das comparações, a estabelecer uma ordem. 

É essa primeira fase que será estudada no presente capítulo.

VIII. O sono antropológico

VIII. O sono antropológico

A antropologia como analítica do homem teve indubitavelmente um papel constituinte no pensamento moderno, pois que em grande parte ainda não nos desprendemos dela. 

Ela se tornara necessária a partir do momento em que a representação perdera o poder de determinar, por si só e num movimento único, 

  • o jogo de suas sínteses 
  • e de suas análises. 

Era preciso que as sínteses empíricas fossem asseguradas em qualquer outro lugar que não na soberania do “Eu penso”. 

Deviam ser requeridas onde precisamente essa soberania encontra seu limite, isto é, na finitude do homem – finitude que é tanto a da consciência quanto a do indivíduo que vive, fala, trabalha. 

Kant já formulara isso na Lógica quando acrescentara à sua trilogia tradicional uma última interrogação: as três questões críticas

  • (que posso eu saber?
  • que devo fazer?
  • que me é permitido esperar?)

acham- se então reportadas a uma quarta e postas, de certo modo, “à sua custa”:

  • Was ist der Mensch?

Essa questão, como se viu, percorre o pensamento desde o começo do século XIX: é ela que opera, furtiva e previamente, a confusão entre o empírico e o transcendental, cuja distinção, porém, Kant mostrara. 

Por ela, constituiu-se uma reflexão de nível misto que caracteriza a filosofia moderna. A preocupação que ela tem com o homem e que reivindica não só nos seus discursos como ainda no seu páthos, o cuidado com que tenta defini-lo como ser vivo, indivíduo que trabalha ou sujeito falante, só para as boas almas assinalam o tempo de um reino humano que finalmente retorna; trata-se, de fato – o que é mais prosaico e menos moral de uma reduplicação empírico-crítica pela qual se tenta fazer valer o homem da natureza, da permuta ou do discurso como o fundamento de sua própria finitude. 

Nessa Dobra, 

  • a função transcendental vem cobrir, com sua rede imperiosa, o espaço inerte e sombrio da empiricidade; 
  • inversamente, os conteúdos empíricos se animam, se refazem, erguem-se e são logo subsumidos num discurso que leva longe sua presunção transcendental. 

E eis que nessa Dobra a filosofia adormeceu num sono novo; 

  • não mais o do Dogmatismo, 
  • mas o da Antropologia. 

Todo conhecimento empírico, desde que concernente ao homem, vale como campo filosófico possível, em que se deve descobrir o fundamento do conhecimento, a definição de seus limites e, finalmente, a verdade de toda verdade. 

A configuração antropológica da filosofia moderna consiste em desdobrar o dogmatismo, reparti-lo em dois níveis diferentes que se apoiam um no outro e se limitam um pelo outro:

  • a análise pré-critica do que é o homem em sua essência
  • converte-se na analítica de tudo o que pode dar-se em geral à experiência do homem.

Para despertar o pensamento de tal sono

– tão profundo que ele o experimenta paradoxalmente como vigilância, de tal modo confunde a circularidade de um dogmatismo que se desdobra para encontrar em si mesmo seu próprio apoio com a agilidade e a inquietude de um pensamento radicalmente filosófico –

para chamá-lo às suas mais matinais possibilidades, não há outro meio senão destruir, até seus fundamentos, o “quadrilátero” antropológico. 

Sabe-se bem, em todo o caso, que todos os esforços para pensar de novo investem precisamente contra ele: 

  • seja porque se trate de atravessar o campo antropológico e, apartando-se dele a partir do que ele enuncia, reencontrar uma ontologia purificada ou um pensamento radical do ser; 
  • seja ainda porque, colocando fora de circuito, além do psicologismo e do historicismo, todas as formas concretas do preconceito antropológico, se tente reintegrar os limites do pensamento e reatar assim com o projeto de uma crítica geral da razão. 

Talvez se devesse ver o primeiro esforço desse desenraizamento da Antropologia ao qual, sem dúvida, está votado o pensamento contemporâneo, na experiência de Nietzsche:

  • através de uma crítica filológica, 
  • através de uma certa forma de biologismo, 

Nietzsche reencontrou o ponto onde o homem e Deus pertencem um ao outro, onde a morte do segundo é sinônimo do desaparecimento do primeiro, e onde a promessa do super-homem significa, primeiramente e antes de tudo, a iminência da morte do homem. 

Com isso, Nietzsche, propondo-nos esse futuro, ao mesmo tempo como termo e como tarefa, marca o limiar a partir do qual a filosofia contemporânea pode recomeçar a pensar; ele continuará sem dúvida, por muito tempo, a orientar seu curso. 

Se a descoberta do Retorno é, realmente, o fim da filosofia, então o fim do homem é o retorno do começo da filosofia. Em nossos dias não se pode mais pensar senão no vazio do homem desaparecido. Pois esse vazio não escava uma carência; não prescreve uma lacuna a ser preenchida. Não é mais nem menos que o desdobrar de um espaço onde, enfim, é de novo possível pensar.

A Antropologia constitui talvez a disposição fundamental que comandou e conduziu o pensamento filosófico desde Kant até nós. Disposição essencial, pois que faz parte de nossa história; mas em via de se dissociar sob nossos olhos, pois começamos a nela reconhecer, a nela denunciar de um modo crítico, a um tempo, o esquecimento da abertura que a tornou possível e o obstáculo tenaz que se opõe obstinadamente a um pensamento por vir. 

  • A todos os que pretendem ainda falar do homem, de seu reino ou de sua liberação, 
  • a todos os que formulam ainda questões sobre o que é o homem em sua essência, 
  • a todos os que pretendem partir dele para ter acesso à verdade, 
  • a todos os que, em contrapartida, reconduzem todo conhecimento às verdades do próprio homem, 
  • a todos os que não querem formalizar sem antropologizar, 
  • que não querem mitologizar sem desmistificar, 
  • que não querem pensar sem imediatamente pensar que é o homem quem pensa, 

a todas essas formas de reflexão canhestras e distorcidas, só se pode opor um riso filosófico – isto é, de certo modo, silencioso.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
capítulo IX – O homem e seus duplos;
tópico VIII. O sono antropológico.

VII. O discurso e o ser do homem

VII. O discurso e o ser do homem

Pode-se notar que estes quatro segmentos teóricos 

  • (análises da finitude, 
  • da repetição empírico-transcendental, 
  • do impensado 
  • e da origem) 

mantêm certa relação com os quatro domínios subordinados que, juntos, constituíam, na época clássica, a teoria geral da linguagem. Relação que é, à primeira vista, de semelhança e de simetria. 

Deve-se lembrar que 

  • a teoria do verbo explicava como a linguagem podia transbordar para fora de si mesma e afirmar o ser – isto, num movimento que assegurava, em troca, o ser mesmo da linguagem, pois que esta só podia instaurar-se e abrir seu espaço lá onde já houvesse, ao menos sob uma forma secreta, o verbo “ser”; 
  • a análise da finitude explica, do mesmo modo, como o ser do homem se acha determinado por positividades que lhe são exteriores e que o ligam à espessura das coisas, e como, em troca, é o ser finito que dá a toda determinação a possibilidade de aparecer na sua verdade positiva. 

Enquanto 

  • a teoria da articulação mostrava de que maneira se podia fazer, num só movimento, o recorte das palavras e das coisas que elas representam, 
  • a análise da reduplicação empírico-transcendental mostra como se correspondem, numa oscilação indefinida, o que é dado na experiência e o que torna a experiência possível. 
  • A procura das designações primeiras da linguagem fazia brotar, no coração mais silencioso das palavras, das sílabas, dos próprios sons, uma representação adormecida que formava como que sua alma esquecida (e que era preciso fazer vir à luz, fazer falar e cantar novamente, para uma justeza maior do pensamento, para um mais maravilhoso poder da poesia); 
  • é de um modo análogo que, para a reflexão moderna, a espessura inerte do impensado é sempre habitada, de certa maneira, por um cogito e que esse pensamento adormecido no que não é pensamento deve ser novamente animado e dirigido à soberania do “eu penso”. 

Enfim, havia na reflexão clássica sobre a linguagem uma teoria da derivação: 

  • ela mostrava como a linguagem, desde o início de sua história e talvez no instante de sua origem, no ponto mesmo em que ela se punha a falar, deslizava em seu próprio espaço, girava sobre si mesma, desviando-se de sua representação primeira, e só estabelecia suas palavras, mesmo as mais antigas, quando já desenroladas ao longo das figuras da retórica; 
  • a essa análise corresponde o esforço para pensar uma origem que já está sempre esquivada, para avançar nessa direção em que o ser do homem é sempre mantido em relação a si mesmo num afastamento e numa distância que o constituem.

Mas esse jogo de correspondências não deve iludir. 

Não se deve imaginar que a análise clássica do discurso se tenha prosseguido sem modificação através dos tempos, aplicando-se apenas a um novo objeto; que a força de algum peso histórico a tenha mantido em sua identidade, apesar de tantas mutações vizinhas.

 De fato, os quatro segmentos teóricos que desenhavam o espaço da gramática geral não se conservaram: dissociaram-se, mudaram de função e de nível, modificaram todo o seu domínio de validade quando, no final do século XVIII, a teoria da representação desapareceu. 

Durante a idade clássica, a gramática geral tinha por função mostrar como, no interior da cadeia sucessiva das representações, podia introduzir-se uma linguagem que, mesmo manifestando-se na linha simples e absolutamente tênue do discurso, 

  • supunha formas de simultaneidade (afirmação de existências e de coexistências; 
  • delimitação de coisas representadas e formação de generalidades; 
  • relação originária e indelével entre palavras e coisas; 
  • deslocamento de palavras em seu espaço retórico). 

Ao contrário, a análise do modo de ser do homem, tal como se desenvolveu desde o século XIX, não se aloja no interior de uma teoria da representação; sua tarefa é, muito pelo contrário,

  •  mostrar como é possível que as coisas em geral sejam dadas à representação, em que condições, sobre que solo, entre que limites elas podem aparecer numa positividade mais profunda do que os modos diversos da percepção; 
  • e o que então se descobre nessa coexistência do homem e das coisas, através do grande desdobramento espacial aberto pela representação, é a finitude radical do homem, a dispersão que, a um tempo, o afasta da origem e lha promete, a distância incontornável do tempo. 

A analítica do homem não retoma, tal como fora constituída alhures e como a tradição lha negou, a análise do discurso. 

A presença ou ausência de uma teoria da representação, mais exatamente, o caráter primeiro ou a posição derivada dessa teoria modifica inteiramente o equilíbrio do sistema. 

Enquanto a representação é evidente, como elemento geral do pensamento, a teoria do discurso vale, ao mesmo tempo e num só movimento, como fundamento de toda gramática possível e como teoria do conhecimento. 

Mas, desde que desaparece o primado da representação, então a teoria do discurso se dissocia, e pode-se-lhe reencontrar a forma desencamada e metamorfoseada em dois níveis. 

No nível empírico, os quatro segmentos constitutivos se reencontram, mas a função que exerciam é inteiramente invertida: 

  • a antiga análise do privilégio do verbo, do seu poder de fazer sair o discurso de si mesmo e de enraizá-lo no ser da representação, 
  • foi substituída pela análise de uma estrutura gramatical interna que é imanente a cada língua e a constitui como um ser autônomo, portanto voltado sobre si mesmo; 

do mesmo modo, 

  • a teoria das flexões, a procura das leis de mutação própria das palavras substituem 

  • a análise da articulação comum às palavras e às coisas; 
  • a teoria do radical substituiu 
  • a análise da raiz representativa; 
  • enfim, descobriu-se o parentesco lateral das línguas 
  • lá onde se buscava a continuidade sem fronteira das derivações. 

Em outros termos, 

  • tudo o que havia funcionado na dimensão da relação entre as coisas (tais como são representadas) e das palavras (com seu valor representativo) 
  • acha-se retomado no interior da linguagem e incumbido de assegurar-lhe a legalidade interna. 

No nível dos fundamentos, reencontram-se ainda os quatro segmentos da teoria do discurso: como na idade clássica, eles servem de fato, nessa analítica nova do ser humano, para manifestar a relação com as coisas; mas, desta feita, a modificação é inversa à precedente; não se trata mais de situá-los num espaço interior à linguagem, mas de liberá-los do domínio da representação, no interior do qual eram assumidos, e de fazê-los atuar nessa dimensão da exterioridade em que o homem aparece como finito, determinado, enredado na espessura daquilo que ele não pensa e submetido, no seu ser mesmo, à dispersão do tempo.

A análise clássica do discurso, a partir do momento em que não estava mais em continuidade com uma teoria da representação, achou-se como que fendida em duas: 

  • por um lado, ela investiu-se num conhecimento empírico das formas gramaticais; 
  • e, por outro, tornou-se uma analítica da finitude; 

mas nenhuma dessas duas translações pôde operar-se sem uma inversão total do funcionamento. 

Pode-se compreender agora, e até o fundo, a incompatibilidade que reina entre 

  • a existência do discurso clássico (apoiada na evidência não questionada da representação) 
  • e a existência do homem, tal como é dada ao pensamento moderno (e com a reflexão antropológica que ela autoriza): 

alguma coisa como uma analítica do modo de ser do homem só se tornou possível uma vez dissociada, transferida e invertida a análise do discurso representativo. 

Com isso adivinha-se também que ameaça faz pesar sobre o ser do homem assim definido e colocado o reaparecimento contemporâneo da linguagem no enigma de sua unidade e de seu ser. 

Será nossa tarefa no porvir a de avançarmos em direção a um modo de pensamento, desconhecido até o presente em nossa cultura, e que permitiria refletir ao mesmo tempo, sem descontinuidade nem contradição, sobre o ser do homem e sobre o ser da linguagem? 

E, nesse caso, é preciso conjurar, com as maiores precauções, tudo o que possa constituir retorno ingênuo à teoria clássica do discurso (retorno cuja tentação, é preciso dizê-lo, é tanto maior quanto mais estamos desarmados para pensar o ser cintilante mas abrupto da linguagem, ao passo que a velha teoria da representação está aí, toda constituída, a oferecer-nos um lugar onde esse ser poderá alojar-se e dissolver-se num puro funcionamento). 

Mas pode ser também que esteja para sempre excluído o direito de pensar ao mesmo tempo o ser da linguagem e o ser do homem; pode ser que haja aí como que uma indelével abertura (aquela em que justamente existimos e falamos), de tal forma que seria preciso rejeitar como quimera toda antropologia que pretendesse tratar do ser da linguagem, toda concepção da linguagem ou da significação que quisesse alcançar, manifestar e liberar o ser próprio do homem. 

É talvez aí que se enraíza a mais importante opção filosófica de nossa época. Opção que só se pode fazer na experiência mesma de uma reflexão futura. Pois nada nos pode dizer, de antemão, de que lado a via está aberta. 

A única coisa que, por ora, sabemos com toda a certeza é que jamais, na cultura ocidental, o ser do homem e o ser da linguagem puderam coexistir e se articular um com o outro. Sua incompatibilidade foi um dos traços fundamentais de nosso pensamento.

A mutação da análise do Discurso numa analítica da finitude tem, contudo, outra conseqüência. 

A teoria clássica do signo e da palavra devia mostrar como as representações, que se sucediam numa cadeia tão estreita e tão cerrada que as distinções aí não apareciam, e que eram, em suma, todas semelhantes, podiam estender-se num quadro permanente de diferenças estáveis e de identidades limitadas; tratava-se de uma gênese da Diferença a partir da monotonia secretamente variada do Semelhante. 

A analítica da finitude tem um papel exatamente inverso: 

  • mostrando que o homem é determinado, trata-se, para ela, de manifestar que o fundamento dessas determinações é o ser mesmo do homem em seus limites radicais; 
  • ela deve manifestar também que os conteúdos da experiência são já suas próprias condições, 
  • que o pensamento frequenta previamente o impensado que lhes escapa e cuja reapreensão é sua tarefa de sempre; 
  • ela mostra como essa origem de que jamais o homem é contemporâneo lhe é a um tempo retirada e dada ao modo da iminência; 
  • em suma, trata-se sempre, para ela, de mostrar como o Outro, o Longínquo é também o mais Próximo e o Mesmo. 

Passou-se assim 

  • de uma reflexão sobre a ordem das Diferenças (com a análise que ela supõe e essa ontologia do contínuo, essa exigência de um ser pleno, sem ruptura, desdobrado em sua perfeição, que supõem uma metafísica) 
  • a um pensamento do Mesmo, sempre a ser conquistado ao que lhe é contraditório: o que implica (além da ética de que se falou) uma dialética e essa forma de ontologia que, por não ter necessidade do contínuo, por não precisar refletir o ser senão nas suas formas limitadas ou no afastamento de sua distância, pode e deve dispensar a metafísica. 

Um jogo dialético e uma ontologia sem metafisica se interpelam e se correspondem mutuamente através do pensamento moderno e ao longo de toda a sua história: pois é um pensamento que não se encaminha mais em direção à formação jamais acabada da Diferença, mas ao desvelamento do Mesmo sempre por realizar. 

Ora, tal desvelamento não se dá sem o aparecimento simultâneo do Duplo, e essa distância, ínfima mas invencível, que reside no “e” 

  • do recuo e do retorno, 
  • do pensamento e do impensado, 
  • do empírico e do transcendental, 
  • do que é da ordem da positividade e do que é da ordem dos fundamentos. 

A identidade separada de si mesma numa distância que lhe é, em certo sentido, interior, mas que, em outro, a constitui, a repetição que oferece o idêntico mas na forma do afastamento estão, sem dúvida, no coração desse pensamento moderno ao qual, apressadamente, se atribui a descoberta do tempo. 

De fato, se se prestar um pouco mais de atenção, percebe-se que 

  • o pensamento clássico reportava a possibilidade de espacializar as coisas em um quadro a essa propriedade da pura sucessão representativa de se interpelar a partir de si, de se reduplicar e de constituir uma simultaneidade a partir de um tempo contínuo: o tempo fundava o espaço. 
  • No pensamento moderno, o que se revela no fundamento da história das coisas e da historicidade própria ao homem é a distância que escava o Mesmo, é o afastamento que o dispersa e o reúne nos dois extremos dele mesmo. É essa profunda espacialidade que permite ao pensamento moderno sempre pensar o tempo – conhecê-lo como sucessão, prometê-lo a si mesmo como acabamento, origem ou retomo.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
capítulo IX – O homem e seus duplos;
tópico VII. O discurso e o ser do homem.