VI. O recuo e o retorno à origem

VI. O recuo e o retorno da origem

O último traço que caracteriza, ao mesmo tempo, o modo de ser do homem e a reflexão que a ele se dirige é a relação com a origem. 

Relação muito diferente daquela que o pensamento clássico tentava estabelecer nas suas gêneses ideais. Reencontrar a origem, no século XVIII, era recolocar-se o mais perto possível da pura e simples reduplicação da representação: 

  • pensava-se a economia a partir da troca, porque nesta as duas representações que cada um dos parceiros fazia de sua propriedade e da do outro eram equivalentes; 
  • oferecendo a satisfação de dois desejos quase idênticos, elas eram, em suma, “semelhantes”. 

Pensava-se a ordem da natureza, antes de qualquer catástrofe, como um quadro onde os seres se sucederiam numa ordem tão cerrada e numa trama tão contínua que, de um ponto a outro dessa sucessão, dar-se-ia um deslocamento no interior de uma quase-identidade, e, de uma extremidade a outra, estar-se-ia sendo conduzido através da superfície lisa do “semelhante”. 

Pensava-se a origem da linguagem como a transparência entre a representação de uma coisa e a representação do grito, do som, da mímica (da linguagem de ação) que a acompanhava. 

Enfim, a origem do conhecimento era buscada do lado dessa sequência pura de representações – sequência tão perfeita e tão linear, que a segunda tinha substituído a primeira sem que se tomasse consciência disso, uma vez que ela não lhe era simultânea, que não era possível estabelecer entre as duas uma diferença e que não se podia experimentar a seguinte senão como “semelhante” à primeira; e somente quando aparecia uma sensação mais “semelhante” a uma precedente do que todas as outras, é que a reminiscência podia exercer-se, a imaginação representar novamente uma representação e o conhecimento firmar-se nessa reduplicação. 

Pouco importava que esse nascimento fosse considerado fictício ou real, que tivesse valor de hipótese explicativa ou de acontecimento histórico: na verdade, essas distinções só existem para nós; num pensamento para o qual o desenvolvimento cronológico se aloja no interior de um quadro, sobre o qual ele só constitui um percurso, o ponto de partida está simultaneamente fora do tempo real e dentro dele: ele é essa dobra primeira pela qual todos os acontecimentos históricos podem ter lugar.

No pensamento moderno, tal origem não é mais concebível: viu-se como o trabalho, a vida, a linguagem adquiriram sua historicidade própria, na qual estavam entranhadas: não podiam, portanto, jamais enunciar verdadeiramente sua origem, ainda que toda a sua história esteja interiormente como que apontada em direção a ela. Não é mais a origem que dá lugar à historicidade; é a historicidade que, na sua própria trama, deixa perfilar-se a necessidade de uma origem que lhe seria ao mesmo tempo interna e estranha: como o vértice virtual de um cone onde todas as diferenças, todas as dispersões, todas as descontinuidades fossem estreitadas até formarem não mais que um ponto de identidade, a impalpável figura do Mesmo, com o poder, entretanto, de explodir sobre si e de tornar-se outra.

O homem constituiu-se no começo do século XIX em correlação com essas historicidades, com todas essas coisas envolvidas sobre si mesmas e indicando, através de seu desdobramento, mas por suas leis próprias, a identidade inacessível de sua origem. 

Contudo, não é do mesmo modo que o homem tem relação com sua origem. É que, com efeito, o homem só se descobre ligado a uma historicidade já feita: 

  • não é jamais contemporâneo dessa origem que, através do tempo das coisas, se esboça enquanto se esquiva; 
  • quando ele tenta definir-se como ser vivo, só descobre seu próprio começo sobre o fundo de uma vida que por sua vez começara bem antes dele; 
  • quando tenta se apreender como ser no trabalho traz à luz as suas formas mais rudimentares somente no interior de um tempo e de um espaço humanos já institucionalizados, já dominados pela sociedade; 
  • e quando tenta definir sua essência de sujeito falante, aquém de toda língua efetivamente constituída, jamais encontra senão a possibilidade da linguagem já desdobrada, e não o balbucio, a primeira palavra a partir da qual todas as línguas e a própria linguagem se tomaram possíveis. 

É sempre sobre um fundo do já começado que o homem pode pensar o que para ele vale como origem. 

Esta, portanto, de modo algum é para ele o começo – uma espécie de primeira manhã da história a partir da qual se houvessem acumulado as aquisições ulteriores. 

A origem é, bem antes, 

  • a maneira como o homem em geral, como todo e qualquer homem, se articula com o já começado do trabalho, da vida e da linguagem; 
  • deve ser procurada nessa dobra onde o homem trabalha com toda a ingenuidade um mundo laborado há milênios, vive, no frescor de sua existência única, recente e precária, uma vida que se entranha até as primeiras formações orgânicas, compõe em frases ainda não ditas (mesmo que gerações as tenham repetido) palavras mais velhas que toda memória. 

Nesse sentido, o nível do originário é, sem dúvida, para o homem, o que está mais próximo dele: essa superfície que ele percorre inocentemente, sempre pela primeira vez, e sobre a qual seus olhos, logo que se abrem, descobrem figuras tão jovens quanto seu olhar – figuras que, não mais que ele, não podem ter idade, mas por uma razão inversa: não porque sejam também sempre jovens, mas porque pertencem a um tempo que não tem nem as mesmas medidas, nem os mesmos fundamentos que ele. 

Mas essa tênue superfície do originário que margina toda a nossa existência e que jamais lhe é ausente (nem mesmo, e sobretudo, no instante da morte em que ela se descobre, ao contrário, como que a nu) não é o imediato de um nascimento; está toda povoada por essas mediações complexas que, na sua história própria, o trabalho, a vida e a linguagem formaram e depositaram; de sorte que nesse simples contato, desde o primeiro objeto manipulado, desde a manifestação da mais simples necessidade até o arrojo da mais neutra palavra, são todos os intermediários de um tempo que o domina quase ao infinito, que o homem, sem o saber, reanima. 

Sem o saber; mas é preciso, na verdade, que o saiba de certa maneira, pois que é assim que os homens entram em comunicação e se acham na rede já entabulada da compreensão. 

E contudo esse saber é limitado, diagonal, parcial, porquanto cercado, de todos os lados, por uma imensa região de sombra onde o trabalho, a vida e a linguagem ocultam sua verdade (e sua própria origem) àqueles mesmos que falam, que existem e que laboram.

O originário, tal como, desde a Fenomenologia do espírito, o pensamento moderno não cessou de descrever, é, pois, bem diferente daquela gênese ideal que a idade clássica tentara reconstituir; mas é diferente também (conquanto lhe seja ligado por uma correlação fundamental) da origem que se desenha, numa espécie de além retrospectivo, através da historicidade dos seres. 

Longe de reconduzir, ou mesmo de apenas apontar em direção a um vértice real ou virtual de identidade, longe de indicar o momento do Mesmo em que a dispersão do Outro não se exerceu ainda, o originário no homem é aquilo que, desde o início, o articula com outra coisa que não ele próprio; é aquilo que introduz na sua experiência conteúdos e formas mais antigas do que ele e que ele não domina; é aquilo que, ligando-o a cronologias múltiplas, entrecruzadas, freqüentemente irredutíveis umas às outras, o dispersa através do tempo e o expõe em meio à duração das coisas. 

Paradoxalmente, o originário no homem não anuncia o tempo de seu nascimento, nem o núcleo mais antigo de sua experiência: 

  • liga-o ao que não tem o mesmo tempo que ele; 
  • e nele libera tudo o que não lhe é contemporâneo; 
  • indica, sem cessar e numa proliferação sempre renovada, que as coisas começaram bem antes dele e que, por essa mesma razão, ninguém lhe poderia assinalar uma origem, a ele cuja experiência é inteiramente constituída e limitada por essas coisas. 

Ora, essa própria impossibilidade tem dois aspectos: 

  • significa, por um lado, que a origem das coisas está sempre recuada, já que remonta a um calendário onde o homem não figura; 
  • mas significa, por outro lado, que o homem, por oposição a essas coisas, de que o tempo deixa perceber o nascimento cintilante na sua espessura, é o ser sem origem, aquele “que não tem pátria nem data”, aquele cujo nascimento jamais é acessível porque jamais teve “lugar”. 

O que se anuncia no imediato do originário é, pois, que o homem está separado da origem que o tornaria contemporâneo de sua própria existência: em meio a todas as coisas que nascem no tempo e nele sem dúvida morrem, ele, separado de toda origem, já está aí. 

De sorte que é nele que as coisas (aquelas mesmas que o excedem) encontram seu começo: mais que cicatriz marcada num instante qualquer da duração, ele é a abertura a partir da qual o tempo em geral pode reconstituir-se, a duração escoar, e as coisas, no momento que lhes é próprio, fazer seu aparecimento. 

Se, na ordem empírica, as coisas são sempre recuadas para ele, inapreensíveis em seu ponto zero, o homem se acha fundamentalmente em recuo em relação a esse recuo das coisas e é assim que elas podem, no imediato da experiência originária, fazer pesar sua sólida anterioridade.

Uma tarefa se apresenta então ao pensamento: a de contestar a origem das coisas, mas de contestá-la para fundá-la, reencontrando o modo pelo qual se constitui a possibilidade do tempo – essa origem sem origem nem começo a partir da qual tudo pode nascer. 

Semelhante tarefa implica que seja posto em questão tudo o que pertence ao tempo, tudo o que nele se formou, tudo o que se aloja no seu elemento móvel, de maneira que apareça a brecha sem cronologia e sem história donde provém o tempo. Este estaria então suspenso nesse pensamento que, contudo, não lhe escapa, já que nunca é contemporâneo da origem; mas essa suspensão teria o poder de abalar a relação recíproca entre a origem e o pensamento; o tempo giraria em torno de si e a origem, tendo-se tornado aquilo que o pensamento tem ainda que pensar e sempre de novo, lhe seria prometida numa iminência sempre mais próxima, jamais realizada. 

A origem é então o que está em via de voltar, a repetição para a qual tende o pensamento, o retomo do que sempre já começou, a proximidade de uma luz que desde sempre brilhou. 

Assim, uma terceira vez, a origem se perfila através do tempo; mas desta feita é o recuo no futuro, a injunção que o pensamento recebe e se faz a si mesmo de avançar, passo a passo, em direção ao que não cessou de torná-lo possível, de espreitar adiante de si, sobre a linha sempre recuada de seu horizonte, a luz donde ele veio e donde profusamente advém.

No preciso momento em que lhe era possível denunciar como quimeras as gêneses descritas no século XVIII, o pensamento moderno instaurava uma problemática da origem muito complexa e muito intrincada; essa problemática serviu de fundamento à nossa experiência do tempo e é a partir dela que, desde o século XIX, nasceram todas as tentativas para retomar o que poderia ser, na ordem humana, o começo e o recomeço, o afastamento e a presença do início, o retorno e o fim. 

Com efeito, o pensamento moderno estabeleceu uma relação com a origem que era inversa para o homem e para as coisas: 

  • autorizava assim – mas frustrava de antemão e guardava em face deles todo o seu poder de contestação – os esforços positivistas para inserir a cronologia do homem no interior da cronologia das coisas, de maneira que a unidade do tempo fosse restaurada e que a origem do homem não fosse nada mais que uma data, que uma dobra na série sucessiva dos seres (estabelecer essa origem, e com ela o aparecimento da cultura, a aurora das civilizações no movimento da evolução biológica); 
  • autorizava também o esforço inverso e complementar para alinhar, segundo a cronologia do homem, a experiência que ele tem das coisas, os conhecimentos que sobre elas adquiriu, as ciências que pôde assim constituir (de sorte que, se todos os começos do homem têm seu lugar no tempo das coisas, o tempo individual ou cultural do homem permite, numa gênese psicológica ou histórica, definir o momento em que as coisas encontram, pela primeira vez, o semblante de sua verdade); 
  • em cada um desses dois alinhamentos, a origem das coisas e a do homem se subordinam uma à outra; mas o simples fato de haver dois alinhamentos possíveis e irreconciliáveis indica a assimetria fundamental que caracteriza o pensamento moderno da origem. 

Ademais, esse pensamento faz advir, numa luz derradeira e como que numa claridade essencialmente reticente, uma certa camada do originário onde nenhuma origem na verdade estava presente, mas onde o tempo sem começo do homem manifestava para uma memória possível o tempo sem lembrança das coisas; 

daí uma dupla tentação: 

  • psicologizar todo conhecimento, qualquer que seja, e fazer da psicologia uma espécie de ciência geral de todas as ciências; 
  • ou, inversamente, descrever essa camada originária num estilo que escapa a todo positivismo, de maneira que se possa, a partir daí, inquietar a positividade de toda ciência e reivindicar contra ela o caráter fundamental, incontornável dessa experiência. 

Mas, ao atribuir a si a tarefa de restituir o domínio do originário, o pensamento moderno aí logo descobre o recuo da origem; e se propõe paradoxalmente a avançar na direção em que esse recuo se realiza e não cessa de aprofundar-se; tenta fazê-lo aparecer do outro lado da experiência como aquilo que a sustenta por seu recuo mesmo, como aquilo que está o mais próximo possível da sua mais visível possibilidade, como aquilo que nela é iminente; e, se o recuo da origem se apresenta assim na sua maior clareza, não é a própria origem que se acha liberada e ascende até si mesma na dinastia de seu arcaísmo? 

É por isso que o pensamento moderno está votado inteiramente à grande preocupação do retomo, ao cuidado de recomeçar, a essa estranha inquietude, que lhe é própria, que o coloca no dever de repetir a repetição. 

Assim, de Hegel a Marx e a Spengler, desenvolveu-se o tema de um pensamento que, pelo movimento em que se realiza – totalidade alcançada, retomada violenta no extremo despojamento, declínio solar – curva-se sobre si mesmo, ilumina sua própria plenitude, fecha seu círculo, reencontra-se em todas as figuras estranhas de sua odisseia e aceita desaparecer nesse mesmo oceano donde emanara; em oposição a esse retorno que ainda que não seja feliz é perfeito, delineia-se a experiência de Hôlderlin, de Nietzsche e de Heidegger, em que o retorno só se dá no extremo recuo da origem – lá onde os deuses se evadiram, onde cresce o deserto, onde a tékhnê instalou a denominação de sua vontade; de maneira que não se trata aí de um fechamento nem de uma curva, mas antes dessa brecha incessante que libera a origem na medida mesma de seu recuo; o extremo é então o mais próximo. 

Mas quer essa camada do originário, descoberta pelo pensamento moderno no movimento mesmo em que ele inventou o homem, prometa a ocasião da realização e das plenitudes acabadas, quer restitua o vazio da origem – aquele disposto pelo seu recuo e aquele escavado pela sua aproximação – de todo modo o que ela prescreve que se pense é algo como o “Mesmo”: através do domínio do originário que articula a experiência humana com o tempo da natureza e da vida, com a história, com o passado sedimentado das culturas, o pensamento moderno se esforça por reencontrar o homem em sua identidade – nessa plenitude ou nesse nada que é ele mesmo -, a história e o tempo nessa repetição que eles tornam impossível mas que forçam a pensar, e o ser naquilo mesmo que ele é.

E assim, nesta tarefa infinita de pensar a origem o mais perto e o mais longe de si, o pensamento descobre que o homem não é contemporâneo do que o faz ser – ou daquilo a partir do qual ele é; mas que está preso no interior de um poder que o dispersa, o afasta para longe de sua própria origem, e todavia lha promete numa iminência que será talvez sempre furtada; ora, esse poder não lhe é estranho; não reside fora dele na serenidade das origens eternas e incessantemente recomeçadas, pois então a origem seria efetivamente dada; esse poder é aquele de seu ser próprio. 

O tempo – mas esse tempo que é ele próprio – tanto o aparta da manhã donde ele emergiu quanto daquela que lhe é anunciada. 

Vê-se quanto esse tempo fundamental – esse tempo a partir do qual o tempo pode ser dado à experiência – é diferente daquele que vigorava na filosofia da representação: 

  • o tempo então dispersava a representação pois que lhe impunha a forma de uma sucessão linear; 
  • mas competia à representação restituir-se a si mesma na imaginação, reduplicar-se assim perfeitamente e dominar o tempo; 
  • a imagem permitia retomar o tempo integralmente, reapreender o que fora concedido à sucessão e construir um saber tão verdadeiro quanto o de um entendimento eterno. 

Na experiência moderna, ao contrário, 

  • o distanciamento da origem é mais fundamental do que toda experiência, porquanto é nela que a experiência cintila e manifesta sua positividade; 
  • é porque o homem não é contemporâneo de seu ser que as coisas vêm se dar com um tempo que lhes é próprio. 

E reencontra-se aqui o tema inicial da finitude. Mas essa finitude, que era primeiramente anunciada pelo jugo das coisas sobre o homem – pelo fato de que ele era dominado 

  • pela vida, 
  • pela história, 
  • pela linguagem  

– aparece agora num nível mais fundamental: ela é a relação insuperável do ser do homem com o tempo.

Assim, redescobrindo a finitude na interrogação da origem, o pensamento moderno remata o grande quadrilátero que começou a desenhar quando toda a epistémê ocidental se abalou no fim do século XVIII: 

  • o liame das positividades com a finitude, 
  • a reduplicação do empírico no transcendental, 
  • a relação perpétua do cogito com o impensado, 
  • o distanciamento e o retorno da origem 

definem para nós o modo de ser do homem. 

É na análise desse modo de ser, e não mais na da representação, que, desde o século XIX, a reflexão busca assentar filosoficamente a possibilidade do saber.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
capítulo IX – O homem e seus duplos;
tópico VI. O recuo e o retorno da origem

V. O cogito e o impensado

V. O "cogito" e o impensado

Se efetivamente 

  • o homem é, no mundo, o lugar de uma reduplicação empírico-transcendental, 
  • se deve ser essa figura paradoxal em que os conteúdos empíricos do conhecimento liberam, mas a partir de si, as condições que os tornaram possíveis, 

o homem não se pode dar na transparência imediata e soberana de um cogito; mas tampouco pode ele residir na inércia objetiva daquilo que, por direito, não acede e jamais acederá à consciência de si. 

O homem é um modo de ser tal que nele se funda esta dimensão sempre aberta, jamais delimitada de uma vez por todas, mas indefinidamente percorrida, que vai, 

  • de uma parte dele mesmo que ele não reflete num cogito, 
  • ao ato de pensamento pelo qual a capta; 

e que, inversamente, vai 

  • desta pura captação 
  • ao atravancamento empírico, à ascensão desordenada dos conteúdos, ao desvio das experiências que escapam a si mesmas, a todo o horizonte silencioso do que se dá na extensão movediça do não-pensamento. 

Porque é duplo empírico-transcendental, o homem é também o lugar do desconhecimento – deste desconhecimento que expõe sempre seu pensamento a ser transbordado por seu ser próprio e que lhe permite, ao mesmo tempo, se interpelar a partir do que lhe escapa. 

É essa a razão pela qual a reflexão transcendental, sob sua forma moderna, 

  • não mais encontra o ponto de sua necessidade, como em Kant, na existência de uma ciência da natureza (à qual se opõem o combate perpétuo e a incerteza dos filósofos), 
  • mas na existência muda, prestes porém a falar e como que toda atravessada secretamente por um discurso virtual, desse não-conhecido a partir do qual o homem é incessantemente chamado ao conhecimento de si. 

A questão não é mais: 

  • como pode ocorrer que a experiência da natureza dê lugar a juízos necessários? 

Mas sim: 

  1. como pode ocorrer que o homem pense o que ele não pensa, habite o que lhe escapa sob a forma de uma ocupação muda, anime, por uma espécie de movimento rijo, essa figura dele mesmo que se lhe apresenta sob a forma de uma exterioridade obstinada? 
  2. Como pode o homem ser essa vida cuja rede, cujas pulsações, cuja força encoberta transbordam indefinidamente a experiência que dela lhe é imediatamente dada? 
  3. Como pode ele ser esse trabalho, cujas exigências e cujas leis se lhe impõem como um rigor estranho? 
  4. Como pode ele ser o sujeito de uma linguagem que, desde milênios, se formou sem ele, cujo sistema lhe escapa, cujo sentido dorme um sono quase invencível nas palavras que, por um instante, ele faz cintilar por seu discurso, e no interior da qual ele é, desde o início, obrigado a alojar sua fala e seu pensamento, como se estes nada mais fizessem senão animar por algum tempo um segmento nessa trama de possibilidades inumeráveis? 

– Quádruplo deslocamento em relação à questão kantiana, pois que se trata 

  • não mais da verdade, mas do ser; 
  • não mais da natureza, mas do homem; 
  • não mais da possibilidade de um conhecimento, mas daquela de um desconhecimento primeiro;
  • não mais do caráter não-fundado das teorias filosóficas em face da ciência, mas da retomada, numa consciência filosófica clara, de todo esse domínio de experiências não-fundadas em que o homem não se reconhece.

A partir desse deslocamento da questão transcendental, o pensamento contemporâneo não podia evitar a reativação do tema do cogito. 

Não fora também a partir do erro, da ilusão, do sonho e da loucura, de todas as experiências do pensamento não-fundado que Descartes descobrira a impossibilidade de elas não serem pensamentos – de tal modo que o pensamento do mal-pensado, do não-verdadeiro, do quimérico, do puramente imaginário, aparecesse como lugar de possibilidade de todas essas experiências e primeira evidência irrecusável? 

Mas o cogito moderno é tão diferente do de Descartes quanto nossa reflexão transcendental está afastada da análise kantiana. 

É que, para Descartes, tratava-se de trazer à luz o pensamento como a forma mais geral de todos esses pensamentos que são o erro ou a ilusão, de maneira a conjurar-lhes o perigo, com o risco de reencontrá-los no final de sua tentativa, de explicá-los e de propor então o método para evitá-los. 

No cogito moderno, trata-se, ao contrário, 

  • de deixar valer, na sua maior dimensão, a distância que, a um tempo, separa e religa o pensamento presente a si, com aquilo que, do pensamento, se enraíza no não-pensado; 
  • ele precisa (e é por isso que ele é menos uma evidência descoberta que uma tarefa incessante a ser sempre retomada) percorrer, reduplicar e reativar, sob uma forma explícita, a articulação do pensamento com o que nele, em tomo dele, debaixo dele, não é pensamento, mas que nem por isso lhe é estranho, segundo uma irredutível, uma intransponível exterioridade.

 Sob essa forma, o cogito 

  • não será, portanto, a súbita descoberta iluminadora de que todo o pensamento é pensado, 
  • mas a interrogação sempre recomeçada para saber como o pensamento habita fora daqui, e, no entanto, o mais próximo de si mesmo, como pode ele ser sob as espécies do não-pensante. 

Ele não reconduz todo o ser das coisas ao pensamento sem ramificar o ser do pensamento até na nervura inerte do que não pensa.

Esse duplo movimento próprio ao cogito moderno explica por que nele o “Eu penso” não conduz à evidência do “Eu sou”; de fato, assim que o “Eu penso” se mostrou imbricado em toda uma espessura em que ele está quase presente, que ele anima mas à maneira ambígua de uma vigília sonolenta, não é mais possível fazer dele decorrer a afirmação de que “Eu sou”: posso eu dizer, com efeito, que sou essa linguagem que falo e na qual meu pensamento desliza a ponto de nela encontrar o sistema de todas as suas possibilidades próprias, mas que, no entanto, só existe sob o peso de sedimentações que ele jamais será capaz de atualizar inteiramente? 

Posso eu dizer que sou este trabalho que faço com minhas mãos, mas que me escapa não somente quando o concluo, mas antes mesmo de o haver encetado? 

Posso eu dizer que sou essa vida que sinto no fundo de mim, mas que me envolve tanto pelo tempo formidável que ela impulsiona consigo e que me eleva por um instante sobre sua crista, quanto pelo tempo iminente que me prescreve minha morte? 

Posso dizer tanto que sou quanto que não sou tudo isso; 

  • o cogito não conduz a uma afirmação de ser, mas abre justamente para toda uma série de interrogações em que o ser está em questão: 
    • que é preciso eu ser, eu que penso e que sou meu pensamento, 
    • para que eu seja o que não penso, para que meu pensamento seja o que não sou? 
  • Que é, pois, esse ser que cintila e, por assim dizer, tremeluz na abertura do cogito, mas não é dado soberanamente nele e por ele? 
  • Qual é, pois, a relação e a difícil interdependência entre o ser e o pensamento? 
  • Que é o ser do homem, e como pode ocorrer que esse ser, que se poderia tão facilmente caracterizar pelo fato de que “ele tem pensamento” e que talvez seja o único a possuí-lo, tenha uma relação indelével e fundamental com o impensado? 

Instaura-se uma forma de reflexão,
bastante afastada do cartesianismo
e da análise kantiana, 
em que está em questão, 
pela primeira vez, 
o ser do homem, 
nessa dimensão segundo a qual
o pensamento 
se dirige ao impensado 
e com ele se articula.

Isso tem duas conseqüências. 

  • A primeira é negativa e de ordem puramente histórica. 

Pode parecer que a fenomenologia juntou, um ao outro,

  • o tema cartesiano do cogito
  • e o motivo transcendental que Kant extraíra da crítica de Hume;

Husserl teria assim reanimado a vocação mais profunda da ratio ocidental, curvando-a sobre si mesma numa reflexão que seria radicalização da filosofia pura e fundamento da possibilidade de sua própria história. 

Na verdade, Husserl só pôde operar essa junção na medida em que a análise transcendental mudara seu ponto de aplicação  

  • (este é transportado da possibilidade de uma ciência da natureza
  • para a possibilidade que o homem tem de se pensar), 

e em que o cogito modificara sua função

  • (esta não é mais a de conduzir a uma existência apodítica, a partir de um pensamento que se afirma por toda a parte em que ele pensa,
  • mas a de mostrar como pode o pensamento escapar a si mesmo e conduzir assim a uma interrogação múltipla e proliferante sobre o ser).

A fenomenologia é, portanto,

  • muito menos a retomada de uma velha destinação racional do Ocidente,
  • que a atestação, bem sensível e ajustada, da grande ruptura que se produziu na epistémê moderna, na curva do século XVIII para o século XIX. 

Se a alguma coisa está ligada

  • é à descoberta da vida, do trabalho e da linguagem;
  • é também a essa figura nova que, sob o velho nome de homem, surgiu não há ainda dois séculos;
  • é à interrogação sobre o modo de ser do homem e sobre sua relação com o impensado. 

É por isso que a fenomenologia – ainda que se tenha esboçado primeiramente através do anti-psicologismo, ou, antes, na medida mesma em que, contra este, tenha feito ressurgir o problema do a priori e o motivo transcendental jamais pôde conjurar o insidioso parentesco, a vizinhança ao mesmo tempo prometedora e ameaçante com as análises empíricas sobre o homem; é por isso também que, embora se tenha inaugurado por uma redução ao cogito, ela foi sempre conduzida a questões, à questão ontológica. 

Sob nossos olhos, o projeto fenomenológico não cessa de se resolver numa descrição do vivido que, queira ou não, é empírica, e uma ontologia do impensado que põe fora de circuito a primazia do “Eu penso”.

  • A outra conseqüência é positiva. 

Concerne à relação do homem com o impensado, ou, mais exatamente, ao seu aparecimento gêmeo na cultura ocidental. 

Tem-se facilmente a impressão de que, a partir do momento em que o homem se constituiu como uma figura positiva no campo do saber, o velho privilégio do conhecimento reflexivo, do pensamento que se pensa a si mesmo, não podia deixar de desaparecer; mas que era, por isso mesmo, dado a um pensamento objetivo percorrer o homem por inteiro – com o risco de nele descobrir o que precisamente jamais podia ser dado à sua reflexão nem mesmo à sua consciência: 

  • mecanismos obscuros, 
  • determinações sem figura, 
  • toda uma paisagem de sombra a que, direta ou indiretamente, se chamou inconsciente. 

Não é o inconsciente aquilo que se dá necessariamente ao pensamento científico que o homem aplica a si mesmo quando pára de se pensar na forma da reflexão? 

De fato, o inconsciente e, de maneira geral, as formas do impensado, não foram a recompensa oferecida a um saber positivo do homem. 

O homem e o impensado são, ao nível arqueológico, contemporâneos. 

O homem não pôde desenhar-se como uma configuração na epistémê, sem que o pensamento simultaneamente descobrisse, ao mesmo tempo em si e fora de si, nas suas margens mas igualmente entrecruzados com sua própria trama, uma parte de noite, uma espessura aparentemente inerte em que ele está imbricado, um impensado que ele contém de ponta a ponta, mas em que do mesmo modo se acha preso. 

O impensado (qualquer que seja o nome que se lhe dê) não está alojado no homem como uma natureza encarquilhada ou uma história que nele se houvesse estratificado, mas é, em relação ao homem, o Outro: o Outro, fraterno e gêmeo, nascido não dele, nem nele, mas ao lado e ao mesmo tempo, numa idêntica novidade, numa dualidade sem apelo. 

Esse terreno obscuro, que facilmente se interpreta como uma região abissal na natureza do homem, ou como uma fortaleza singularmente trancafiada de sua história, lhe está ligado de outro modo; é-lhe, ao mesmo tempo, exterior e indispensável: um pouco a sombra projetada do homem surgindo no saber; um pouco a mancha cega a partir da qual é possível conhecê-lo. 

Em todo o caso, o impensado serviu ao homem de acompanhamento surdo e ininterrupto desde o século XIX. Como, em suma, ele não passava de um duplo insistente, jamais foi refletido por ele próprio de um modo autônomo; daquilo de que ele era o Outro e a sombra, recebeu a forma complementar e o nome invertido; 

  • foi o An sich em face do Für sich na fenomenologia hegeliana; 
  • foi o Unbewusste para Schopenhauer; 
  • foi o homem alienado para Marx; 
  • nas análises de Husserl, o implícito, o inatual, o sedimentado, o não-efetuado: 

de todo modo, o inesgotável duplo que se oferece ao saber refletido como a projeção confusa do que é o homem na sua verdade, mas que desempenha igualmente o papel de base prévia a partir da qual o homem deve reunir-se a si mesmo e se interpelar até sua verdade. 

É que esse duplo, por próximo que seja, é estranho, e o papel do pensamento, sua iniciativa própria, será aproximá-lo o mais perto possível de si mesmo; 

  • todo o pensamento moderno é atravessado pela lei de pensar o impensado –
  • de refletir, na forma do Para-si, os conteúdos do Em-si, 
  • de desalienar o homem reconciliando-o com sua própria essência, 
  • de explicitar o horizonte que dá às experiências seu pano de fundo de evidência imediata e desarmada, 
  • de levantar o véu do Inconsciente, 
  • de absorver-se no seu silêncio 
  • ou de pôr-se à escuta de seu murmúrio indefinido.

Na experiência moderna, a possibilidade de instaurar o homem num saber, o simples aparecimento dessa figura nova no campo da epistémê, implicam um imperativo que importuna interiormente o pensamento; 

  • pouco importa que ele seja cunhado sob as formas de uma moral, de uma política, de um humanismo, de um dever de se incumbir do destino ocidental, 
  • ou da pura e simples consciência de realizar na história uma tarefa de funcionário; 

o essencial é que o pensamento seja, por si mesmo e na espessura de seu trabalho, ao mesmo tempo 

  • saber e modificação do que ele sabe, 
  • reflexão e transformação do modo de ser daquilo sobre o que ele reflete. 

Ele põe em movimento, desde logo, aquilo que toca: não pode descobrir o impensado, ou ao menos ir em sua direção, sem logo aproximá-lo de si – ou talvez ainda, sem afastá-lo, sem que o ser do homem, em todo o caso, uma vez que ele se desenrola nessa distância, não se ache, por isso mesmo, alterado. 

Há aí alguma coisa profundamente ligada à nossa modernidade; afora as morais religiosas, o Ocidente só conheceu, sem dúvida, duas formas de ética: 

  • a antiga (sob a forma do estoicismo ou do epicurismo) articulava-se com a ordem do mundo e, descobrindo sua lei, podia deduzir o princípio de uma sabedoria ou uma concepção da cidade: mesmo o pensamento político do século XVIII pertence ainda a essa forma geral; 
  • a moderna, em contrapartida, não formula nenhuma moral, na medida em que todo imperativo está alojado no interior do pensamento e de seu movimento para captar o impensado; é a reflexão, é a tomada de consciência, é a elucidação do silencioso, a palavra restituída ao que é mudo, o advento à luz dessa parte de sombra que furta o homem a si mesmo, é a reanimação do inerte, é tudo isso que constitui, por si só, o conteúdo e a forma da ética. 

O pensamento moderno jamais pôde, na verdade, propor uma moral: mas a razão disso não está em ser ele pura especulação; muito ao contrário, desde o início e na sua própria espessura, ele é um certo modo de ação. Deixemos falar aqueles que incitam o pensamento a sair de seu retiro e a formular suas escolhas; deixemos agir aqueles que querem, sem qualquer promessa e na ausência de virtude, constituir uma moral. 

Para o pensamento moderno, não há moral possível; pois, desde o século XIX, o pensamento já “saiu” de si mesmo em seu ser próprio, não é mais teoria; desde que ele pensa, fere ou reconcilia, aproxima ou afasta, rompe, dissocia, ata ou reata, não pode impedir-se de liberar e de submeter. 

Antes mesmo de prescrever, de esforçar um futuro, de dizer o que é preciso fazer, antes mesmo de exortar ou somente alertar, o pensamento, ao nível de sua existência, desde sua forma mais matinal, é, em si mesmo, uma ação – um ato perigoso. Sade, Nietzsche, Artaud e Bataille o souberam, por todos aqueles que o quiseram ignorar; mas é certo também que Regel, Marx e Freud o sabiam. 

Pode-se dizer que o ignoram, em seu profundo simplismo, aqueles que afirmam que não há filosofia sem escolha política, que todo pensamento é “progressista” ou “reacionário’? 

Sua inépcia está em crer que todo pensamento “exprime” a ideologia de uma classe; sua involuntária profundidade está em que apontam com o dedo o modo de ser moderno do pensamento. 

Superficialmente, pode-se dizer que o conhecimento do homem, diferentemente das ciências da natureza, está sempre ligado, mesmo sob sua forma mais indecisa, a éticas ou a políticas; mais profundamente, o pensamento moderno avança naquela direção em que o outro do homem deve tomar-se o Mesmo que ele.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
capítulo IX – O homem e seus duplos;
tópico V. O cogito e o impensado

IV. O empírico e o transcendental

IV. O empírico e o transcendental

O homem, na analítica da finitude, é um estranho duplo empírico-transcendental, porquanto é um ser tal que nele se tomará conhecimento do que torna possível todo conhecimento. 

Mas a natureza humana dos empiristas não desempenhava, no século XVIIl, o mesmo papel?

De fato, 

  • o que então se analisava eram as propriedades e as formas da representação que permitiam o conhecimento em geral (é assim que Condillac definia as operações necessárias e suficientes para que a representação se desdobrasse em conhecimento: reminiscência, consciência de si, imaginação, memória); 
  • agora que o lugar da análise não é mais a representação, mas o homem em sua finitude, trata-se de trazer à luz as condições do conhecimento a partir dos conteúdos empíricos que nele são dados. 

Para o movimento geral do pensamento moderno, pouco importa onde esses conteúdos se acham localizados: a questão não está em saber se foram buscados na introspecção ou em outras formas de análise. Pois o limiar da nossa modernidade não está situado no momento em que se pretendeu aplicar ao estudo do homem métodos objetivos, mas no dia em que se constituiu um duplo empírico-transcendental a que se chamou homem. 

Viu-se então aparecer duas espécies de análises: 

  • as que se alojaram no espaço do corpo e que, pelo estudo da percepção, dos mecanismos sensoriais, dos esquemas neuromotores, da articulação comum às coisas e ao organismo, funcionaram como uma espécie de estética transcendental; aí se descobria que o conhecimento tinha condições anatomofisiológicas, que ele se formava pouco a pouco na nervura do corpo, que nele tinha talvez uma sede privilegiada, que suas formas, em todo o caso, não podiam ser dissociadas das singularidades de seu funcionamento; em suma, que havia uma natureza do conhecimento humano que lhe determinava as formas e que podia, ao mesmo tempo, ser-lhe manifestada nos seus próprios conteúdos empíricos. 
  • Houve também as análises que, pelo estudo das ilusões da humanidade, mais ou menos antigas, mais ou menos difíceis de vencer, funcionaram como uma espécie de dialética transcendental; mostrava-se assim que o conhecimento tinha condições históricas, sociais ou econômicas, que ele se formava no interior de relações tecidas entre os homens e que não era independente da figura particular que elas poderiam assumir aqui ou ali, em suma, que havia uma história do conhecimento humano que podia ao mesmo tempo ser dada ao saber empírico e prescrever-lhe suas formas.

Ora, o que há de particular nessas análises é que não têm, ao que parece, necessidade alguma umas das outras; bem mais, podem dispensar todo recurso a uma analítica (ou a uma teoria do sujeito): elas pretendem poder repousar apenas sobre si mesmas, já que são os próprios conteúdos que funcionam como reflexão transcendental. 

Mas, de fato, a busca de uma natureza ou de uma história do conhecimento, no movimento em que ela restringe a dimensão própria da crítica aos conteúdos de um conhecimento empírico, supõe o uso de uma certa crítica.

Crítica que não é o exercício de uma reflexão pura, mas o resultado de uma série de divisões mais ou menos obscuras. E, antes de tudo, divisões relativamente elucidadas, mesmo se arbitrárias: 

  • a que distingue o conhecimento rudimentar, imperfeito, mal equilibrado, nascente, daquele que se pode dizer, se não acabado, ao menos constituído em suas formas estáveis e definitivas (esta divisão toma possível o estudo das condições naturais do conhecimento); 
  • a que distingue a ilusão da verdade, a quimera ideológica da teoria científica (esta divisão torna possível o estudo das condições históricas do conhecimento); 

mas há uma divisão mais obscura e mais fundamental: é a da própria verdade; 

  • deve existir, com efeito, uma verdade que é da ordem do objeto – aquela que pouco a pouco se esforça, se forma, se equilibra e se manifesta através do corpo e dos rudimentos da percepção, aquela igualmente que se desenha à medida que as ilusões se dissipam e que a história se instaura num estatuto desalienado; 
  • mas deve existir também uma verdade que é da ordem do discurso – uma verdade que permite sustentar sobre a natureza ou a história do conhecimento uma linguagem que seja verdadeira. 

É o estatuto desse discurso verdadeiro que permanece ambíguo. 

Das duas uma: 

  • ou esse discurso verdadeiro encontra seu fundamento e seu modelo nessa verdade empírica cuja gênese ele retraça na natureza e na história, e ter-se-á uma análise de tipo positivista (a verdade do objeto prescreve a verdade do discurso que descreve sua formação); 
  • ou o discurso verdadeiro se antecipa a essa verdade de que define a natureza e a história, esboça-a de antemão e a fomenta de longe, e, então, ter-se-á um discurso de tipo escatológico (a verdade do discurso filosófico constitui a verdade em formação). 

A bem dizer, trata-se aí menos de uma alternativa que da oscilação inerente a toda análise que faz valer o empírico ao nível do transcendental. 

Comte e Marx são realmente testemunhas desse fato de que 

  • a escatologia (como verdade objetiva por vir do discurso sobre o homem) 
  • e o positivismo (como verdade do discurso definida a partir daquela do objeto) 

são arqueologicamente indissociáveis: um discurso que se pretende ao mesmo tempo empírico e crítico só pode ser, a um tempo, positivista e escatológico; o homem aí aparece como uma verdade ao mesmo tempo reduzida e prometida. A ingenuidade pré-crítica nele reina sem restrições.

É por isso que o pensamento moderno não pôde evitar e a partir justamente desse discurso ingênuo – a busca do lugar de um discurso que não fosse nem da ordem da redução nem da ordem da promessa: 

  • um discurso cuja tensão mantivesse separados o empírico e o transcendental, permitindo, no entanto, visar a um e outro ao mesmo tempo; 
  • um discurso que permitisse analisar o homem como sujeito, isto é, como lugar de conhecimentos empíricos mas reconduzidos o mais próximo possível do que os toma possíveis, e como forma pura imediatamente presente nesses conteúdos; 
  • um discurso, em suma, que desempenhasse em relação à quase-estética e à quase-dialética o papel de uma analítica que, ao mesmo tempo, as fundasse numa teoria do sujeito e lhes permitisse talvez articular-se com esse termo terceiro e intermediário em que se enraizariam, ao mesmo tempo, a experiência do corpo e a da cultura. 

Um papel tão complexo, tão super-determinado e tão necessário foi desempenhado, no pensamento moderno, pela análise do vivido. 

O vivido, com efeito, é o espaço onde todos os conteúdos empíricos são dados à experiência; é também a forma originária que os torna em geral possíveis e designa seu enraizamento primeiro; ele estabelece, na verdade, comunicação entre o espaço do corpo e o tempo da cultura, as determinações da natureza e o peso da história, sob a condição, porém, de que o corpo e, através dele, a natureza sejam primeiramente dados na experiência de uma espacialidade irredutível, e de que a cultura, portadora de história, seja primeiramente experimentada no imediato das significações sedimentadas. 

Pode-se compreender perfeitamente que a análise do vivido se tenha instaurado, na reflexão moderna, como uma contestação radical do positivismo e da escatologia; 

  • que tenha tentado restaurar a dimensão esquecida do transcendental; 
  • que tenha pretendido conjurar o discurso ingênuo de uma verdade reduzida ao empírico, e o discurso profético que ingenuamente promete o advento à experiência de um homem, enfim. 

É também verdade que a análise do vivido não deixa de ser um discurso de natureza mista: 

  • endereça-se a uma camada específica mas ambígua, bastante concreta, para que se lha possa aplicar uma linguagem meticulosa e descritiva, e bastante recuada, 
  • entretanto, em relação à positividade das coisas, para que se possa, a partir daí, escapar a essa ingenuidade, contestá-la e buscar-lhe fundamentos. 

Ela procura articular 

  • a objetividade possível de um conhecimento da natureza 
  • com a experiência originária que se esboça através do corpo; 

e articular 

  • a história possível de uma cultura 
  • com a espessura semântica que, a um tempo, se esconde e se mostra na experiência vivida. 

Portanto, não faz mais que preencher, com mais cuidado, as exigências apressadas que foram postas quando se pretendeu fazer valer, no homem, o empírico pelo transcendental. 

Vê-se a rede cerrada que, apesar das aparências, religa os pensamentos de tipo positivista ou escatológico (o marxismo em primeiro lugar) com as reflexões inspiradas na fenomenologia. 

A aproximação recente não é da ordem da conciliação tardia: ao nível das configurações arqueológicas, eles eram necessários, uns como outros – e uns aos outros – desde a constituição do postulado antropológico, isto é, desde o momento em que o homem apareceu como duplo empírico-transcendental.

A verdadeira contestação do positivismo e da escatologia não está, pois, num retorno ao vivido (que, na verdade, antes os confirma, enraizando-os); mas, se ela pudesse exercer-se, seria a partir de uma questão que, sem dúvida, parece aberrante, de tal modo está em discordância com o que tornou historicamente possível todo o nosso pensamento. 

Essa questão consistiria em perguntar se verdadeiramente o homem existe. Acredita-se que é simular um paradoxo supor, por um só instante, o que poderiam ser o mundo, o pensamento e a verdade se o homem não existisse. 

É que estamos tão ofuscados pela recente evidência do homem que sequer guardamos em nossa lembrança o tempo, todavia pouco distante, em que existiam o mundo, sua ordem, os seres humanos, mas não o homem. 

Compreende-se o poder de abalo que pôde ter e que conserva ainda para nós o pensamento de Nietzsche, quando anunciou, sob a forma do acontecimento iminente, da Promessa-Ameaça, que, bem logo, o homem não seria mais – mas, sim, o super-homem; o que, numa filosofia do Retorno, queria dizer que o homem, já desde muito tempo, havia desaparecido e não cessava de desaparecer, e que nosso pensamento moderno do homem, nossa solicitude para com ele, nosso humanismo dormiam serenamente sobre sua retumbante inexistência. 

A nós, que nos acreditamos ligados a uma finitude que só a nós pertence e que nos abre, pelo conhecer, a verdade do mundo, não deveria ser lembrado que estamos presos ao dorso de um tigre?

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
capítulo IX – O homem e seus duplos;
tópico IV. O empírico e o transcendental

III. A analítica da finitude

III. A analítica da finitude

Quando 

  • a história natural se torna biologia, 
  • quando a análise das riquezas se torna economia,
  • quando sobretudo a reflexão sobre a linguagem se faz filologia 
  • e se desvanece esse discurso clássico
    em que o ser e a representação
    encontravam seu lugar-comum, 

então, no movimento profundo de uma tal mutação arqueológica, o homem aparece com sua posição ambígua 

  • de objeto para um saber 
  • e de sujeito que conhece: 

soberano submisso, espectador olhado, surge ele aí, nesse lugar do Rei que, antecipadamente, lhe designavam Las meninas, mas donde, durante longo tempo, sua presença real foi excluída. 

Como se nesse espaço vacante, em cuja direção estava voltado todo o quadro de Velásquez, mas que ele, contudo, só refletia pelo acaso de um espelho e como que por violação, todas as figuras de que se suspeitava a alternância, a exclusão recíproca, o entrelaçamento e a oscilação (o modelo, o pintor, o rei, o espectador) cessassem de súbito sua imperceptível dança, se imobilizassem numa figura plena e exigissem que fosse enfim reportado a um olhar de carne todo o espaço da representação.

O motivo dessa presença nova, a modalidade que lhe é própria, a disposição singular da epistémê que a autoriza, a relação nova que através dela se estabelece entre as palavras, as coisas e sua ordem – tudo isso pode ser agora trazido à luz. 

  • Cuvier e seus contemporâneos haviam requerido à vida que ela mesma definisse, na profundidade de seu ser, as condições de possibilidade do ser vivo; 
  • do mesmo modo, Ricardo havia requerido ao trabalho as condições de possibilidade da troca, do lucro e da produção; 
  • os primeiros filólogos haviam buscado, na profundidade histórica das línguas, a possibilidade do discurso e da gramática. 

Por isso mesmo, a representação deixou de valer para os seres vivos, para as necessidades e para as palavras, como seu lugar de origem e a sede primitiva de sua verdade; em relação a eles, ela nada mais é, doravante, que um efeito, seu acompanhante mais ou menos confuso numa consciência que os apreende e os restitui. 

A representação que se faz das coisas não tem mais que desdobrar, num espaço soberano, o quadro de sua ordenação; ela é, do lado desse indivíduo empírico que é o homem, o fenômeno – menos ainda talvez, a aparência – de uma ordem que pertence agora às coisas mesmas e à sua lei interior. Na representação, os seres não manifestam mais sua identidade, mas a relação exterior que estabelecem com o ser humano. 

Este, com seu ser próprio, com seu poder de se fornecer representações, surge num vão disposto pelos seres vivos, pelos objetos de troca e pelas palavras quando, abandonando a representação que fora até então seu lugar natural, retiram-se na profundidade das coisas e se enrolam sobre si mesmos segundo as leis da vida, da produção e da linguagem. 

Em meio a todos eles, comprimido pelo círculo que formam, o homem é designado – bem mais, é requerido – por eles, já que é ele quem fala, já que é visto residindo entre os animais (e num lugar que não é somente privilegiado, mas ordenador do conjunto que eles formam: mesmo se não é concebido como termo da evolução, nele se reconhece a extremidade de uma longa série), já que, enfim, a relação entre as necessidades e os meios que ele possui para satisfazê-las é tal que ele é necessariamente princípio meio de toda produção.

Mas essa imperiosa designação é ambígua. Em certo sentido, o homem é dominado pelo trabalho, pela vida e pela linguagem: sua existência concreta neles encontra suas determinações; só se pode ter acesso a ele através de suas palavras, de seu organismo, dos objetos que ele fabrica – como se eles primeiramente (e somente eles talvez) detivessem a verdade; e ele próprio, desde que pensa, só se desvela a seus próprios olhos sob a forma de um ser que, numa espessura necessariamente subjacente, numa irredutível anterioridade, é já um ser vivo, um instrumento de produção, um veículo para palavras que lhe preexistem. 

Todos esses conteúdos que seu saber lhe revela exteriores a ele e mais velhos que seu nascimento antecipam-no, vergam-no com toda a sua solidez e o atravessam como se ele não fosse nada mais do que um objeto da natureza ou um rosto que deve desvanecer-se na história. 

A finitude do homem se anuncia – e de uma forma imperiosa – na positividade do saber; sabe-se que o homem é finito, como se conhecem a anatomia do cérebro, o mecanismo dos custos de produção ou o sistema da conjugação indo-européia; ou, antes, pela filigrana de todas essas figuras sólidas, positivas e plenas, percebem-se a finitude e os limites que elas impõem, adivinha-se como que em branco tudo o que elas tornam impossível.

Na verdade, porém, essa primeira descoberta da finitude é instável; nada permite detê-la sobre si; e não se poderia supor que ela promete também esse mesmo infinito que ela recusa, segundo o sistema da atualidade? 

A evolução da espécie não está talvez concluída; 

  • as formas da produção e do trabalho não cessam de modificar-se e, talvez um dia, o homem não encontre mais no seu labor o princípio de sua alienação, nem nas suas necessidades a constante evocação de seus limites; 
  • e nada prova, tampouco, que ele não descobrirá sistemas simbólicos suficientemente puros para dissolver a velha opacidade das linguagens históricas. 

Anunciada na positividade, a finitude do homem se perfila sob a forma paradoxal do indefinido; ela indica, mais que o rigor do limite, a monotonia do caminhar que, sem dúvida, não tem limite mas que talvez não seja sem esperança. 

No entanto, todos esses conteúdos, com o que encobrem e com o que também deixam apontar em direção aos confins do tempo, só têm positividade no espaço do saber, só se oferecem à tarefa de um conhecimento possível, se ligados inteiramente à finitude. Pois eles não estariam aí, nessa luz que os ilumina parcialmente, se o homem que se descobre através deles estivesse preso na abertura muda, noturna, imediata e feliz da vida animal; mas tampouco se dariam sob o ângulo agudo que os dissimula a partir deles próprios, se o homem pudesse percorrê-los por inteiro no clarão de um entendimento infinito. 

Mas, à experiência do homem é dado 

  • um corpo que é seu corpo – fragmento de espaço ambíguo, cuja espacialidade própria e irredutível se articula contudo com o espaço das coisas; 
  • a essa mesma experiência é dado o desejo, como apetite primordial a partir do qual todas as coisas adquirem valor e valor relativo; 
  • a essa mesma experiência é dada uma linguagem em cujo fio todos os discursos de todos os tempos, todas as sucessões e todas as simultaneidades podem ser franqueados. 

Isso quer dizer que cada uma dessas formas positivas, em que o homem pode aprender que é finito, só lhe é dada com base na sua própria finitude. Ora, esta não é a essência mais bem purificada da positividade, mas aquilo a partir do que é possível que ela apareça. 

O modo de ser da vida e aquilo mesmo que faz com que a vida não exista sem me prescrever suas formas me são dados, fundamentalmente, por meu corpo; 

  • o modo de ser da produção, o peso de suas determinações sobre minha existência me são dados pelo meu desejo; 
  • e o modo de ser da linguagem, todo o rastro da história que as palavras fazem luzir no instante em que são pronunciadas e, talvez, até num tempo mais imperceptível ainda, 

só me são dados ao longo da tênue cadeia de meu pensamento falante. 

No fundamento de todas as positividades empíricas e do que se pode indicar como limitações concretas à existência do homem, descobre-se uma finitude – que em certo sentido é a mesma: ela é marcada 

  • pela espacialidade do corpo, 
  • pela abertura do desejo 
  • e pelo tempo da linguagem; 

e, contudo, ela é radicalmente outra: nela o limite não se manifesta como determinação imposta ao homem do exterior (por ter uma natureza ou uma história), mas como finitude fundamental que só repousa sobre seu próprio fato e se abre para a positividade de todo limite concreto.

Assim, do coração mesmo da empiricidade, indica-se a obrigação de ascender ou, se se quiser, de descer até urna analítica da finitude, em que o ser do homem poderá fundar, na possibilidade delas, todas as formas que lhe indicam que ele não é infinito. E o primeiro caráter com que essa analítica marcará o modo de ser do homem, ou, antes, o espaço no qual ela se desenrolará por inteiro, será o da repetição – da identidade e da diferença entre o positivo e o fundamental: a morte que corrói anonimamente a existência cotidiana do ser vivo é a mesma que aquela, fundamental, a partir da qual se dá a mim mesmo minha vida empírica; o desejo que liga e separa os homens na neutralidade do processo econômico é o mesmo a partir do qual alguma coisa me é desejável; o tempo que transporta as linguagens, nelas se aloja e acaba por desgastá-las, é esse tempo que alonga meu discurso antes mesmo que eu o tenha pronunciado numa sucessão que ninguém pode dominar. De um extremo ao outro da experiência, a finitude responde a si mesma; ela é, na figura do Mesmo, a identidade e a diferença das positividades e de seu fundamento. Vê-se como a reflexão moderna, desde o primeiro esboço dessa analítica, se inclina em direção a certo pensamento do Mesmo – em que a Diferença é a mesma coisa que a Identidade – exposição da representação, com sua realização em quadro, tal como o ordenava o saber clássico. É nesse espaço estreito e imenso, aberto pela repetição do positivo no fundamental, que toda essa analítica da finitude – tão ligada ao destino do pensamento moderno – vai desdobrar-se: é aí que se verá sucessivamente o transcendental repetir o empírico, o cogito repetir o impensado, o retorno da origem repetir seu recuo; é aí que se afirmará, a partir dele próprio, um pensamento do Mesmo irredutível à filosofia clássica.

Dir-se-á talvez que não era preciso esperar o século XIX para que a idéia da finitude fosse trazida à luz. É verdade que ele talvez a tenha somente deslocado no espaço do pensamento, fazendo-a desempenhar um papel mais complexo, mais ambíguo, de contorno menos fácil: para o pensamento dos séculos XVII e XVIII, era sua finitude que constrangia o homem a viver uma existência animal, a trabalhar com o suor de seu rosto, a pensar com palavras opacas; era essa mesma finitude que o impedia de conhecer de modo absoluto os mecanismos de seu corpo, os meios de satisfazer suas necessidades, o método para pensar sem o perigoso auxílio de uma linguagem toda tramada de hábitos e de imaginações. Como inadequação ao infinito, o limite do homem explicava tanto a existência desses conteúdos empíricos quanto a impossibilidade de conhecê-los imediatamente. E, assim, a relação negativa com o infinito – quer fosse concebida como criação, ou queda, ou ligação da alma e do corpo, ou determinação no interior do ser infinito, ou ponto de vista singular sobre a totalidade, ou liame da representação com a impressão – dava-se como anterior à empiricidade do homem e ao conhecimento que dela ele pode ter. Aquele limite fundava, num só movimento, mas sem retorno recíproco nem circularidade, a existência dos corpos, das necessidades e das palavras e a impossibilidade de dominá-los num conhecimento absoluto. A experiência que se forma no começo do século XIX aloja a descoberta da finitude não mais no interior do pensamento do infinito, mas no coração mesmo desses conteúdos que são dados, por um saber [mito, como as formas concretas da existência finita. Daí o jogo interminável de uma referência reduplicada: se o saber do homem é finito, é porque ele está preso, sem liberação possível, nos conteúdos positivos da linguagem, do trabalho e da vida; e inversamente, se a vida, o trabalho e a linguagem se dão em sua positividade, é porque o conhecimento tem formas finitas. Em outros termos, para o pensamento clássico, a finitude (como determinação positivamente constituída a partir do infinito) explica essas formas negativas que são o corpo, a necessidade, a linguagem, e o conhecimento limitado que deles se pode ter; para o pensamento moderno, a positividade da vida, da produção e do trabalho (que têm sua existência, sua historicidade e suas leis próprias) funda, como sua correlação negativa, o caráter limitado do conhecimento; e, inversamente, os limites do conhecimento fundam positivamente a possibilidade de saber, mas numa experiência sempre limitada, o que são a vida, o trabalho e a linguagem. Enquanto esses conteúdos empíricos estivessem alojados no espaço da representação, uma metafisica do infinito era não somente possível, mas exigida: com efeito, era realmente necessário que eles fossem as formas manifestas da finitude humana e que, no entanto, pudessem ter seu lugar e sua verdade no interior da representação; a ideia do infinito e a da sua determinação na finitude permitiam uma coisa e outra. Mas, quando os conteúdos empíricos foram desligados da representação e envolveram em si mesmos o princípio de sua existência, então a metafisica do infinito tomou-se inútil; a finitude não cessou mais de remeter a ela própria (da positividade dos conteúdos às limitações do conhecimento, e da positividade limitada deste ao saber limitado dos conteúdos). Então, todo o campo do pensamento ocidental foi invertido. Lá onde outrora havia correlação entre uma metafisica da representação e do infinito e uma análise dos seres vivos, dos desejos do homem, e das palavras de sua língua, vê-se constituir-se uma analítica da finitude e da existência humana, e em oposição a ela (mas numa oposição correlativa) uma perpétua tentação de constituir uma metafisica da vida, do trabalho e da linguagem. Mas isso não passa jamais de tentações, logo contestadas e como que minadas por dentro, pois não pode haver metafísicas medidas pelas finitudes humanas: metafisica de uma vida que converge para o homem, ainda que nele não se detenha; metafisica de um trabalho que libera o homem, de modo que o homem, em troca, possa dele liberar-se; metafisica de uma linguagem de que o homem pode reapropriar-se na consciência de sua própria cultura. De sorte que o pensamento moderno se contestará nos seus próprios arrojos metafísicos e mostrará que as reflexões sobre a vida, o trabalho e a linguagem, na medida em que valem como analíticas da finitude, manifestam o fim da metafisica: a filosofia da vida denuncia a metafisica como véu da ilusão, a do trabalho a denuncia como pensamento alienado e ideologia, a da linguagem, como episódio cultural.

Mas o fim da metafisica não é senão a face negativa de um acontecimento muito mais complexo que se produziu no pensamento ocidental. Esse acontecimento foi o aparecimento do homem. Não se deveria contudo crer que ele surgiu de súbito no horizonte, impondo de maneira irruptiva e absolutamente embaraçosa para nossa reflexão, o fato brutal de seu corpo, de seu labor, de sua linguagem; não foi a miséria positiva do homem que reduziu violentamente a metafisica. Sem dúvida, ao nível das aparências, a modernidade começa quando o ser humano começa a existir no interior de seu organismo, na concha de sua cabeça, na armadura de seus membros e em meio a toda a nervura de sua fisiologia; quando ele começa a existir no coração de um trabalho cujo princípio o domina e cujo produto lhe escapa; quando aloja seu pensamento nas dobras de uma linguagem, tão mais velha que ele não pode dominar-lhe as significações, reanimadas, contudo, pela insistência de sua palavra. Porém, mais fundamentalmente, nossa cultura transpôs o limiar a partir do qual reconhecemos nossa modernidade, no dia em que a finitude foi pensada numa referência interminável a si mesma. Se é verdade, ao nível dos diferentes saberes, que a finitude é sempre designada a partir do homem concreto e das formas empíricas que se podem atribuir à sua existência, ao nível arqueológico, que descobre o a priori histórico e geral de cada um dos saberes, o homem moderno – esse homem determinável em sua existência corporal, laboriosa e falante – só é possível a título de figura da finitude. A cultura moderna pode pensar o homem porque ela pensa o finito a partir dele próprio. 

Compreende-se, nessas condições, que o pensamento clássico e todos os que o procederam tenham podido falar do espírito e do corpo, do ser humano, de seu lugar tão limitado no universo, de todos os limites que medem seu conhecimento ou sua liberdade, mas que nenhum dentre eles jamais conheceu o homem tal como é dado ao saber moderno. 

O “humanismo” do Renascimento, o “racionalismo” dos clássicos podem realmente ter conferido um lugar privilegiado aos humanos na ordem do mundo, 

  • mas não puderam pensar o homem.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
capítulo IX – O homem e seus duplos;
tópico III – A analítica da finitude

I. O retorno da linguagem

I. O retorno da linguagem

Com a literatura, com o retorno da exegese e a preocupação da formalização, com a constituição de uma filologia, em suma, com o reaparecimento da linguagem num pulular múltiplo, a ordem do pensamento clássico pode doravante apagar-se. 

Nessa data entra ela, para todo olhar futuro, numa região de sombra. Nem é de obscuridade que se deveria ainda falar, mas de uma luz um pouco confusa, falsamente evidente e que oculta mais do que manifesta: parece, com efeito, que conhecemos tudo de saber clássico, se compreendemos 

  • que é racionalista, 
  • que atribui, desde Galileu e Descartes, um privilégio absoluto à mecânica, 
  • que supõe uma organização geral da natureza, 
  • que admite uma possibilidade de análise bastante radical para descobrir o elemento ou a origem, 
  • mas que já pressente, através e apesar de todos esses conceitos de entendimento, 
    • o movimento da vida,
    • a espessura da história 
    • e a desordem, difícil de dominar, da natureza. 

Mas reconhecer o pensamento clássico somente por esses sinais é desconhecer-lhe a disposição fundamental; é negligenciar inteiramente a relação entre tais manifestações e o que as tornava possíveis. 

E como, afinal de contas (a não ser por uma técnica laboriosa e lenta), reencontrar

  • a complexa relação das representações,
  • das identidades,
  • das ordens,
  • das palavras,
  • dos seres naturais, 
  • dos desejos
  • e dos interesses, 

a partir do momento em que toda essa grande rede se desfez, 

  • em que as necessidades organizaram por si mesmas sua produção
  • em que os seres vivos se voltaram para as funções essenciais da vida, 
  • em que as palavras se carregaram com o peso de sua história material 

em suma, a partir do momento em que as identidades da representação cessaram de manifestar, sem reticências nem reservas, a ordem dos seres? 

Todo o sistema dos crivos que analisava a seqüência das representações (tênue série temporal desenrolando-se no espírito dos homens) para fazê-la oscilar, para detê-la, desenvolvê-la e reparti-la num quadro permanente, todas essas querelas constituídas pelas palavras e pelo discurso, pelos caracteres e pela classificação, pelas equivalências e pela troca são agora abolidas a ponto de ser difícil reencontrar a maneira como esse conjunto pôde funcionar. 

A última “peça” que saltou – e cujo desaparecimento afastou de nós para sempre o pensamento clássico – é justamente o primeiro desses crivos: 

  • o discurso que assegurava o desdobramento inicial, espontâneo, ingênuo da representação em quadro. 

Desde o dia em que ele cessou de existir e de funcionar no interior da representação como sua ordenação primeira, o pensamento clássico cessou, no mesmo movimento, de nos ser diretamente acessível. 

O limiar do classicismo para a modernidade (mas pouco importam as próprias palavras – digamos, de nossa pré história para o que nos é ainda contemporâneo) foi definitivamente transposto quando as palavras cessaram de entrecruzar-se com as representações e de quadricular espontaneamente o conhecimento das coisas. 

No começo do século XIX, elas encontraram sua velha, sua enigmática espessura; não, porém, para reintegrar a curva do mundo que as alojava no Renascimento, nem para se misturar às coisas num sistema circular de signos. 

Destacada da representação, a linguagem doravante não mais existe, e até hoje ainda, senão de um modo disperso: 

  • para os filólogos, as palavras são como tantos objetos constituídos e depositados pela história;
  • para os que querem formalizar, a linguagem deve despojar-se de seu conteúdo concreto e só deixar aparecer as formas universalmente válidas do discurso;
  • se se quer interpretar, então as palavras tornam-se texto a ser fraturado para que se possa ver emergir, em plena luz, esse outro sentido que ocultam; ocorre enfim à linguagem surgir por si mesma num ato de escrever que não designa nada mais que ele próprio. 

Essa dispersão impõe à linguagem, se não um privilégio, ao menos um destino que parece singular quando comparado ao do trabalho ou da vida. 

  • Quando o quadro da história natural foi dissociado, os seres vivos foram dispersados, mas reagrupados, ao contrário, em torno do enigma da vida; 
  • quando a análise das riquezas desapareceu, todos os processos econômicos se reagruparam em torno da produção e do que a tornava possível; 
  • em contrapartida, quando a unidade da gramática geral – o discurso – se dissipou, então a linguagem apareceu segundo modos de ser múltiplos, cuja unidade, sem dúvida, não podia ser restaurada. 

Foi por essa razão, talvez, que a reflexão filosófica manteve-se durante muito tempo distanciada da linguagem. Enquanto buscava incansavelmente do lado da vida ou do trabalho alguma coisa que fosse seu objeto, ou seus modelos conceptuais, ou seu solo real e fundamental, só prestava à linguagem uma atenção marginal; para ela, tratava-se sobretudo de afastar os obstáculos que a linguagem podia opor à sua tarefa; era necessário, por exemplo, liberar as palavras dos conteúdos silenciosos que as alienava, ou, ainda, tornar a linguagem flexível e como que interiormente fluida, a fim de que, liberta das espacializações do entendimento, pudesse restituir o movimento da vida e sua duração própria. 

A linguagem só entrou diretamente e por si própria no campo do pensamento no fim do século XIX. 

Poder-se-ia mesmo dizer no século XX, se Nietzsche, o filólogo – e nisso também era ele tão erudito, a esse respeito sabia tanto e escrevia tão bons livros -, não tivesse sido o primeiro a aproximar a tarefa filosófica de uma reflexão radical sobre a linguagem. 

E eis que agora, nesse espaço filosófico-filológico que Nietzsche abriu para nós, a linguagem surge numa multiplicidade enigmática que precisaria ser dominada. Aparecem então, como tantos projetos (quimeras, quem pode sabê-lo no momento?), os temas de uma formalização universal de todo discurso, ou os de uma exegese integral do mundo que seria ao mesmo tempo sua perfeita desmistificação, ou os de uma teoria geral dos signos; ou ainda o tema (que foi, sem dúvida, historicamente primeiro) de uma transformação sem resíduo, de uma reabsorção integral de todos os discursos numa única palavra, de todos os livros numa página, de todo o mundo num livro. 

A grande tarefa a que se votou Mallarmé, e até a morte, é a que nos domina agora; no seu balbucio, envolve todos os nossos esforços de hoje para reconduzir à coação de uma unidade talvez impossível o ser fragmentado da linguagem. O empenho de Mallarmé para encerrar todo discurso possível na frágil espessura da palavra, nessa tênue e material linha negra traçada a tinta sobre o papel, responde, no fundo, à questão que Nietzsche prescrevia à filosofia. 

Para Nietzsche, não se tratava de saber o que eram em si mesmos o bem e o mal, mas quem era designado, ou antes, quem falava, quando, para designar-se a si próprio se dizia Agathós, e Deilós para designar os outros. 

Pois é aí, naquele que mantém o discurso e mais profundamente detém a palavra, que a linguagem inteira se reúne. 

A esta questão nietzschiana: 

  • quem fala? 

Mallarmé responde e não cessa de retomar sua resposta, dizendo que 

  • o que fala é, em sua solidão, em sua vibração frágil, em seu nada, a própria palavra – não o sentido da palavra, mas seu ser enigmático e precário. 

Enquanto Nietzsche mantinha até o fim a interrogação sobre aquele que fala, com o risco de fazer afinal a irrupção de si próprio no interior desse questionamento para fundá-lo em si mesmo, sujeito falante e interrogante: Ecce homo – Mallarmé não cessa de apagar-se na sua própria linguagem, a ponto de não mais querer aí figurar senão a título de executor numa pura cerimônia do Livro, em que o discurso se comporia por si mesmo. 

É bem possível que todas as questões que atravessam atualmente nossa curiosidade (Que é linguagem? Que é um signo? O que é mudo no mundo, nos nossos gestos, em todo o brasão enigmático de nossas condutas, em nossos sonhos e em nossas doenças – tudo isso fala, e que linguagem sustenta, segundo que gramática? Tudo é significante, ou o que o é, e para quem, segundo que regras? Que relação há entre a linguagem e o ser, e é realmente ao ser que sempre se endereça a linguagem, pelo menos aquela que fala verdadeiramente? Que é, pois, essa linguagem que nada diz, jamais se cala e se chama “literatura”?) – é bem possível que todas essas questões se coloquem hoje na distância jamais superada entre a questão de Nietzsche e a resposta que lhe deu Mallarmé. 

Sabemos agora donde nos vêm essas questões. 

Elas tornaram-se possíveis pelo fato de que, no começo do século XIX, estando a lei do discurso destacada da representação, o ser da linguagem achou-se como que fragmentado; mas elas se tornaram necessárias quando, com Nietzsche, com Mallarmé, o pensamento foi reconduzido, e violentamente, para a própria linguagem, para seu ser único e difícil. 

Toda a curiosidade de nosso pensamento se aloja agora na questão: 

  • que é a linguagem, como contorná-la para fazê-la aparecer em si mesma e em sua plenitude? 

Em certo sentido, essa questão toma o lugar daquelas que, no século XIX, concerniam à vida ou ao trabalho. Mas o estatuto dessa busca e de todas as questões que a diversificam não é perfeitamente claro. 

Dever-se-á pressentir aí o nascimento, menos ainda, o primeiro vislumbre no horizonte de um dia que mal se anuncia, mas em que já adivinhamos que o pensamento – esse pensamento que fala desde milênios sem saber o que é falar, nem mesmo que ele fala – vai recuperar-se por inteiro e iluminar-se de novo no fulgor do ser? 

Não é isso o que Nietzsche preparava quando, no interior de sua linguagem, matava o homem e Deus ao mesmo tempo e assim prometia, com o Retorno, o cintilar múltiplo e recomeçado dos deuses? 

Ou será preciso admitir, muito simplesmente, que tantas questões sobre a linguagem não fazem mais que prosseguir e no máximo concluir esse acontecimento, cuja existência e cujos primeiros efeitos, desde o fim do século XVIII, a arqueologia nos ensinou? 

O fracionamento da linguagem, contemporâneo de sua passagem à objetividade filológica, seria, então, apenas a conseqüência mais recentemente visível (porque a mais secreta e a mais fundamental) da ruptura da ordem clássica; esforçando-nos por dominar essa quebra e fazer aparecer a linguagem por inteiro, levaríamos a seu termo o que se passou antes de nós e sem nós, por volta do fim do século XVIII. 

Mas que seria, pois, esse acabamento? 

Pretendendo reconstituir a unidade perdida da linguagem, estar-se-ia indo até o fim de um pensamento que é o do século XIX, ou não se estaria indo em direção a formas que já são incompatíveis com ele? 

A dispersão da linguagem está ligada, com efeito, de um modo fundamental, a esse acontecimento arqueológico que se pode designar pelo desaparecimento do Discurso. 

Reencontrar num espaço único o grande jogo da linguagem tanto poderia ser 

  • dar um salto decisivo para uma forma inteiramente nova de pensamento 
  • quanto fechar sobre si mesmo um modo de saber constituído no século precedente. 

É verdade que a essas questões eu não sei responder, nem, entre essas alternativas, qual termo conviria escolher. Sequer adivinho se poderia jamais responder a elas ou se um dia me virão razões para me determinar. 

Todavia, sei agora por que é que, como todo o mundo, eu as posso formular a mim próprio – e que não as posso deixar de formular. 

Somente aqueles que não sabem ler se espantarão de que eu o tenha aprendido mais claramente 

  • em Cuvier, [naturalista]
  • em Bopp, [linguista]
  • em Ricardo, [economista]

do que em Kant ou Hegel.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
capítulo IX – O homem e seus duplos;
tópico I – O retorno da linguagem

III. Os três modelos

III. Os três modelos

As três faces do conhecimento

Assim, estes três pares,

  • função e norma,
  • conflito e regra,
  • significação e sistema,

cobrem, por completo, o domínio inteiro do conhecimento do homem.

Numa primeira abordagem, pode-se dizer que o domínio das ciências humanas é coberto por três “ciências” – ou, antes, por três regiões epistemológicas, todas subdivididas no interior de si mesmas e todas entrecruzadas umas com as outras; essas regiões são definidas pela tríplice relação das ciências humanas em geral com a biologia, a economia, a filologia. 

Poder-se-ia admitir assim que 

  • a “região psicológica” encontrou seu lugar lá onde o ser vivo, no prolongamento de suas funções, de seus esquemas neuromotores, de suas regulações fisiológicas, mas também na suspensão que os interrompe e os limita, se abre à possibilidade da representação; 
  • do mesmo modo, a “região sociológica” teria encontrado seu lugar lá onde o indivíduo que trabalha, produz e consome se confere a representação da sociedade em que se exerce essa atividade, dos grupos e dos indivíduos entre os quais ela se reparte, dos imperativos, das sanções, dos ritos, das festas e das crenças mediante os quais ela é sustentada ou regulada; 
  • enfim naquela região onde reinam as leis e as formas de uma linguagem, mas onde, entretanto, elas permanecem à margem de si mesmas, permitindo ao homem fazer aí passar o jogo de suas representações, lá nascem o estudo das literaturas e dos mitos, a análise de todas as manifestações orais e de todos os documentos escritos, em suma, a análise dos vestígios verbais que uma cultura ou um indivíduo podem deixar de si mesmos.

Essa repartição, ainda que muito sumária, não é certamente demasiado inexata. Ela deixa, porém, na íntegra, dois problemas fundamentais: 

  • um concerne à forma de positividade que é própria às ciências humanas (os conceitos em torno dos quais elas se organizam, o tipo de racionalidade ao qual se referem e pelo qual buscam constituir-se como saber); 
  • outro, à sua relação com a representação (e a este fato paradoxal de que, embora tendo lugar somente onde há representação, é a mecanismos, formas, processos inconscientes, é, em todo o caso, aos limites exteriores da consciência que elas se dirigem). 

São bem conhecidos os debates a que deu lugar a busca de uma positividade específica no campo das ciências humanas: análise genética ou estrutural? explicação ou compreensão? recurso ao “inferior” ou manutenção da decifração ao nível da leitura? 

Na verdade, todas essas discussões teóricas não nasceram e não prosseguiram ao longo de toda a história das ciências humanas porque estas teriam que lidar com o homem como com um objeto tão complexo que não se teria podido encontrar em sua direção um modo de acesso único, ou que se teria sido constrangido a utilizar vários alternadamente. De fato, essas discussões só puderam existir na medida em que a positividade das ciências humanas se apóia simultaneamente na transferência de três modelos distintos. Essa transferência não é, para as ciências humanas, um fenômeno marginal (uma espécie de estrutura de apoio, de desvio mediante uma inteligibilidade exterior, de confirmação no campo das ciências já constituídas); não é também um episódio limitado de sua história (uma crise de formação numa época em que eram ainda tão novas, que não podiam fixar por si próprias seus conceitos e suas leis). 

Trata-se de um fato indelével, que está ligado, para sempre, à sua disposição própria no espaço epistemológico. Convém, com efeito, distinguir duas espécies de modelos utilizados pelas ciências humanas (pondo à parte os modelos de formalização). 

  • Houve, por um lado – e ainda há freqüentemente – conceitos que são transportados a partir de outro domínio do conhecimento e que, perdendo então toda eficácia operatória, não desempenham mais que um papel de imagem (as metáforas organicistas na sociologia do século XIX; as metáforas energéticas em Janet; as metáforas geométricas e dinâmicas em Lewin). 
  • Mas há também os modelos constituintes que não são, para as ciências humanas, técnicas de formalização nem simples meios para, com o menor esforço, imaginar processos; eles permitem formar conjuntos de fenômenos como tantos “objetos” para um saber possível; asseguram sua ligação na empiricidade, mas os oferecem à experiência já ligados entre si. Desempenham o papel de “categorias” no saber singular das ciências humanas.

Esses modelos constituintes são tomados de empréstimo aos três domínios da biologia, da economia e do estudo da linguagem. 

  • É na superfície de projeção da biologia que o homem aparece como um ser que tem funções – que recebe estímulos (fisiológicos, mas também sociais, interhumanos, culturais), que responde a eles, que se adapta, evolui, submete-se às exigências do meio, harmoniza-se com as modificações que ele impõe, busca apagar os desequilíbrios, age segundo regularidades, tem, em suma, condições de existência e a possibilidade de encontrar normas médias de ajustamento que lhe permitem exercer suas funções. 
  • Na superfície de projeção da economia, o homem aparece enquanto tem necessidades e desejos, enquanto busca satisfazê-Ios, enquanto, pois, tem interesses, visa a lucros, opõe-se a outros homens; em suma, ele aparece numa irredutível situação de conflito; a esses conflitos ele se esquiva, deles foge ou chega a dominá-los, a encontrar uma solução que apazigue, ao menos em um nível e por algum tempo, sua contradição; instaura um conjunto de regras que são, ao mesmo tempo, limitação e dilatação do conflito. 
  • Enfim, na superfície de projeção da linguagem, as condutas do homem aparecem como querendo dizer alguma coisa; seus menores gestos, até em seus mecanismos involuntários e até em seus malogros, têm um sentido; e tudo o que ele deposita em torno de si, em matéria de objetos, de ritos, de hábitos, de discurso, toda a esteira de rastros que deixa atrás de si constitui um conjunto coerente e um sistema de signos. 

Assim, estes três pares,
– função e norma,
– conflito e regra,
– significação e sistema, 
cobrem, por completo,
o domínio inteiro do conhecimento do homem. 

Contudo, não se deve julgar que cada um desses pares de conceitos permanece localizado na superfície de projeção em que puderam nascer: 

  • a função e a norma não são conceitos psicológicos e exclusivamente tais; 
  • o conflito e a regra não têm uma aplicação limitada apenas ao domínio sociológico; 
  • a significação e o sistema não valem somente para os fenômenos mais ou menos aparentados à linguagem. 

Todos esses conceitos são retomados no volume comum das ciências humanas, valem em cada uma das regiões que ele envolve: daí se segue ser freqüentemente difícil fixar os limites, não só entre os objetos, mas também entre os métodos próprios à psicologia, à sociologia, à análise das literaturas e dos mitos. 

No entanto, pode-se dizer, de maneira global, que 

  • a psicologia é fundamentalmente um estudo do homem em termos de funções e de normas (funções e normas que se podem, de maneira secundária, interpretar a partir dos conflitos e das significações, das regras e dos sistemas); 
  • a sociologia é fundamentalmente um estudo do homem em termos de regras e de conflitos (mas estes podem ser interpretados, e somos constantemente levados a interpretá-los secundariamente, quer a partir das funções, como se fossem indivíduos organicamente ligados a si mesmos, quer a partir de sistemas de significações, como se fossem textos escritos ou falados); 
  • enfim, o estudo das literaturas e dos mitos procede essencialmente de uma análise das significações e dos sistemas significantes, mas sabe-se bem que esta pode ser retomada em termos de coerência funcional ou de conflitos e de regras. 

É assim que todas as ciências humanas se entrecruzam e podem sempre interpretar-se umas às outras, que suas fronteiras se apagam, que as disciplinas intermediárias e mistas se multiplicam indefinidamente, que seu objeto próprio acaba mesmo por dissolver-se. Mas, qualquer que seja a natureza da análise e o domínio a que ela se aplica, tem-se um critério formal para saber o que é do nível da psicologia, da sociologia ou da análise das linguagens: é a escolha do modelo fundamental e a posição dos modelos secundários que permitem saber em que momento se “psicologiza” ou se “sociologiza” no estudo das literaturas e dos mitos, em que momento se faz, em psicologia, decifração de textos ou análise sociológica. 

Mas essa superposição de modelos não é um defeito de método. Só há defeito se os modelos não forem ordenados e explicitamente articulados uns com os outros. Sabe-se com que precisão admirável se pôde conduzir o estudo das mitologias indo-europeias utilizando, com base numa análise dos significantes e das significações, o modelo sociológico. Sabe-se, em contrapartida, a que trivialidades sincréticas conduziu o sempre medíocre empreendimento de fundar uma psicologia dita “clínica”. Quer seja ele fundado e dominado, quer se realize na confusão, esse entrecruzamento dos modelos constituintes explica as discussões dos métodos há pouco evocadas. Elas não têm sua origem e sua justificação numa complexidade por vezes contraditória que seria o caráter próprio do homem; mas, sim, no jogo de oposição que permite definir cada um dos três modelos em relação aos dois outros. 

  • Opor a gênese à estrutura é opor a função (em seu desenvolvimento, em suas operações progressivamente diversificadas, em suas adaptações adquiridas e equilibradas no tempo) ao sincronismo do conflito e da regra, da significação e do sistema; 
  • opor a análise pelo “inferior” à que se mantém ao nível de seu objeto é opor o conflito (como dado primeiro, arcaico, inscrito já nas necessidades fundamentais do homem) à função e à significação tais como se desdobram na sua realização própria; 
  • opor a compreensão à explicação é opor a técnica que permite decifrar um sentido a partir do sistema significante àquelas que permitem explicar um conflito com suas conseqüências, ou as formas e as deformações que pode assumir e sofrer uma função com seus órgãos.

Mas é preciso ir mais longe

As três faces do conhecimento

Mas é preciso ir mais longe. 

Sabe-se que, nas ciências humanas, 

  • o ponto de vista da descontinuidade (limiar entre a natureza e a cultura, irredutibilidade mútua dos equilíbrios ou das soluções encontradas por cada sociedade ou cada indivíduo, ausência de formas intermediárias, inexistência de um continuum dado no espaço ou no tempo) 
  • se opõe ao ponto de vista da continuidade

A existência dessa oposição se explica pelo caráter bipolar dos modelos: 

a análise em estilo de continuidade apóia-se 

  • na permanência das funções (que se encontra desde o fundo da vida numa identidade que autoriza e enraíza as adaptações sucessivas), 
  • no encadeamento dos conflitos (ainda que assumam formas diversas, seu ruído de fundo não cessa jamais), 
  • na trama das significações (que se retomam umas às outras e constituem como que a superfície de um discurso); 

a análise das descontinuidades, ao contrário, 

  • procura antes fazer surgir a coerência interna dos sistemas significantes, 
  • a especificidade dos conjuntos de regras 
  • e o caráter de decisão que elas assumem em relação ao que deve ser regulado, a emergência da norma acima das oscilações funcionais. 

Poder-se-ia talvez retraçar toda a história das ciências humanas desde o século XIX, a partir desses três modelos. Com efeito, eles cobriram todo o seu devir, pois que se pode seguir, há mais de um século, a dinastia de seus privilégios: 

  • primeiro, o reino do modelo biológico (o homem, sua psique, seu grupo, sua sociedade, a linguagem que ele fala existem, na época romântica, enquanto vivos e na medida em que de fato vivem; seu modo de ser é orgânico e é analisado em termos de função); 
  • depois vem o reino do modelo econômico (o homem e toda a sua atividade são o lugar de conflitos de que constituem, ao mesmo tempo, a expressão mais ou menos manifesta e a solução mais ou menos bem-sucedida); 
  • enfim – assim como Freud vem após Comte e Marx – começa o reino do modelo filológico.(quando se trata de interpretar e de descobrir o sentido oculto) e linguístico (quando se trata de estruturar e de trazer à luz o sistema significante). 

Um amplo declive conduziu, pois, as ciências humanas de uma forma mais densa em modelos vivos a uma outra mais saturada de modelos tirados da linguagem. 

Esse desvio, porém, foi duplicado por outro: aquele que fez recuar o primeiro termo de cada um dos pares constituintes (função, conflito, significação) e fez surgir com mais intensidade a importância do segundo (norma, regra, sistema): Goldstein, Mauss, Dumezil podem representar, quase igualmente, o momento em que se realizou a reversão em cada um dos modelos. 

Uma tal reversão tem duas séries de conseqüências notáveis: 

  • enquanto o ponto de vista da função prevalecia sobre o da norma (enquanto não era a partir da norma e do interior da atividade que a estabelece que se tentava compreender a realização da função), era então preciso realmente separar de facto os funcionamentos normais daqueles que não o eram; 
    • admitia-se, assim, uma psicologia patológica bem ao lado da normal, mas para ser como que sua imagem invertida (daí a importância do esquema jacksoniano da desintegração em Ribot ou Janet); 
    • admitia-se também uma patologia das sociedades (Durkheim), das formas irracionais e quase mórbidas de crenças (Lévy-Brühl, Blondel); 
  • do mesmo modo, enquanto o ponto de vista do conflito prevalecia sobre o da regra, supunha-se que certos conflitos não podiam ser superados, que os indivíduos e as sociedades corriam o risco de neles soçobrar; 
  • enfim, enquanto o ponto de vista da significação prevalecia sobre o do sistema, separava-se o significante e o não-significante, admitia-se que em certos domínios do comportamento humano ou do espaço social havia sentido e que em outros não. 

De maneira que as ciências humanas exerciam no seu próprio campo uma partilha essencial, estendiam-se sempre entre um pólo positivo e um pólo negativo, designavam sempre uma alteridade (e isso a partir da continuidade que elas analisavam). 

Ao contrário, 

  • quando a análise foi efetuada do ponto de vista da norma, da regra e do sistemacada conjunto recebeu de si mesmo sua própria coerência e sua própria validade, não foi mais possível falar, 
    • mesmo a propósito dos doentes, de “consciência mórbida”, 
    • mesmo a propósito de sociedades abandonadas pela história, de “mentalidades primitivas”, 
    • mesmo a propósito de narrativas absurdas, de lendas aparentemente sem coerência, de “discursos não-significantes”. 

Tudo pode ser pensado na ordem do sistema, da regra e da norma. 

Ao pluralizar-se – visto que os sistemas são isolados, que as regras formam conjuntos fechados e que as normas se estabelecem na sua autonomia – o campo das ciências humanas achou-se unificado: deixou, de imediato, de estar cindido segundo uma dicotomia de valores. 

E se se lembrar que Freud, mais que qualquer outro, aproximou o conhecimento do homem de seu modelo filológico e linguístico, mas que foi também o primeiro a tentar apagar radicalmente a divisão entre o positivo e o negativo (o normal e o patológico, o compreensível e o incomunicável, o significante e o não-significante), compreende-se de que modo anuncia ele a passagem de uma análise em termos de funções, de conflitos e de significações para uma análise em termos de norma, de regras e de sistemas: e é assim que todo esse saber, em cujo interior a cultura ocidental se proveu, em um século, de uma certa imagem do homem, gira em tomo da obra de Freud, sem contudo sair de sua disposição fundamental. 

Mas não é ainda aí – como se verá dentro em pouco – que está a importância mais decisiva da psicanálise. Em todo o caso, essa passagem para o ponto de vista da norma, da regra e do sistema nos aproxima de um problema que foi deixado em suspenso: o do papel da representação nas ciências humanas. 

Já podia parecer bem contestável encerrar estas últimas (para opô-Ias à biologia, à economia, à filologia) no espaço da representação; não se deveria já estimar que uma função pode exercer-se, um conflito desenvolver suas conseqüências, uma significação impor sua inteligibilidade sem passar pelo momento de uma consciência explícita? 

E agora não será preciso reconhecer que o que é específico 

  • da norma em relação à função que ela determina, 
  • da regra em relação ao conflito que ela rege, 
  • do sistema em relação à significação que ele torna possível 

está precisamente em não serem dados à consciência? 

Às duas vertentes históricas já isoladas não será preciso acrescentar uma terceira e dizer que, desde o século XIX, as ciências humanas não cessaram de aproximar-se dessa região do inconsciente onde a instância da representação é mantida em suspenso? 

De fato, a representação não é a consciência e nada prova que este trazer à luz elementos ou organizações que jamais são dados como tais à consciência faça as ciências humanas escaparem à lei da representação. 

Com efeito, 

  • o papel do conceito de significação é mostrar de que modo alguma coisa como uma linguagem, ainda que não se trate de um discurso explícito e mesmo que não seja desdobrada para uma consciência, pode, em geral, ser dada à representação; 
  • o papel do conceito complementar de sistema é mostrar de que modo a significação jamais é primeira e contemporânea de si mesma, mas sempre segunda e como que derivada em relação a um sistema que a precede, que constitui sua origem positiva, e que se dá, pouco a pouco, por fragmentos e perfis através dela; em relação à consciência de uma significação, o sistema é, na verdade, sempre inconsciente, pois que já estava lá, antes dela, pois que é nele que ela se aloja e a partir dele que ela se efetua; mas isso porque ele fica sempre prometido a uma consciência futura que talvez jamais o totalizará. Em outras palavras, o par significação-sistema é o que assegura, a um tempo, a representabilidade da linguagem (como texto ou estrutura analisados pela filologia e pela linguística) e a presença próxima mas recuada da origem (tal como é manifestada como modo de ser do homem pela analítica da finitude). 

Da mesma forma, 

  • a noção de conflito mostra de que modo a necessidade, o desejo ou o interesse, ainda que não sejam dados à consciência que os experimenta, podem tomar forma na representação; e o papel do conceito inverso de regra é mostrar de que modo a violência do conflito, a insistência aparentemente selvagem da necessidade, o infinito sem lei do desejo estão, de fato, já organizados por um impensado que não só lhes prescreve sua regra, mas também os torna possíveis a partir de uma regra. O par conflito-regra assegura a representabilidade da necessidade (dessa necessidade que a economia estuda como processo objetivo no trabalho e na produção) e a representabilidade desse impensado desvelado pela analítica da finitude. 
  • Enfim, o conceito de função tem por papel mostrar de que modo as estruturas da vida podem dar lugar à representação (ainda que não sejam conscientes), e o conceito de norma, de que modo a função se dá a si mesma suas próprias condições de possibilidades e os limites de seu exercício. 

Compreende-se, assim, por que essas grandes categorias podem organizar todo o campo das ciências humanas: é que elas o atravessam de ponta a ponta, mantêm à distância, mas também reúnem as positividades empíricas da vida, do trabalho e da linguagem (a partir das quais o homem historicamente destacou-se como figura de um saber possível) às formas da finitude que caracterizam o modo de ser do homem (tal como se constituiu a partir do dia em que a representação cessou de definir o espaço geral do conhecimento). 

Essas categorias não são, pois, simples conceitos empíricos de uma bem grande generalidade; elas são, na verdade, aquilo a partir do qual o homem pode oferecer-se a um saber possível; elas percorrem todo o campo de sua possibilidade e o articulam fortemente com as duas dimensões que o delimitam. 

Mas isso não é tudo: 

  • elas permitem a dissociação, característica de todo saber contemporâneo sobre o homem, entre a consciência e a representação. Definem a maneira como as empiricidades podem ser dadas à representação, mas sob uma forma que não está presente à consciência (a função, o conflito, a significação constituem, realmente, a maneira como a vida, a necessidade, a linguagem são reduplicadas na representação, mas sob uma forma que pode ser perfeitamente inconsciente); 
  • por outro lado, definem a maneira como a finitude fundamental pode ser dada à representação sob uma forma positiva e empírica, mas não transparente à consciência ingênua (nem a norma, nem a regra, nem o sistema, são dados à experiência cotidiana: atravessam-na, dão lugar a consciências parciais, mas não podem ser inteiramente aclarados senão por um saber reflexivo). 

De sorte que as ciências humanas só falam no elemento do representável, mas segundo uma dimensão consciente-inconsciente, tanto mais acentuada quanto se tente trazer à luz a ordem dos sistemas, das regras e das normas. Tudo se passa como se a dicotomia do normal e do patológico tendesse a esvaecer-se em proveito da bipolaridade da consciência e do inconsciente. 

Não se deve, pois, esquecer que a importância cada vez mais acentuada do inconsciente em nada compromete o primado da representação. Essa primazia, no entanto, levanta um importante problema. 

Agora que os saberes empíricos como os da vida, do trabalho e da linguagem escapam à sua lei, agora que se tenta definir fora de seu campo o modo de ser do homem, o que é a representação, senão um fenômeno de ordem empírica que se produz no homem e que se poderia analisar como tal? E se a representação se produz no homem, que diferença há entre ela e a consciência? Mas a representação não é simplesmente um objeto para as ciências humanas; ela é, como se acaba de ver, o próprio campo das ciências humanas, e em toda a sua extensão; é o suporte geral dessa forma de saber, aquilo a partir do qual ele é possível. 

Daí duas conseqüências. 

Uma é de ordem histórica: é o fato de que as ciências humanas, diferentemente das ciências empíricas desde o século XIX, e diferentemente do pensamento moderno, não puderam contornar o primado da representação; como todo o saber clássico, alojam-se nelas; porém não são, de modo algum, suas herdeiras ou sua continuação, pois toda a configuração do saber modificou-se, e elas só nasceram na medida em que apareceu, com o homem, um ser que não existia outrora no campo da epistémê. 

Entretanto, pode-se compreender por que cada vez que há a intenção de servir-se das ciências humanas para filosofar, verter para o espaço do pensamento aquilo que se pôde aprender lá onde o homem estava em questão, falseia-se a filosofia do século XVIII, na qual, todavia, o homem não tinha lugar; 

  • é que, ao estender para além de seus limites o domínio do saber do homem, estende-se igualmente para além dele o reino da representação e se está a instalar-se de novo numa filosofia de tipo clássico. 

A outra conseqüência é que as ciências humanas, ao tratarem do que é representação (sob uma forma consciente ou inconsciente) estão tratando como seu objeto o que é sua condição de possibilidade. 

São, portanto, sempre animadas por uma espécie de mobilidade transcendental. Não cessam de exercer para consigo próprias uma retomada critica. Vão do que é dado à representação ao que torna possível a representação, mas que é ainda uma representação. De maneira que elas buscam menos, como as outras ciências, generalizar-se ou precisar-se do que desmistificar-se sem cessar: passar de uma evidência imediata e não-controlada a formas menos transparentes, porém mais fundamentais. 

Esse percurso quase transcendental dá-se sempre sob a forma do desvelamento. É sempre desvelando que, por contragolpe, elas podem generalizar-se ou se refinar até pensarem os fenômenos individuais. No horizonte de toda ciência humana, há o projeto de reconduzir a consciência do homem às suas condições reais, de restituí-Ia aos conteúdos e às formas que a fizeram nascer e que nela se esquivam; é por isso que o problema do inconsciente – sua possibilidade, seu estatuto, seu modo de existência, os meios de conhecê-lo e de o trazer à luz – não é simplesmente um problema interior às ciências humanas e que elas encontrassem ao acaso de seus procedimentos; é um problema que é, afinal, co-extensivo à sua própria existência. 

Uma sobrelevação transcendental revertida num desvelamento do não-consciente é constitutiva de todas as ciências do homem. Aí talvez se encontrasse o meio de demarcá-Ias no que elas têm de essencial. O que manifesta, em todo o caso, o específico das ciências humanas, vê-se bem que não é esse objeto privilegiado e singularmente nebuloso que é o homem. Pela simples razão de que não é o homem que as constitui e lhes oferece um domínio específico; mas, sim, é a disposição geral da epistémê que lhes dá lugar, as requer e as instaura – permitindo-lhes assim constituir o homem como seu objeto. 

Dir-se-á, pois, que há “ciência humana” não onde quer que o homem esteja em questão, mas onde quer que se analisem, na dimensão própria do inconsciente, normas, regras, conjuntos significantes que desvelam à consciência as condições de suas formas e de seus conteúdos. Falar de “ciências do homem”, em qualquer outro caso, é puro e simples abuso de linguagem. 

Avalia-se assim quão vãs e ociosas são todas as enfadonhas discussões para saber se tais conhecimentos podem ser ditos realmente científicos e a que condições deveriam sujeitar-se para vir a sê-lo. As “ciências do homem” fazem parte da epistémê moderna como a química ou a medicina ou alguma outra ciência; ou, ainda, como a gramática e a história natural faziam parte da epistémê clássica. 

Mas dizer que elas fazem parte do campo epistemológico significa somente que elas nele enraízam sua positividade, que nele encontram sua condição de existência, que não são, portanto, apenas ilusões, quimeras pseudocientíficas, motivadas ao nível das opiniões, dos interesses, das crenças, que elas não são aquilo a que outros dão o estranho nome de “ideologia”. O que não quer dizer, porém, que por isso sejam ciências. 

Se é verdade que toda ciência, qualquer que seja, quando interrogada ao nível arqueológico e quando se busca desenredar o solo de sua positividade, revela sempre a configuração epistemológica que a tornou possível, em contrapartida, toda configuração epistemológica, mesmo se perfeitamente demarcável em sua positividade, pode muito bem não ser uma ciência: nem por isso se reduz a uma impostura. 

É preciso distinguir, com cuidado, três coisas: 

  • há temas com pretensão científica que se podem encontrar ao nível das opiniões e que não fazem (ou não mais fazem) parte da rede epistemológica de uma cultura; 

a partir do século XVII, por exemplo, a magia natural cessou de pertencer à epistémê ocidental, mas prolongou-se por muito tempo no jogo das crenças e das valorizações afetivas. 

Há, em seguida, 

  • as figuras epistemológicas cujo desenho, posição, funcionamento, podem ser restituídos em sua positividade por uma análise de tipo arqueológico; 

e, por sua vez, podem obedecer a duas organizações diferentes: 

    • umas apresentam caracteres de objetividade e de sistematicidade que permitem defini-Ias como ciências; 
    • outras não respondem a esses critérios, isto é, sua forma de coerência e sua relação com seu objeto são determinadas tão somente por sua positividade. 

Estas últimas, conquanto não possuam os critérios formais de um conhecimento científico, pertencem, contudo, ao domínio positivo do saber. Seria, portanto, tão vão e injusto analisá-Ias como fenômenos de opinião, quanto confrontá-Ias, pela história ou pela crítica, com as formações propriamente científicas; mais absurdo ainda seria tratá- Ias como uma combinação que misturasse, segundo proporções variáveis, “elementos racionais” com outros que não o fossem. É preciso recolocá-las ao nível da positividade que as torna possíveis e determina necessariamente sua forma. A arqueologia tem, pois, para com elas, duas tarefas: determinar a maneira como elas se dispõem na epistémê em que se enraízam; mostrar também em que sua configuração é radicalmente diferente daquela das ciências no sentido estrito. Essa configuração que lhes é peculiar não deve ser tratada como um fenômeno negativo: não é a presença de um obstáculo, não é alguma deficiência interna que as fazem malograr no limiar das formas científicas. Elas constituem, na sua figura própria, ao lado das ciências e sobre o mesmo solo arqueológico, outras configurações do saber. 

Já foram encontrados exemplos de tais configurações na gramática geral ou na teoria clássica do valor; tinham o mesmo solo de positividade que a matemática cartesiana, mas não eram ciências, ao menos para a maioria daqueles que lhes eram contemporâneos. 

  • É o caso também do que se denomina hoje ciências humanas; 

elas desenham, quando se lhes faz a análise arqueológica, configurações perfeitamente positivas; mas, desde que se determinam essas configurações e a maneira como estão dispostas na epistémê moderna, compreende-se por que não podem ser ciências: o que as torna possíveis, com efeito, é uma certa situação de “vizinhança” em relação à biologia, à economia, à filologia (ou à linguística); elas só existem na medida em que se alojam ao lado destas – ou antes, debaixo delas, no seu espaço de projeção. Com elas mantêm, entretanto, uma relação que é radicalmente diferente daquela que se pode estabelecer entre duas ciências “conexas” ou “afins”: essa relação, com efeito, supõe a transferência de modelos exteriores na dimensão do inconsciente e da consciência e o refluxo da reflexão crítica em direção ao próprio lugar donde vêm esses modelos. 

Inútil, pois, dizer que as “ciências humanas” são falsas ciências; simplesmente não são ciências; a configuração que define sua positividade e as enraíza na epistémê moderna coloca-as, ao mesmo tempo, fora da situação de serem ciências; e se se perguntar então por que assumiram esse título, bastará lembrar que pertence à definição arqueológica de seu enraizamento o fato de que elas requerem e acolhem a transferência de modelos tomados de empréstimo a ciências. 

Não é, pois, a irredutibilidade do homem, aquilo que se designa como sua invencível transcendência, nem mesmo sua complexidade demasiado grande que o impede de tornar-se objeto de ciência. 

A cultura ocidental constituiu, sob o nome de homem, um ser que, por um único e mesmo jogo de razões, deve ser domínio positivo do saber e não pode ser objeto de ciência.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;

Capítulo X – As ciências humanas;
tópico III. Os três modelos

II. A forma das ciências humanas

II. A forma das ciências humanas

É preciso esboçar agora a forma dessa positividade. 

De ordinário, tenta-se defini-la em função das matemáticas: 

  • quer porque se busca aproximá-la o mais possível destas, fazendo o inventário de tudo o que nas ciências humanas é matematizável e supondo que tudo o que não é suscetível de semelhante formalização não recebeu ainda sua positividade científica; 
  • quer porque se tenta, ao contrário, distinguir com cuidado o domínio do matematizável e aquele outro que lhe seria irredutível, porque seria o lugar da interpretação, porque se lhes aplicariam sobretudo os métodos da compreensão, porque se acharia estreitado em torno do pólo clínico do saber. 

Semelhantes análises não são somente cansativas porque gastas, mas antes de tudo porque carecem de pertinência. Certamente, não há dúvida de que essa forma de saber empírico que se aplica ao homem (e que, para obedecer à convenção, pode-se ainda chamar de “ciências humanas” antes mesmo de saber em que sentido e dentro de que limites podem ser denominadas “ciências”) tem relação com as matemáticas: como qualquer outro domínio do saber, elas podem, sob certas condições, servir-se do instrumental matemático; alguns de seus procedimentos, muitos dos seus resultados podem ser formalizados. 

É, seguramente, de primeira importância, conhecer esses instrumentos, poder praticar essas formalizações, definir os níveis em que podem ser efetuadas; é, sem dúvida, interessante para a história saber como Condorcet pôde aplicar o cálculo das probabilidades à política, como Fechner definiu a relação logarítmica entre o crescimento da sensação e o da excitação, como os psicólogos contemporâneos se servem da teoria da informação para compreender os fenômenos da aprendizagem. 

Mas, apesar da especificidade dos problemas colocados, é pouco provável que a relação com as matemáticas (as possibilidades de matematização, ou a resistência a todos os esforços de formalização) seja constitutiva das ciências humanas na sua positividade singular. E isso por duas razões: 

  • porque, no essencial, elas têm esses problemas em comum com muitas outras disciplinas (como a biologia, a genética) ainda que eles não sejam, aqui e lá, identicamente os mesmos; 
  • e sobretudo porque a análise arqueológica não descortinou, no a priori histórico das ciências humanas, uma forma nova das matemáticas ou um brusco avanço destas no domínio do humano, mas, sim, muito mais uma espécie de retraimento da máthêsis, uma dissociação de seu campo unitário e a liberação, em relação à ordem linear das menores diferenças possíveis, de organizações empíricas como a vida, a linguagem e o trabalho. 

Nesse sentido, o aparecimento do homem e a constituição das ciências humanas (ainda que sob a forma de um projeto) seriam correlativos de uma espécie de “des-matematização”. 

Dir-se-á, sem dúvida, que essa dissociação de um saber concebido por inteiro como máthêsis não era um recuo das matemáticas, pela simples razão de que esse saber jamais conduzira (salvo em astronomia e sobre certos pontos de física) a uma matematização efetiva; ao desaparecer, ele antes liberava a natureza e todo o campo das empiricidades para uma aplicação, a cada instante limitado e controlado, das matemáticas; os primeiros grandes progressos da física matemática, as primeiras utilizações maciças do cálculo das probabilidades não datam do momento em que se renunciou a constituir imediatamente uma ciência geral das ordens não-quantificáveis? 

Com efeito, não se pode negar que a renúncia a uma máthêsis (ao menos provisoriamente) permitiu, em certos domínios do saber, suspender o obstáculo da qualidade, e aplicar o instrumental matemático lá onde ele ainda não penetrara. Mas se, ao nível da física, a dissociação do projeto da máthêsis constitui uma única e mesma coisa com a descoberta de novas aplicações das matemáticas, o mesmo não ocorreu em todos os domínios: a biologia, por exemplo, além de uma ciência das ordens qualitativas, constituiu-se como análise das relações entre os órgãos e as funções, estudo das estruturas e dos equilíbrios, investigações sobre sua formação e seu desenvolvimento na história dos indivíduos ou das espécies; tudo isso não impediu que a biologia utilizasse as matemáticas e que estas pudessem aplicar-se à biologia bem mais amplamente que no passado. 

Todavia, não foi em sua relação com as matemáticas que a biologia assumiu sua autonomia e definiu sua positividade. O mesmo ocorreu com as ciências humanas: 

  • foi o retraimento da máthêsis e não o avanço das matemáticas que permitiu ao homem constituir-se como objeto de saber; 
  • foi o envolvimento do trabalho, da vida e da linguagem em torno deles próprios que prescreveu, do exterior, o aparecimento desse novo domínio; 
  • e é o aparecimento desse ser empírico-transcendental, desse ser cujo pensamento é indefinidamente tramado com o impensado, desse ser sempre separado de uma origem que lhe é prometida na imediatidade do retorno – é esse aparecimento que dá às ciências humanas sua feição singular. 

Também aí, como em outras disciplinas, pode ser que a aplicação das matemáticas tenha sido facilitada (e o seja cada vez mais) por todas as modificações que se produziram, no começo do século XIX, no saber ocidental. Imaginar, porém, que as ciências humanas definiram seu projeto mais radical e inauguraram sua história positiva no dia em que se pretendeu aplicar o cálculo das probabilidades aos fenômenos da opinião política e utilizar logaritmos para medir a intensidade crescente das sensações é tomar um contra-efeito de superfície pelo acontecimento fundamental.

Em outros termos, entre as três dimensões que abrem às ciências humanas seu espaço próprio e lhes facultam o volume em que elas tomam corpo, 

  • a das matemáticas é talvez a menos problemática; 

é com ela, em todo o caso, que as ciências humanas entretêm as relações mais claras, mais serenas e, de certo modo, mais transparentes: tanto mais que o recurso às matemáticas, sob uma forma ou outra, sempre foi a maneira mais simples de emprestar ao saber positivo sobre o homem um estilo, uma forma, uma justificação científica. Em contrapartida, as dificuldades mais fundamentais, as que permitem melhor definir o que são, em sua essência, as ciências humanas, alojam-se do lado das outras duas dimensões do saber: 

  • aquela em que se desenrola a analítica da finitude 
  • e aquela ao longo da qual se repartem as ciências empíricas que tomam por objeto a linguagem, a vida e o trabalho.

As ciências humanas, com efeito, endereçam-se ao homem, na medida em que ele vive, em que fala, em que produz. 

  • É como ser vivo que ele cresce, que tem funções e necessidades, que vê abrir-se um espaço cujas coordenadas móveis ele articula em si mesmo; de um modo geral, sua existência corporal fá-Io entrecruzar-se, de parte a parte, com o ser vivo; 
  • produzindo objetos e utensílios, trocando aquilo de que tem necessidade, organizando toda uma rede de circulação ao longo da qual perpassa o que ele pode consumir e em que ele próprio se acha definido como elemento de troca, aparece ele em sua existência imediatamente imbricado com os outros; 
  • enfim, porque tem uma linguagem, pode constituir por si todo um universo simbólico, em cujo interior se relaciona com seu passado, com coisas, com outrem, a partir do qual pode imediatamente construir alguma coisa com um saber (particularmente esse saber que tem de si mesmo e do qual as ciências humanas desenham uma das formas possíveis). 

Pode-se, portanto, fixar o lugar das ciências do homem nas vizinhanças, nas fronteiras imediatas e em toda a extensão dessas ciências em que se trata da vida, do trabalho e da linguagem. 

Não chegam estas justamente a se formar na época em que, pela primeira vez, o homem se oferece à possibilidade de um saber positivo? 

Contudo, nem a biologia, nem a economia, nem a filologia devem ser tomadas como as primeiras ciências humanas nem como as mais fundamentais. 

Isso se reconhece sem dificuldade no caso da biologia, que se dirige a muitos outros seres vivos além do homem; 

tem-se mais dificuldade em admiti-lo no caso da economia ou da filologia, que têm por domínio próprio e exclusivo atividades específicas do homem. 

Mas não se pergunta por que é que a biologia ou a fisiologia humanas, por que é que a anatomia dos centros corticais da linguagem não podem, de modo algum, ser consideradas como ciências do homem. 

É que o objeto destas últimas jamais se dá ao modo de ser de um funcionamento biológico (nem mesmo sob sua forma singular e como que a de seu prolongamento no homem); ele é antes seu reverso, sua marca no vazio; ele começa lá onde pára – não a ação ou os efeitos – mas o ser próprio desse funcionamento – lá onde se liberam representações, verdadeiras ou falsas, claras ou obscuras, perfeitamente conscientes ou embrenhadas na profundidade de alguma sonolência, observáveis direta ou indiretamente, oferecidas naquilo que o próprio homem enuncia ou detectáveis somente do exterior; a busca das ligações intracorticais entre os diferentes centros de integração da linguagem (auditivos, visuais, motores) não é da alçada das ciências humanas; mas estas encontrarão seu espaço de desempenho, desde que se interrogue esse espaço de palavras, essa presença ou esse esquecimento de seu sentido, essa distância entre o que se quer dizer e a articulação em que essa intenção é investida, coisas de que o sujeito talvez não tenha consciência, mas que não teriam nenhum modo de ser assinalável se esse mesmo sujeito não tivesse representações.

De um modo mais geral, o homem, para as ciências humanas, 

  • não é esse ser vivo que tem uma forma bem particular (uma fisiologia bastante especial e uma autonomia quase única); 
  • é esse ser vivo que, do interior da vida à qual pertence inteiramente e pela qual é atravessado em todo o seu ser, constitui representações graças às quais ele vive e a partir das quais detém esta estranha capacidade de poder se representar justamente a vida. 

Do mesmo modo, conquanto o homem seja a única espécie no mundo que trabalha, ao menos aquela em que a produção, a distribuição, o consumo dos bens assumiram tanta importância e receberam formas tão múltiplas e tão diferenciadas, nem por isso a economia é uma ciência humana. 

Dir-se-á talvez que esta, 

  • para definir leis que são contudo interiores aos mecanismos da produção (como o acúmulo do capital ou as relações entre as taxas dos salários e os custos de produção), recorre a comportamentos humanos e a uma representação que o fundamentam (o interesse, a busca do lucro máximo, a tendência para a poupança); mas, ao fazê-lo, ela utiliza as representações como requisito de um funcionamento (que passa, com efeito, por uma atividade humana explícita); 
  • em contrapartida, só haverá ciência do homem se nos dirigirmos à maneira como os indivíduos ou os grupos se representam seus parceiros na produção e na troca, o modo como esclarecem, ou ignoram, ou mascaram esse funcionamento e a posição que aí ocupam, a maneira como se representam a sociedade em que isso ocorre, o modo como se sentem integrados a ela ou isolados, dependentes, submetidos ou livres; 

o objeto das ciências humanas 

  • não é esse homem que, desde a aurora do mundo, ou o primeiro grito de sua idade de ouro, está destinado ao trabalho; 
  • é esse ser que, do interior das formas da produção pelas quais toda a sua existência é comandada, forma a representação dessas necessidades, da sociedade pela qual, com a qual ou contra a qual as satisfaz, de sorte que, a partir daí, pode ele finalmente se dar a representação da própria economia. 

Quanto à linguagem, ocorre o mesmo: embora o homem seja, no mundo, o único ser que fala, 

  • não constitui ciência humana conhecer as mutações fonéticas, o parentesco das línguas, a lei dos desvios semânticos; 
  • em contrapartida, poder-se-á falar de ciência humana desde que se busque definir a maneira como os indivíduos ou os grupos se representam as palavras, utilizam sua forma e seu sentido, compõem discursos reais, mostram e escondem neles o que pensam, dizem, talvez à sua revelia, mais ou menos do que pretendem, deixam desses pensamentos, em todo o caso, uma massa de traços verbais que é preciso decifrar e restituir, tanto quanto possível, à sua vivacidade representativa. 

O objeto das ciências humanas 

  • não é, pois, a linguagem (falada, contudo, apenas pelos homens), 
  • mas, sim, esse ser que, do interior da linguagem pela qual está cercado, se representa, ao falar, o sentido das palavras ou das proposições que enuncia e se dá, finalmente, a representação da própria linguagem.

Vê-se que as ciências humanas 

  • não são uma análise do que o homem é por natureza; 
  • são antes uma análise que se estende entre o que o homem é em sua positividade (ser que vive, trabalha, fala) e o que permite a esse mesmo ser saber (ou buscar saber) o que é a vida, em que consistem a essência do trabalho e suas leis, e de que modo ele pode falar. 

As ciências humanas ocupam, pois, essa distância que separa (não sem uni-Ias) a biologia, a economia, a filologia daquilo que lhes dá possibilidade no ser mesmo do homem. Seria errôneo, portanto, fazer das ciências humanas o prolongamento, interiorizado na espécie humana, no seu organismo complexo, na sua conduta e na sua consciência, dos mecanismos biológicos; não menos errôneo colocar, no interior das ciências humanas, a ciência da economia e da linguagem (cuja irredutibilidade às ciências humanas é manifestada pelo esforço para constituir uma economia e uma linguística puras). 

De fato, nem as ciências humanas estão no interior dessas ciências, nem as interiorizam, inclinando-as em direção à subjetividade do homem; se as retomam na dimensão da representação, é antes reassumindo-as em sua vertente exterior, deixando-as na sua opacidade, acolhendo como coisas os mecanismos e os funcionamentos que elas isolam, interrogando estes últimos não no que são, mas no que deixam de ser quando se abre o espaço da representação; e, a partir daí, elas mostram como pode nascer e desdobrar-se uma representação do que eles sejam. 

Elas reconduzem sub-repticiamente as ciências da vida, do trabalho e da linguagem, para o lado dessa analítica da finitude que mostra como pode o homem haver-se, no seu ser, com essas coisas que ele conhece e conhecer essas coisas que determinam, na positividade, seu modo de ser. 

Mas aquilo que a analítica requer na interioridade ou ao menos na dependência profunda de um ser que não deve sua finitude senão a si mesmo, as ciências humanas o desenvolvem na exterioridade do conhecimento. 

É por isso que o específico das ciências humanas não é o direcionamento a certo conteúdo (esse objeto singular que é o ser humano); é muito mais um caráter puramente formal: o simples fato de estarem, em relação às ciências em que o ser humano é dado como objeto (exclusivo para a economia e a filologia, ou parcial para a biologia), numa posição de reduplicação, e de que essa reduplicação possa valer a fortiori para elas mesmas.

Essa posição torna-se perceptível em dois níveis: 

  • as ciências humanas não tratam a vida, o trabalho e a linguagem do homem na maior transparência em que se podem dar, mas naquela camada de condutas, de comportamentos, de atitudes, de gestos já feitos, de frases já pronunciadas ou escritas, em cujo interior eles foram dados antecipadamente, numa primeira vez, àqueles que agem, se conduzem, trocam, trabalham e falam; 
  • em outro nível (é sempre a mesma propriedade formal, mas desenvolvida até o ponto extremo e mais raro), é sempre possível tratar, em estilo de ciências humanas (de psicologia, de sociologia, de história das culturas ou das idéias ou das ciências) o fato de haver para certos indivíduos ou certas sociedades alguma coisa como um saber especulativo da vida, da produção e da linguagem – em última análise, uma biologia, uma economia e uma filologia. 

Sem dúvida, isso é apenas a indicação de uma possibilidade que raramente é efetuada e que talvez não seja suscetível, ao nível das empiricidades, de oferecer uma grande riqueza; mas, o fato de que ela existe como distância eventual, como espaço de recuo dado às ciências humanas em relação àquilo mesmo donde elas vêm, o fato também de que esse jogo pode aplicar-se a elas próprias (podem-se sempre fazer as ciências humanas das ciências humanas, a psicologia da psicologia, a sociologia da sociologia etc.) bastam para mostrar sua singular configuração. 

Em relação à biologia, à economia, às ciências da linguagem, elas não estão, portanto, em carência de exatidão ou de rigor; estão antes, como ciências da reduplicação, numa posição “metaepistemológica”. 

Ainda assim, o prefixo não está talvez muito bem escolhido: pois só se fala de metalinguagem quando se trata de definir as regras de interpretação de uma linguagem primeira. 

Aqui as ciências humanas, quando reduplicam as ciências da linguagem, do trabalho e da vida, quando, na sua mais fina extremidade, se reduplicam a si mesmas, não visam a estabelecer um discurso formalizado: ao contrário, elas embrenham o homem que tomam por objeto no campo da finitude, da relatividade, da perspectiva – no campo da erosão indefinida do tempo. 

Talvez fosse melhor falar a seu propósito de posição “ana” ou “hipoepistemológica”; se libertássemos este último prefixo do que pode ter de pejorativo, ele explicaria sem dúvida as coisas: faria compreender que a invencível impressão de fluidez, de inexatidão, de imprecisão que deixam quase todas as ciências humanas não é senão o efeito de superfície daquilo que permite defini-Ias em sua positividade.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas
Capítulo X – As ciências humanas;
tópico II – A forma das ciências humanas

II. O lugar do rei: Las meninas

O lugar do rei: Las meninas

Las meniñas, de Diego Velazquez, de 1656

pintura a óleo, com 3,18 m x 2,76 m
do período barroco, Museu do Prado

Em tantas ignorâncias, em tantas interrogações permanecidas em suspenso, seria preciso, sem dúvida, deter-se: 

  • aí está fixado o fim do discurso, 
  • e o recomeço talvez do trabalho. 

Há ainda, no entanto, algumas palavras a dizer. 

Palavras cujo estatuto é, sem dúvida, difícil de justificar, pois se trata de introduzir no último instante e como que por um lance de teatro artificial, uma personagem que não figurara ainda no grande jogo clássico das representações. 

Seria interessante encontrar a lei prévia desse jogo no quadro Las meninas, onde a representação é representada em cada um de seus momentos:

  • pintor, palheta, grande superfície escura da tela virada, quadros pendurados na parede, espectadores que olham e que são, por sua vez, enquadrados por aqueles que os olham; 
  • enfim, no centro, no coração da representação, o mais próximo do que é essencial, o espelho que mostra o que é representado, mas como um reflexo tão longínquo, tão imerso num espaço irreal, tão estranho a todos os olhares que se voltam para outras partes, que não é mais do que a mais frágil reduplicação da representação. 

Todas as linhas interiores do quadro e sobretudo aquelas que vêm do reflexo central apontam para aquilo mesmo que é representado mas que está ausente. 

Ao mesmo tempo 

  • objeto – por ser o que o artista representado está em via de recopiar sobre a tela – 
  • e sujeito -, 
    • visto que o que o pintor tinha diante dos olhos ao se representar no seu trabalho era ele próprio, 
    • visto que os olhares figurados no quadro estão dirigidos para esse lugar fictício da personagem régia que é o lugar real do pintor, 
    • visto finalmente que o hóspede desse lugar ambíguo, onde se alternam, como que num pestanejar sem limite, o pintor e o soberano, é o espectador cujo olhar transforma o quadro num objeto, pura representação dessa ausência essencial. 

Ademais, essa ausência não é uma lacuna, salvo para o discurso que laboriosamente decompõe o quadro, pois ela não cessa jamais de ser habitada e de o ser realmente, como o provam a atenção do pintor representado, o respeito das personagens que o quadro figura, a presença da grande tela vista ao revés e nosso próprio olhar para quem esse quadro existe e para quem, do fundo do tempo, ele foi disposto.

No pensamento clássico, 
aquele para quem a representação existe, 
e que nela se representa a si mesmo, 
aí se reconhecendo por imagem ou reflexo, 
aquele que trama
[o homem] todos os fios entrecruzados 
da “representação em quadro” -, 

esse jamais se encontra lá presente. 

Antes do fim do século XVIII,
o homem não existia. 

Não mais que a potência da vida, a fecundidade do trabalho ou a espessura histórica da linguagem. 

É uma criatura muito recente que a demiurgia do saber fabricou com suas mãos há menos de 200 anos: mas ele envelheceu tão depressa que facilmente se imaginou que ele esperara na sombra, durante milênios, o momento de iluminação em que seria enfim conhecido.

Certamente poder-se-ia dizer que 

  • a gramática geral, 
  • a história natural, 
  • a análise das riquezas 

eram, num certo sentido, maneiras de reconhecer o homem, mas é preciso discernir.

Sem dúvida, as ciências naturais trataram do homem como 

  • de uma espécie 
  • ou de um gênero

a discussão sobre o problema das raças, no século XVIII, o testemunha. 

A gramática e a economia, por outro lado, utilizavam noções como as de necessidade, de desejo, ou de memória e de imaginação

Mas não havia
consciência epistemológica
do homem como tal. 

A epistémê clássica se articula segundo linhas que de modo algum isolam o domínio próprio e específico do homem.

E se se insistir ainda, se se objetar que nenhuma época, porém, concedeu tanto à natureza humana, deu-lhe estatuto mais estável, mais definitivo, mais bem ofertado ao discurso – poder-se-á responder dizendo que o próprio conceito de natureza humana e a maneira como ele funcionava excluíam que houvesse uma ciência clássica do homem.

É preciso notar que, na epistémê clássica, as funções da “natureza” e da “natureza humana” opõem-se termo a termo: 

  • a natureza, pelo jogo de uma justaposição real e desordenada, faz surgir a diferença no contínuo ordenado dos seres; 
  • a natureza humana faz aparecer o idêntico na cadeia desordenada das representações, e isso pelo jogo de uma exposição das imagens. 

Uma implica um desarranjo de uma história para a constituição das paisagens atuais; a outra implica a comparação de elementos inatuais que desfazem a trama de uma seqüência cronológica.

Apesar dessa oposição, ou, antes, através dela, vê-se delinear-se a relação positiva entre a natureza e a natureza humana. 

Com efeito, elas lidam com elementos idênticos (o mesmo, o contínuo, a imperceptível diferença, a sucessão sem ruptura); ambas fazem aparecer, sobre uma trama ininterrupta, a possibilidade de uma análise geral que permite repartir identidades isoláveis e as visíveis diferenças, segundo um espaço em quadro e uma seqüência ordenada. 

Mas não o conseguem uma sem a outra, e é assim que se comunicam. 

Com efeito, pelo poder que tem de se reduplicar (na imaginação e na lembrança, e na atenção múltipla que compara), a cadeia das representações pode reencontrar, por sob a desordem da terra, a superfície sem ruptura dos seres; a memória, a princípio temerária e entregue aos caprichos das representações tais quais se oferecem, fixa-se, pouco a pouco, num quadro geral de tudo o que existe; o homem pode então fazer entrar o mundo na soberania de um discurso que tem o poder de representar sua representação.

No ato de falar, ou, antes (mantendo-se o mais perto possível do que há de essencial para a experiência clássica da linguagem), no ato de nomear, a natureza humana, como dobra da representação sobre si mesma, transforma a seqüência linear dos pensamentos numa tabela constante de seres parcialmente diferentes: o discurso em que ela reduplica suas representações e as manifesta liga-a à natureza. 

Inversamente, a cadeia dos seres é ligada à natureza humana pelo jogo da natureza: visto que o mundo real, tal como se dá aos olhares, não é o desenrolar puro e simples da cadeia fundamental dos seres, mas oferece-a em fragmentos misturados – repetidos e descontínuos -, a série das representações no espírito não é constrangida a seguir o caminho contínuo das diferenças imperceptíveis; nela os extremos se encontram, as mesmas coisas se dão várias vezes; os traços idênticos se superpõem na memória; as diferenças eclodem. 

Assim, a grande superfície indefinida e contínua imprime-se em caracteres distintos, em traços mais ou menos gerais, em marcas de identificação. E, por conseguinte, em palavras. A cadeia dos seres torna-se discurso, ligando-se assim à natureza humana e à série das representações.

Esse processo de comunicação entre a natureza e a natureza humana, a partir de duas funções opostas mas complementares, pois que não podem exercer-se uma sem a outra, traz consigo amplas conseqüências teóricas. 

Para o pensamento clássico, o homem não se aloja na natureza por intermédio dessa “natureza” regional, limitada e específica que lhe é concedida por direito de nascimento como a todos os outros seres. 

Se a natureza humana se imbrica com a natureza, é pelos mecanismos do saber e pelo seu funcionamento; ou, antes, na grande disposição da epistémê clássica, a natureza, a natureza humana e suas relações são momentos funcionais, definidos e previstos. 

E o homem,
como realidade espessa e primeira,
como objeto difícil
e sujeito soberano de todo conhecimento possível,
não tem aí nenhum lugar. 

Os temas modernos de um indivíduo que vive, fala e trabalha segundo as leis de uma economia, de uma filologia e de uma biologia, mas que, por uma espécie de torção interna e de superposição, teria recebido, pelo jogo dessas próprias leis, o direito de conhecê-las e de colocá-las inteiramente à luz, todos esses temas, para nós familiares e ligados à existência das “ciências humanas” são excluídos pelo pensamento clássico: não era possível naquele tempo que se erguesse, no limite do mundo, essa estatura estranha de um ser cuja natureza (a que o determina, o detém e o atravessa desde o fundo dos tempos) consistisse em conhecer a natureza e, por conseguinte, a si mesmo como ser natural.

Em contrapartida, no ponto de encontro entre a representação e o ser, lá onde se entrecruzam natureza e natureza humana – nesse lugar onde hoje cremos reconhecer a existência primeira, irrecusável e enigmática do homem – o que o pensamento clássico faz surgir é o poder do discurso. Isto é, da linguagem na medida em que ela representa – a linguagem que nomeia, que recorta, que combina, que articula e desarticula as coisas, tornando-as visíveis na transparência das palavras. 

Nesse papel, a linguagem transforma a seqüência das percepções em quadro e, em retorno, recorta o contínuo dos seres em caracteres. Lá onde há discurso, as representações se expõem e se justapõem; as coisas se reúnem e se articulam. 

A vocação profunda da linguagem clássica foi sempre a de constituir “quadro”: 

  • quer fosse como discurso natural, 
  • recolhimento da verdade, 
  • descrição das coisas, 
  • corpus e conhecimentos exatos, 
  • ou dicionário enciclopédico. 

Ela só existe, portanto, para ser transparente; 

  • perdeu aquela consistência secreta que, no século XVI, lhe dava a espessura de uma palavra a decifrar e a imbricava com as coisas do mundo; 
  • não adquiriu ainda essa existência múltipla acerca da qual hoje nos interrogamos: 

na idade clássica, o discurso é essa necessidade translúcida através da qual passam a representação e os seres – quando os seres são representados ao olhar do espírito, quando a representação torna visíveis os seres em sua verdade. 

A possibilidade de conhecer as coisas e sua ordem passa, na experiência clássica, pela soberania das palavras: 

  • estas não são estritamente nem marcas a decifrar (como na época do Renascimento), 
  • nem instrumentos mais ou menos fiéis e domináveis (como na época do positivismo); 
  • formam, antes, a rede incolor a partir da qual os seres se manifestam e as representações se ordenam. 

Daí, sem dúvida, o fato de que a reflexão clássica sobre a linguagem, embora faça parte de uma disposição geral em que ela entra ao mesmo título que a análise das riquezas e a história natural, exerça, em relação a elas, um papel diretivo.

Mas a conseqüência essencial é que a linguagem clássica como discurso comum da representação e das coisas, como lugar em cujo interior natureza e natureza humana se entrecruzam, exclui absolutamente qualquer coisa que fosse “ciência do homem”. 

Enquanto essa linguagem falou na cultura ocidental, não era possível que a existência humana fosse posta em questão por ela própria, pois o que nela se articulava eram a representação e o ser. 

O discurso que, no século XVII, ligou um ao outro o “Eu penso” e o “Eu sou” daquele que o efetivava – esse discurso permaneceu, sob uma forma visível, a essência mesma da linguagem clássica, pois o que nele se articulava, de pleno direito, eram a representação e o ser. 

A passagem do “Eu penso” ao “Eu sou” realizava-se sob a luz da evidência, no interior de um discurso cujo domínio e cujo funcionamento consistiam por inteiro em articular, um ao outro, o que se representa e o que é. 

Não há, pois, que objetar a essa passagem nem que o ser em geral não está contido no pensamento, nem que este ser singular tal como é designado pelo “Eu sou” não foi interrogado nem analisado por si próprio. 

Ou, antes, essas objeções podem realmente nascer e fazer valer seu direito, mas a partir de um discurso que é profundamente outro e que não tem por razão de ser o liame entre a representação e o ser; só uma problemática que contorne a representação poderá formular semelhantes objeções. 

Mas, enquanto durou o discurso clássico, uma interrogação sobre o modo de ser implicado pelo Cogito não podia ser articulada.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo IX – O homem e seus duplos;
tópico II. O lugar do rei

IV. A história

A História

Falou-se das ciências humanas; falou-se destas grandes regiões que a psicologia, a sociologia, a análise das literaturas e das mitologias aproximadamente delimitam. 

Não se falou da História, embora seja a primeira e como que a mãe de todas as ciências do homem, embora seja tão velha talvez quanto a memória humana. Ou melhor, é por esta razão mesma que ela permaneceu até agora em silêncio. 

Com efeito, ela talvez não tenha lugar entre as ciências humanas nem ao lado delas: é provável que entretenha com elas uma relação estranha, indefinida, indelével e mais fundamental do que o seria uma relação de vizinhança num espaço comum. 

É verdade que a História existiu bem antes da constituição das ciências humanas; desde os confins da idade grega, exerceu ela na cultura ocidental um certo número de funções maiores: memória, mito, transmissão da Palavra e do Exemplo, veículo da tradição, consciência crítica do presente, decifração do destino da humanidade, antecipação do futuro ou promessa de um retorno.

 O que caracterizava esta História – o que, ao menos, pode defini-Ia, em seus traços gerais, em oposição à nossa – é que, regulando o tempo dos humanos pelo devir do mundo (numa espécie de grande cronologia cósmica, como nos estóicos), ou, inversamente, estendendo até às menores parcelas da natureza o princípio e o movimento de uma destinação humana (um pouco à maneira da Providência cristã), concebia-se uma grande história plana, uniforme em cada um de seus pontos, que teria arrastado num mesmo fluir, numa mesma queda ou numa mesma ascensão, num mesmo ciclo, todos os homens e, com eles, as coisas, os animais, cada ser vivo ou inerte, e até os semblantes mais calmos da terra. 

Ora, é esta unidade que se achou fraturada no começo do século XIX, na grande reviravolta da epistémê ocidental: 

  • descobriu-se uma historicidade própria à natureza; 
  • definiu-se mesmo, para cada grande tipo do ser vivo, formas de ajustamento ao meio que iam permitir, em seguida, definir seu perfil de evolução; 
  • mais ainda, pôde-se mostrar que atividades tão singularmente humanas, como o trabalho ou a linguagem, detinham, em si mesmas, uma historicidade que não podia encontrar seu lugar na grande narrativa comum às coisas e aos homens; 
  • a produção tem modos de desenvolvimento, o capital, modos de acumulação, os preços, leis de oscilação e mudanças que não podem nem restringir-se às leis naturais nem reduzir-se à marcha geral da humanidade; 
  • do mesmo modo a linguagem modifica-se não tanto com as migrações, o comércio e as guerras, ao sabor do que sucede ao homem ou ao capricho do que ele pode inventar, mas, sim, sob condições que pertencem propriamente às formas fonéticas e gramaticais de que ela é constituída; 

e se se pôde dizer que as diversas linguagens nascem, vivem, perdem sua força envelhecendo e acabam por morrer, esta metáfora biológica não é feita para dissolver sua história num tempo que seria o da vida, mas, antes, para sublinhar que também elas têm leis internas de funcionamento e que sua cronologia se desenvolve segundo um tempo que decorre primeiramente da sua coerência singular.

Tende-se comumente a crer que o século XIX, por razões na maior parte políticas e sociais, dirigiu uma atenção mais aguda à história humana, que se abandonou a idéia de uma ordem ou de um plano contínuo do tempo, assim como a de um progresso ininterrupto, e que, pretendendo narrar sua própria ascensão, a burguesia encontrou, no calendário de sua vitória, a espessura histórica das instituições, o peso dos hábitos e das crenças, a violência das lutas, a alternância ou abreviar a validade das leis econômicas, pela consciência que delas tem e pelas instituições que organiza a partir delas ou em tomo delas, que lhe permite, enfim, exercer sobre a linguagem, em cada uma das palavras que pronuncia, uma espécie de pressão interior constante que, insensivelmente, fá-lo deslizar sobre si mesmo em cada instante do tempo? 

Assim aparece, por trás da história das positividades, aquela, mais radical, do próprio homem. História que concerne agora ao ser mesmo do homem, pois que se evidencia que não somente ele “tem”, em tomo de si, “História”, mas que ele mesmo é, em sua historicidade própria, aquilo pelo que se delineia uma história da vida humana, uma história da economia, uma história das linguagens. 

Haveria, pois, a um nível muito profundo, uma historicidade do homem que seria, por si mesma, sua própria história, mas também a dispersão radical que funda todas as outras. É justamente essa erosão primeira que o século XIX buscou na sua preocupação de tudo historicizar, de escrever, a propósito de cada coisa, uma história geral, de remontar incessantemente no tempo e de repor as coisas mais estáveis na liberação do tempo.

Também aí, é preciso, sem dúvida, rever a maneira como se escreve tradicionalmente a história da História; tem-se o hábito de dizer que, com o século XIX, cessou a pura crônica dos acontecimentos, a simples memória de um passado povoado somente de indivíduos e de acidentes, e que se buscaram as leis gerais do devir. 

De fato, nenhuma história foi mais “explicativa”, mais preocupada com leis gerais e com constantes que as da idade clássica – quando o mundo e o homem, num só movimento, se incorporavam numa história única. 

A partir do século XIX, o que vem à luz é uma forma nua da historicidade humana – o fato de que o homem enquanto tal está exposto ao acontecimento. Daí a preocupação, seja de encontrar leis para esta pura forma (e têm-se filosofias como as de Spengler), seja de defini-Ia a partir do fato de que o homem vive, de que o homem trabalha, de que o homem fala e pensa: e têm-se as interpretações da História a partir do homem considerado como espécie viva, ou a partir das leis da economia, ou a partir dos conjuntos culturais.

Em todo o caso, essa disposição da História no espaço epistemológico é de grande importância para sua relação com as ciências humanas. 

Uma vez que o homem histórico é o homem que vive, trabalha e fala, todo conteúdo da História, qualquer que seja, concerne à psicologia, à sociologia ou às ciências da linguagem. 

Mas, inversamente, uma vez que o ser humano se tornou, de ponta a ponta, histórico, nenhum dos conteúdos analisados pelas ciências humanas pode ficar estável em si mesmo nem escapar ao movimento da História. 

E isto por duas razões: 

  • porque a psicologia, a sociologia, a filosofia, mesmo quando aplicadas a objetos – isto é, a homens – que lhe são contemporâneos, não visar jamais senão a cortes sincrônicos no interior de uma historicidade que os constitui e os atravessa;
  • porque as formas assumidas sucessivamente pelas ciências humanas, a escolha que elas fazem de seu objeto, os métodos que lhes aplicam são dados pela História, incessantemente levados por ela e modificados a seu gosto. 

Quanto mais a História tenta ultrapassar seu próprio enraizamento histórico, quanto mais se esforça por atingir, para além da relatividade histórica de sua origem e de suas opções, a esfera da universalidade, tanto mais claramente traz ela os estigmas do seu nascimento histórico, tanto mais evidentemente aparece através dela a história de que ela, mesma faz parte (e disso, também Spengler e todos os filósofos da história dão testemunho); inversamente, quanto mais ela aceita sua relatividade, quanto mais se entranha no movimento que é comum a ela e ao que ela conta, tanto mais então ela tende à exiguidade da narrativa, e todo o conteúdo positivo que ela se conferia através das ciências humanas se dissipa.

A História forma, pois, para as ciências humanas, uma esfera de acolhimento ao mesmo tempo privilegiada e perigosa. 

 

A cada ciência do homem ela dá um fundo básico que a estabelece, lhe fixa um solo e como que uma pátria: ela determina a área cultural – o episódio cronológico, a inserção geográfica – em que se pode reconhecer, para este saber, sua validade; cerca-as, porém, com uma fronteira que as limita e, logo de início, arruína sua pretensão de valerem no elemento da universalidade. 

Desta maneira, ela revela que se o homem – antes mesmo de o saber – sempre esteve submetido às determinações que a psicologia, a sociologia, a análise das linguagens podem manifestar, nem por isso ele é o objeto intemporal de um saber que, pelo menos ao nível de seus direitos, seria, ele próprio, sem idade. 

Ainda quando evitam toda referência à história, as ciências humanas (e, a esse título, pode-se colocar a história entre elas) não fazem mais que pôr em relação um episódio cultural com outro (aquele a que elas se aplicam como ao objeto delas, e aquele em que se enraízam quanto à sua existência, seu modo de ser, seus métodos e seus conceitos); e se elas se aplicam à sua própria sincronia, é ao próprio homem que reportam o episódio cultural donde procedem. 

De sorte que o homem jamais aparece na sua positividade sem que esta seja logo limitada pelo ilimitado da História.

Vê-se reconstituir aqui um movimento análogo ao que animava interiormente todo o domínio das ciências do homem: tal como foi analisado acima, este movimento remetia perpetuamente das positividades que determinam o ser do homem à finitude que faz aparecer estas mesmas positividades; de sorte que as próprias ciências eram arrastadas nesta grande oscilação, a qual, porém, elas, por sua vez, retornavam na forma de sua própria positividade, buscando ir, sem cessar, do consciente ao inconsciente. 

Ora, eis que, com a História, uma oscilação semelhante recomeça; desta feita, porém, ela não se exerce 

  • entre a positividade do homem tomado como objeto (e manifestado empiricamente pelo trabalho, a vida e a linguagem) 
  • e os limites radicais de seu ser; 

exerce-se 

  • entre os limites temporais que definem as formas singulares do trabalho, da vida e da linguagem, 
  • e a positividade histórica do sujeito que, pelo conhecimento, tem acesso a eles. 

Também agora, o sujeito e o objeto estão ligados num questionamento recíproco; mas, 

  • enquanto que antes este questionamento se fazia no interior mesmo do conhecimento positivo e pelo progressivo desvelamento do inconsciente pela consciência, 
  • agora ele se faz nos confins exteriores do objeto e do sujeito; ele designa a erosão a que ambos estão submetidos, a dispersão que os afasta um do outro, arrancando-os a uma positividade calma, enraizada e definitiva. 

Desvelando o inconsciente como seu objeto mais fundamental, as ciências humanas mostravam que havia sempre o que pensar ainda no que já era pensado ao nível manifesto; descobrindo a lei do tempo como limite externo das ciências humanas, a História mostra que tudo o que é pensado o será ainda por um pensamento que ainda não veio à luz. 

Mas talvez não tenhamos aqui, sob as formas concretas do inconsciente e da História, senão as duas faces dessa finitude que, descobrindo que era por si mesma seu próprio fundamento, fez aparecer, no século XIX, a figura do homem: uma finitude sem infinito é, sem dúvida, uma finitude que jamais tem fim, que está sempre em recuo em relação a si mesma, à qual resta ainda alguma coisa para pensar no instante mesmo em que ela pensa, à qual resta sempre tempo para pensar de novo o que ela pensou.

No pensamento moderno, o historicismo e a analítica da finitude estão frente a frente. 

O historicismo é uma forma de fazer valer por ela mesma a perpétua relação critica que se exerce entre a História e as ciências humanas. 

Mas ele a instaura somente ao nível das positividades: o conhecimento positivo do homem é limitado pela positividade histórica do sujeito que conhece, de sorte que o momento da finitude é dissolvido no jogo de uma relatividade à qual não é possível escapar e que vale, ela mesma, como um absoluto. 

Ser finito seria, muito simplesmente, ser tomado pelas leis de uma perspectiva que, ao mesmo tempo, permite uma certa apreensão – do tipo da percepção ou da compreensão – e impede que esta jamais seja intelecção universal e definitiva. 

Todo conhecimento se enraíza numa vida, numa sociedade, numa linguagem que têm uma história; e, nesta história mesma, ele encontra o elemento que lhe permite comunicar-se com outras formas de vida, outros tipos de sociedade, outras significações: é por isto que o historicismo implica sempre uma filosofia ou, ao menos, uma certa metodologia da compreensão viva (no elemento da Lebenswelt), da comunicação inter-humana (sobre o fundo das organizações sociais) e da hermenêutica (como retomada, através do sentido manifesto de um discurso, de um sentido ao mesmo tempo segundo e primeiro, isto é, mais escondido porém mais fundamental). 

Com isto, as diferentes positividades formadas pela História e nela depositadas podem entrar em contato umas com as outras, envolverem-se à maneira de conhecimento, liberarem o conteúdo que nelas dormita; não são então os próprios limites que aparecem no seu rigor imperioso, mas totalidades parciais, totalidades que se acham limitadas de fato, totalidades cujas fronteiras se podem, até certo ponto, alterar, mas que jamais se estenderão no espaço de uma análise definitiva e também jamais se elevarão até a totalidade absoluta. 

É por isto que a análise da finitude não cessa de reivindicar, contra o historicismo, a parte de que este descuidara: ela tem por projeto fazer surgir, no fundamento de todas as positividades e antes delas, a finitude que as torna possíveis; 

  • lá onde o historicismo buscava a possibilidade e a justificação de relações concretas entre totalidades limitadas, cujo modo de ser era dado, de antemão, pela vida, ou pelas formas sociais, ou pelas significações da linguagem, 
  • a analítica da finitude quer interrogar esta relação do ser humano com o ser que, designando a finitude, torna possíveis as positividades em seu modo de ser concreto.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo X – As ciências humanas;
tópico IV – A História

I. O triedro dos saberes

O triedro dos saberes e o habitat das Ciências Humanas

I. O triedro dos saberes

Triedro dos saberes: espaço interior

Clicando na figura ao lado será mostrada uma animação visual com um resumo rápido de três tópicos do
capítulo X – As ciências humanas,
do livro ‘As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas.

São eles:

  • tópico I. O triedro dos saberes;
  • tópico II. A forma das ciências humanas;
  • tópico III. Os três modelos

A figura ao lado mostra uma animação visual que associa ao conceito abaixo de ‘modo de ser do homem’ no pensamento moderno, a uma estrutura na qual as ideias intervenientes expressas pelos respectivos elementos de imagem, ocupam seus lugares em uma estrutura proposta.

O modo de ser do homem no pensamento moderno

“O modo de ser do homem,
tal como se constituiu no pensamento moderno,
permite-lhe desempenhar dois papéis: 
está, ao mesmo tempo,

  • no fundamento de todas as positividades,

presente, de uma forma que não se
pode sequer dizer privilegiada,

  • no elemento das coisas empíricas.”
Os dois papéis do homem no pensamento de depois da
descontinuidade epistemológica ocorrida entre 1775 e 1825

Segue o texto formatado do tópico I. O triedro dos saberes;  do Capítulo X – As ciências humanas

O modo de ser do homem, tal como se constituiu no pensamento moderno, permite-lhe desempenhar dois papéis: 

está, ao mesmo tempo,

  • no fundamento de todas as positividades,

presente, de uma forma que não se
pode sequer dizer privilegiada,

  • no elemento das coisas empíricas.

Esse fato [o modo de ser do homem em sua constituição no pensamento moderno] – e não se trata aí da essência em geral do homem, mas pura e simplesmente desse a priori histórico que, desde o século XIX, serve de solo quase evidente ao nosso pensamento – esse fato é, sem dúvida, decisivo para o estatuto a ser dado às “ciências humanas”, a esse corpo de conhecimentos (mas mesmo esta palavra é talvez demasiado forte: digamos, para sermos mais neutros ainda, a esse conjunto de discursos) que toma por objeto o homem no que ele tem de empírico.

A primeira coisa a constatar é que as ciências humanas não receberam por herança um certo domínio já delineado, dimensionado talvez em seu conjunto, mas não-desbravado, que elas teriam por tarefa elaborar com conceitos enfim científicos e métodos positivos; o século XVIII não lhes transmitiu, sob o nome de homem ou de natureza humana, um espaço circunscrito exteriormente, mas ainda vazio, que elas tivessem, em seguida, a tarefa de cobrir e analisar.

O campo epistemológico que percorrem as ciências humanas não foi prescrito de antemão: 

nenhuma filosofia, nenhuma opção política ou moral, nenhuma ciência empírica, qualquer que fosse, nenhuma observação do corpo humano, nenhuma análise da sensação, da imaginação ou das paixões, jamais encontrou, nos séculos XVII e XVIII, alguma coisa como o homem; pois o homem não existia (assim como a vida, a linguagem e o trabalho); e as ciências humanas não apareceram quando, sob o efeito de algum racionalismo premente, de algum problema científico
não-resolvido, de algum interesse prático, decidiu-se fazer passar o homem (por bem ou por mal, e com maior ou menor êxito) para o campo dos objetos científicos – em cujo número, talvez, não esteja ainda provado que seja possível incluí-lo de modo absoluto;

elas apareceram no dia em que
o homem se constituiu na cultura ocidental,
ao mesmo tempo como

  • o que é necessário pensar
  • e o que se deve saber.

Certamente, não resta dúvida de que a emergência histórica de cada uma das ciências humanas tenha ocorrido por ocasião de um problema, de uma exigência, de um obstáculo de ordem teórica ou prática; 

  • por certo foram necessárias novas normas impostas pela sociedade industrial aos indivíduos para que, lentamente, no decurso do século XIX, a psicologia se constituísse como ciência;

 

  • também foram necessárias, sem dúvida, as ameaças que, desde a Revolução, pesaram sobre os equilíbrios sociais e sobre aquele mesmo que instaurara a burguesia, para que aparecesse uma reflexão de tipo sociológico.

Mas se essas referências podem bem explicar por que é que foi realmente em tal circunstância determinada e para responder a tal questão precisa que essas ciências se articularam, sua possibilidade intrínseca, o fato nu de que, pela primeira vez, desde que existem seres humanos e que vivem em sociedade, o homem, isolado ou em grupo, se tenha tornado objeto de ciência – isso não pode ser considerado nem tratado como um fenômeno de opinião: é um acontecimento na ordem do saber.

E esse acontecimento produziu-se, por sua vez, numa redistribuição geral da epistémê: quando, 

  • abandonando o espaço da representação,
    • os seres vivos alojaram-se na profundeza específica da vida,
    • as riquezas no surto progressivo das formas da produção,
    • as palavras no devir das linguagens.

Nessas condições, era necessário que o conhecimento do homem surgisse, com seu escopo científico, como contemporâneo e do mesmo veio que

  • a biologia,
  • a economia
  • e a filologia,

de tal sorte que nele se viu, muito naturalmente, um dos mais decisivos progressos realizados, na história da cultura européia, pela racionalidade empírica.

Mas, como ao mesmo tempo a teoria geral da representação desaparecia e impunha-se, em contrapartida, a necessidade de interrogar o ser do homem como fundamento de todas as
positividades, não podia deixar de produzir-se um  desequilíbrio: 

o homem tornava-se aquilo a partir do qual todo conhecimento podia ser constituído em sua evidência imediata e não-problematizada; 

tornava-se, a fortiori, aquilo que autoriza o questionamento de todo conhecimento do homem. 

Daí esta dupla e inevitável contestação: 

  • a que institui o perpétuo debate entre as ciências do homem e as ciências propriamente ditas, tendo as primeiras a pretensão invencível de fundar as segundas, que, sem cessar são obrigadas a buscar seu próprio fundamento, a justificação de seu método e a purificação de sua história, contra o “psicologismo”, contra o “sociologismo”, contra o “historicismo”; 
  • e a que institui o perpétuo debate entre a filosofia, que objeta às ciências humanas a ingenuidade com a qual tentam fundar-se a si mesmas, e essas ciências humanas, que reivindicam como seu objeto próprio o que teria constituído outrora o domínio da filosofia.

(os três eixos e as três faces do triedro dos saberes)

As três faces do conhecimento

Interrogado a esse nível arqueológico, o campo da epistémê moderna não se ordena conforme o ideal de uma matematização perfeita e não desenrola, a partir da pureza formal, uma longa seqüência de conhecimentos descendentes, cada vez mais carregados de empiricidade. Antes, deve-se representar o domínio da epistémê moderna com um espaço volumoso e aberto segundo três dimensões.

  • Eixo E3: Numa delas, situar-se-iam as ciências matemáticas e físicas, para as quais a ordem é sempre um encadeamento dedutivo e linear de proposições
    evidentes ou verificadas;
  • Eixo E1: haveria, em outra dimensão, ciências (como as
    da linguagem, da vida, da produção e da distribuição das riquezas) que procedem ao estabelecimento de relações entre elementos descontínuos mas análogos, de sorte que elas pudessem estabelecer entre eles relações causais e constantes de estrutura.

Essas duas primeiras dimensões definem entre si

  • Face F1: um plano comum: aquele que pode aparecer, conforme o sentido em que é percorrido, como campo de aplicação das matemáticas a essas ciências empíricas, ou domínio do matematizável na linguistica, na biologia e na economia. 

Quanto à terceira dimensão,

  • Eixo E2: seria a da reflexão filosófica, que se desenvolve como pensamento do Mesmo
  • Face F2: com [E1 – o eixo epistemológico fundamental] a dimensão da linguística, da biologia e da economia, ela [E2 – a reflexão filosófica] delineia um plano comum: lá podem aparecer, e efetivamente apareceram, as diversas filosofias da vida, do homem alienado, das formas simbólicas (quando se transpõem para a filosofia os conceitos e os problemas que nasceram nos diferentes domínios empíricos); mas, lá também apareceram, se se interrogar de um ponto de vista radicalmente filosófico o fundamento dessas empiricidades, ontologias regionais, que tentam definir o que são, em seu ser próprio, a vida, o trabalho e a linguagem; 
  • Face F3: enfim, [o eixo E2] a dimensão filosófica define com [o eixo E3] a das disciplinas matemáticas um plano comum [a face F1]: o da formalização do pensamento.

 

(o espaço interior do triedro)

Desse triedro epistemológico,
as ciências humanas são excluídas,
no sentido ao menos de que
não podem ser encontradas
em nenhuma das dimensões,

nem à superfície de nenhum dos planos
assim delineados.

As três faces do conhecimento

Mas, pode-se também dizer que elas são incluídas por ele, pois é no interstício  desses saberes, mais exatamente no volume definido por suas três dimensões, que elas encontram seu lugar. 

Essa situação (menor num sentido, privilegiada noutro) coloca-as em relação com todas as outras formas de saber: 

  • têm o projeto, mais ou menos protelado, porém constante, de se conferirem ou, em todo o caso, de utilizarem, num nível ou noutro, uma formalização matemática
  • procedem segundo modelos ou conceitos tomados à biologia, à economia e às ciências da linguagem
  • endereçam-se, enfim, a esse modo de ser do homem que a filosofia busca pensar ao nível da finitude radical, enquanto elas pretendem percorrê-lo em suas manifestações empíricas. 

É talvez essa repartição nebulosa num espaço de três dimensões que toma as ciências humanas tão difíceis de situar, que confere sua irredutível precariedade à localização destas no domínio epistemológico, que as faz aparecer ao mesmo tempo como perigosas e em perigo. 

Perigosas, pois representam para todos os outros saberes como que um risco permanente: por certo, nem as ciências dedutivas, nem as ciências empíricas, nem a reflexão filosófica, desde que permaneçam na sua dimensão própria, arriscam-se a “passar” para as ciências humanas ou encarregar-se de sua impureza; sabe-se, porém, que dificuldades por vezes encontra o estabelecimento desses planos intermediários que unem, umas às outras, as três dimensões do espaço epistemológico; é que o menor desvio em relação a esses planos rigorosos faz cair o pensamento no domínio investido pelas ciências humanas; 

daí o perigo 

  • do “psicologismo”, 
  • ou do “sociologismo” – 

do que se poderia chamar, numa palavra, 

  • “antropologismo” 

– que se torna ameaçador desde que, por exemplo, não se reflita corretamente sobre as relações entre o pensamento e a formalização, ou desde que não se analisem convenientemente os modos de ser da vida, do trabalho e da linguagem.

A “antropologização” é, em nossos dias, o grande perigo interior do saber. Facilmente se acredita que o homem liberou-se de si mesmo, desde que descobriu que não estava nem no centro da criação, nem no núcleo do espaço, nem mesmo talvez no cume e no fim derradeiro da vida; mas, se o homem não é mais soberano no reino do mundo, se já não reina no âmago do ser, as “ciências humanas” são perigosos intermediários no espaço do saber. 

Na verdade, porém, essa postura mesma as condena a uma instabilidade essencial. O que explica a dificuldade das “ciências humanas”, sua precariedade, sua incerteza como ciências, sua perigosa familiaridade com a filosofia, seu apoio mal definido sobre outros domínios do saber, seu caráter sempre secundário e derivado, como também sua pretensão ao universal, 

  • não é, como freqüentemente se diz, a extrema densidade de seu objeto; não é o estatuto metafisico ou a indestrutível transcendência desse homem de que elas falam, 
  • mas, antes, a complexidade da configuração epistemológica em que se acham colocadas, sua relação constante com as três dimensões que lhes confere seu espaço.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas
Capítulo X – As ciências humanas;
topico I – O triedro dos saberes

Duas visões, duas leituras do fenômeno 'operações':
sob o pensamento clássico, o de antes de 1775; (seta amarela)
sob o pensamento moderno, o de depois de 1825 (seta vermelha)
com duas amplitudes - abrangências muito diferentes
]
Caos como um tipo de ordem instável
em que as sequências temporais são muito complexas e revelam estruturas
que nos permitem melhor entender o mundo que nos cerca

Designações primitivas
(inoperantes no Instanciamento) 

Representação objeto do Instanciamento
recuperada do Repositório

Ambiente de onde são importados 
os recursos e insumos de todos os tipos,
consumidos durante o Instanciamento

Circuito das trocas 
operação inteiramente no interior do
Domínio do Discurso e da Representação

Circuito das trocas 
operação inteiramente no interior do
Domínio do Discurso e da Representação

Representação da empiricidade 
objeto da operação de Instanciamento
recuperada do Repositório, antes da operação

Representação da empiricidade   
objeto da operação de Instanciamento
recuperada do Repositório, depois da operação

Propriedades da empiricidade 
objeto da operação de Instanciamento
idênticas às da representação recuperada do Repositório,
antes da operação

Propriedades da empiricidade  
objeto da operação de Instanciamento
idênticas às da representação recuperada do Repositório,
depois da operação

Operação de instanciamento de representação
de empiricidade objeto pré-existente no Repositório
(sem alteração no modo de ser fundamental da empiricidade)

Processos, atividades, tasks
suporte da Forma de produção
desencadeados durante a operação de instanciamento

Evento (i) de início
da operação de instanciamento
da representação da empiricidade objeto

Evento (f) de fim  
da operação de instanciamento
da representação da empiricidade objeto

Operação de instanciamento ocorre
sem alteração  no modo de ser fundamental
da empiricidade objeto

Operação de instanciamento ocorre
sem alteração  no modo de ser fundamental
da empiricidade objeto

Domínio do Discurso e da Representação
(perfil amarelo)

Domínio do Pensamento e da Língua
(perfil vermelho)

Visão, utopia,
limite da estratégia, etc

Homem
na posição de sujeito

Compromisso de obtenção 
da representação para esta empiricidade objeto

Operação transcorre
com alteração do modo de ser fundamental
da empiricidade objeto

Empiricidade objeto
(antes da operação)

Propriedades da empiricidade objeto
sim e não originais constitutivas
(inexistentes antes da operação)

Propriedades da empiricidade objeto
sim e não originais constitutivas
(existentes depois da operação) 

Designações primitivas
(ativas e parte da origem da linguagem)

Repositório
linguagem de uso

Evento de início da operação
de construção da representação
para a empiricidade objeto

Evento de fim da operação
de construção da representação
para a empiricidade objeto

Empiricidade objeto 
(depois da operação) 

Forma de produção
(elemento central do modelo de operação)

Processos, atividades, tasks
como elementos de suporte
à Forma de produção

Sucessão de analogias
coleção relacionada de objetos análogos
que compõem representação em construção

Lugar de nascimento do que é empírico

Lugar de nascimento do que é empírico

Domínio do Discurso e da Representação
(perímetro amarelo)

Domínio do Pensamento e da Língua 
(perímetro vermelho)

Representação A
(pré-existente)

Representação B
(pré-existente)

Quadro ordenado
(ordem arbitrária selecionada)

Categoria selecionada na ordem arbitrária
que guarda similitude com aparências

Representação R 
(composição de (a) e (b), pré-existentes)  

Circuito das trocas 

Domínio do Discurso e da Representação 

Domínio do Discurso e da Representação

Circuito das trocas

Pacote de coisas
selecionadas por "aparências" 
Entradas

Evento (i) de início
do instanciamento de (r)  

VC - Volume de controle
espaço orientado onde ocorre a operação

Evento (f) de final
do instanciamento de (r)

Propriedades "aparências" 
não-originais e não-constitutivas das coisas
existentes antes da operação

Propriedades "aparências" 
não-originais e não-constitutivas das coisas
existentes depois da operação

Pacote de coisas
selecionadas por "aparências" 
Saídas 

Paleta de ideias ou elementos de imagem
presentes na configuração de pensamento clássico

Las meninas, Diego Velázquez, 1656; óleo sobre tela; Museu do Prado, Madrid, Espanha

O ontologia do sistema SIPOC/FEPSC

Proposição instanciativa: pensamento moderno, caminho da Construção da representação
designações primitivas inativas; elementos de suporte da Forma de produção existentes e ativados; linguagem de ação ou raiz sim contém a representação para essa empiricidade objeto
recuperada desde o Repositório para objeto desta operação
Proposição explicativa: pensamento moderno, caminho da Construção da representação
designações primitivas ativas; elementos de suporte da Forma de produção existentes; linguagem de ação ou raiz sim contém a representação para essa empiricidade objeto
Proposição enunciativa: pensamento moderno, caminho da Construção da representação
designações primitivas ativas; elementos de suporte da Forma de produção inexistentes; linguagem de ação ou raiz não contém a representação para essa empiricidade objeto
a proposição no pensamento clássico
ponto de aplicação da leitura de operações no momento da troca
a proposição no pensamento moderno: ponto de aplicação da leitura de operações antes da troca
ECA-moderno
Características do pensamento moderno
o de depois de 1825
ECA-Clássico
Características do pensamento clássico
o de antes de 1775
homem no modelo de operações do pensamento clássico, o de antes de 1775,
considerado como uma das categorias do sistema de categorias,
como um gênero, ou uma espécie
os dois obstáculos encontrados por Michel Foucault em seu trabalho
no livro 'As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas
caminho do Instanciamento da representação, com valor já atribuído;
que tem início novamente no interior do Circuito das trocas
fontes de valor para a representação em construção: a) designações primitivas; b) linguagem de ação ou taiz.

Exemplos de modelos de operações e de organizações sem a possibilidade de fundar as sínteses (do objeto das operações) no espaço da representação e com ponto de inserção da análise de operações no cruzamento entre o dado e o recebido na operação de troca

Funcionamento
do pensamento
funcionamento das operações no pensamento clássico
Modelo de
Operação de produção
relação do modelo de operações de produção de E. S. Buffa
e o sistema Input-Output
do LE da figura.
Modelo da 
Organização de produção
Um modelo de organização sob o pensamento clássico, destacando a utilização de múltiplas ordens, ou
múltiplos sistemas de categorias
Modelo de operações
e de organização
Modelo FEPSC(SIPOC), Six Sigma
Modelo de  Operação
contábil-financeira
O modelo de operação
no sistema contábil-financeiro
Modelo da  Organização
ponto de vista financeiro
a organização no sistema contábil-financeiro

Exemplos de modelos de operações e de organizações no pensamento moderno, e assim  com a possibilidade de fundar as sínteses (do objeto das operações) no espaço da representação e com ponto de inserção da análise de operações antes do cruzamento entre o dado e o recebido na operação de troca

Funcionamento
de operação do pensamento
O funcionamento das operações no pensamento moderno
Modelo de
Operação de produção
relação entre o modelo descritivo da produção do Kanban e 'essa maneira moderna de conhecer empiricidades'
Modelo da 
Organização de produção
o modelo de organização 'Mapa da atividade semicondutores', da Reengenharia, o modelo de operações do Kanban e o modelo moderno de operações
O modelo descritivo da produção do Kanban operação de
instanciamento de representação
O mapa da atividade semicondutores da Texas Instruments: modelo de organização
do movimento Reengenharia

O espaço interior do Triedro dos saberes – habitat das ciências humanas, com modelos situados no espectro de modelos no segmento para além do objeto

Assim, estes três pares,

  • função e norma,
  • conflito e regra,
  • significação e sistema,

cobrem, por completo, o domínio inteiro do conhecimento do homem. 

Mas, qualquer que seja a natureza da análise e o domínio a que ela se aplica, tem-se um critério formal para saber o que é

  • do nível da psicologia,
  • da sociologia
  • ou da análise das linguagens

é a escolha do modelo fundamental e a posição dos modelos secundários que permitem saber em que momento

  • se “psicologiza” ou se “sociologiza” no estudo das literaturas e dos mitos, em que momento se faz, em psicologia, decifração de textos ou análise sociológica. 

Mas essa superposição de modelos não é um defeito de método. 

Só há defeito se os modelos não forem ordenados e explicitamente articulados uns com os outros.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo X  – As ciências humanas;
 III. Os três modelos
Michel Foucault 

O Triedro dos saberes: eixos e faces
espaço das ciências da Vida, do Trabalho e da Linguagem
O interior ao Triedro dos saberes
o espaço das Ciências humanas

Aquém do objeto

Não há modelos constituintes nesta faixa do espectro, já que nada é constituído na existência durante as operações;

  • o ponto de inserção na análise do fenômeno ‘operações está no cruzamento entre o que é dado e o que é recebido na operação de troca.

Na configuração do pensamento pressupõe-se que todas as coisas
existem desde sempre e para sempre,
e integram o Universo em uma visão única.

Existem múltiplas ordens que podem ser arbitrariamente escolhidas para cada operação; e em uma mesma organização podem conviver ordens – como diz Foucault – ligeiramente diferentes. Tem-se inúmeras categorias para cada ordem escolhida, e muitas ordens possíveis de serem selecionadas.

Nada é constituído na existência como resultado das distinções feitas durante as operações nesta faixa do espectro.

Diante do objeto

No eixo epistemológico fundamental – ciências da Vida, do Trabalho e da Linguagem, a modelagem em cada área do saber pode ser feita com um modelo constituinte específico e próprio de cada uma delas:

  • em todas, o ponto de inserção na análise do fenômeno ‘operações’ está antes do cruzamento entre o dado e o recebido, e portanto antes da existência destes.

No que Foucault chama de ‘Região epistemológica Fundamental’ os Modelos constituintes são compostos por pares constituintes, próprios a cada região do saber ou área do conhecimento em que o modelo é feito:

  • Ciências da vida (Biologia):


    função-norma
    ;

  • Ciências do trabalho (Economia):


    conflito-regra;

  • Ciências da Linguagem (Filologia):

    significação-sistema.

Além do objeto

No campo das ciências humanas, o modelo constituinte de qualquer uma delas se unifica. 

Os Modelos constituintes são compostos por uma combinação dos três pares de modelos constituintes das ciências

  • da Vida-(Biologia),
  • do Trabalho-(Economia)
  • e da Linguagem-(Filologia).

O Modelo constituinte  de cada uma das Ciências Humanas – é uma combinação – ponderada pelo projetista de modelos.

O modelo composto é uma combinação dos três pares de modelos constituintes: 

  • Ciências da vida  (Biologia):
    função-norma;

    +
    Ciências do trabalho (Economia):

    conflito-regra;
    +
    Ciências da Linguagem (Filologia):
    significação-sistema.

Sob ciências humanas como:

  • economia política;
  • sociologia,
  • psicologia e psicanálise

estão modelos compostos, que são combinações ponderadas dos três pares de modelos constituintes das ciências integrantes do eixo epistemológico fundamental.

- Lugar do nascimento do que é empírico:
pensamento moderno - caminho da Construção da representação
- Circuito das trocas, ou Mercado: pensamento clássico, ou pensamento moderno, sempre no caminho do Instanciamento da representação objeto

Mercado, ou Circuito das trocas: lugar onde ocorrem operações nas quais o ‘modo de ser fundamental’ das empiricidades não muda.

Encontra-se 

  • sob o pensamento clássico, o de antes de 1775,
  • e também ocorre no pensamento moderno, o de depois de 1825, no caminho do Instanciamento da representação.

Lugar do nascimento do que é empírico: lugar onde ocorrem operações nas quais o ‘modo de ser fundamental das empiricidade sim, muda.

Encontra-se somente sob o pensamento moderno, o de depois de 1825, no caminho da Construção da representação

O 'Circuito das trocas', ou 'Mercado'
lugar onde transcorre uma operação sob o pensamento clássico
O Lugar de nascimento do que é empírico
lugar onde transcorre a operação de construção de representação nova
e onde se dá a articulação do pensamento do homem, com o impensado
O Circuito das trocas
as chaves horizontais amarelas
onde ocorrem operações durante as quais o 'modo de ser fundamental'
não se altera

no pensamento clássico
antes de 1775

no pensamento moderno
depois de 1825

questão/pergunta

2Assim como a Ordem
no pensamento clássico
não era
a harmonia visível
das coisas,
seu ajustamento,
sua regularidade
ou sua simetria constatados,
mas o espaço próprio de seu ser
e aquilo que,
antes de todo
conhecimento efetivo,
as estabelecia no saber,

1″Mas vê-se bem
que a História
não deve ser aqui entendida
como a coleta das sucessões de fatos, tais como se constituíram;

ela é
o modo de ser fundamental
das empiricidades,

aquilo a partir de que elas são

  • afirmadas,
  • postas,
  • dispostas
  • e repartidas no espaço do saber para eventuais conhecimentos e para ciências possíveis.

[veja citação 2 à esquerda]

A referência ao ‘Circuito das trocas’ – ou Mercado é uma quase unanimidade na literatura especializada filosófica ou técnica.

Qual será a explicação para isso?

Por que praticamente ninguém fala no ‘Lugar de nascimento do que é empírico’?

Seria o caso de haver um desalinhamento filosófico no trabalho desses autores?

3assim também a História,
a partir do século XIX,
define o
lugar de nascimento
do que é empírico,
lugar onde,
aquém
de toda cronologia estabelecida,
ele assume o ser
que lhe é próprio.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VII – Os limites da representação;
I. A idade da história
Michel Foucault 

- Lugar do nascimento do que é empírico:
pensamento moderno - caminho da Construção da representação
- Circuito das trocas, ou Mercado: pensamento clássico, ou pensamento moderno, sempre no caminho do Instanciamento da representação objeto

Mercado, ou Circuito das trocas: lugar onde ocorrem operações nas quais o ‘modo de ser fundamental’ das empiricidades não muda.

Encontra-se 

  • sob o pensamento clássico, o de antes de 1775,
  • e também ocorre no pensamento moderno, o de depois de 1825, no caminho do Instanciamento da representação.

Lugar do nascimento do que é empírico: lugar onde ocorrem operações nas quais o ‘modo de ser fundamental das empiricidade sim, muda.

Encontra-se somente sob o pensamento moderno, o de depois de 1825, no caminho da Construção da representação

no pensamento clássico
antes de 1775

no pensamento moderno
depois de 1825

questão/pergunta

2Assim como a Ordem
no pensamento clássico
não era
a harmonia visível
das coisas,
seu ajustamento,
sua regularidade
ou sua simetria constatados,
mas o espaço próprio de seu ser
e aquilo que,
antes de todo
conhecimento efetivo,
as estabelecia no saber,

1″Mas vê-se bem
que a História
não deve ser aqui entendida
como a coleta das sucessões de fatos, tais como se constituíram;

ela é
o modo de ser fundamental
das empiricidades,

aquilo a partir de que elas são

  • afirmadas,
  • postas,
  • dispostas
  • e repartidas no espaço do saber para eventuais conhecimentos e para ciências possíveis.

[veja citação 2 à esquerda]

assim também a História,
a partir do século XIX,
define o
lugar de nascimento
do que é empírico,
lugar onde,
aquém de toda cronologia estabelecida,
ele assume o ser
que lhe é próprio.

A referência ao ‘Circuito das trocas’ – ou Mercado é uma quase unanimidade na literatura especializada filosófica ou técnica.

Qual será a explicação para isso?

Por que praticamente ninguém fala no ‘Lugar de nascimento do que é empírico’?

Seria o caso de haver um desalinhamento filosófico no trabalho desses autores?

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VII – Os limites da representação;
I. A idade da história
Michel Foucault 

Questões/Perguntas

_thumb história do livro

A intenção com este estudo é buscar no pensamento de Michel Foucault,
 – com foco no livro ‘As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas’ – subsídios para responder ao seguinte tipo de questões:

tratamento dado ao homem em nossa cultura

Os tratamentos dados ao homem em nossa cultura, no pensamento clássico e no moderno, segundo Michel Foucault; 

e as ideias – ou elementos de imagem – requeridos para compor estruturalmente modelos de operações e modelos de organizações
com os respectivos tratamentos dados ao homem

homem no modelo de operações do pensamento clássico, o de antes de 1775, considerado como uma das categorias do sistema de categorias,
como um gênero, ou uma espécie
homem no sistema de operações do pensamento moderno, o de depois de 1825 considerado em sua duplicidade de papéis:
1. raiz e fundamento de toda positividade
2. elemento do que é empírico.

“Instaura-se
uma forma de reflexão
bastante afastada
do cartesianismo
e da análise kantiana,
em que está em questão,
pela primeira vez,
o ser do homem,
nessa dimensão
segundo a qual
o pensamento
se dirige ao impensado,
e com ele se articula.”

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo IX  – O homem e seus duplos;
V. O cogito e o impensado
Michel Foucault 

no pensamento clássico
antes de 1775

no pensamento moderno
depois de 1825

questão/pergunta

“No pensamento clássico,
aquele para quem
a representação existe,
e que nela se representa a si mesmo,
aí se reconhecendo
por imagem ou reflexo,
aquele que trama
todos os fios entrecruzados
da “representação em quadro” -,
esse [o ser do homem]
jamais se encontra lá presente.

Antes do fim do século XVIII,
o homem não existia.

Sem dúvida,
as ciências naturais
trataram do homem como 

  • de uma espécie
  • ou de um gênero

a discussão
sobre o problema das raças,
no século XVIII, o testemunha.
A gramática e a economia,
por outro lado, utilizavam noções como as de necessidade,
de desejo,
ou de memória
e de imaginação.”

Mas não havia
consciência epistemológica

do homem como tal.

“Antes do fim do século XVIII,
o homem não existia.”

“O modo de ser do homem,
tal como se constituiu
no pensamento moderno,
permite-lhe desempenhar dois papéis:
está, ao mesmo tempo,

  • no fundamento
    de todas as positividades,
  • presente, de uma forma que não se pode sequer dizer privilegiada,
    no elemento
    das coisas empíricas.

Esse fato
– e não se trata aí
da essência em geral do homem,
mas pura e simplesmente
desse a priori histórico que,
desde o século XIX,
serve de solo quase evidente
ao nosso pensamento –
esse fato é, sem dúvida, decisivo
para o estatuto a ser dado
às “ciências humanas”,
a esse corpo de conhecimentos
(mas mesmo esta palavra
é talvez demasiado forte:
digamos,
para sermos mais neutros ainda,
a esse conjunto de discursos)
que toma por objeto o homem
no que ele tem de empírico.”

É possível pensar as condições em que se dá a subjetividade de um ‘homem’ tratado como espécie, ou gênero?

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo IX – O homem e seus duplos;
II. O lugar do rei
Michel Foucault 

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo X  – As ciências humanas;
 I. O triedro dos saberes
Michel Foucault 

Veja o ponto “2. as possibilidades de leitura do fenômeno ‘operações de troca’ e respectivas possibilidades de análise de valor que elas nos permitem fazer”

Parece ser a opção de leitura da ‘operação de troca’ deslocada para um ponto antes das existência dos objetos da troca o que arrasta o ser do homem e cada objeto da troca para a Forma de reflexão que se instaura em nossa cultura.

as possibilidades de leitura do fenômeno 'operações de troca' e as respectivas possibilidades de análises de valor

O fenômeno ‘operações’ (em qualquer área): visões com duas abrangências muito diferentes dependendo da leitura que fazemos.

As duas possibilidades de inserção do ponto de início da leitura do fenômeno ‘operações’ – de qualquer tipo – e a análise das diferentes origens do valor carregado pelas proposições para as representações em função da inserção do ponto de início de leitura de ‘operações’; 

Duas visões, duas leituras do fenômeno 'operações':
sob o pensamento clássico, o de antes de 1775; (seta amarela)
sob o pensamento moderno, o de depois de 1825 (seta vermelha)
com duas amplitudes - duas abrangências muito diferentes

Note-se que as condições para a ocorrência da troca – a existência simultânea dos dois objetos de troca, o que é dado e o que é recebido – são satisfeitas em duas situações:

  • 1. no pensamento clássico pelo posicionamento do ponto de início de leitura sob essa condição, quer dizer, a existência prévia do que é dado e do que é recebido;
  • 2. no pensamento moderno, pela satisfação dessa pré-condição no início do Instanciamento da representação, porém com a condição da execução anterior da Construção da representação, também incluída no escopo da operação. 

Nos pontos marcados por setas amarelas para baixo (1) e (2) as pré-condições para a ocorrência da troca são dadas, qualquer que seja a estrutura de pensamento – clássico ou moderno – segundo o pensamento de Michel Foucault.

O que não muda entre essas duas possibilidades

A proposição como bloco construtivo padrão fundamental e genérico para construção de representações e suas duas possibilidades de carregamento de valor, quanto às respectivas origens

A proposição é para a linguagem
o que a representação é
para o pensamento:
sua forma, ao mesmo tempo
mais geral e mais elementar,
porquanto, desde que a decomponhamos, não reencontraremos mais o discurso,
mas seus elementos
como tantos materiais dispersos.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo IV  – Falar;
tópico III – Teoria do verbo
Michel Foucault 

(…) Em outras palavras,
para que, numa troca,
uma coisa possa representar outra,
é preciso que elas existam
já carregadas de valor;
e, contudo,
o valor só existe
no interior da representação

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VI – Trocar;
V. A formação do valor
Michel Foucault 

O que sim muda entre essas duas possibilidades

A origem do valor carregado pelo veículo de carregamento de valor na representação: a proposição, sempre, porém em linguagens essencialmente diferentes e representações com origens de valor distintas.

“Valer, para o pensamento clássico,
é primeiramente valer alguma coisa,
poder substituir essa coisa num processo de troca.

A moeda só foi inventada,
os preços só foram fixados e só se modificam
na medida em que essa troca existe.

Ora, a troca é um fenômeno simples
apenas na aparência.

Com efeito, só se troca numa permuta,
quando cada um dos dois parceiros
reconhece um valor
para aquilo que o outro possui.

Num sentido, é preciso, pois,
que as coisas permutáveis,
com seu valor próprio,
existam antecipadamente nas mãos de cada um,
para que a dupla cessão e a dupla aquisição
finalmente se produzam.

Mas, por outro lado,

  • o que cada um come e bebe,
    aquilo de que precisa para viver
    não tem valor
    enquanto não o cede;
  • e aquilo de que não tem necessidade
    é igualmente desprovido de valor
    enquanto não for usado
    para adquirir alguma coisa de que necessite.

Em outras palavras,
para que, numa troca,
uma coisa possa representar outra,
é preciso que elas existam
já carregadas de valor;
e, contudo,
o valor só existe
no interior da representação

  • (atual [troca imediata]
  • ou possível [permutabilidade]),

isto é, no interior

  1. da troca
    [representação existente]
  2. ou da permutabilidade
    [representação possível]
    .

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VI – Trocar;
V. A formação do valor
Michel Foucault 

O funcionamento da troca em cada uma das duas possibilidades de leitura do fenômeno ‘operação’: no ato mesmo da troca; ou anterior à troca, na criação das condições de troca

“Daí duas possibilidades simultâneas de leitura:

  1. leitura já dadas as condições de troca;
  2. leitura na permutabilidade, isto é na criação de condições de troca

1 uma analisa o valor
no ato mesmo da troca,
no ponto de cruzamento
entre o dado e o recebido;

  • A primeira dessas duas leituras corresponde a uma análise que coloca e encerra
    • toda a essência da linguagem no interior da proposição;

3 no primeiro caso, com efeito, a linguagem encontra seu lugar de possibilidade numa atribuição assegurada pelo verbo – isto é, por esse elemento da linguagem em recuo relativamente a todas as palavras mas que as reporta umas às outras; o verbo, tornando possíveis todas as palavras da linguagem a partir de seu liame proposicional, corresponde à troca que funda, como um ato mais primitivo que os outros, o valor das coisas trocadas e o preço pelo qual são cedidas;

2 outra analisa-o
como anterior à troca
e como condição primeira
para que esta possa ocorrer.

  • a outra, a uma análise que descobre essa mesma essência da linguagem do lado das
    • designações primitivas
    • linguagem de ação ou raiz;

4 a outra forma de análise, a linguagem está enraizada 

fora de si mesma e como que

    • na natureza, ou nas   
    • analogias das coisas;

a raiz, o primeiro grito que dera nascimento às palavras antes mesmo que a linguagem tivesse nascido, corresponde à formação imediata do valor, antes da troca e das medidas recíprocas da necessidade.”

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VI – Trocar;
V. A formação do valor
Michel Foucault 

Esta segunda leitura para ‘operações’
– que orienta a análise de valor
desde antes do momento da troca -,
não é possível sem a presença do homem
na estrutura dos modelos.

Isso fica bastante claro com a descrição da forma de reflexão que se instaura em nossa cultura depois da descontinuidade epistemológica de 1775-1825

Esses dois pontos de inserção da leitura da operação de troca
mostrados nos modelos de operações

Colocando o ponto de inserção de leitura do fenômeno ‘operações’ antes da existência dos objetos envolvidos na troca, ocorre uma portentosa ampliação no escopo da operação – de qualquer natureza -, incorporando toda a etapa de construção de representação nova. Veja isso aqui.

a forma de reflexão que se instaura em nossa cultura

o lugar onde ocorrem as operações de troca tais como as vemos nas leituras que fazemos

- Lugar do nascimento do que é empírico:
pensamento moderno - caminho da Construção da representação
- Circuito das trocas, ou Mercado: pensamento clássico, ou pensamento moderno, sempre no caminho do Instanciamento da representação objeto

Mercado, ou Circuito das trocas: lugar onde ocorrem operações nas quais o ‘modo de ser fundamental’ das empiricidades não muda.

Encontra-se 

  • sob o pensamento clássico, o de antes de 1775,
  • e também ocorre no pensamento moderno, o de depois de 1825, no caminho do Instanciamento da representação.

Lugar do nascimento do que é empírico: lugar onde ocorrem operações nas quais o ‘modo de ser fundamental das empiricidade sim, muda.

Encontra-se somente sob o pensamento moderno, o de depois de 1825, no caminho da Construção da representação

O 'Circuito das trocas', ou 'Mercado'
lugar onde transcorre uma operação sob o pensamento clássico
O Lugar de nascimento do que é empírico
lugar onde transcorre a operação de construção de representação nova
e onde se dá a articulação do pensamento do homem, com o impensado
O Circuito das trocas
as chaves horizontais amarelas
onde ocorrem operações durante as quais o 'modo de ser fundamental'
não se altera

no pensamento clássico
antes de 1775

no pensamento moderno
depois de 1825

questão/pergunta

2Assim como a Ordem
no pensamento clássico
não era
a harmonia visível
das coisas,
seu ajustamento,
sua regularidade
ou sua simetria constatados,
mas o espaço próprio de seu ser
e aquilo que,
antes de todo
conhecimento efetivo,
as estabelecia no saber,

1″Mas vê-se bem
que a História
não deve ser aqui entendida
como a coleta das sucessões de fatos, tais como se constituíram;

ela é
o modo de ser fundamental
das empiricidades,

aquilo a partir de que elas são

  • afirmadas,
  • postas,
  • dispostas
  • e repartidas no espaço do saber para eventuais conhecimentos e para ciências possíveis.

[veja citação 2 à esquerda]

A referência ao ‘Circuito das trocas’ – ou Mercado é uma quase unanimidade na literatura especializada filosófica ou técnica.

Qual será a explicação para isso?

Por que praticamente ninguém fala no ‘Lugar de nascimento do que é empírico’?

Seria o caso de haver um desalinhamento filosófico no trabalho desses autores?

3assim também a História,
a partir do século XIX,
define o
lugar de nascimento
do que é empírico,
lugar onde,
aquém
de toda cronologia estabelecida,
ele assume o ser
que lhe é próprio.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VII – Os limites da representação;
I. A idade da história
Michel Foucault 

Questões/Perguntas

_thumb história do livro

A intenção com este estudo é buscar no pensamento de Michel Foucault,  – com foco no livro ‘As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas’ – subsídios para responder ao seguinte tipo de questões:

Os dois obstáculos, as duas pedras de tropeço no caminho,
encontradas por Foucault durante seu trabalho no livro
‘As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas’

exemplos de modelos de operações e de organizações muito usados ainda hoje, mostrando esses dois obstáculos presentes entre nós atualmente.

os dois obstáculos encontrados por Michel Foucault em seu trabalho
no livro ‘As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas
Michel Foucault
1926-1984

“Eis que nos adiantamos
bem para além do acontecimento histórico
que se impunha situar
– bem para além das margens cronológicas dessa ruptura
que divide, em sua profundidade,
a epistémê do mundo ocidental
e isola para nós o começo de certa
maneira moderna de conhecer as empiricidades.

É que o pensamento que nos é contemporâneo
e com o qual, queiramos ou não, pensamos,
se acha ainda muito dominado

1 pela impossibilidade
trazida à luz por volta 
do fim do século XVIII, 
de fundar as sínteses
no espaço da representação:

2 e pela obrigação 
correlativa, simultânea, 

mas logo dividida contra si mesma, 
de abrir o campo transcendental da subjetividade e de constituir inversamente, 
para além do objeto, 

esses “quase-transcendentais” 
que são para nós 
Vida, o Trabalho, a Linguagem.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;

Capítulo VIII – Trabalho, vida e linguagem;
tópico I – As novas empiricidades

no pensamento clássico
aquém do objeto
antes de 1775

no pensamento moderno
diante do objeto
depois de 1825

espaço interior
Triedro dos saberes
para além do objeto
reservado às
Ciências humanas

comparações de diferentes configurações de pensamento feitas por Michel Foucault
A impossibilidade
[no pensamento clássico,
LE da figura]
contra a sim-possibilidade
[no pensamento moderno,
LD da figura]
de fundar as sínteses
[da empiricidade objeto]
no espaço da representação.
o espaço interno do
Triedro dos saberes
– o habitat das ciências humanas –
mostrando o modelo constituinte composto e comum a todas as Ciências Humanas

Os obstáculos no caminho de Foucault 

aquém do objeto

diante do objeto

para além do objeto

0 Foucault havia anteriormente identificado o perfil do pensamento no período clássico, com uma configuração tal que a capacidade (ou a possibilidade – e mesmo a intenção) de fundar as sínteses – dos objetos de operações cujas representações resultassem dessas operações – no espaço da representação não era sequer cogitada:

  • em razão dos pressupostos adotados,

e principalmente, em razão 

  • do tipo de leitura feita do fenômeno ‘operações’ das trocas, 
    • na leitura então feita, o ponto de início do fenômeno  ‘operações’, estava inserido no exato momento em que a troca tem todas as condições para acontecer; (os dois objetos da troca – o dado e o obtido –  tinham representações disponíveis e já carregadas de valor).

1 Michel Foucault relata a seguinte situação:

  • ele havia delineado um tipo de pensamento ‘com o qual queiramos ou não pensamos’, um pensamento que segundo ele ‘tem a nossa idade e a nossa geografia’,
    • com a possibilidade de fundar as sínteses (da empiricidade objeto da operação) no espaço da representação;

para conseguir fundar as sínteses no espaço da representação,

  • foi necessário alterar profundamente todos os pressupostos

e a leitura feita do que seja uma operação e a análise de valor, exigiram:

  • o deslocamento do ponto de inserção da análise desde o ponto de cruzamento entre o dado e o recebido;
  • para um ponto antes da possibilidade da troca, quando os elementos que dão as condições de efetivação dessa troca, ainda não existissem,

incorporando à análise, a operação de construção da representação nova. 

E ele havia percebido que esse pensamento com o qual queiramos ou não pensamos

  • estava muito contaminadodominado, mesmo –
    • justamente pela impossibilidade de fazer isso (essa fundação das sínteses do objeto da operação no espaço da representação), sendo esta impossibilidade  uma característica do pensamento clássico.

2 Ele percebia ainda uma obrigação a cumprir:

  • a de abrir o campo transcendental da subjetividade
    • e constituir, para além do objeto, os quase-transcendentais Vida, Trabalho e Linguagem.

Ele descobre que operações nos domínios das ciências da Vida, do Trabalho e da Linguagem podem ser expressos completamente em cada domínio, por pares de modelos constituintes:

  • Vida(Biologia)
    • função-norma;
  • Trabalho(Economia)
    • conflito-regra;
  • Linguagem(Filologia)
    • significação sistema;

e que os modelos constituintes das Ciências humanas são sempre compostos por uma combinação desses três pares de modelos constituintes.

O Modelo constituinte  de cada uma das Ciências Humanas – é sempre uma combinação dos modelos constituintes das:

  • Ciências da vida  (Biologia):
    [função-norma];

    +
    Ciências do trabalho (Economia):
    [conflito-regra];
    +
    Ciências da Linguagem (Filologia):
    [significação-sistema].

Podemos ver a atualidade dessa percepção de Foucault
com Exemplos de modelos para operações e organizações
construídos sobre estruturas de conceitos
uns que não permitem, e outros que ao contrário sim permitem
a fundação das sínteses (do objeto das operações) no espaço da representação.

Veja isso aqui.

Os tratamentos dados ao homem em nossa cultura, no pensamento clássico e no moderno, segundo Michel Foucault; 

e as ideias – ou elementos de imagem – requeridos para compor estruturalmente modelos de operações e modelos de organizações
com os respectivos tratamentos dados ao homem

homem no modelo de operações do pensamento clássico, o de antes de 1775, considerado como uma das categorias do sistema de categorias,
como um gênero, ou uma espécie
homem no sistema de operações do pensamento moderno, o de depois de 1825 considerado em sua duplicidade de papéis:
1. raiz e fundamento de toda positividade
2. elemento do que é empírico.

“Instaura-se
uma forma de reflexão
bastante afastada
do cartesianismo
e da análise kantiana,
em que está em questão,
pela primeira vez,
o ser do homem,
nessa dimensão
segundo a qual
o pensamento
se dirige ao impensado,
e com ele se articula.”

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo IX  – O homem e seus duplos;
V. O cogito e o impensado
Michel Foucault 

no pensamento clássico
antes de 1775

no pensamento moderno
depois de 1825

questão/pergunta

“No pensamento clássico,
aquele para quem
a representação existe,
e que nela se representa a si mesmo,
aí se reconhecendo
por imagem ou reflexo,
aquele que trama
todos os fios entrecruzados
da “representação em quadro” -,
esse [o ser do homem]
jamais se encontra lá presente.

Antes do fim do século XVIII,
o homem não existia.

Sem dúvida,
as ciências naturais
trataram do homem como 

  • de uma espécie
  • ou de um gênero

a discussão
sobre o problema das raças,
no século XVIII, o testemunha.
A gramática e a economia,
por outro lado, utilizavam noções como as de necessidade,
de desejo,
ou de memória
e de imaginação.”

Mas não havia
consciência epistemológica

do homem como tal.

“Antes do fim do século XVIII,
o homem não existia.”

“O modo de ser do homem,
tal como se constituiu
no pensamento moderno,
permite-lhe desempenhar dois papéis:
está, ao mesmo tempo,

  • no fundamento
    de todas as positividades,
  • presente, de uma forma que não se pode sequer dizer privilegiada,
    no elemento
    das coisas empíricas.

Esse fato
– e não se trata aí
da essência em geral do homem,
mas pura e simplesmente
desse a priori histórico que,
desde o século XIX,
serve de solo quase evidente
ao nosso pensamento –
esse fato é, sem dúvida, decisivo
para o estatuto a ser dado
às “ciências humanas”,
a esse corpo de conhecimentos
(mas mesmo esta palavra
é talvez demasiado forte:
digamos,
para sermos mais neutros ainda,
a esse conjunto de discursos)
que toma por objeto o homem
no que ele tem de empírico.”

É possível pensar as condições em que se dá a subjetividade de um ‘homem’ tratado como espécie, ou gênero?

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo IX – O homem e seus duplos;
II. O lugar do rei
Michel Foucault 

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo X  – As ciências humanas;
 I. O triedro dos saberes
Michel Foucault 

Veja o ponto “2. as possibilidades de leitura do fenômeno ‘operações de troca’ e respectivas possibilidades de análise de valor que elas nos permitem fazer”

Parece ser a opção de leitura da ‘operação de troca’ deslocada para um ponto antes das existência dos objetos da troca o que arrasta o ser do homem e cada objeto da troca para a Forma de reflexão que se instaura em nossa cultura.

O fenômeno ‘operações’ (em qualquer área): visões com duas abrangências muito diferentes dependendo da leitura que fazemos.

As duas possibilidades de inserção do ponto de início da leitura do fenômeno ‘operações’ – de qualquer tipo – e a análise das diferentes origens do valor carregado pelas proposições para as representações em função da inserção do ponto de início de leitura de ‘operações’; 

Duas visões, duas leituras do fenômeno ‘operações’:
sob o pensamento clássico, o de antes de 1775; (seta amarela)
sob o pensamento moderno, o de depois de 1825 (seta vermelha)
com duas amplitudes – duas abrangências muito diferentes

Note-se que as condições para a ocorrência da troca – a existência simultânea dos dois objetos de troca, o que é dado e o que é recebido – são satisfeitas em duas situações:

  • 1. no pensamento clássico pelo posicionamento do ponto de início de leitura sob essa condição, quer dizer, a existência prévia do que é dado e do que é recebido;
  • 2. no pensamento moderno, pela satisfação dessa pré-condição no início do Instanciamento da representação, porém com a condição da execução anterior da Construção da representação, também incluída no escopo da operação. 

Nos pontos marcados por setas amarelas para baixo (1) e (2) as pré-condições para a ocorrência da troca são dadas, qualquer que seja a estrutura de pensamento – clássico ou moderno – segundo o pensamento de Michel Foucault.

O que não muda entre essas duas possibilidades

A proposição como bloco construtivo padrão fundamental e genérico para construção de representações e suas duas possibilidades de carregamento de valor, quanto às respectivas origens

A proposição é para a linguagem
o que a representação é
para o pensamento:
sua forma, ao mesmo tempo
mais geral e mais elementar,
porquanto, desde que a decomponhamos, não reencontraremos mais o discurso,
mas seus elementos
como tantos materiais dispersos.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo IV  – Falar;
tópico III – Teoria do verbo
Michel Foucault 

(…) Em outras palavras,
para que, numa troca,
uma coisa possa representar outra,
é preciso que elas existam
já carregadas de valor;
e, contudo,
o valor só existe
no interior da representação

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VI – Trocar;
V. A formação do valor
Michel Foucault 

O que sim muda entre essas duas possibilidades

A origem do valor carregado pelo veículo de carregamento de valor na representação: a proposição, sempre, porém em linguagens essencialmente diferentes e representações com origens de valor distintas.

“Valer, para o pensamento clássico,
é primeiramente valer alguma coisa,
poder substituir essa coisa num processo de troca.

A moeda só foi inventada,
os preços só foram fixados e só se modificam
na medida em que essa troca existe.

Ora, a troca é um fenômeno simples
apenas na aparência.

Com efeito, só se troca numa permuta,
quando cada um dos dois parceiros
reconhece um valor
para aquilo que o outro possui.

Num sentido, é preciso, pois,
que as coisas permutáveis,
com seu valor próprio,
existam antecipadamente nas mãos de cada um,
para que a dupla cessão e a dupla aquisição
finalmente se produzam.

Mas, por outro lado,

  • o que cada um come e bebe,
    aquilo de que precisa para viver
    não tem valor
    enquanto não o cede;
  • e aquilo de que não tem necessidade
    é igualmente desprovido de valor
    enquanto não for usado
    para adquirir alguma coisa de que necessite.

Em outras palavras,
para que, numa troca,
uma coisa possa representar outra,
é preciso que elas existam
já carregadas de valor;
e, contudo,
o valor só existe
no interior da representação

  • (atual [troca imediata]
  • ou possível [permutabilidade]),

isto é, no interior

  1. da troca
    [representação existente]
  2. ou da permutabilidade
    [representação possível]
    .

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VI – Trocar;
V. A formação do valor
Michel Foucault 

O funcionamento da troca em cada uma das duas possibilidades de leitura do fenômeno ‘operação’: no ato mesmo da troca; ou anterior à troca, na criação das condições de troca

“Daí duas possibilidades simultâneas de leitura:

  1. leitura já dadas as condições de troca;
  2. leitura na permutabilidade, isto é na criação de condições de troca

1 uma analisa o valor
no ato mesmo da troca,
no ponto de cruzamento
entre o dado e o recebido;

  • A primeira dessas duas leituras corresponde a uma análise que coloca e encerra
    • toda a essência da linguagem no interior da proposição;

3 no primeiro caso, com efeito, a linguagem encontra seu lugar de possibilidade numa atribuição assegurada pelo verbo – isto é, por esse elemento da linguagem em recuo relativamente a todas as palavras mas que as reporta umas às outras; o verbo, tornando possíveis todas as palavras da linguagem a partir de seu liame proposicional, corresponde à troca que funda, como um ato mais primitivo que os outros, o valor das coisas trocadas e o preço pelo qual são cedidas;

2 outra analisa-o
como anterior à troca
e como condição primeira
para que esta possa ocorrer.

  • a outra, a uma análise que descobre essa mesma essência da linguagem do lado das
    • designações primitivas
    • linguagem de ação ou raiz;

4 a outra forma de análise, a linguagem está enraizada 

fora de si mesma e como que

    • na natureza, ou nas   
    • analogias das coisas;

a raiz, o primeiro grito que dera nascimento às palavras antes mesmo que a linguagem tivesse nascido, corresponde à formação imediata do valor, antes da troca e das medidas recíprocas da necessidade.”

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VI – Trocar;
V. A formação do valor
Michel Foucault 

Esta segunda leitura para ‘operações’
– que orienta a análise de valor
desde antes do momento da troca -,
não é possível sem a presença do homem
na estrutura dos modelos.

Isso fica bastante claro com a descrição da forma de reflexão que se instaura em nossa cultura depois da descontinuidade epistemológica de 1775-1825

Esses dois pontos de inserção da leitura da operação de troca
mostrados nos modelos de operações

Colocando o ponto de inserção de leitura do fenômeno ‘operações’ antes da existência dos objetos envolvidos na troca, ocorre uma portentosa ampliação no escopo da operação – de qualquer natureza -, incorporando toda a etapa de construção de representação nova. Veja isso aqui.

As características das duas configurações do pensamento:

  • a do pensamento clássico, de antes de 1775;
  • e a do pensamento moderno, de depois de 1825

características de características, ou características de segunda ordem,
das configurações do pensamento em cada caso.

no pensamento clássico
antes de 1775

no pensamento moderno
depois de 1825

questão/pergunta

_Estrutura IO-transformação
Os princípios organizadores
sob o pensamento clássico:
o de antes de 1775
‘Caráter’ e ‘Similitude’
Características do pensamento clássico, o de antes de 1775
Os princípios organizadores desse espaço de empiricidades sob o pensamento moderno,
o de depois de 1825
‘Analogia’ e ‘Sucessão’
Características do pensamento moderno, o de depois de 1825

“Instaura-se
uma forma de reflexão
bastante afastada
do cartesianismo
e da análise kantiana,
em que está em questão,
pela primeira vez,
o ser do homem,
nessa dimensão
segundo a qual
o pensamento
se dirige ao impensado,
e com ele se articula.”

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo IX  – O homem e seus duplos;
V. O cogito e o impensado
Michel Foucault 

“Assim o círculo se fecha.

Vê-se, porém, através de qual sistema de desdobramentos. 

As semelhanças exigem uma assinalação, pois nenhuma dentre elas poderia ser notada se não fosse legivelmente marcada. 

Mas que são esses sinais? 

Como reconhecer, entre todos os aspectos do mundo e tantas figuras que se entrecruzam, 

  • que há aqui um caráter 

no qual convém se deter, porque ele indica uma secreta e essencial semelhança? 

Que forma constitui o signo no seu singular valor de signo? 

  • – É a semelhança

Ele significa na medida em que tem semelhança com o que indica (isto é, com uma similitude).

Contudo, não é a homologia que ele assinala, pois seu ser distinto de assinalação se desvaneceria no semelhante de que é signo; trata-se de outra semelhança, uma similitude vizinha e de outro tipo que serve para reconhecer a primeira, mas que, por sua vez, é patenteada por uma terceira. 

Toda semelhança recebe uma assinalação; essa assinalação, porém, é apenas uma forma intermediária da mesma semelhança. De tal sorte que o conjunto das marcas faz deslizar, sobre o círculo das similitudes, um segundo círculo que duplicaria exatamente e, ponto por ponto, o primeiro, se não fosse esse pequeno desnível que faz com que 

  • o signo da simpatia resida na analogia, 
  • o da analogia na emulação, 
  • o da emulação na conveniência, 

que, por sua vez, para ser reconhecida, requer 

  • a marca da simpatia… 

A assinalação e o que ela designa são exatamente da mesma natureza; apenas a lei da distribuição a que obedecem é diferente; a repartição é a mesma.”

De sorte que se vêem surgir,
como princípios organizadores
desse espaço de empiricidades, 

  • a Analogia 
  • e a Sucessão

de uma organização a outra,
o liame, com efeito,
não pode mais ser
a identidade de um
ou vários elementos,
mas a identidade
da relação entre os elementos
(onde a visibilidade
não tem mais papel)
e da função que asseguram;
ademais, se porventura essas organizações se avizinham
por efeito de uma densidade singularmente grande de analogias, não é porque ocupem
localizações próximas
num espaço de classificação,
mas sim porque
foram formadas uma ao mesmo tempo que a outra e uma logo após a outra
no devir das sucessões.
Enquanto, no pensamento clássico,
a seqüência das cronologias
não fazia mais que percorrer
o espaço prévio e mais fundamental
de um quadro
que de antemão apresentava
todas as suas possibilidades,
doravante
as semelhanças contemporâneas
e observáveis simultaneamente
no espaço não serão mais que
as formas depositadas e fixadas de uma sucessão que procede
de analogia em analogia.
A ordem clássica
distribuía num espaço permanente
as identidades
e as diferenças não-quantitativas
que separavam e uniam as coisas:
era essa a ordem
que reinava soberanamente,
mas a cada vez
segundo formas e leis
ligeiramente diferentes,
sobre o discurso dos homens,
o quadro dos seres naturais
e a troca das riquezas.

A partir do século XIX,
a História
vai desenrolar
numa série temporal
as analogias
que aproximam umas das outras
as organizações distintas.

É essa História que,
progressivamente,
imporá suas leis

  • à análise da produção,
  • à dos seres organizados, enfim,
  • à dos grupos linguísticos.

A História dá lugar
às organizações analógicas,
assim como a Ordem
abria o caminho
das identidades
e das diferenças sucessivas.

Essa forma de reflexão surgida será decorrência da segunda leitura do que seja uma operação de troca e portanto não pode prescindir do homem e do objeto?

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo II – A prosa do mundo;
II. As assinalações
Michel Foucault 

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VII – Os limites da representação;
I. A idade da história
Michel Foucault 

os lugares onde ocorrem as operações: 

  • Lugar de nascimento do que é empírico
    – operações de Construção de representações;
    • lugar onde o ‘modo de ser fundamental’ das empiricidades sim muda
  • Circuito onde ocorrem as trocas‘ ou Mercado
    – operações de Instanciamento de representações já existentes;
    • lugar onde o ‘modo de ser fundamental’ das empiricidades não muda.
Lugar do nascimento do que é empírico:
pensamento moderno – caminho da Construção da representação
Circuito das trocas, ou Mercado: pensamento clássico, ou pensamento moderno, sempre no caminho do Instanciamento da representação objeto

Mercado, ou Circuito das trocas: lugar onde ocorrem operações nas quais o ‘modo de ser fundamental’ das empiricidades não muda.

Encontra-se 

  • sob o pensamento clássico, o de antes de 1775,
  • e também ocorre no pensamento moderno, o de depois de 1825, apenas no caminho do Instanciamento da representação.

Lugar do nascimento do que é empírico: lugar onde ocorrem operações nas quais o ‘modo de ser fundamental das empiricidade sim, muda.

Encontra-se somente sob o pensamento moderno, o de depois de 1825, e apenas no caminho da Construção da representação

O ‘Circuito das trocas’,
ou ‘Mercado’
as chaves amarelas no LE da figura, lugar onde transcorre uma operação sob o pensamento clássico
O Lugar de nascimento do que é empírico – fora e antes do Mercado –
lugar onde transcorre a operação de construção de representação nova
e onde se dá a articulação
do pensamento do homem,
com o impensado
O Circuito das trocas
as chaves horizontais amarelas
no LD da figura, onde ocorrem operações durante as quais
o ‘modo de ser fundamental’
não se altera; é novamente o Mercado, agora no pensamento moderno

‘modo de ser fundamental das empiricidades’ é o conceito chave aqui.

No pensamento clássico, o de antes de 1775, pelos pressupostos adotados, é impossível definir o que seja ‘modo de ser fundamental’ de empiricidades cuja definição escapa ao escopo destas operações.

Estas operações transcorrem no interior do Circuito das trocas, a chave amarela horizontal, lugar onde não há alteração no modo como as coisas se apresentam à operação.

No pensamento moderno, o de depois de 1825, pelos pressupostos adotados é sim possível definir o que seja ‘modo de ser fundamental’ de empiricidades objeto da operação de Construção da representação que, se nova nesse domínio e ambiente, é o próprio escopo destas operações.

Operações no caminho da Construção da representação transcorrem no interior do ‘Lugar de nascimento do que é empírico’, as chaves coloridas verticais, em um espaço que engloba os lugares  desde onde se fala e do falado. O sucesso dessas operações altera ‘o modo de ser fundamental’ da empiricidade objeto, e com isso, faz-se História.

No pensamento moderno, o de depois de 1825, em uma operação de Instanciamento de representação objeto cuja construção da representação foi anteriormente feita e incorporada ao Repositório, a representação objeto de Instanciamento é recuperada do Repositório.

Assim, a operação de Instanciamento não altera o ‘modo de ser fundamental’ da empiricidade objeto de instanciamento.

no pensamento clássico
antes de 1775

no pensamento moderno
depois de 1825

questão/pergunta

2Assim como a Ordem
no pensamento clássico
não era
a harmonia visível
das coisas,
seu ajustamento,
sua regularidade
ou sua simetria constatados,
mas o espaço próprio de seu ser
e aquilo que,
antes de todo
conhecimento efetivo,
as estabelecia no saber,

1″Mas vê-se bem
que a História
não deve ser aqui entendida
como a coleta das sucessões de fatos, tais como se constituíram;

ela é

o modo de ser fundamental
das empiricidades,

aquilo a partir de que elas são

  • afirmadas,
  • postas,
  • dispostas
  • e repartidas no espaço do saber

para eventuais conhecimentos
e para ciências possíveis.

3 assim também
a História,
a partir do século XIX,
define o

lugar de nascimento
do que é empírico,

lugar onde,
aquém
de toda cronologia estabelecida,
ele assume o ser
que lhe é próprio.

A referência ao ‘Circuito das trocas’ – ou Mercado é uma quase unanimidade na literatura especializada filosófica ou técnica.

Qual será a explicação para isso?

Por que praticamente ninguém fala no ‘Lugar de nascimento do que é empírico’?

Seria o caso de haver um desalinhamento filosófico no trabalho desses autores?

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VII – Os limites da representação;
I. A idade da história
Michel Foucault 

os princípios organizadores dos modelos de operações que fazemos

no pensamento clássico
antes de 1775

no pensamento moderno
depois de 1825

questão/pergunta

_Estrutura IO-transformação
Os princípios organizadores
sob o pensamento clássico:
o de antes de 1775
‘Caráter’ e ‘Similitude’
Características do pensamento clássico
o de antes de 1775

“Assim o círculo se fecha.

Vê-se, porém, através de qual sistema de desdobramentos. 

As semelhanças exigem uma assinalação, pois nenhuma dentre elas poderia ser notada se não fosse legivelmente marcada. 

Mas que são esses sinais? 

Como reconhecer, entre todos os aspectos do mundo e tantas figuras que se entrecruzam, 

  • que há aqui um caráter 

no qual convém se deter, porque ele indica uma secreta e essencial semelhança? 

Que forma constitui o signo no seu singular valor de signo? 

  • – É a semelhança

Ele significa na medida em que tem semelhança com o que indica (isto é, com uma similitude).

Contudo, não é a homologia que ele assinala, pois seu ser distinto de assinalação se desvaneceria no semelhante de que é signo; trata-se de outra semelhança, uma similitude vizinha e de outro tipo que serve para reconhecer a primeira, mas que, por sua vez, é patenteada por uma terceira. 

Toda semelhança recebe uma assinalação; essa assinalação, porém, é apenas uma forma intermediária da mesma semelhança. De tal sorte que o conjunto das marcas faz deslizar, sobre o círculo das similitudes, um segundo círculo que duplicaria exatamente e, ponto por ponto, o primeiro, se não fosse esse pequeno desnível que faz com que 

  • o signo da simpatia resida na analogia, 
  • o da analogia na emulação, 
  • o da emulação na conveniência, 

que, por sua vez, para ser reconhecida, requer 

  • a marca da simpatia… 

A assinalação e o que ela designa são exatamente da mesma natureza; apenas a lei da distribuição a que obedecem é diferente; a repartição é a mesma.”

Os princípios organizadores desse espaço de empiricidades sob o pensamento moderno,
o de depois de 1825
‘Analogia’ e ‘Sucessão’
Características do pensamento moderno
o de depois de 1825

De sorte que se vêem surgir,
como princípios organizadores
desse espaço de empiricidades, 

  • a Analogia 
  • e a Sucessão

de uma organização a outra,
o liame, com efeito,
não pode mais ser
a identidade de um
ou vários elementos,
mas a identidade
da relação entre os elementos
(onde a visibilidade
não tem mais papel)
e da função que asseguram;
ademais, se porventura essas organizações se avizinham
por efeito de uma densidade singularmente grande de analogias, não é porque ocupem
localizações próximas
num espaço de classificação,
mas sim porque
foram formadas uma ao mesmo tempo que a outra e uma logo após a outra
no devir das sucessões.
Enquanto, no pensamento clássico,
a seqüência das cronologias
não fazia mais que percorrer
o espaço prévio e mais fundamental
de um quadro
que de antemão apresentava
todas as suas possibilidades,
doravante
as semelhanças contemporâneas
e observáveis simultaneamente
no espaço não serão mais que
as formas depositadas e fixadas de uma sucessão que procede
de analogia em analogia.
A ordem clássica
distribuía num espaço permanente
as identidades
e as diferenças não-quantitativas
que separavam e uniam as coisas:
era essa a ordem
que reinava soberanamente,
mas a cada vez
segundo formas e leis
ligeiramente diferentes,
sobre o discurso dos homens,
o quadro dos seres naturais
e a troca das riquezas.

A partir do século XIX,
a História
vai desenrolar
numa série temporal
as analogias
que aproximam umas das outras
as organizações distintas.

É essa História que,
progressivamente,
imporá suas leis

  • à análise da produção,
  • à dos seres organizados, enfim,
  • à dos grupos linguísticos.

A História dá lugar
às organizações analógicas,
assim como a Ordem
abria o caminho
das identidades
e das diferenças sucessivas.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo II – A prosa do mundo;
II. As assinalações
Michel Foucault 

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VII – Os limites da representação;
I. A idade da história
Michel Foucault 

os lugares contidos dentro do ‘Lugar de nascimento do que é empírico’:

  • o lugar ‘desde onde se fala
  • e o lugar ‘do falado‘;

consistentes com os blocos do ‘operar‘ e do ‘suporte ao operar‘ de Humberto Maturana

Esses dois lugares – o ‘desde onde se fala’ e o ‘do falado’ –
juntos delimitam o espaço onde se dá a articulação
do pensamento do homem com o impensado feita
no domínio do Pensamento e da Língua
e sua ligação com o domínio do Discurso e da Representação

no pensamento clássico
antes de 1775

no pensamento moderno
depois de 1825

questão/pergunta

O ‘Circuito das trocas’, ou ‘Mercado’
lugar onde transcorre uma operação sob o pensamento clássico

Lugar desde onde se fala

Lugar do falado

são sub-espaços do Lugar de nascimento do que é empírico o que implica que o pensamento está funcionando com o entendimento do pensamento moderno, o de depois de 1825, a coluna ao lado, portanto.

  • Lugar desde onde se fala não pode ser delineado sob o pensamento clássico pela falta da ideia e do elemento de imagem ‘homem’, aquele que fala, raiz e fundamento de toda positividade, e também da ideia do objeto resultado da articulação do pensamento com o impensado, feita pelo homem,;
  • e o Lugar do falado, analogamente, não pode ser delineado no LE da figura. 

todo o espaço  corresponde, no LE da figura, ao domínio todo em que ocorrem as operações sob o pensamento clássico, a saber, o domínio do Discurso e da Representação.

A leitura do que sejam Operações sob o entendimento no pensamento clássico pressupõe o ponto de inserção para análise no exato cruzamento entre o dado e o recebido na operação de troca, cuja condição de possibilidade está, desse modo, dada.

Lugar deste onde se fala:
ideias que formulam a proposição /
(sujeito e predicado do sujeito);
Lugar do falado:
ideias que dão suporte na experiência ao instanciamento da representação
no domínio e ambiente

Lugar do nascimento do que é empírico: espaço ocupado por:

  • Lugar desde onde se fala;
  • Lugar do falado

O Lugar de nascimento do que é empírico, como o nome sugere, está situado antes do circuito das trocas, e em seu interior ocorre a construção de representação nova.

Essa visão do que sejam operações corresponde à leitura de operações, ou visão desse fenômeno como desde um ponto de inserção anterior à troca

Lugar desde onde se fala

As ideias ou elementos de imagem que estão envolvidas na formulação da proposição estão contidas no espaço chamado de Lugar desde onde se fala:

  • sujeito: o homem na posição de raiz de toda positividade
  • predicado do sujeito
    • verbo: Forma de produção, o elemento central da operação de construção da representação;
    • atributo: a representação em construção, nas posições extremas da operação de construção.

Esse espaço coincide com o espaço chamado por Humberto Maturana de ‘operar’, o retângulo vermelho na figura ao lado, parte do Lugar de nascimento do que é empírico, mas no interior do domínio do Pensamento e da Língua.

Lugar do falado

As ideias ou elementos de imagem que estão envolvidos na sustentação da Forma de produção na experiência estão no lugar do falado:

  • elementos de suporte na experiência à Forma de produção, onde se encontram
    • processos, atividades, tasks

A operação de construção da representação escolhe os elementos de suporte na experiência à Forma de produção, que deve ser capaz de produzir quando implementada, uma instância da representação com o operar vislumbrado – ou o mais próximo disso possível. Humberto Maturana chama esse espaço de ‘suporte ao operar’, o retângulo amarelo na figura ao lado. 

O Lugar do falado é parte do Lugar de nascimento do que é empírico, mas suas ideias – ou elementos de imagem – fazem parte do domínio do Discurso e da Representação.

“É preciso, portanto,
tratar esse verbo
como um ser misto,

ao mesmo tempo
palavra entre as palavras,

preso às mesmas regras,
obedecendo como elas
às leis de regência
e de concordância;


e depois,


em recuo em relação a elas todas,

numa região que

  • não é
    aquela do falado

  • mas aquela 
    donde se fala.

Ele está na orla do discurso,
na juntura entre

  • aquilo que é dito

  • e aquilo que se diz,

exatamente lá onde os signos
estão em via de se tornar linguagem.”

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo IV – Falar;
tópico III. A teoria do verbo
por Michel Foucault

Há correspondências que precisam ser anotadas, entre elas:

  • no princípio dual de trabalho de David Ricardo
    • aquela atividade que está na origem do valor das coisas 
    • tem suas ideias – ou seus elementos de imagem no lugar desde onde se fala
  • no LD – lado direito da figura 2 de Humberto Maturana
    • os dois blocos do ‘Explicar com Reformular’ em que Maturana divide suas explicações
      • sobre o que acontecia com o ser vivo,
      • e o modo como ele o via no seu espaço de distinções
    • correspondem apropriadamente com o que Foucault chama respectivamente de 
      • Lugar desde onde se fala e 
      • Lugar do falado.

Processo e Mercado são os conceitos largamente utilizados;
e ao mesmo tempo não se ouve falar 

  • em Forma de produção
  • ou em Lugar de nascimento do que é empírico,
  • e menos ainda em Nexo da produção

como ideias – ou elementos de imagem – em modelos de operações e organizações

no pensamento clássico
aquém do objeto
antes de 1775

no pensamento moderno
diante do objeto
depois de 1825

espaço interior Triedro dos saberes
para além do objeto
reservado às Ciências humanas

Aquém do objeto:
Processo

Diante do objeto:
Forma de produção

Além do objeto
Nexo da operação

o elemento central em operações
no pensamento clássico
Processo
o elemento central em operações
no pensamento moderno
Forma de produção
o Nexo da produção,
o elemento central do modelo de organização no formato SSS
  • Elemento central:
    • Processo

entendido sob o primeiro conceito de verbo explicado por Michel Foucault, como elemento gerador de um sistema relativo de anterioridade ou simultaneidade das coisas entre si, que o mais que faz é indicar a coexistência de duas representações.

  • característica emergente: 
    • fluxo
  • metáfora 
    • transformação única
  • Elemento central:
    • Forma de produção

entendida sob o segundo conceito de verbo explicado por Michel Foucault, tratado como um ser misto, inicialmente palavra entre palavras, preso às mesmas regras às mesmas regras, obedecendo como elas às mesmas leis de regência e concordância, e depois, em recuo em relação a elas todas, numa região que não é aquela do falado, mas aquela donde se fala.

  • característica emergente:
    • permanência
  • metáfora
    • conversão ou duas transformações
  • Elemento central:
    • Nexo da produção

a formulação para além do objeto associa o sistema cujo resultado é o produto, aquilo que se quer obter, com o instrumento imprescindível para obtê-lo.

  • propriedades emergentes:
    • simetria, simbiose e sinergia

Em um pensamento mágico sobre a produção – nos moldes ‘varinha mágica de condão’ –  é possível desejar algo e, sem mais nada, vê-lo surgir à nossa frente depois do Plin!!! 

Num ambiente de produção real, porém, nada é produzido sem um instrumento com o qual instanciar esse objeto na realidade. A estrutura SSS é isso: a modelagem das operações de produção do objeto desejado juntamente com as operações de produção do objeto – distinto deste – laboratório piloto, ou fábrica, subindo um nível estrutural e impondo como elemento central o Nexo da produção

o significado/tratamento atribuído ao que seja um ‘Verbo’;
para o antes e para o depois da descontinuidade epistemológica

Ideias – ou elementos de imagem – centrais no LE e no LD da figura
Processo o elemento central no pensamento clássico
Forma de produção o elemento central no pensamento moderno, com as
designações primitivas e a linguagem de ação ou raiz

no pensamento clássico
antes de 1775

no pensamento moderno
depois de 1825

questão/pergunta

Aquém do objeto

Conceito de Verbo ‘Processo’
na configuração de pensamento
do período clássico, antes de 1775

Verbo como
Processo

“A única coisa que o verbo afirma
é a coexistência de duas representações:
por exemplo, 

  • a do verde
    e da árvore,

  • a do homem
    e da existência

    ou da morte; 

é por isso que
o tempo dos verbos

não indica
aquele [tempo]

em que as coisas existiram
no absoluto,

mas um sistema relativo
de anterioridade ou de simultaneidade
das coisas entre si.”

Diante e Além do objeto

Conceito de Verbo ‘Forma de produção’
na configuração de pensamento
do período moderno, depois de 1825

Verbo como
Forma de produção

“É preciso, portanto,
tratar esse verbo
como um ser misto,

ao mesmo tempo
palavra entre as palavras,

preso às mesmas regras,
obedecendo como elas
às leis de regência
e de concordância;


e depois,


em recuo em relação a elas todas,

  • numa região que não é
    aquela do falado

  • mas aquela
    donde se fala.

Ele está na orla do discurso,
na juntura entre

  • aquilo que é dito

  • e aquilo que se diz,

exatamente lá onde os signos
estão em via de se tornar linguagem.”

Dadas as grandes diferenças entre esses dois conceitos e tratamentos consequentes, para o que seja um ‘Verbo’, e a total consistência entre o segundo conceito/tratamento e ‘Forma de produção’

  • por que será que ‘Processo’ seja uma unanimidade nos textos sobre o assunto?

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo IV – Falar;
tópico III. A teoria do verbo
por Michel Foucault

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo IV – Falar;
tópico III. A teoria do verbo
por Michel Foucault

o significado/tratamento atribuído ao que seja um ‘Classificar’;
para o antes e para o depois da descontinuidade epistemológica

no pensamento clássico
antes de 1775

no pensamento moderno
depois de 1825

questão/pergunta

Aquém
do objeto

O conceito de ‘Classificar’
no pensamento clássico
o de antes de 1775

‘Classificar’
no pensamento clássico

Aquém do objeto,
isto é,
no pensamento filosófico Classico
o de antes de 1775

nessa faixa do espectro de modelos
que o pensamento de Michel Foucault permite desenhar

Classificar
é referir

  • o visível
  • a si mesmo,

encarregando um dos elementos
de representar os outros.”

Diante e Além
do objeto

O conceito de ‘Classificar’
no pensamento moderno
o de depois de 1825

‘Classificar’
no pensamento moderno

Diante, e Além do objeto, 
isto é, 
no pesamento filosófico moderno,
o de depois de 1825

nessa faixa do espectro de modelos 
que o pensamento de Michel Foucault permite desenhar

“Em um movimento
que faz revolver a análise

Classificar
é referir

  • o visível 
  • ao invisível 

– como a sua razão profunda -, 

e depois,
alçar de novo
dessa secreta arquitetura,
em direção aos seus
sinais manifestos,
que são dados
à superfície dos corpos.”

Dadas as grandes diferenças entre esses dois conceitos e tratamentos consequentes, por que será que ‘Processo’ seja uma unanimidade nos textos sobre o assunto?

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Cap. VII – Os limites da representação; tópico III. A organização dos seres

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Cap. VII – Os limites da representação; tópico III. A organização dos seres

pares de modelos constituintes das ciências do eixo epistemológico fundamental

  • da Vida(Biologia) [função-norma],
  • do Trabalho(Economia) [conflito-regra]
  • e da Linguagem(Filologia) [significação-sistema]

e o modelo constituinte padrão, comum a todas das ciências humanas; um modelo composto por uma combinação entre esses três pares de modelos constituintes das ciências da Vida, do Trabalho e da Linguagem

no pensamento clássico
antes de 1775
aquém do objeto

no pensamento moderno
depois de 1825
diante do objeto

no pensamento moderno
também depois de 1825
para além do objeto

não há modelos constituintes sob o pensamento clássico

O Triedro dos saberes: eixos e faces
espaço das ciências da Vida, do Trabalho e da Linguagem
O interior ao Triedro dos saberes
o espaço das Ciências humanas

Aquém do objeto

Não há modelos constituintes nesta faixa do espectro, já que nada é constituído na existência durante as operações;

Na configuração do pensamento pressupõe-se que todas as coisas
existem desde sempre e para sempre,
e integram o Universo em uma visão única.

Existem múltiplas ordens que podem ser arbitrariamente escolhidas para cada operação; e em uma mesma organização podem conviver ordens – como diz Foucault – ligeiramente diferentes. Tem-se inúmeras categorias para cada ordem escolhida, e muitas ordens possíveis de serem selecionadas.

Nada é constituído na existência como resultado das distinções feitas durante as operações nesta faixa do espectro.

Diante do objeto

A modelagem em cada área do saber é feita com um modelo constituinte específico e próprio de cada uma delas:

No que Foucault chama de ‘Região epistemológica Fundamental’ os Modelos constituintes são compostos por pares constituintes, próprios a cada região do saber ou área do conhecimento em que o modelo é feito:

  • Ciências da vida (Biologia):


    [função-norma]
    ;

  • Ciências do trabalho (Economia):


    [conflito-regra];

  • Ciências da Linguagem (Filologia):

    [significação-sistema].

Além do objeto

No campo das ciências humanas, o modelo constituinte de qualquer uma delas se unifica. Os Modelos constituintes são compostos por uma combinação dos três pares de modelos constituintes das ciências
da Vida
-(Biologia), do Trabalho-(Economia) e da Linguagem-(Filologia).

O Modelo constituinte  de cada uma das Ciências Humanas – é sempre uma combinação dos modelos constituintes das:

  • Ciências da vida  (Biologia):
    [função-norma];

    +
    Ciências do trabalho (Economia):
    [conflito-regra];

    +
    Ciências da Linguagem (Filologia):
    [significação-sistema].

Proposição: o bloco construtivo

  • padrão,
  • genérico
  • e fundamental

oferecido pela gramática da língua para construção de representações.

Esse bloco construtivo ‘proposição’ carrega valor para as representações, mas faz isso de ao menos dois modos diferentes e com duas visões distintas para o que sejam ‘operações’.

“Valer, para o pensamento clássico, é primeiramente valer alguma coisa, poder substituir essa coisa num processo de troca. A moeda só foi inventada, os preços só foram fixados e só se modificam na medida em que essa troca existe.

Ora, a troca é um fenômeno simples apenas na aparência.

Com efeito, só se troca numa permuta, quando cada um dos dois parceiros reconhece um valor para aquilo que o outro possui.

Num sentido, é preciso, pois, que as coisas permutáveis, com seu valor próprio, existam antecipadamente nas mãos de cada um, para que

  • a dupla cessão
  • e a dupla aquisição

finalmente se produzam.

Mas, por outro lado, o que cada um come e bebe, aquilo de que precisa para viver não tem valor enquanto não o cede; e aquilo de que não tem necessidade é igualmente desprovido de valor enquanto não for usado para adquirir alguma coisa de que necessite.

Em outras palavras, para que, numa troca, uma coisa possa representar outra,

  • é preciso que elas existam já carregadas de valor;
    • e, contudo, o valor só existe no interior da representação
      (atual ou possível), isto é,
    • no interior da troca ou da permutabilidade.

“A proposição é
para a linguagem
o que a representação é
para o pensamento
sua forma,
ao mesmo tempo
mais geral
e mais elementar
porquanto,
desde que a decomponhamos,
não encontremos mais o discurso
mas seus elementos
como tantos materiais dispersos

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VI – Trocar;
V. A formação do valor
Michel Foucault 

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Cap. IV – Falar;
tópico: III – A teoria do verbo
Michel Foucault

no pensamento clássico
antes de 1775

no pensamento moderno
depois de 1825

questão/pergunta

a proposição no pensamento clássico
ponto de aplicação da leitura de operações no momento da troca

a toda a essência da linguagem  encerrada – diretamente – na própria proposição;

junto com esse ‘encerramento’ vão as ideias – ou elementos de imagem – necessários para a formulação da proposição, que assim, não participam do modelo de operações.

a proposição no pensamento moderno ponto de aplicação da leitura de operações antes da troca

a descoberta da essência da linguagem  fora dela mesma, linguagem; a proposição formulada no modelo por suas ideias ou elementos de imagem presentes; inicialmente vazia, apenas um enunciado, é preenchida de valor a partir de duas fontes:

  • as designações primitivas;
  • a linguagem de ação ou raiz

ambas assinaladas na figura.

“Daí duas possibilidades simultâneas de leitura:

1 uma analisa o valor

  • no ato mesmo da troca,

no ponto de cruzamento
entre o dado e o recebido;

  • A primeira dessas duas leituras corresponde a uma análise que coloca e encerra toda a essência da linguagem no interior da
    • proposição;

3 no primeiro caso, com efeito, a linguagem encontra seu lugar de possibilidade numa atribuição assegurada pelo verbo – isto é, por esse elemento da linguagem em recuo relativamente a todas as palavras mas que as reporta umas às outras; o verbo, tornando possíveis todas as palavras da linguagem a partir de seu liame proposicional, corresponde à troca que funda, como um ato mais primitivo que os outros, o valor das coisas trocadas e o preço pelo qual são cedidas;

2 outra analisa-o

  • como anterior à troca 

e como condição primeira
para que esta possa ocorrer.

  • a outra, a uma análise que descobre essa mesma essência da linguagem
    do lado das
    • designações primitivas
    • linguagem de ação ou raiz;

4 a outra forma de análise, a linguagem está enraizada 

  • fora de si mesma e como que
    • na natureza, ou nas   
    • analogias das coisas;

a raiz, o primeiro grito que dera nascimento às palavras antes mesmo que a linguagem tivesse nascido, corresponde à formação imediata do valor,

  • antes da troca
  • e das medidas recíprocas da necessidade.”

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VI – Trocar;
V. A formação do valor
Michel Foucault 

Ideias – ou elementos de imagem – requeridos para a
Formulação da proposição, e valor carregado 

Ideias – ou elementos de imagem requeridos para formulação da proposição ausentes da estrutura do modelo de operação.

Valor carregado diretamente na proposição.

impossibilidade de formulação da proposição com ideias – ou elementos de imagem – requeridos, pela ausência do homem em sua duplicidade de papéis, e pela noção de objeto descrito por suas propriedades originais e constitutivas.

Proposição formulada com ideias ou elementos de imagem pertencentes à estrutura interna do modelo de operações;

Valor carregado pela proposição com origem fora da linguagem

  • designações primitivas

a busca por origem, condições de possibilidade e de generalidade dentro de limites, para a representação da empiricidade objeto no domínio e ambiente em que a operação acontece. 

  • linguagem de ação ou raiz

todo o conteúdo do Repositório de proposições explicativas da experiência formuladas de acordo com as regras da língua, à disposição da construção de novas representações.

Os tipos de sistemas que dão suporte a operações,
em função da configuração do pensamento:

  • no pensamento clássico: o sistema Input-Output, ou um sistema relativo de anterioridade ou simultaneidade das coisas entre si;
  • no pensamento moderno: um sistema construído no interior do Lugar de nascimento do que é empírico, lugar onde as empiricidades objeto das operações adquirem ‘o ser que lhes é próprio’.

no pensamento clássico
antes de 1775
verbo ‘Processo

no pensamento moderno
depois de 1825
verbo ‘Forma de produção

questão/pergunta

Operação clássica sob o conceito de Verbo ‘Processo’
na configuração de pensamento
do período clássico, antes de 1775

“A única coisa
que o verbo afirma

é a coexistência de duas representações:
por exemplo, 

  • a do verde
    e da árvore,

  • a do homem
    e da existência

    ou da morte; 

é por isso
que o tempo dos verbos

não indica
aquele [tempo]

em que as coisas existiram
no absoluto,

mas um sistema relativo
de anterioridade ou de simultaneidade
das coisas entre si.”

Operação moderna sob o conceito de
Verbo ‘Forma de produção’
na configuração de pensamento
do período moderno, depois de 1825

“É preciso, portanto,
tratar esse verbo
como um ser misto,

ao mesmo tempo
palavra entre as palavras,

preso às mesmas regras,
obedecendo como elas
às leis de regência
e de concordância;


e depois,


em recuo em relação a elas todas,

  • numa região que não é
    aquela do falado

  • mas aquela
    donde se fala.

Ele está na orla do discurso,
na juntura entre

  • aquilo que é dito

  • e aquilo que se diz,

exatamente lá onde os signos
estão em via de se tornar linguagem.”

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo IV – Falar;
tópico III. A teoria do verbo
por Michel Foucault

O tipo de sistema

O conceito acima é explícito em fornecer uma descrição do tipo de sistema para operações sob o pensamento clássico.

Trata-se de 

  • um sistema relativo
    de anterioridade ou de simultaneidade
    das coisas entre si; 

uma definição magistral para o que seja o sistema Input-Output.

asdf

Trata-se de um sistema relativo de anterioridade ou de simultaneidade das coisas entre si; uma definição magistral para o que seja o sistema Input-Output.

O tipo de leitura

asdf

Trata-se de um sistema relativo de anterioridade ou de simultaneidade das coisas entre si; uma definição magistral para o que seja o sistema Input-Output.

asdf

Trata-se de um sistema relativo de anterioridade ou de simultaneidade das coisas entre si; uma definição magistral para o que seja o sistema Input-Output.

o tempo nas operações, em função dos sistemas
em cada segmento do espectro de modelos

no pensamento clássico
antes de 1775
aquém do objeto

no pensamento moderno
depois de 1825
diante e para além do objeto

no pensamento moderno
também depois de 1825
diante e para além do objeto

formulação reversível
e somente 
instanciamento
da representação;
deus Chronos

formulação irreversível
e operação de construção
da representação 
deus Kairós

formulação reversível
 e operação instanciamento
da representação
deus Chronos

pensamento clássico, o de antes de 1775
tempo calendário no sistema Input-Output
operação de instanciamento de representação anteriormente formulada
pensamento moderno, o de depois de 1825
tempo absoluto sistema absoluto
no caminho da Construção da representação
pensamento moderno, o de depois de 1825
tempo relativo, sistema relativo ou absoluto,
no caminho do Instanciamento da representação

Aquém do objeto

Diante ou para além do objeto

Nota: a existência precede as distinções feitas na operação.

Tempo na formulação e no instanciamento da representação:

  • formulação reversível durante a formulação;
  • tempo calendário, ou tempo relativo no sentido de que
    • dada a inserção calendário de um evento (i) ou (f),
    • a posição calendário do outro evento (f) ou (i) pode ser calculada com as propriedades aparentes disponíveis antes e depois da operação;
  • irreversibilidades somente na etapa de instanciamento da representação

Não há nada que possa ser afirmado, posto, disposto e repartido no espaço do saber para eventuais conhecimentos e ciências possíveis e assim não se pode falar em ‘modo de ser fundamental’ do que quer que seja. 

Assim, no pensamento clássico, não é possível adotar esse conceito ‘modo de ser fundamental das empiricidades’ como elemento ordenador da história, que é compreendida como sucessão de fatos assim como se sucedem.

caminho da
Construção da representação
Nota: a existência se constitui com as distinções feitas na operação

Durante essa operação, a empiricidade objeto da operação, sim, muda seu ‘modo de ser fundamental’ nesse domínio e ambiente em decorrência da operação.

Tempo no caminho da Construção da representação, durante a formulação da representação:

  • formulação irreversível durante a formulação;
  • tempo absoluto no sentido de que a empiricidade objeto ‘assume o ser que lhe é próprio’ em decorrência da operação, e então:
    • dada a inserção calendário de um evento (i) ou (f)
    • não é possível o cálculo da inserção calendário do outro evento (f) ou (i) a partir dessa inserção calendário do evento anterior em virtude da não disponibilidade das propriedades antes/depois da operação;
  •  irreversibilidades ocorrem na formulação da operação de construção da representação.

A empiricidade objeto da operação tem um novo ‘modo de ser fundamental’, isto é, pode ser ‘afirmada, posta, disposta e repartida no espaço do saber para eventuais conhecimentos e ciências possíveis’.

Tomando o ‘modo de ser fundamental’ das empiricidades como elemento ordenador da história, durante esse tipo de operações, sim, faz-se história.

 caminho do
Instanciamento da representação

Nota: a existência volta a preceder as distinções feitas na operação.
 

Durante essa operação a empiricidade objeto não muda seu ‘modo de ser fundamental’ nesse domínio e ambiente em decorrência da operação.

Tempo  no caminho do Instanciamento da representação previamente existente no Repositório e dele recuperada para a posição de empiricidade objeto na presente operação de instanciamento:

  • formulação volta a ser reversível; (é possível descartar uma formulação de instanciamento e formular outra com novas escolhas, sem perdas;
  • tempo volta a ser tempo calendário, ou tempo relativo;
  • irreversibilidades no caminho do Instanciamento da representação ocorrem em decorrência do desencadeamento dos elementos de suporte na experiência à Forma de produção.

A empiricidade objeto da operação tem exatamente o mesmo ‘modo de ser fundamental’ com que foi recuperada do repositório, isto é, pode ser ‘afirmada, posta, disposta e repartida no espaço do saber para eventuais conhecimentos e ciências possíveis’ exatamente da mesma forma como havia sido acrescentada ao repositório.

Tomando o ‘modo de ser fundamental’ das empiricidades como elemento ordenador da História, durante esse tipo de operações não se faz história.

Modelagem de operações e organizações organizadas pelo par sujeito-objeto, com operações específicas e separadas para cada um desses pares, porém relacionadas:

 

  • um modelo para a operação e organização para o objeto esperado pelo Cliente (Produto);
  • e um modelo para a operação e organização  para o instrumento capaz de obter o Produto, bem como obter o objeto esperado pelo Acionista (Benefícios de toda espécie, Lucros)

Mapa geral das operações na disposição SSS

Modelagem para uma organização incluindo o objeto esperado de interesse do Cliente
e o instrumento capaz de obtê-lo, e também o objeto esperado de interesse do Acionista
identificando o nexo da produção

Argumento: a modelagem de operações
organizada pelo par sujeito-objeto

Construção da estrutura de operações na disposição SSS – Simétrica, Simbiótica e Sinérgica

Lorem ipsum dolor sit amet, consectetur adipiscing elit. Ut elit tellus, luctus nec ullamcorper mattis, pulvinar dapibus leo.

Cronologia básica da descontinuidade epistemológica ocorrida em nossa cultura ocidental entre os anos 1775-1825 segundo Michel Foucault.

  • fases e ponto de ruptura desse evento;
  • linha de tempo com as defasagens entre conquistas no pensamento e respectivo uso nas áreas técnicas;
  • alguns autores importantes de um e de outro lado desse evento;
  • ponto de entrada do homem em nossa cultura;
  • alguns autores citados como referências em modelos sociais, econômicos e políticos
Michel Foucault
1926-1984

“E foi realmente necessário 
um acontecimento fundamental
– um dos mais radicais, sem dúvida, 1
que ocorreram na cultura ocidental,
para que se desfizesse a positividade do saber clássico
e se constituísse uma positividade de que, por certo,
não saímos inteiramente.”

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VII – Os limites da representação;
tópico I. A idade da história

Cronologia da descontinuidade epistemológica de 1775-1825;
defasagens entre conquistas no pensamento filosófico e respectiva utilização prática

cronologia básica da descontinuidade epistemológica de 1775-1825

A descontinuidade epistemológica ocorrida entre 1775 e 1825, segundo o pensamento de Michel Foucault
uma linha de tempo mostrando os intervalos de tempo entre o desenvolvimento de conhecimento e sua aplicação prática

O ponto de surgimento do homem em nossa cultura

 “É somente na segunda fase que as palavras, as classes e as riquezas adquirirão um modo de ser que não é mais compatível com o da representação.

Em contra partida, o que se modifica muito cedo, desde as análises de Adam Smith, de A.-L. de Jussieu ou de Viq d’Azyr, na época de Jones ou de Anquetil-Duperron,

  • é a configuração das positividades: a maneira como, no interior de cada uma,
    • os elementos representativos funcionam uns em relação aos outros, 
    • a maneira como asseguram seu duplo papel de designação e de articulação, 
    • como chegam, pelo jogo das comparações, a estabelecer uma ordem. “

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas
Cap.VII – Os limites da representação
tópico I. A idade da história

Datas e fases da descontinuidade epistemológica ocorrida entre 1775 e 1825, e surgimento do homem no pensamento em nossa cultura segundo o pensamento de Michel Foucault.

Alguns autores fundamentos filosóficos do liberalismo, e autores chave do pensamento moderno posicionados em relação à descontinuidade epistemológica de 1775-1825

Algumas personagens importantes para entendimento da descontinuidade epistemológica de 1775-1825

Michel Foucault ao delinear sua arqueologia das ciências humanas, propósito do ‘As palavras e as coisas’, com certeza tomou conhecimento do trabalho desses autores.

  • autores clássicos:
    • Adam Smith,
    • John Locke, 
    • David Hume, 
    • J. J. Rousseau, 
    • Jeremy Bentham, 
    • e J. M. Keynes (este, expressamente classificado por Foucault como não moderno)
  • autores modernos:
    • David Ricardo
    • Sigmund Schlomo Freud 
    • entre muitos outros.

Michel Foucault menciona ainda em destaque, como artífices do pensamento moderno e fontes para o seu próprio pensamento:

  • Georges Cuvier, naturalista, 1769-1832
  • Franz Bopp, linguista, 1792-1867
  • David Ricardo, economista, 1772-1823

Exemplos de modelos de operações e de organizações sem a possibilidade de fundar as sínteses (do objeto das operações) no espaço da representação e com ponto de inserção da análise de operações no cruzamento entre o dado e o recebido na operação de troca

Funcionamento
do pensamento
funcionamento das operações no pensamento clássico
Modelo de
Operação de produção
relação do modelo de operações de produção de E. S. Buffa
e o sistema Input-Output
do LE da figura.
Modelo da 
Organização de produção
Um modelo de organização sob o pensamento clássico, destacando a utilização de múltiplas ordens, ou
múltiplos sistemas de categorias
Modelo de operações
e de organização
Modelo FEPSC(SIPOC), Six Sigma
Modelo de  Operação
contábil-financeira
O modelo de operação
no sistema contábil-financeiro
Modelo da  Organização
ponto de vista financeiro
a organização no sistema contábil-financeiro

Exemplos de modelos de operações e de organizações no pensamento moderno, e assim  com a possibilidade de fundar as sínteses (do objeto das operações) no espaço da representação e com ponto de inserção da análise de operações antes do cruzamento entre o dado e o recebido na operação de troca

Funcionamento
de operação do pensamento
O funcionamento das operações no pensamento moderno
Modelo de
Operação de produção
relação entre o modelo descritivo da produção do Kanban e ‘essa maneira moderna de conhecer empiricidades’
Modelo da 
Organização de produção
o modelo de organização ‘Mapa da atividade semicondutores’, da Reengenharia, o modelo de operações do Kanban e o modelo moderno de operações
O modelo descritivo da produção do Kanban operação de
instanciamento de representação
O mapa da atividade semicondutores da Texas Instruments: modelo de organização
do movimento Reengenharia

O espaço interior do Triedro dos saberes – habitat das ciências humanas, com modelos situados no espectro de modelos no segmento para além do objeto

Assim, estes três pares,

  • função e norma,
  • conflito e regra,
  • significação e sistema,

cobrem, por completo, o domínio inteiro do conhecimento do homem. 

Mas, qualquer que seja a natureza da análise e o domínio a que ela se aplica, tem-se um critério formal para saber o que é

  • do nível da psicologia,
  • da sociologia
  • ou da análise das linguagens

é a escolha do modelo fundamental e a posição dos modelos secundários que permitem saber em que momento

  • se “psicologiza” ou se “sociologiza” no estudo das literaturas e dos mitos, em que momento se faz, em psicologia, decifração de textos ou análise sociológica. 

Mas essa superposição de modelos não é um defeito de método. 

Só há defeito se os modelos não forem ordenados e explicitamente articulados uns com os outros.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo X  – As ciências humanas;
 III. Os três modelos
Michel Foucault 

O Triedro dos saberes: eixos e faces
espaço das ciências da Vida, do Trabalho e da Linguagem
O interior ao Triedro dos saberes
o espaço das Ciências humanas

Aquém do objeto

Não há modelos constituintes nesta faixa do espectro, já que nada é constituído na existência durante as operações;

  • o ponto de inserção na análise do fenômeno ‘operações está no cruzamento entre o que é dado e o que é recebido na operação de troca.

Na configuração do pensamento pressupõe-se que todas as coisas
existem desde sempre e para sempre,
e integram o Universo em uma visão única.

Existem múltiplas ordens que podem ser arbitrariamente escolhidas para cada operação; e em uma mesma organização podem conviver ordens – como diz Foucault – ligeiramente diferentes. Tem-se inúmeras categorias para cada ordem escolhida, e muitas ordens possíveis de serem selecionadas.

Nada é constituído na existência como resultado das distinções feitas durante as operações nesta faixa do espectro.

Diante do objeto

No eixo epistemológico fundamental – ciências da Vida, do Trabalho e da Linguagem, a modelagem em cada área do saber pode ser feita com um modelo constituinte específico e próprio de cada uma delas:

  • em todas, o ponto de inserção na análise do fenômeno ‘operações’ está antes do cruzamento entre o dado e o recebido, e portanto antes da existência destes.

No que Foucault chama de ‘Região epistemológica Fundamental’ os Modelos constituintes são compostos por pares constituintes, próprios a cada região do saber ou área do conhecimento em que o modelo é feito:

  • Ciências da vida (Biologia):


    função-norma
    ;

  • Ciências do trabalho (Economia):


    conflito-regra;

  • Ciências da Linguagem (Filologia):

    significação-sistema.

Além do objeto

No campo das ciências humanas, o modelo constituinte de qualquer uma delas se unifica. 

Os Modelos constituintes são compostos por uma combinação dos três pares de modelos constituintes das ciências

  • da Vida-(Biologia),
  • do Trabalho-(Economia)
  • e da Linguagem-(Filologia).

O Modelo constituinte  de cada uma das Ciências Humanas – é uma combinação – ponderada pelo projetista de modelos.

O modelo composto é uma combinação dos três pares de modelos constituintes: 

  • Ciências da vida  (Biologia):
    função-norma;

    +
    Ciências do trabalho (Economia):

    conflito-regra;
    +
    Ciências da Linguagem (Filologia):
    significação-sistema.

Sob ciências humanas como:

  • economia política;
  • sociologia,
  • psicologia e psicanálise

estão modelos compostos, que são combinações ponderadas dos três pares de modelos constituintes das ciências integrantes do eixo epistemológico fundamental.

A descrição feita por Michel Foucault de duas possibilidades
de posicionamento do pensamento com relação a valor

“Valor, para o pensamento clássico, é primeiramente valer alguma coisa, poder substituir essa coisa num processo de troca. A moeda só foi inventada, os preços só foram fixados e só se modificam na medida em que essa troca existe.

Ora, a troca é um fenômeno simples apenas na aparência.

Com efeito, só se troca numa permuta, quando cada um dos dois parceiros reconhece um valor para aquilo que o outro possui.

Num sentido, é preciso, pois, que as coisas permutáveis, com seu valor próprio, existam antecipadamente nas mãos de cada um, para que a dupla cessão e a dupla aquisição finalmente se produzam.

Mas, por outro lado, o que cada um come e bebe, aquilo de que precisa para viver não tem valor enquanto não o cede; e aquilo de que não tem necessidade é igualmente desprovido de valor enquanto não for usado para adquirir alguma coisa de que necessite.

Em outras palavras, para que, numa troca, uma coisa possa representar outra, é preciso que elas existam já carregadas de valor; e, contudo, o valor só existe no interior da representação (atual ou possível), isto é, no interior da troca ou da permutabilidade.

Daí duas possibilidades simultâneas de leitura:

  1. uma analisa o valor no ato mesmo da troca, no ponto de cruzamento entre o dado e o recebido;
  2. outra analisa-o como anterior à troca e como condição primeira para que esta ossa ocorrer.

Os dois pontos de partida distintos adotados pelo pensamento para análise de valor

1. a primeira possibilidade de leitura

A análise de valor no ato mesmo da troca,
no ponto de cruzamento entre o dado e o recebido

2. a segunda possibilidade de leitura

A análise de valor como anterior à troca
e como condição primeira para que esta possa ocorrer.

A primeira dessas duas leituras corresponde a uma análise que coloca e encerra toda a essência da linguagem no interior da proposição;

  • no [neste] primeiro caso, com efeito, a linguagem encontra seu lugar de possibilidade numa atribuição assegurada pelo verbo – isto é, por esse elemento da linguagem em recuo relativamente a todas as palavras mas que as reporta umas às outras; o verbo, tomando possíveis todas as palavras da linguagem a partir de seu liame proposicional, corresponde à troca que funda, como um ato mais primitivo que os outros, o valor das coisas trocadas e o preço pelo qual são cedidas;

a outra, [corresponde] a uma análise que descobre essa mesma essência da linguagem do lado das designações primitivas – linguagem de ação ou raiz(*);

  • na outra [nesta] forma de análise, a linguagem está enraizada fora de si mesma e como que na natureza ou nas analogias das coisas; a raiz, o primeiro grito que dera nascimento às palavras antes mesmo que a linguagem tivesse nascido, corresponde à formação imediata do valor, antes da troca e das medidas recíprocas da necessidade.

Propriedades das operações e organizações modeladas com a paleta de ideias ou elementos de imagem do pensamento moderno, depois de 1825, e no caminho do Instanciamento da representação

Propriedades das operações e organizações modeladas com a paleta de ideias ou elementos de imagem do pensamento clássico, antes de 1775

Propriedades das operações e organizações modeladas com a paleta de ideias ou elementos de imagem do pensamento moderno, depois de 1825, e no caminho da Construção da representação

exemplos de modelos para operações e organizações

  • modelos com estrutura clássica
    • o modelo descritivo de operações de produção de Elwood S. Buffa;
    • o Diagrama FEPSC(SIPOC)/Six Sigma;
    • os modelos na visão contábil-financeira:
      • de operações (Débito/Crédito)
      • e de organização (Ativo – Passivo – Resultados) ;

  • modelos com estrutura moderna
    • o modelo descritivo de operações de produção do Kanban;
    • o modelo expresso na Figura 7.1 – mapa da atividade semicondutores da Texas Instruments, do livro Reengenharia, de Michael Hammer;

As palavras e as coisas: conceitos homônimos com significados diferentes




  • 3. dois papéis atribuídos ao homem  com a forma de reflexão que se instaura em nossa cultura depois da descontinuidade epistemológica;
      • raiz  e fundamento de toda empiricidade;
      • elemento do que é empírico.




  • 8. dois conceitos para tempo dependendo do posicionamento do modelo no espectro de modelos e da etapa da operação;
    • tempo calendário em um sistema relativo de anterioridade ou simultaneidade das coisas entre si, (sistema Input-Output) sob o deus Chronos, no pensamento clássico e no pensamento moderno no caminho do Instanciamento da representação;
    • tempo absoluto, em um sistema absoluto sob o deus Kairós – aquele que acontece no interior do ‘Lugar de nascimento do que é empírico‘ lugar em que ‘aquém de toda cronologia ele [o objeto] assume o ser que lhe é próprio‘ 


As palavras e as coisas: uma série de pontos selecionados


  • os dois obstáculos ou pedras de tropeço encontradas por Michel Foucault em seu trabalho no ‘As palavras e as coisas’;
    • uma impossibilidade – ainda atual, que contamina e até domina o nosso pensamento – de fundar as sínteses no espaço da representação;
    • e uma obrigação de abrir o campo transcendental da subjetividade e constituir, para além do objeto, os quase-transcendentais Vida, Trabalho e Linguagem.




  • os dois princípios filosóficos para trabalho:
    • o de Adam Smith, de 1776, no pensamento clássico, no início da primeira fase da descontinuidade epistemológica de 1775-1825;
    • e o de David Ricardo, de 1817, após a fase de ruptura e adiantada a segunda fase da descontinuidade epistemológica de 1775-1825 e portanto já no pensamento moderno





  • anatomia ou cartografia dos modelos: os diferentes lugares onde o pensamento acontece;
    • o Lugar de nascimento do que é empírico
      (anterior e fora do espaço do Mercado);
    • o Circuito onde ocorrem as trocas (Mercado)


  • propriedades emergentes dos modelos de operações e organizações:
    • fluxo de coisas – selecionadas por “aparências” ou propriedades não-originais e não-constitutivas – de e para uma região orientada do espaço;
    • permanência da representação objeto construída para a empiricidade objeto – com propriedades sim-originais e sim-constitutivas –  no Repositório.

  • metáforas adequadas para operações:
    • pensamento clássico: transformação única – Entradas em Saídas ou processamento de informação, sistema Input-Output; 
    • ou pensamento moderno: uma conversão – ou um par de transformações simultâneas, sistema absoluto.

IV. Bopp

Capítulo VIII - Trabalho, vida e linguagem; tópico IV - Bopp

Franz Bopp, 1791-1867

Franz Bopp (Mogúncia1791 — Berlim1867) foi um linguista alemão e professor de filologia e sânscrito na Universidade de Berlim.

Foi um dos principais criadores da gramática comparada, em Sobre o sistema de conjugação do sânscrito comparado aos das línguas grega, latina, persa e germânica (1816) demonstrou a afinidade genética que existe entre essas línguas, deduzindo os princípios gerais de sua formação. 

Sua monumental Gramática comparada das línguas indo-europeias (18331852), traduzida para o francês por Michel Bréal, exerceu uma influência profunda.

“Mas o ponto decisivo que tudo aclarará
é a estrutura interna das línguas
ou a gramática comparada, 

a qual nos dará soluções totalmente novas
sobre a genealogia das línguas, 

da mesma forma como
a anatomia comparada 

espargiu uma grande luz
sobre a história natural.”(30) 

Schlegel bem o sabia: a constituição da historicidade na ordem da gramática fez-se segundo o mesmo modelo que na ciência dos seres vivos.

 E, na verdade, nada há nisso de surpreendente, pois que, ao longo de toda a idade clássica, as palavras com que se pensava que as línguas eram compostas e os caracteres pelos quais se tentava constituir uma ordem natural, haviam recebido, identicamente, o mesmo estatuto: 

  • só existiam pelo valor representativo que detinham, 
  • bem como pelo poder de análise, de reduplicação, de composição e de ordenação 

que se lhes reconhecia em relação às coisas representadas. 

Com Jussieu e Lamarck primeiramente, com Cuvier em seguida, o caráter perdera sua função representativa, ou antes, se ele podia ainda “representar” e permitir o estabelecimento de relações de vizinhança ou de parentesco, 

  • não era pela virtude própria de sua estrutura visível 
  • nem dos elementos descritíveis de que era composto, 

mas porque fora primeiro reportado a uma organização de conjunto e a uma função que ele assegura de maneira direta ou indireta, principal ou colateral, “primária” ou “secundária”. 

No domínio da linguagem, a palavra sofre, mais ou menos na mesma época, uma transformação análoga: 

  • certamente, ela não deixa de ter um sentido e de poder “representar” alguma coisa no espírito de quem a utiliza ou a escuta; 
  • esse papel, porém, não é mais constitutivo da palavra no seu ser mesmo, na sua arquitetura essencial, no que lhe permite tomar lugar no interior de uma frase e aí ligar-se a outras palavras mais ou menos diferentes. 

Se a palavra pode figurar num discurso em que ela quer dizer alguma coisa, 

  • não será por virtude de uma discursividade imediata que ela deteria propriamente e por direito de nascimento, 
  • mas porque na sua forma mesma, nas sonoridades que a compõem, nas mudanças que sofre segundo a função gramatical que ocupa, nas modificações enfim a que se acha sujeita através do tempo, obedece a certo número de leis estritas que regem de maneira semelhante todos os outros elementos da mesma língua; 
  • de sorte que a palavra só está vinculada a uma representação, na medida em que primeiramente faz parte da organização gramatical pela qual a língua define e assegura sua coerência própria. 

Para que a palavra possa dizer o que ela diz, é preciso que pertença a uma totalidade gramatical que, em relação a ela, é primeira, fundamental e determinante. 

Esse desnível da palavra, essa espécie de salto para trás, para fora das funções representativas, foi, certamente, por volta do fim do século XVIII, um dos acontecimentos importantes da cultura ocidental. 

E um daqueles também que mais passaram despercebidos. 

Facilmente se dirige a atenção para os primeiros momentos da economia política, para a análise de Ricardo sobre a renda fundiária e o custo da produção: 

reconhece-se aqui que o acontecimento teve grandes dimensões, pois, pouco a pouco, ele não somente permitiu o desenvolvimento de uma ciência, como também acarretou certo número de mutações econômicas e políticas. 

Tampouco se descuida demasiado das formas novas assumidas pelas ciências da natureza; 

  • e se é verdade que, por uma ilusão retrospectiva, valoriza-se Lamarck em detrimento de Cuvier, 
  • se é verdade que se percebe mal que a “vida” atinge pela primeira vez, com as Leçons d’anatomie comparée, seu limiar de positividade, 
  • tem-se, contudo, a consciência ao menos difusa de que a cultura ocidental começou a dirigir, desde aquele momento, um olhar novo sobre o mundo dos seres vivos.

 Em contrapartida, 

  • o isolamento das línguas indo-européias, 
  • a constituição de uma gramática comparada, 
  • o estudo das flexões, 
  • a formação das leis de alternância vocálica e de mutação consonântica  
  • – em suma, toda a obra filológica de Grimm, de Schlegel, de Rask e de Bopp 

permanece às margens de nossa consciência histórica, como se ela tivesse tão-somente fundado uma disciplina um pouco lateral e esotérica – como se, de fato, não fosse todo o modo de ser da linguagem (e da nossa) que se modificara através deles. 

Sem dúvida, não se deve buscar justificar um tal esquecimento a despeito da importância da mudança, mas, ao contrário, a partir dela e da cega proximidade que esse acontecimento conserva sempre para nossos olhos mal desprendidos ainda de suas luzes costumeiras. 

É que, na época mesma em que se produziu, já estava envolto, se não em segredo, ao menos numa certa discrição.

Talvez as mudanças no modo de ser da linguagem sejam como as alterações que afetam a pronúncia, a gramática ou a semântica: 

  • por mais rápidas que sejam, jamais são claramente apreendidas por aqueles que falam e cuja linguagem, no entanto, já veicula essas mutações; 
  • só se toma consciência delas de viés, por momentos; 
  • e, ademais, a decisão só é finalmente indicada de modo negativo:
    • pelo desuso radical e imediatamente perceptível da linguagem que se empregava. 

Sem dúvida, não é possível a uma cultura tomar consciência, de modo temático e positivo, de que sua linguagem cessa de ser transparente às suas representações para espessar-se e receber um peso próprio. 

Quando se continua a discorrer, de que modo se saberia – senão através de alguns indícios obscuros que se interpretam com dificuldade e mal – que a linguagem (aquela mesma de que se serve) está em via de adquirir uma dimensão irredutível à pura discursividade? 

Por todas essas razões, certamente, o nascimento da filologia permaneceu, na consciência ocidental, muito mais discreto que o da biologia e da economia política. 

Contudo, fazia parte da mesma transmutação arqueológica. 

Contudo, suas consequências talvez se tenham estendido muito mais longe ainda em nossa cultura, pelo menos nas camadas subterrâneas que a percorrem e a sustentam. 

Como se formou essa positividade filológica?

Quatro segmentos teóricos nos assinalam sua constituição no começo do século XIX 

– na época do Ensaio sobre a língua e a filosofia dos indianos de Schlegel (1808), da Deutsche Grammatik de Grimm (1818) e do livro de Bopp sobre o Sistema de conjugação do sânscrito (1816). 

1. O primeiro desses segmentos concerne à maneira como uma língua pode caracterizar-se internamente
e distinguir-se das outras. 

Na época clássica, podia-se definir a individualidade de uma língua a partir de vários critérios: 

  • proporção entre os diferentes sons utilizados para formar palavras (há línguas de predominância vocálica e outras de predominância consonântica), 
  • privilégio concedido a certas categorias de palavras (línguas de substantivos concretos, línguas de substantivos abstratos etc.), 
  • maneira de representar as relações (por preposições ou por declinações), 
  • disposição escolhida para colocar as palavras em ordem (quer se coloque de início, como os franceses, o sujeito lógico, quer se dê a primazia às palavras mais importantes, como em latim); 

assim se distinguiam 

  • as línguas do Norte e as do Sul, 
  • as do sentimento e as da necessidade, 
  • as da liberdade e as da escravatura, 
  • as da barbárie e as da civilização, 
  • as do raciocínio lógico e as da argumentação retórica: 

todas essas distinções entre as línguas nunca concerniam mais que à maneira como elas podiam analisar a representação e, em seguida, compor seus elementos. 

Mas, a partir de Schlegel, as línguas, ao menos na sua tipologia mais geral, se definem pela maneira como ligam uns aos outros os elementos propriamente verbais que a compõem; 

  • entre esses elementos, alguns certamente são representativos;
    • possuem, em todo o caso, um valor de representação que é visível; 
  • mas outros não detêm nenhum sentido e servem somente, por uma certa composição, para determinar o sentido de um outro elemento na unidade do discurso. 

É esse material feito de nomes, de verbos, de palavras em geral, mas também de sílabas, de sons – que as línguas reúnem para formar proposições e frases. 

Mas a unidade material constituída pela disposição dos sons, das sílabas e das palavras não é regida pela pura e simples combinatória dos elementos da representação. 

Ela tem seus princípios próprios e que diferem nas diversas línguas: a composição gramatical tem regularidades que não são transparentes à significação do discurso. 

Ora, como a significação pode passar, quase integralmente, de uma língua para outra, são essas regularidades que vão permitir definir a individualidade de uma língua. 

Cada uma tem um espaço gramatical autônomo; podem-se comparar esses espaços lateralmente, isto é, de uma língua para outra, sem ter de passar por um “meio” comum que seria o campo da representação com todas as suas subdivisões possíveis. 

É fácil distinguir, de imediato, dois grandes modos de combinação entre os elementos gramaticais. 

Um consiste em justapô-los de maneira que eles se determinem uns aos outros; 

nesse caso, a língua é feita de uma poeira de elementos – em geral muito sucintos – que podem combinar-se de diferentes maneiras, cada uma dessas unidades guardando, porém, sua autonomia, a possibilidade, portanto, de romper o liame transitório que, no interior de uma frase ou de uma proposição, ela acaba de instaurar com uma outra. 

A língua se define então pelo número de suas unidades e por todas as combinações possíveis que podem, no discurso, estabelecer-se entre elas; trata-se então de uma “reunião de átomos”, de uma “agregação mecânica operada por uma aproximação exterior”(31). 

Existe outro modo de ligação entre os elementos de uma língua: é o sistema de flexões que altera internamente as sílabas ou as palavras essenciais – as formas radicais. 

Cada uma dessas formas carrega consigo certo número de variações possíveis, determinadas de antemão; e, conforme as outras palavras da frase, conforme as relações de dependência ou de correlação entre essas palavras, conforme as vizinhanças e as associações, será utilizada esta ou aquela variável. 

Aparentemente, esse modo de ligação é menos rico que o primeiro, pois que o número das possibilidades combinatórias é muito mais restrito; 

  • na realidade, porém, o sistema da flexão jamais existe sob sua forma pura e mais descarnada; 
  • a modificação interna do radical lhe permite receber por adição elementos que são, eles próprios, modificáveis interiormente, de sorte que, “cada raiz é verdadeiramente uma espécie de gérmen vivo; 
  • pois as relações sendo indicadas por uma modificação interior e sendo dado um livre campo ao desenvolvimento da palavra, esta palavra pode estender-se de maneira ilimitada”(32).

A esses dois grandes tipos de organização linguística correspondem, 

  • por um lado, o chinês, em que “as partículas que designam as idéias sucessivas são monossílabos, tendo sua existência à parte” 
  • e, de outro, o sânscrito, cuja “estrutura é completamente orgânica, ramificando-se, por assim dizer, com a ajuda de flexões, de modificações interiores e de entrelaçamentos variados do radical”(33). 

Entre esses modelos maiores e extremos, podem se repartir todas as outras línguas, quaisquer que sejam; cada uma terá necessariamente uma organização que a aproximará de um dos dois, ou que a manterá a igual distância, no meio do campo assim definido. 

  • Mais próximas do chinês, encontram-se o basco, o copta, as línguas americanas; elas ligam, uns aos outros, elementos separáveis; mas estes, em vez de permanecerem sempre em estado livre e como átomos verbais irredutíveis, “começam já a fundir-se na palavra”; 
  • o árabe se define por uma mistura entre o sistema das afixações e o das flexões; 
  • o celta é quase exclusivamente uma língua de flexão, mas nele se encontram ainda “vestígios de línguas afixas”. 

Dir-se-á talvez que essa oposição já era conhecida no século XVIII e que se sabia desde muito tempo distinguir a combinatória das palavras chinesas nas declinações e conjugações de línguas como o latim e o grego.

Objetar-se-á também que a oposição absoluta estabelecida por Schlegel não tardou a ser criticada por Bopp: 

  • lá onde Schlegel via dois tipos de línguas radicalmente inassimiláveis uma à outra, 
  • Bopp buscou uma origem comum; tenta estabelecer(34) que as flexões não são uma espécie de desenvolvimento interior e espontâneo do elemento primitivo, mas partículas que se aglomeraram à sílaba radical: o m da primeira pessoa em sânscrito (bhavâmi) ou o t da terceira (bhavâti) são efeito da adjunção do radical do verbo do pronome mâm (eu) e tâm (ele). 

Mas o importante para a constituição da filologia não está tanto em saber se os elementos da conjugação puderam beneficiar-se, num passado mais ou menos longínquo, de uma existência isolada com um valor autônomo. 

O essencial, e o que distingue as análises de Schlegel e de Bopp daquelas que, no século XVIII, podem aparentemente antecipar-se a elas(35) é que as sílabas primitivas não crescem (por adjunção ou proliferação internas) sem um certo número de modificações reguladas no radical. 

  • Numa língua como o chinês, há apenas leis de justaposição; 
  • mas em línguas em que os radicais estão sujeitos ao crescimento (quer sejam monossilábicos como no sânscrito ou polissilábicos como no hebraico),
    • encontram-se sempre formas regulares de variações internas. 

Compreende-se que a nova filologia, tendo agora para caracterizar as línguas esses critérios de organização interior, haja abandonado as classificações hierárquicas que o século XVIII praticava: 

  • admitia-se então que havia línguas mais importantes que outras porque nelas a análise das representações era mais precisa ou mais fina. 

Doravante todas as línguas se equivalem: elas têm somente organizações internas que são diferentes. Daí essa curiosidade por línguas raras, pouco faladas, mal “civilizadas”, de que Rask deu o testemunho na sua grande investigação através da Escandinávia, da Rússia, do Cáucaso, da Pérsia e da Índia.  

2. O estudo dessas variações internas constitui o segundo segmento teórico importante. 

Nas suas pesquisas etimológicas, a gramática geral estudava, é certo, as transformações das palavras e das sílabas através do tempo. 

Mas esse estudo era limitado por três razões. 

  • lncidia mais sobre a metamorfose das letras do alfabeto do que sobre a maneira como os sons efetivamente pronunciados podiam ser modificados. Ademais, essas transformações eram consideradas como o efeito sempre possível, em qualquer tempo e sob todas as condições, de uma certa afinidade das letras entre si; 
  • admitia-se que o p e o b, o m e o n eram bastante vizinhos para que um pudesse substituir o outro; tais mudanças eram provocadas ou determinadas somente por essa duvidosa proximidade e pela confusão que podia seguir-se na pronúncia ou na audição. 
  • Enfim, as vogais eram tratadas como o elemento mais fluido e mais instável da linguagem, ao passo que as consoantes passavam por formar sua arquitetura sólida (o hebraico, por exemplo, não dispensa a escrita das vogais?). 

Pela primeira vez, com Rask, Grimm e Bopp, a linguagem (embora não se busque reconduzi-Ia aos seus gritos originários) é tratada como um conjunto de elementos fonéticos. 

Enquanto, para a gramática geral, a linguagem nascia quando o ruído da boca ou dos lábios se tornava letra, 

doravante admite-se que há linguagem quando esses ruídos são articulados e divididos numa série de sons distintos.

Todo o ser da linguagem é agora sonoro. 

O que explica o interesse novo, manifestado pelos irmãos Grimm e por Raynouard, pela literatura não-escrita, as narrativas populares e os dialetos falados. Procura-se a linguagem o mais perto possível do que ela é: na fala – essa fala que a escrita desseca e imobiliza num lugar. 

Toda uma mística está em via de nascer: a do verbo, do puro fulgor poético que passa sem rastro, deixando atrás de si apenas uma vibração suspensa por um instante. Na sua sonoridade passageira e profunda, a fala se torna soberana. E seus secretos poderes, reanimados pelo sopro dos profetas, opõem-se fundamentalmente (ainda que tolerem alguns entrecruzamentos) ao esoterismo da escrita que, por seu lado, supõe a permanência ressequida de um segredo no centro de labirintos visíveis. 

A linguagem já não é propriamente esse signo – mais ou menos longínquo, semelhante e arbitrário – ao qual a Lógica de Port-Royal propunha, como modelo imediato e evidente, o retrato de um homem ou um mapa geográfico. 

Adquiriu uma natureza vibratória que a destaca do signo visível para aproximá-Ia da nota musical. 

E foi preciso justamente que Saussure contornasse esse momento da fala, que foi capital para toda a filologia do século XIX, para restaurar, para além das formas históricas, a dimensão da língua em geral e reabrir, acima de tanto esquecimento, o velho problema do signo que animara, sem interrupção, todo o pensamento desde Port-Royal até os últimos ideólogos. 

No século XIX começa, pois, uma análise da linguagem tratada como um conjunto de sons liberados das letras que os podem transcrever(36). 

Ela foi feita em três direções. 

[i] Primeiro a tipologia das diversas sonoridades que são utilizadas numa língua: 

para as vogais, por exemplo, oposição entre as simples e as duplas (alongadas como em â, ô; ou ditongadas como em ae, ai); entre as vogais simples, oposição entre as puras (a, i, o, u) e as flexionadas (e, õ, ü); entre as puras, há as que podem ter várias pronúncias (como o o) e as que só têm uma (a, i, u); enfim, entre estas últimas, umas estão sujeitas à mudança e podem receber o Um/ Qui (a eu); quanto ao i, permanece sempre fixo(37). 

[ii] A segunda forma de análise incide sobre as condições que podem determinar uma mudança numa sonoridade; 

  • seu lugar no vocábulo é, em si mesmo, um fator importante: uma sílaba, se for terminal, protege menos facilmente sua permanência do que se constituir a raiz; 
  • as letras do radical, diz Grimm, têm vida longa; as sonoridades da desinência têm uma vida mais curta. 

Mas, além disso, há determinações positivas, pois “a manutenção ou a mudança” de uma sonoridade qualquer “não é jamais arbitrária”(38). Essa ausência de arbitrário era para Grimm a determinação de um sentido (no radical de um grande número de verbos alemães o a se opõe ao i como o pretérito ao presente). 

Para Bopp, ela é o efeito de um certo número de leis. Umas definem as regras de mudança quando duas consoantes se acham em contato: 

“Assim, quando se diz em sânscrito ai-ti (ele come) no lugar de ad-ti (da raiz ad, comer), a mudança d e t tem por causa uma lei física.” 

Outras definem o modo de ação de uma terminação sobre as sonoridades do radical: 

“Por leis mecânicas, entendo principalmente as leis do peso e, em particular, a influência que o peso das desinências pessoais exerce sobre a sílaba precedente.”(39) 

[iii] Finalmente, a última forma de análise incide sobre a constância das transformações através da História. 

Grimm estabeleceu assim uma tabela de correspondência para as labiais, as dentais e as guturais entre o grego, o “gótico” e o alto-alemão: o p, o b, o f dos gregos tornam-se respectivamente f,p, b em gótico e b ou v, f e p em alto-alemão; t, d, th, em grego, tomam-se, em gótico, th, t, d, e, em alto-alemão, d, z, t. 

Por esse conjunto de relações, os caminhos da história se acham prescritos; e, em vez de as línguas serem submetidas a essa medida exterior, a essas coisas da história humana que deviam, para o pensamento clássico, explicar suas mudanças, detêm elas próprias um princípio de evolução. 

Aí, como alhures, é a “anatomia”(40) que fixa o destino. 

3. Essa definição de uma lei das modificações consonânticas ou vocálicas permite estabelecer uma teoria nova do radical. 

Na época clássica, as raízes eram assinaladas por um duplo sistema de constantes: 

  • as constantes alfabéticas que incidiam sobre um número arbitrário de letras (em certos casos, só havia uma) 
  • e as constantes significativas, que reagrupavam sob um tema geral uma quantidade indefinidamente extensível de sentidos vizinhos; 

no cruzamento dessas duas constantes, lá onde um mesmo sentido vinha à luz por uma mesma letra ou uma mesma sílaba, individualizava-se uma raiz. 

A raiz era um núcleo expressivo transformável ao infinito a partir de uma sonoridade primeira. 

Mas se vogais e consoantes só se transformam segundo certas leis e sob certas condições, então o radical deve ser uma individualidade linguística estável (dentro de certos limites), que se pode isolar com suas variações eventuais e que constitui com suas diferentes formas possíveis um elemento de linguagem. 

Para determinar os elementos primeiros e absolutamente simples de uma língua, a gramática geral devia ascender até o ponto de contato imaginário onde o som, não ainda verbal, tocava de certo modo na vivacidade mesma da representação. 

Doravante, os elementos de uma língua lhe são interiores (mesmo se pertencem também às outras): existem meios puramente linguísticos para estabelecer sua composição constante e a tabela de suas modificações possíveis. 

A etimologia, portanto, vai deixar de ser um procedimento indefinidamente regressivo em direção a uma língua primitiva, toda povoada pelos primeiros gritos da natureza; torna-se um método de análise preciso e limitado para reencontrar numa palavra o radical a partir do qual ela foi formada: 

“As raízes das palavras só foram postas em evidência após o sucesso da análise das flexões e das derivações.”(41) 

  • Pode-se assim estabelecer que, em certas línguas como as semíticas, as raízes são bissilábicas (em geral de três letras); 
  • que noutras (as indo-germânicas) são regularmente monossilábicas; 
  • algumas são constituídas por uma só e única vogal (i é o radical dos verbos que querem dizer ir, u dos que significam repercutir); 
  • mas, a maior parte do tempo, a raiz nessas línguas comporta ao menos uma consoante e uma vogal – a consoante podendo ser terminal ou inicial;
    • no primeiro caso, a vogal é necessariamente inicial; 
    • no outro caso, ocorre ser ela seguida por uma segunda consoante que lhe serve de apoio (como na raiz ma, mad, que dá em latim metiri, em alemão messen(42). 
  • Também ocorre que essas raízes monossilábicas sejam redobradas, como do se redobra no sânscrito dadami, e o grego didômi, ou sta em tishtami e istémi(43). 

Finalmente e sobretudo, a natureza da raiz e seu papel constituinte na linguagem são concebidos de um modo absolutamente novo: 

no século XVIII, a raiz era um nome rudimentar que designava, em sua origem, uma coisa concreta, uma representação imediata, um objeto que se oferecia ao olhar ou a qualquer um dos sentidos. 

  • A linguagem se construía a partir do jogo de suas caracterizações nominais; 
  • a derivação estendia seu alcance; 
  • a abstração fazia nascer os adjetivos; 
  • e bastava então acrescentar a estes o outro elemento irredutível, a grande função monótona do verbo ser, para que se constituísse a categoria das palavras conjugáveis – espécie de condensação numa forma verbal do ser e do epíteto. 

Também Bopp admite que os verbos são mistos, obtidos pela coagulação do verbo com uma raiz. 

Mas sua análise difere, em vários pontos essenciais, do esquema clássico:

  • não se trata da adição virtual, subjacente e invisível da função atributiva e do sentido proposicional que se empresta ao verbo ser; 
  • trata-se primeiramente de uma junção material entre um radical e as formas do verbo ser:
    • o as sânscrito se reencontra no sigma do aoristo grego, no er, do mais-que-perfeito ou do futuro anterior latino; 
    • o bhu sânscrito se encontra no b do futuro e do imperfeito latinos. 

Ademais, essa adjunção do verbo ser permite essencialmente atribuir ao radical um tempo e uma pessoa (a desinência constituída pelo radical do verbo ser comportando, além disso, aquele do pronome pessoal, como em script-s-i(44)) 

Por conseguinte, não é a adjunção de ser que transforma um epíteto em verbo; o próprio radical detém uma significação verbal, à qual as desinências derivadas da conjugação de ser acrescentam somente modificações de pessoas de tempo. 

Portanto, as raízes dos verbos não designam na origem “coisas”, mas ações, processos, desejos, vontades; e são elas que, recebendo certas desinências provindas do verbo ser e dos pronomes pessoais, tornam-se suscetíveis de conjugação, ao passo que, recebendo outros sufixos, eles próprios modificáveis, elas se tornarão nomes suscetíveis de declinação. 

À bipolaridade nomes-verbo ser, que caracterizava a análise clássica, é preciso, pois, substituir uma disposição mais complexa: 

raízes de significação verbal, que podem receber desinências de tipos diferentes e assim dar nascimento a verbos conjugáveis ou a substantivos. 

Os verbos (e os pronomes pessoais) tornam-se assim o elemento primordial da linguagem – aquele a partir do qual ela pode desenvolver-se. 

“O verbo e os pronomes pessoais parecem ser as verdadeiras alavancas da linguagem.”(45) 

As análises de Bopp deviam ter uma importância capital não somente para a decomposição interna de uma língua, mas ainda para definir o que pode ser a linguagem em sua essência. 

  • Ela não é mais um sistema de representações que tem poder de recortar e de recompor outras representações; 
  • designa, em suas raízes mais constantes, ações, estados, vontades; 
  • mais do que o que se vê, pretende dizer originariamente o que se faz ou o que se sofre; 
  • e, se acaba por mostrar as coisas como que as apontando com o dedo, é na medida em que elas são o resultado, ou o objeto, ou o instrumento dessa ação; 
  • os nomes não recortam tanto o quadro complexo de uma representação; 
  • recortam, detêm e imobilizam o processo de uma ação. 

A linguagem “enraíza-se” 

  • não do lado das coisas percebidas, 
  • mas do lado do sujeito em sua atividade. 

E talvez seja ela então proveniente do querer e da força, mais do que dessa memória que reduplica a representação. Fala-se porque se age e não porque, reconhecendo, se conhece. Como a ação, a linguagem exprime uma vontade profunda. 

O que tem duas conseqüências. 

A primeira é paradoxal para um olhar apressado: 

é que, no momento em que a filologia se constitui pela descoberta de uma dimensão da gramática pura, volta-se a atribuir à linguagem profundos poderes de expressão (Humboldt não é apenas contemporâneo de Bopp; conhecia sua obra e detalhadamente): 

  • enquanto na época clássica a função expressiva da linguagem só era requerida no ponto de origem e apenas para explicar que um som pudesse representar uma coisa, 
  • no século XIX, a linguagem vai ter, ao longo de todo o seu percurso e nas suas formas mais complexas, um valor expressivo que é irredutível; 
  • nada de arbitrário, nenhuma convenção gramatical podem obliterá-la, pois, se a linguagem exprime,
    • não o faz na medida em que imite e reduplique as coisas, 
    • mas na medida em que manifesta e traduz o querer fundamental daqueles que falam. 

A segunda conseqüência consiste em que 

  • a linguagem não está mais ligada às civilizações pelo nível de conhecimentos que elas atingiram (a finura da rede representativa, a multiplicidade dos liames que se podem estabelecer entre os elementos), 
  • mas pelo espírito do povo que as fez nascer, as anima e se pode reconhecer nelas. 

Assim como o organismo vivo manifesta, por sua coerência, as funções que o mantêm em vida, a linguagem, e isso em toda a arquitetura de sua gramática, torna visível a vontade fundamental que mantém um povo em vida e lhe dá o poder de falar uma linguagem que só a ele pertence. 

Desde logo, as condições de historicidade da linguagem são modificadas; 

  • as mutações não vêm mais do alto (da elite dos sábios, do pequeno grupo de mercadores e viajantes, dos exércitos vitoriosos, da aristocracia de invasão), 
  • mas nascem obscuramente de baixo, pois a linguagem não é um instrumento, ou um produto – um ergon, como dizia Humboldt – mas uma incessante atividade – uma energeia. 

Numa língua, quem fala e não cessa de falar, num murmúrio que não se ouve mas de onde vem, no entanto, todo o esplendor, é o povo. 

Grimm pensava surpreender esse murmúrio escutando o altdeutsche Meistergesang, e Raynouard, transcrevendo as Poésies originales des troubadours. 

A linguagem está ligada 

  • não mais ao conhecimento das coisas, 
  • mas à liberdade dos homens: 

“A linguagem é humana: à nossa plena liberdade deve sua origem e seus progressos; ela é nossa história, nossa herança.”(46) 

No momento em que se definem as leis internas da gramática, estabelece-se um profundo parentesco entre a linguagem e o livre destino dos homens. 

Ao longo de todo o século XIX, a filologia terá profundas ressonâncias políticas. 

4. A análise das raízes tornou possível uma nova definição dos sistemas de parentesco entre as línguas. 

E é este o quarto grande segmento teórico que caracteriza o aparecimento da filologia. 

Essa definição supõe, primeiramente, que as línguas se agrupem em conjuntos descontínuos uns em relação aos outros. 

A gramática geral excluía a comparação na medida em que admitia em todas as línguas, quaisquer que fossem, duas ordens de continuidade; 

  • uma, vertical, permitia-lhes, a todas, dispor do acervo das raízes mais primitivas que, através de algumas transformações, religava cada linguagem às articulações iniciais; 
  • outra, horizontal, fazia as línguas se comunicarem na universalidade da representação: 

todas elas tinham de analisar, decompor e recompor representações que, em limites bastante amplos, eram as mesmas para o gênero humano inteiro. 

De sorte que não era possível comparar as línguas, salvo de um modo indireto, e como que por um trajeto triangular; 

  • podia-se analisar a maneira como esta e aquela língua haviam tratado e modificado o equipamento comum das raízes primitivas; 
  • podia-se também comparar como duas línguas recortavam e religavam as mesmas representações. 

Ora, o que se tornou possível, a partir de Grimm e de Bopp, foi a comparação 

  • direta 
  • e lateral 

de duas ou várias línguas. 

  • Comparação direta 

por não ser mais necessário passar pelas representações puras ou pela raiz absolutamente primitiva: 

    • basta estudar as modificações do radical, 
    • o sistema das flexões, 
    • a série das desinências. 
  • Mas comparação lateral, 

que não ascende aos elementos comuns a todas as línguas, nem ao fundo representativo no qual se nutrem: 

    • não é portanto possível reportar uma língua à forma ou aos princípios que tornam todas as outras possíveis; 
    • é preciso agrupá-Ias segundo sua proximidade formal: 

“A semelhança se acha não somente no grande número de raízes comuns, mas se estende ainda até a estrutura interior das línguas e até a gramática.”(47) 

Ora, essas estruturas gramaticais, que podem ser comparadas diretamente entre si, oferecem dois caracteres particulares. 

Primeiro, o de só existirem em sistemas: 

  • com radicais monossilábicos,
    • um certo número de flexões é possível; 
    • o peso das desinências pode ter efeitos cujo número e natureza são determináveis; 
    • os modos de afixação correspondem a alguns modelos perfeitamente fixos; 
  • já nas línguas de radicais polissilábicos,
    • todas as modificações e composições obedecerão a outras leis. 

Entre dois sistemas como esses (um, característico das línguas indo-europeias, outro, das línguas semíticas), não se encontra tipo intermediário nem formas de transição. 

De uma família a outra há descontinuidade. 

Por outro lado, porém, os sistemas gramaticais, já que prescrevem certo número de leis de evolução e de mutação, permitem fixar até certo ponto o índice de envelhecimento de uma língua; para que tal forma aparecesse a partir de certo radical, foi necessária tal ou qual transformação. 

Na idade clássica, quando duas línguas se assemelhavam, era preciso 

  • ou vincular ambas à língua absolutamente primitiva, 
  • ou então admitir que uma provinha da outra (mas o critério era externo, a língua mais derivada sendo muito simplesmente a que tivesse aparecido na história em data mais recente), 
  • ou ainda admitir permutas (devidas a acontecimentos extralinguísticos: invasão, comércio, migração). 

Agora, quando duas línguas apresentam sistemas análogos, deve-se poder decidir 

  • ou que uma é derivada da outra, 
  • ou ainda que são ambas provenientes de uma terceira, a partir da qual cada uma delas desenvolveu sistemas
    • diferentes por um lado, 
    • mas também análogos por outro. 

Foi assim que, a propósito do sânscrito e do grego, abandonou-se sucessivamente 

  • a hipótese de Coeurdoux, que acreditava em vestígios da língua primitiva, 
  • e a de Anquetil, que supunha uma mistura na época do reino de Bactriana; 
  • e Bopp pôde também refutar Schlegel, para quem “a língua indiana era a mais antiga, e as outras (latim, grego, línguas germânicas e persas) eram mais modernas e derivadas da primeira(48). 

Mostrou ele que, entre o sânscrito, o latim e o grego, as línguas germânicas, havia uma relação de “fraternidade”, sendo o sânscrito não a língua mãe das outras, mas antes a irmã primogênita, a mais próxima de uma língua que teria estado na origem de toda essa família. 

Vê-se que a historicidade introduziu-se no domínio das línguas como no dos seres vivos. 

Para que uma evolução – que não fosse somente percurso de continuidades ontológicas – pudesse ser pensada, foi necessário 

  • que o plano ininterrupto e liso da história natural fosse quebrado, 
  • que a descontinuidade das ramificações fizesse aparecer os planos de organização na sua diversidade sem intermediário, 
  • que os organismos se ordenassem às disposições funcionais que eles devem assegurar 
  • e que se estabelecessem assim as relações do ser vivo com o que lhe permite existir. 

Da mesma forma, foi preciso, para que a história das línguas pudesse ser pensada, 

  • que elas fossem destacadas dessa grande continuidade cronológica que as religava sem ruptura até a origem; 
  • foi preciso também liberá-Ias da superfície comum das representações onde estavam presas; 
  • graças a essa dupla ruptura, a heterogeneidade dos sistemas gramaticais apareceu com seus recortes próprios, as leis que em cada um prescrevem a mudança e os caminhos que fixam as possibilidades da evolução. 

Uma vez suspensa a história das espécies como sequência cronológica de todas as formas possíveis, então, e somente então, o ser vivo pôde receber uma historicidade; 

do mesmo modo, se não se tivesse suspendido, na ordem da linguagem, a análise dessas derivações indefinidas e dessas misturas sem limites que a gramática geral supunha sempre, a linguagem jamais teria sido afetada por uma historicidade interna. 

Foi preciso tratar o sânscrito, o grego, o latim, o alemão numa simultaneidade sistemática; rompendo com toda cronologia, foi mister instalá-los num tempo fraternal, para que suas estruturas se tornassem transparentes e para que aí se pudesse ler uma história das línguas. 

Aqui como alhures, as colocações em série cronológica tiveram de ser apagadas, seus elementos redistribuídos, e constituiu-se então uma história nova, que enuncia não somente o modo de sucessão dos seres e seu encadeamento no tempo, mas as modalidades de sua formação. 

A empiricidade – 

  • trata-se tanto dos indivíduos naturais 
  • quanto das palavras com que podem ser nomeados 

– está doravante atravessada pela História e em toda a espessura de seu ser. 

A ordem do tempo começa. 

Há, entretanto, uma diferença capital entre as línguas e os seres vivos. 

Estes só têm história verdadeira por uma certa relação entre suas funções e suas condições de existência. E se é verdade que é sua composição interna de indivíduos organizados que torna possível sua historicidade, esta só se torna história real em virtude desse mundo exterior em que eles vivem. Foi necessário portanto, para que essa história aparecesse em plena luz e fosse descrita num discurso, que à anatomia comparada de Cuvier se acrescentasse a análise do meio ambiente e das condições que agem sobre o ser vivo. 

A “anatomia” da linguagem, para retomar a expressão de Grimm, funciona, em contrapartida, no elemento da História: pois é uma anatomia das mudanças possíveis que anuncia, não a coexistência real dos órgãos ou sua mútua exclusão, mas o sentido no qual as mutações poderão ou não se dar. 

A nova gramática é imediatamente diacrônica. Como poderia ser de outro modo, já que sua positividade não podia ser instaurada senão por uma ruptura entre a linguagem e a representação? 

A organização interior das línguas, o que elas autorizam e o que elas excluem para poder funcionar, isso não podia mais ser apreendido senão na forma das palavras; mas, em si mesma, essa forma só pode enunciar sua própria lei quando reportada a seus estados anteriores, às mudanças de que é suscetível, às modificações que jamais se produzem. 

Ao ser separada daquilo que ela representa, a linguagem certamente aparecia, pela primeira vez, na sua legalidade própria, e, no mesmo movimento, ficava-se votado a só poder apreendê-Ia na história. 

Sabe-se bem que Saussure só pôde escapar a essa vocação diacrônica da filologia, restaurando a relação da linguagem com a representação, disposto a reconstituir uma “semiologia” que, à maneira da gramática geral, define o signo pela ligação entre duas idéias. 

O mesmo acontecimento arqueológico manifestou-se, pois, de modo parcialmente diferente para a história natural e para a linguagem. 

Destacando-se 

  • os caracteres do ser vivo 
  • ou as regras da gramática 

das leis de uma representação que se analisa, tornou-se possível a historicidade da vida e da linguagem. 

Mas essa historicidade, na ordem da biologia, teve necessidade de uma história suplementar que devia enunciar as relações entre o indivíduo e o meio ambiente; 

  • em certo sentido, a história da vida 
  • é exterior à historicidade do ser vivo; 

é por isso que o evolucionismo constitui uma teoria biológica cuja condição de possibilidade foi uma biologia sem evolução – a de Cuvier. 

A historicidade da linguagem, ao contrário, descobre, desde logo e sem intermediário, sua história; comunicam-se interiormente uma com a outra. 

  • Enquanto a biologia do século XIX avançará cada vez mais em direção ao exterior do ser vivo, ao seu outro lado, tornando sempre mais permeável essa superfície do corpo em que o olhar do naturalista outrora se detinha, 
  • a filologia desfará as relações que o gramático estabelecera entre a linguagem e a história externa para definir uma história interior. 

E esta, uma vez assegurada na sua objetividade, poderá servir de fio condutor para reconstituir, em proveito da História propriamente dita, acontecimentos afastados de toda memória.

V. A linguagem tornada objeto

Capítulo VIII - Trabalho, vida e linguagem; tópico V - A linguagem tornada objeto

Pode-se observar que os quatro segmentos teóricos que acabam de ser analisados, por constituírem sem dúvida o solo arqueológico da filologia, correspondem, termo a termo, e opõem-se aos que permitiam definir a gramática geral(49). 

Remontando do último ao primeiro desses quatro segmentos, vê-se que 

  • a teoria do parentesco entre as línguas (descontinuidade entre as grandes famílias e analogias internas no regime das mudanças) faz face à teoria da derivação, que supunha incessantes fatores de desgaste e de mistura, agindo do mesmo modo sobre todas as línguas, quaisquer que fossem, a partir de um princípio externo e com efeitos ilimitados. 
  • A teoria do radical opõe-se à da designação: pois o radical é uma individualidade linguística isolável, interior a um grupo de línguas e que serve, antes de tudo, de núcleo para formas verbais, ao passo que a raiz, transpondo a linguagem para o lado da natureza e do grito, exauria-se até não ser mais que uma sonoridade indefinidamente transformável, que tinha por função um primeiro recorte nominal das coisas. 
  • O estudo das variações interiores da língua opõe-se igualmente à teoria da articulação representativa: esta definia as palavras e as individualizava umas em face das outras, reportando-as ao conteúdo que podiam significar; a articulação da linguagem era a análise visível da representação; agora as palavras se caracterizam primeiramente por sua morfologia e pelo conjunto das mutações que cada uma de suas sonoridades pode eventualmente sofrer. 
  • Enfim e sobretudo, a análise interior da língua faz face ao primado que o pensamento clássico atribuía ao verbo ser: este reinava nos limites da linguagem, ao mesmo tempo porque era o liame primeiro das palavras e porque detinha o poder fundamental da afirmação; marcava o limiar da linguagem, indicava sua especificidade e a vinculava, de um modo que não podia ser apagado, às formas do pensamento. 

A análise independente das estruturas gramaticais, tal como praticada a partir do século XIX, isola ao contrário a linguagem, trata-a como uma organização autônoma, rompe seus liames com os juízos, a atribuição e a afirmação. A passagem ontológica que o verbo ser assegurava entre falar e pensar acha-se rompida; a linguagem, desde logo, adquire um ser próprio. E é esse ser que detém as leis que o regem. 

A ordem clássica da linguagem encerrou-se agora sobre si mesma. 

Perdeu sua transparência e sua função principal no domínio do saber. 

Nos séculos XVII e XVIII, ela era o desenrolar imediato e espontâneo das representações; 

  • era nela primeiramente que estas recebiam seus primeiros signos, 
  • recortavam e reagrupavam seus traços comuns, 
  • instauravam relações de identidade ou de atribuição; 

a linguagem era um conhecimento, e o conhecimento era, de pleno direito, um discurso. 

Em relação a todo conhecimento, encontrava-se ela, pois, numa situação fundamental: 

  • só se podiam conhecer as coisas do mundo passando por ela. 
  • Não porque fizesse parte do mundo numa imbricação ontológica (como no Renascimento), 
  • mas porque era o primeiro esboço de uma ordem nas representações do mundo; 
  • porque era a maneira inicial, inevitável, de representar as representações. 

Era nela que toda generalidade se formava. 

O conhecimento clássico era profundamente nominalista. 

A partir do século XIX, a linguagem se dobra sobre si mesma, adquire sua espessura própria, desenvolve uma história, leis e uma objetividade que só a ela pertencem.

Tornou-se um objeto do conhecimento entre tantos outros: 

  • ao lado dos seres vivos, 
  • ao lado das riquezas e do valor, 
  • ao lado da história dos acontecimentos e dos homens. 

Comporta, talvez, conceitos próprios, mas as análises que incidem sobre ela são enraizadas no mesmo nível que todas as que concernem aos conhecimentos empíricos. 

  • Aquela relevância que permitia à gramática geral ser ao mesmo tempo Lógica e com ela entrecruzar-se, está, doravante, reduzida. 
  • Conhecer a linguagem
    • não é mais aproximar-se o mais perto possível do próprio conhecimento, 
    • é tão somente aplicar os métodos do saber em geral a um domínio singular da objetividade. 

Esse nivelamento da linguagem que a reduz ao puro estatuto de objeto acha-se, entretanto, compensado de três maneiras. 

Primeiro, pelo fato de ser ela uma mediação necessária para todo conhecimento científico que pretende manifestar-se como discurso. 

Ainda que seja ela própria disposta, desdobrada e analisada sob o olhar de uma ciência, ressurge sempre do lado do sujeito que conhece – desde que se trate, para ele, de enunciar o que sabe. 

Daí duas preocupações que foram constantes no século XIX. 

Uma consiste em querer neutralizar e como que polir a linguagem científica, 

a tal ponto que, desarmada de toda singularidade própria, purificada de seus acidentes e de suas impropriedades – como se não pertencessem à sua essência -, pudesse tornar-se o reflexo exato, o duplo meticuloso, o espelho sem nebulosidade de um conhecimento que, esse, não é verbal. 

É o sonho positivista de uma linguagem que se mantivesse ao nível do que se sabe: 

  • uma linguagem-quadro, como aquela, certamente, com que sonhava Cuvier, quando atribuía à ciência o projeto de ser uma “cópia” da natureza; 
  • em face das coisas, o discurso científico seria seu “quadro”; 
  • mas quadro tem aqui um sentido fundamentalmente diferente daquele que tinha no século XVIII;
    • tratava-se então de repartir a natureza por uma tabela constante de identidades e de diferenças, para a qual a linguagem oferecia um crivo primeiro, aproximativo e retificável; 
  • agora a linguagem é quadro, mas no sentido de que, desprendida dessa trama que lhe dá um papel imediatamente classificador, mantém-se a certa distância da natureza, para cativá-Ia por sua própria docilidade e recolher finalmente seu retrato fiel (50). 

A outra preocupação – inteiramente distinta da primeira, ainda que lhe seja correlativa – consistiu em buscar uma lógica independente das gramáticas, dos vocabulários, das formas sintéticas, das palavras: 

uma lógica que pudesse trazer à luz e utilizar as implicações universais do pensamento, mantendo-as ao abrigo das singularidades de uma linguagem constituída, em que poderiam ser mascaradas. 

Era necessário que uma lógica simbólica nascesse, com Boole, na mesma época em que as linguagens se tornavam objetos para a filologia: 

  • é que, malgrado as semelhanças de superfície e algumas analogias técnicas, não se tratava de constituir uma linguagem universal como na época clássica; 
  • mas sim de representar as formas e os encadeamentos do pensamento fora de qualquer linguagem; 
  • visto que esta se tornava objeto de ciências, era preciso inventar uma língua que fosse antes simbolismo que linguagem e que, por esse motivo, fosse transparente ao pensamento, no movimento mesmo que lhe permite conhecer. 

Poder-se-ia dizer, em certo sentido, que a álgebra lógica e as línguas indo-europeias são dois produtos de dissociação da gramática geral: 

  • estas, mostrando o deslizar da linguagem para o lado do objeto conhecido, 
  • aquela, o movimento que a faz oscilar para o lado do ato de conhecer, despojando-a então de toda forma já constituída. 

Mas seria insuficiente enunciar o fato sob essa forma puramente negativa: 

ao nível arqueológico, as condições de possibilidade 

  • de uma lógica não-verbal 
  • e as de uma gramática histórica 

são as mesmas. Seu solo de positividade é idêntico. 

A segunda compensação ao nivelamento da linguagem está no valor crítico que se emprestou ao seu estudo. Tornada realidade histórica espessa e consistente, a linguagem constitui o lugar das tradições, dos hábitos mudos do pensamento, do espírito obscuro dos povos; acumula uma memória fatal que não se conhece nem mesmo como memória. 

Exprimindo seus pensamentos em palavras de que não são senhores, alojando-as em formas verbais cujas dimensões históricas lhes escapam, os homens, crendo que seus propósitos lhes obedecem, não sabem que são eles que se submetem às suas exigências. 

As disposições gramaticais de uma língua são o a priori do que aí se pode enunciar. A verdade do discurso é burlada pela filologia. 

Daí esta necessidade de remontar das opiniões, das filosofias e talvez mesmo das ciências até as palavras que as tornaram possíveis e, mais além, até um pensamento cuja vivacidade não estaria ainda presa na rede das gramáticas. 

Compreende-se, assim, o reflorescimento muito acentuado, no século XIX, de todas as técnicas da exegese. Esse reaparecimento deve-se ao fato de que a linguagem retomou a densidade enigmática que tinha no Renascimento. 

Mas não se tratará agora de reencontrar uma fala primeira que aí estivesse enterrada, 

  • mas de inquietar as palavras que falamos, 
  • de denunciar o vinco gramatical de nossas idéias, 
  • de dissipar os mitos que animam nossas palavras, 
  • de tornar de novo ruidosa e audível a parte de silêncio que todo discurso arrasta consigo quando se enuncia. 

O primeiro livro do Capital é uma exegese do “valor”;
Nietzsche inteiro, uma exegese de alguns vocábulos gregos;
Freud, a exegese de todas essas frases mudas que sustentam e escavam ao mesmo tempo nossos discursos aparentes, nossos fantasmas, nossos sonhos, nosso corpo. 

A filologia, como análise do que se diz na profundidade do discurso, tornou-se a forma moderna da crítica. Lá onde se tratava, no fim do século XVIII, de fixar os limites do conhecimento, buscar-se-á desarticular as sintaxes, romper as maneiras constringentes de falar, voltar as palavras para o lado de tudo o que se diz através delas e malgrado elas. 

Deus é talvez menos um além do saber que um certo aquém de nossas frases; e se o homem ocidental é inseparável dele, não é por uma propensão invencível a transpor as fronteiras da experiência, mas porque sua linguagem o fomenta sem cessar na sombra de suas leis: 

“Temo que jamais nos desembaracemos de Deus porque cremos ainda na gramática.”(51) 

A interpretação, 

no século XVI, 

  • ia do mundo (coisas e textos ao mesmo tempo) 
  • à Palavra divina que nele se decifrava; 

a nossa, pelo menos a que se formou no século XIX, 

  • vai dos homens, de Deus, dos conhecimentos ou das quimeras 
  • às palavras que os tomam possíveis; 
  • e o que ela descobre não é a soberania de um discurso primeiro, é o fato de que nós somos, antes da mais intima de nossas palavras, já dominados e perpassados pela linguagem. 

Estranho comentário a que se entrega a crítica moderna: 

  • pois que ele não vai da constatação de que há linguagem à descoberta daquilo que ela quer dizer, 
  • mas do desdobramento no discurso manifesto ao desvendamento da linguagem em seu ser bruto. 

Os métodos de interpretação fazem face, pois, no pensamento moderno, às técnicas de formalização: 

  • aqueles, com a pretensão de fazer falar a linguagem por sob ela própria e o mais perto possível do que, sem ela, nela se diz; 
  • estas, com a pretensão de controlar toda linguagem eventual e de a vergar pela lei do que é possível dizer.

Interpretar e formalizar tornaram-se as duas grandes formas de análise de nossa época: na verdade, não conhecemos outras. 

Mas conhecemos as relações entre a exegese e a formalização, somos capazes de as controlar e de as dominar? 

Pois, se a exegese nos conduz menos a um discurso primeiro que à existência nua de algo como uma linguagem, não será ela constrangida a dizer somente as formas puras da linguagem, antes mesmo que esta tenha tomado um sentido? 

Mas para formalizar aquilo que se supõe ser uma linguagem, não é preciso ter praticado um mínimo de exegese e interpretado ao menos todas essas figuras mudas como querendo dizer alguma coisa? 

Quanto à divisão entre a interpretação e a formalização, é verdade que ela hoje nos pressiona e nos domina. Mas não é bastante rigorosa, a bifurcação que ela delineia não se entranha suficientemente longe em nossa cultura, seus dois ramos são demasiado contemporâneos para que possamos dizer sequer que ela prescreve uma simples escolha ou que nos convida a optar entre o passado que acreditava no sentido e o presente (o futuro) que descobriu o significante. 

Trata-se, de fato, de duas técnicas correlativas, cujo solo comum de possibilidade é formado pelo ser da linguagem, tal como se constitui no limiar da idade moderna. 

A relevância critica da linguagem, que compensava seu nivelamento ao objeto, implicava que ela fosse reaproximada, ao mesmo tempo, de um ato de conhecer isento de toda fala, e daquilo que não se conhece em cada um de nossos discursos. 

Era necessário, 

  • ou torná-Ia transparente às formas do conhecimento, 
  • ou entranhá-Ia nos conteúdos do inconsciente. 

Isso explica bem a dupla marcha do século XIX em direção ao formalismo do pensamento e à descoberta do inconsciente – em direção a Roussel e a Freud. 

E explica também as tentações para inclinar uma para a outra e entrecruzar essas duas direções: 

  • tentativa por trazer à luz, por exemplo, as formas puras que, antes de qualquer conteúdo, se impõem ao nosso inconsciente; 
  • ou ainda esforço para fazer chegar até nosso discurso o solo de experiência, o sentido de ser, o horizonte vivido de todos os nossos conhecimentos. 

O estruturalismo e a fenomenologia encontram aqui, com sua disposição própria, o espaço geral que define seu lugar-comum. 

Finalmente, a última das compensações ao nivelamento da linguagem, a mais importante, a mais inesperada também, é o aparecimento da literatura. 

Da literatura como tal, pois, desde Dante, desde Homero, existiu realmente, no mundo ocidental, uma forma de linguagem que nós, agora, denominamos “literatura”. 

Mas a palavra é de recente data, como recente é também em nossa cultura o isolamento de uma linguagem singular, cuja modalidade própria é ser “literária”. 

É que, no início do século XIX, na época em que a linguagem se entranhava na sua espessura de objeto e se deixava, de parte a parte, atravessar por um saber, ela se reconstituía alhures, sob uma forma independente, de difícil acesso, dobrada sobre o enigma de seu nascimento e inteiramente referida ao ato puro de escrever. 

A literatura é a contestação da filologia (de que é, no entanto, a figura gêmea): 

  • ela reconduz a linguagem da gramática ao desnudado poder de falar, 
  • e lá encontra o ser selvagem e imperioso das palavras. 

Da revolta romântica contra um discurso imobilizado na sua cerimônia até a descoberta, por Mallarmé, da palavra em seu poder impotente, vê-se bem qual foi, no século XIX, a função da literatura em relação ao modo de ser moderno da linguagem. 

Com base nesse jogo essencial, o restante é efeito: 

  • a literatura se distingue cada vez mais no discurso de idéias e se encerra numa intransitividade radical; 
  • destaca-se de todos os valores que podiam, na idade clássica, fazê-Ia circular (o gosto, o prazer, o natural, o verdadeiro) e faz nascer, no seu próprio espaço, tudo o que pode assegurar-lhe a denegação lúdica (o escandaloso, o feio, o impossível); 
  • rompe com toda definição de “gêneros” como formas ajustadas a uma ordem de representações e torna-se pura e simples manifestação de uma linguagem que só tem por lei afirmar – contra todos os outros discursos – sua existência abrupta;
  • nessas condições, não lhe resta senão recurvar-se num perpétuo retorno sobre si, como se seu discurso não pudesse ter por conteúdo senão dizer sua própria forma:
    • endereça-se a si como subjetividade escriturante, 
    • ou busca capturar, no movimento que a faz nascer, a essência de toda literatura; 
  • e assim todos os seus fios convergem para a mais fina ponta – singular, instantânea, e contudo absolutamente universal -, para o simples ato de escrever. 

No momento em que a linguagem, como palavra disseminada, se torna objeto de conhecimento, eis que reaparece sob uma modalidade estritamente oposta: silenciosa, cautelosa deposição da palavra sobre a brancura de um papel, onde ela não pode ter nem sonoridade, nem interlocutor, onde nada mais tem a dizer senão a si própria, nada mais a fazer senão cintilar no esplendor do seu ser.

III. Cuvier

Capítulo VIII - Trabalho, vida e linguagem; tópico III - Cuvier

Georges Cuvier, 1769-1832

Georges Cuvier foi um naturalista e zoologista francês da primeira metade do século XIX, é por vezes chamado de “Pai da Paleontologia”. Foi uma figura central na investigação em história natural na sua época, comparou fósseis com animais vivos criando assim a Anatomia Comparada. Wikipédia

No seu projeto de estabelecer uma classificação tão fiel quanto um método e tão rigorosa quanto um sistema, Jussieu descobrira a regra de subordinação dos caracteres, assim como Smith utilizara o valor constante do trabalho para estabelecer o preço natural das coisas no jogo das equivalências. 

E assim como Ricardo libertou o trabalho de seu papel de medida para fazê-lo entrar, aquém de toda troca, nas formas gerais da produção, 

assim Cuvier(6) libertou de sua função taxinômica a subordinação dos caracteres para fazê-Ia entrar, aquém de toda classificação eventual, nos diversos planos de organização dos seres vivos. 

O liame interno que faz as estruturas dependerem umas das outras não está mais situado no nível apenas das frequências, torna-se o fundamento mesmo das correlações.

É esse desnível e essa inversão que Geoffroy Saint-Hilaire devia um dia traduzir, dizendo: 

“A organização torna-se um ser abstrato… suscetível de formas numerosas.”(7) 

O espaço dos seres vivos gira em torno dessa noção e tudo o que até então pudera aparecer através do quadriculado da história natural (gêneros, espécies, indivíduos, estruturas, órgãos), tudo o que era dado ao olhar, assume doravante um modo novo de ser. 

E, em primeiro lugar, esses elementos ou esses grupos de elementos distintos que o olhar pode articular quando percorre o corpo dos indivíduos e a que se chama os órgãos. 

Na análise dos clássicos, o órgão se definia, a um tempo, por sua estrutura e por sua função; era como um sistema de dupla entrada que se podia ler exaustivamente, 

  • quer a partir do papel que desempenhava
    (por exemplo, a reprodução), 
  • quer a partir de suas variáveis morfológicas
    (forma, grandeza, disposição e número): 

os dois modos de decifração recobriam-se ajustadamente mas eram independentes um do outro – 

  • o primeiro enunciando o utilizável, 
  • o segundo, o identificável. 

É essa disposição que Cuvier altera;
revogando

tanto o postulado do ajustamento
quanto o da independência,

faz extravasar – e largamente – a função em relação ao órgão e submete a disposição do órgão à soberania da função. 

Dissolve, se não a individualidade, pelo menos a independência do órgão: 

  • é erro crer que “tudo é importante num órgão importante”; 
  • é preciso dirigir a atenção “mais para as próprias funções que para os órgãos”(8); 
  • antes de definir estes últimos pelas suas variáveis, é necessário reportá-los à função que asseguram. 

Ora, essas funções são em número relativamente pouco elevado: respiração, digestão, circulação, locomoção… De sorte que a diversidade visível das estruturas não mais emerge do fundo de um quadro de variáveis, mas do fundo de grandes unidades funcionais suscetíveis de se realizarem e de cumprir seu fim de maneiras diversas: 

“O que é comum a cada gênero de órgãos considerado, em todos os animais se reduz a muito pouca coisa e, frequentemente, eles só se assemelham pelo efeito que produzem. Isso deve ter impressionado sobretudo no tocante à respiração que se opera nas diferentes classes por órgãos tão variados, que sua estrutura não apresenta nenhum ponto comum.”(9)

Considerando o órgão na sua relação com a função, vê-se, pois, aparecerem “semelhanças” onde não há nenhum elemento “idêntico”; semelhança que se constitui pela passagem à evidente invisibilidade da função. 

Pouco importa afinal que as brânquias e os pulmões tenham em comum algumas variáveis de forma, de grandeza, de número: assemelham-se por serem duas variedades desse órgão inexistente, abstrato, irreal, indeterminável, ausente de toda espécie descritível, presente contudo no reino animal inteiro e que serve para respirar em geral. 

Restauram-se assim, na análise do ser vivo, as analogias de tipo aristotélico: 

  • as brânquias são para a respiração na água 
  • o que são os pulmões para a respiração no ar. 

Certamente, semelhantes relações eram perfeitamente conhecidas na idade clássica; mas serviam apenas para determinar funções; não eram utilizadas para estabelecer a ordem das coisas no espaço da natureza. 

A partir de Cuvier, a função, definida sob a forma não perceptível do efeito a atingir, vai servir de meio-termo constante e permitir relacionar um a outro conjuntos desprovidas da menor identidade visível. 

  • Aquilo que, para o olhar clássico, não passava de puras e simples diferenças justapostas a identidades, 
  • deve agora ser ordenado e pensado a partir de uma homogeneidade funcional que o suporta em segredo. 

Há história natural
quando o Mesmo e o Outro
pertencem a um único espaço; 

alguma coisa como a biologia torna-se possível
quando essa unidade de plano começa a desfazer-se
e as diferenças surgem
do fundo de uma identidade mais profunda
e como que mais séria do que ela. 

Essa referência à função, essa disjunção entre o plano das identidades e o das diferenças fazem surgir relações novas: 

  • as de coexistência, 
  • de hierarquia interna, 
  • de dependência com respeito ao plano de organização. 

A coexistência designa o fato de que um órgão ou um sistema de órgãos não podem estar presentes num ser vivo sem que outro órgão ou outro sistema, de uma natureza e uma forma determinadas, o estejam igualmente: 

“Todos os órgãos de um mesmo animal formam um sistema único, cujas partes todas se sustentam, agem e reagem umas sobre as outras; não pode haver modificações numa delas que não acarretem modificações análogas em todas.”(10)

No interior do sistema da digestão, a forma dos dentes (o fato de serem cortantes ou mastigadores) varia ao mesmo tempo que “o comprimento, as curvas, as dilatações do sistema alimentar”; ou ainda, para dar um exemplo de coexistência entre sistemas diferentes, os órgãos da digestão não podem variar independentemente da morfologia dos membros (e, em particular, da forma das unhas): conforme houver garras ou cascos – portanto, conforme o animal possa ou não agarrar e despedaçar seu alimento – o canal alimentar, os “sucos dissolventes”, a forma dos dentes não serão os mesmos(11). 

Trata-se aí de correlações laterais que estabelecem entre elementos do mesmo nível relações de concomitância fundadas por necessidades funcionais: por ser preciso que o animal se alimente, a natureza da presa e seu modo de captura não podem ficar estranhos aos aparelhos de mastigação e de digestão (e reciprocamente). 

Há, todavia, escalonamentos hierárquicos. Sabe-se como a análise clássica fora levada a suspender o privilégio dos órgãos mais importantes para só considerar sua eficácia taxinômica. 

Agora que não se trata mais de variáveis independentes, mas de sistemas comandados uns pelos outros, o problema da importância recíproca se acha novamente colocado. 

Assim, o canal alimentar dos mamíferos não está simplesmente numa relação de covariação eventual com os órgãos da locomoção e da preensão; é, ao menos em parte, prescrito pelo modo de reprodução. Esta, com efeito, sob sua forma vivípara, não implica simplesmente a presença de órgãos que lhe estão imediatamente ligados; exige também a existência de órgãos de lactação, a presença de lábios, a de uma língua carnuda igualmente; prescreve, por outro lado, a circulação de um sangue quente e bifocularidade do coração(12). 

A análise dos organismos e a possibilidade de estabelecer entre eles semelhanças e distinções supõem, portanto, que se tenha fixado a tabela, não dos elementos que podem variar de espécie para espécie, mas das funções que, nos seres vivos em geral, se comandam, se ajustam, se ordenam umas às outras: 

  • não mais o polígono das modificações possíveis, 
  • mas a pirâmide hierárquica das importâncias. 

Cuvier pensou primeiro que as funções de existência se antepunham às de relações (“pois o animal primeiramente é, depois sente e age”): supunha portanto que a geração e a circulação deviam determinar, de início, certo número de órgãos aos quais a disposição dos outros se acharia submetida; aqueles formariam os caracteres primários, estes os caracteres secundários(13). 

Depois, subordinou a circulação à digestão, pois esta existe em todos os animais (o corpo do pólipo é por inteiro apenas uma espécie de aparelho digestivo), ao passo que o sangue e os vasos se encontram “apenas nos animais superiores e desaparecem sucessivamente nos das últimas classes”(14). 

Mais tarde, foi o sistema nervoso (com a existência ou a inexistência de um cordão espinhal) que lhe apareceu como determinante de todas as disposições orgânicas: 

“Ele é, em essência, todo o animal:
os outros sistemas só estão lá para servi-lo e mantê-lo.”(15) 

Essa preeminência de uma função sobre as outras implica que o organismo nas suas disposições visíveis obedeça a um plano. Tal plano garante o reino das funções essenciais e a elas vincula, mas com um grau maior de liberdade, os órgãos que asseguram funcionamentos menos capitais. 

Como princípio hierárquico, esse plano define as funções preeminentes, distribui os elementos anatômicos que lhe permitem efetuar-se e os instala nas localizações privilegiadas do corpo: assim, no vasto grupo dos articulados, a classe dos insetos deixa aparecer a importância primordial das funções locomotoras e dos órgãos do movimento; nos três outros, são as funções vitais, em contrapartida, que têm primazia(16). 

No controle regional que exerce sobre os órgãos menos fundamentais, o plano de organização não desempenha um papel tão determinante; liberaliza-se, de certo modo, na medida em que há um afastamento do centro, autorizando modificações, alterações, mudanças na forma ou a utilização possível. 

Reencontramo-lo, tornado porém mais flexível e mais permeável a outras formas de determinação. Isso é fácil de constatar nos mamíferos a propósito do sistema de locomoção. 

Os quatro membros motores fazem parte do plano de organização, mas a título somente do caráter secundário; não estão pois jamais suprimidos, nem ausentes nem substituídos, porém “disfarçados algumas vezes como nas asas dos morcegos e nas barbatanas posteriores das focas”; ocorre mesmo terem “degenerado pelo uso como nas barbatanas peitorais dos cetáceos… A natureza fez com um braço uma barbatana. Vedes que há sempre uma espécie de constância nos caracteres secundários conforme seu disfarce”(17). 

Compreende-se como podem as espécies ao mesmo tempo 

  • assemelhar-se (para formar grupos como os gêneros, as classes e o que Cuvier chama as ramificações) 
  • e distinguir-se umas das outras. 

O que as aproxima não é certa quantidade de elementos superponíveis, mas uma espécie de foco de identidade que não se pode analisar em regiões visíveis, porque define a importância recíproca das funções; a partir desse cerne imperceptível das identidades, os órgãos se dispõem e, à medida que dele se afastam, ganham em flexibilidade, em possibilidades de variações, em caracteres distintivos. 

  • As espécies animais diferem pela periferia, assemelham-se pelo centro;
    • o inacessível as religa, o manifesto as dispersa. 
  • Generalizam-se do lado do que é essencial à sua vida;
    • singularizam-se do lado do que é mais acessório. 
  • Quanto mais se quiser atingir grupos extensos, mais é preciso entranhar-se na obscuridade do organismo, em direção ao pouco visível, nessa dimensão que escapa ao percebido; 
  • quanto mais se quiser cingir a individualidade, mais necessário é ascender à superfície e deixar cintilar, em sua visibilidade, as formas que a luz toca;
    • pois a multiplicidade se vê e a unidade se esconde. 

Em suma, as espécies vivas “escapam” ao pulular dos indivíduos e das espécies, só podendo ser classificadas porque vivem e a partir do que ocultam. 

Avalia-se a imensa reviravolta que tudo isso supõe em relação à taxinomia clássica. 

  • Edificava-se esta inteiramente a partir das quatro variáveis de descrição
    • (formas, 
    • número, 
    • disposição, 
    • grandeza) 
  • que eram percorridas, como num só movimento, pela linguagem e pelo olhar; 
  • e, nessa exposição do visível, a vida aparecia como o efeito de um recorte – simples fronteira classificatória. 

A partir de Cuvier, 

  • é a vida, no que tem de não-perceptível, de puramente funcional, que funda a possibilidade exterior de uma classificação. 
  • Não há mais, sobre a grande superfície da ordem, a classe daquilo que pode viver; 
  • mas sim, vindo da profundidade da vida, do que há de mais longínquo para o olhar, a possibilidade de classificar. 
  • O ser vivo era uma localidade da classificação natural; 
  • o fato de ser classificável é agora uma propriedade do ser vivo. 

Assim desaparece o projeto de uma taxinomia geral; 

  • assim desaparece a possibilidade de desenrolar uma grande ordem natural, que iria sem descontinuidade do mais simples e do mais inerte ao mais vivo e ao mais complexo; 
  • assim desaparece a procura da ordem como solo e fundamento de uma ciência geral da natureza. 

Assim desaparece a “natureza”
– entendendo-se que, ao longo de toda a idade clássica, ela não existiu primeiramente como “tema”, como “ideia”, como fonte indefinida do saber, 

mas como espaço homogêneo das identidades e das diferenças ordenáveis. 

Esse espaço está agora dissociado e como que aberto em sua espessura. 

  • No lugar de um campo unitário de visibilidade e de ordem cujos elementos têm valor distintivo uns em relação aos outros, 
  • tem-se uma série de oposições cujos dois termos não são do mesmo nível:
    • de um lado há os órgãos secundários, que são visíveis à superfície do corpo e se oferecem sem intervenção à imediata percepção, 
    • e os órgãos primários, que são essenciais, centrais, ocultos, e que só se podem atingir pela dissecção, isto é, destruindo materialmente o invólucro colorido dos órgãos secundários. 

Há também, mais profundamente, a oposição entre 

  • os órgãos em geral, que são espaciais, sólidos, direta ou indiretamente visíveis, 
  • e as funções, que não se dão à percepção, mas prescrevem, como que por debaixo, a disposição daquilo que se percebe. 

Há enfim, em última análise, a oposição entre identidades e diferenças: 

  • não são mais do mesmo veio, não mais se estabelecem em relação umas às outras sobre um plano homogêneo; 
  • mas as diferenças proliferam na superfície, 
  • enquanto em profundidade elas se desvanecem, se confundem, se tramam umas nas outras e se aproximam da grande, misteriosa, invisível unidade focal de que o múltiplo parece derivar como que por uma dispersão incessante. 

A vida não é mais o que se pode distinguir, de maneira mais ou menos certa, do mecânico; 

é aquilo em que se fundam todas as distinções possíveis entre os seres vivos. 

É essa passagem
da noção taxinômica
à noção sintética de vida
que é assinalada,
na cronologia das idéias e das ciências,
pela recrudescência, no começo do século XIX,
dos temas vitalistas. 

Do ponto de vista da arqueologia, o que naquele momento se instaura são as condições de possibilidade de uma biologia. 

Em todo o caso, essa série de oposições, dissociando o espaço da história natural, teve conseqüências de grande peso. Na prática, é o aparecimento de duas técnicas correlativas que se apoiam e se revezam mutuamente. 

A primeira dessas técnicas é constituída pela anatomia comparada: 

esta faz surgir um espaço interior, limitado, 

  • de um lado, pela camada superficial dos tegumentos e das cascas, 
  • e, de outro, pela quase-invisibilidade do que é infinitamente pequeno. 

Pois a anatomia comparada não é o puro e simples aprofundamento das técnicas descritivas que se utilizavam na idade clássica; 

  • não se contenta em procurar ver mais fundo, melhor e mais de perto; 
  • instaura um espaço que não é nem o dos caracteres visíveis nem o dos elementos microscópicos(18). 

Ela faz aí aparecer a disposição recíproca dos órgãos, sua correlação, a maneira como se decompõem, como se especializam, como se ordenam uns aos outros os principais momentos de uma função. E assim, por oposição ao olhar simples que, percorrendo os organismos íntegros, vê desdobrar-se diante de si a profusão das diferenças, a anatomia, recortando realmente os corpos, fracionando-os em parcelas distintas, retalhando-os no espaço, faz surgir as grandes semelhanças que teriam permanecido invisíveis; ela reconstitui as unidades subjacentes às grandes dispersões visíveis. 

A formação das vastas unidades taxinômicas (classes e ordens) 

  • era, nos séculos XVII e XVIII, um problema de recorte linguístico:
    • era preciso encontrar um nome que fosse geral e fundado; 
  • agora, ela diz respeito a uma desarticulação anatômica;
    • é preciso isolar o sistema funcional principal;
    • são as divisões reais da anatomia que permitirão articular as grandes famílias do ser vivo. 

A segunda técnica repousa sobre a anatomia (pois que é seu resultado) mas a ela se opõe (porque permite dispensá-la); 

consiste em estabelecer relações de indicação entre 

  • elementos superficiais, portanto visíveis, 
  • e outros que estão encobertos na profundidade do corpo. 

É que, pela lei de solidariedade do organismo, pode-se saber que tal órgão periférico e acessório implica tal estrutura num órgão mais essencial; assim, é permitido “estabelecer a correspondência das formas exteriores e interiores que, umas e outras, fazem parte integrante da essência do animal”(19). 

Nos insetos, por exemplo, 

  • a disposição das antenas só tem valor distintivo porque não está em correlação com nenhuma das grandes organizações internas; 
  • em contrapartida, a forma do maxilar inferior pode desempenhar um papel capital para distribuí-los segundo suas semelhanças e suas diferenças; pois está ligada à alimentação, à digestão e, por conseguinte, às funções essenciais do animal: 

“Os órgãos da mastigação deverão estar relacionados com os da nutrição, consequentemente com todo o gênero de vida e, consequentemente, com toda a organização.”(20) 

Na verdade, essa técnica dos indícios não vai forçosamente da periferia visível às formas obscuras da interioridade orgânica: 

  • ela pode estabelecer redes de necessidade indo de um ponto qualquer do corpo a qualquer outro; 
  • de sorte que um único elemento pode bastar, em certos casos, para sugerir a arquitetura geral de um organismo; 
  • poder-se-á reconhecer um animal inteiro “por um só osso, por uma só faceta de osso: método que deu tão curiosos resultados acerca dos animais fósseis”(21). 

Enquanto, para o pensamento do século XVIII, o fóssil era uma prefiguração das formas atuais e indicava assim a grande continuidade do tempo, 

será doravante a indicação da figura à qual realmente pertencia. 

A anatomia não somente quebrou o espaço tabular e homogêneo das identidades; rompeu a suposta continuidade do tempo. 

É que, do ponto de vista teórico, as análises de Cuvier recompõem inteiramente o regime das continuidades e das descontinuidades naturais. Com efeito, a anatomia comparada permite estabelecer, no mundo vivo, duas formas de continuidade perfeitamente distintas. 

A primeira concerne às grandes funções que se encontram na maioria das espécies (a respiração, a digestão, a circulação, a reprodução, o movimento…); 

estabelece em todo o mundo vivo uma vasta semelhança que se pode distribuir segundo uma escala de complexidade decrescente, indo do homem até o zoófito; nas espécies superiores estão presentes todas as funções, vemo-las desaparecer depois umas após outras e, no zoófito, finalmente, já “não há centro de circulação, não há nervos, não há centro de sensação; cada ponto parece nutrir-se por sucção”(22). 

Todavia, essa continuidade é fraca, relativamente frouxa, formando, pelo número restrito das funções essenciais, um simples quadro de presenças e de ausências. 

A outra continuidade é muito mais cerrada:
concerne à maior ou menor perfeição dos órgãos. 

Mas, a partir daí, só se podem estabelecer séries limitadas, continuidades regionais logo interrompidas, e que, ademais, se imbricam umas nas outras em direções diferentes; é que, nas diversas espécies, “os órgãos não seguem todos a mesma ordem de gradação: um atinge seu mais alto grau de perfeição na sua espécie; outro o atinge numa espécie diferente”23. 

  • Tem-se pois, o que se poderia chamar de “microsséries” limitadas e parciais que dizem respeito menos às espécies que a tal ou tal órgão; 
  • e, na outra extremidade, uma “macrossérie”, descontínua, afrouxada e que diz respeito menos aos próprios organismos que ao grande registro fundamental das funções. 

Entre essas duas continuidades que não se superpõem nem se ajustam, vê-se a divisão de grandes massas descontínuas. Elas obedecem a planos de organização diferentes, encontrando-se as mesmas funções ordenadas segundo hierarquias variadas e realizadas por órgãos de tipo diverso. 

Por exemplo, é fácil encontrar no polvo “todas as funções que se exercem nos peixes e, no entanto, não há entre eles nenhuma semelhança, nenhuma analogia de disposição”(24). 

É preciso, portanto, analisar cada um desses grupos em si mesmo, considerar não o fio estreito das semelhanças que podem vinculá-Io a outro, mas a forte coesão que o cerra em si mesmo; 

  • não se buscará saber se os animais de sangue vermelho estão na mesma linha que os animais de sangue branco, tendo apenas perfeições suplementares; 
  • estabelecer-se-á que todo animal de sangue vermelho – e é nisso que depende de um plano autônomo – possui sempre uma cabeça óssea, uma coluna vertebral, membros (com exceção das serpentes), artérias e veias, um fígado, um pâncreas, um baço, rins(25). 

Vertebrados e invertebrados formam regiões perfeitamente isoladas, entre as quais não se podem encontrar formas intermediárias assegurando a passagem num sentido ou noutro: 

“Qualquer que seja a organização que se dê aos animais com vértebras e aos que não as têm, não se chegará jamais a encontrar no final de uma dessas grandes classes, nem encabeçando a outra, dois animais que se assemelhem o bastante para servirem de elo entre elas.”(26) 

Vê-se, pois, que a teoria das ramificações não ajunta um quadro taxinômico suplementar às classificações tradicionais; ela está ligada à constituição de um espaço novo das identidades e das diferenças. Espaço sem continuidade essencial. Espaço que logo de início se dá na forma da fragmentação. Espaço atravessado por linhas que às vezes divergem e às vezes se recortam. 

Para designar-lhe a forma geral, é preciso, pois, substituir 

  • a imagem da escala continua que fora tradicional no século XVIII, de Bonnet a Lamarck, 
  • pela de uma irradiação, ou, antes, de um conjunto de centros a partir dos quais se desdobra uma multiplicidade de raios; 

poder-se- ia assim recolocar cada ser “nessa imensa rede que constitui a natureza organizada mas dez ou vinte raios não bastariam para exprimir essas inumeráveis relações”(27). 

É toda a experiência clássica da diferença que então se abala e, com ela, a relação entre o ser e a natureza. 

Nos séculos XVII e XVIII, a diferença tinha por função religar as espécies umas às outras e preencher assim a distância entre as extremidades do ser; desempenhava um papel de “catenária”: 

  • era tão limitada, tão tênue quanto possível; 
  • alojava-se no quadriculado mais estreito; 
  • era sempre divisível e podia cair mesmo abaixo do limiar da percepção. 

A partir de Cuvier, ao contrário, 

  • ela própria se multiplica, adiciona formas diversas, difunde-se e se repercute através do organismo, isolando-o de todos os outros de diversas maneiras simultâneas; 
  • é que ela não se aloja no interstício dos seres para religá-los entre si; 
  • funciona em relação ao organismo, para que ele possa “fazer corpo” consigo mesmo e manter-se em vida; 
  • não preenche o entremeio dos seres por tenuidades sucessivas; 
  • escava-o, aprofundando-se a si mesma, para definir em seu isolamento os grandes tipos de compatibilidade. 

A natureza do século XIX é descontínua na medida mesma em que é viva. 

Avalia-se a importância da reviravolta; 

na época clássica, 

  • os seres naturais formavam um conjunto contínuo porque eram seres e não havia razão para a interrupção de seu desdobramento. 
  • Não era possível representar o que separava o ser de si mesmo.
    • O contínuo da representação (signos e caracteres) 
    • e o contínuo dos seres (a extrema proximidade das estruturas) 
  • eram, pois, correlativos. 

É essa trama, a um tempo ontológica e representativa, que se despedaça definitivamente com Cuvier: 

  • os seres vivos, porque vivem, não podem mais formar um tecido de diferenças progressivas e graduadas; 
  • devem concentrar-se em tomo de núcleos de coerência perfeitamente distintos uns dos outros e que constituem diferentes planos para manter a vida. 
  • O ser clássico era sem lacuna;
    • já a vida é sem margem nem gradação.
  • O ser se derramava num imenso quadro;
    • a vida isola formas que se articulam consigo mesmas.  
  • O ser se dava no espaço sempre analisável da representação;
    • a vida se recolhe no enigma de uma força inacessível em sua essência, captável apenas nos esforços que faz, aqui e ali, para manifestar-se e manter-se. 

Em suma, ao longo de toda a idade clássica, 

  • a vida estava sob a alçada de uma ontologia que concernia do mesmo modo a todos os seres materiais, submetidos à extensão, ao peso, ao movimento; 
  • e era nesse sentido que todas as ciências da natureza e singularmente do ser vivo tinham uma profunda vocação mecanicista; 

a partir de Cuvier, 

  • o ser vivo escapa, ao menos em primeira instância, às leis gerais do ser extenso; 
  • o ser biológico regionaliza-se e autonomiza-se; 
  • a vida é, nos confins do ser, o que lhe é exterior e que, contudo, se manifesta nele. 

E se se coloca a questão de suas relações com o não-vivo, ou a de suas determinações físico-químicas, 

  • não é, de modo algum, na linha de um “mecanicismo” que se obstinasse em suas modalidades clássicas, 
  • mas sim, de maneira totalmente nova, para articular uma à outra duas naturezas. 

Mas, como as descontinuidades devem ser explicadas pela manutenção da vida e por suas condições, vê-se esboçar uma continuidade imprevista – ou, ao menos, um jogo de interações não ainda analisadas – entre o organismo e o que lhe permite viver. 

Se os ruminantes se distinguem dos roedores, e por todo um sistema de diferenças maciças que não se trata de atenuar, é porque têm outra dentição, outro aparelho digestivo, outra disposição dos dedos e das unhas; é porque não podem capturar o mesmo alimento, porque não podem tratá-Io do mesmo modo; é porque não têm de digerir a mesma natureza de alimentos. 

Portanto, o ser vivo não deve mais ser compreendido apenas como uma certa combinação de moléculas portadoras de caracteres definidos; ele delineia uma organização que se sustém em relações ininterruptas com elementos exteriores que ela utiliza (pela respiração, pela alimentação), a fim de manter ou desenvolver sua própria estrutura. 

Em torno do ser vivo, ou, antes, através dele e pelo filtro de sua superfície, efetua-se “uma circulação continua de fora para dentro e de dentro para fora, constantemente mantida e contudo fixada entre certos limites. Assim, os corpos vivos devem ser considerados como espécies de focos nos quais as substâncias mortas são sucessivamente conduzidas, para ali se combinarem entre si de diversas maneiras”(28). 

O ser vivo, pelo jogo e pela soberania dessa mesma força que o mantém em descontinuidade consigo mesmo, acha-se submetido a uma relação contínua com o que o cerca. 

Para que o ser vivo possa viver, é preciso que haja várias organizações irredutíveis umas às outras, como também um movimento ininterrupto entre cada uma e o ar que ela respira, a água que bebe, o alimento que absorve. 

Rompendo a antiga continuidade clássica entre o ser e a natureza, a força dividida da vida fará aparecer formas dispersas, ligadas todas, porém, a condições de existência. 

Em alguns anos, na curva dos séculos XVIII e XIX, a cultura européia modificou inteiramente a espacialização fundamental do ser vivo: 

para a experiência clássica, 

  • o ser vivo era um compartimento ou uma série de compartimentos na taxinomia universal do ser; 
  • se sua localização geográfica tinha um papel (como em Buffon), era para fazer aparecer variações que já eram possíveis. 

A partir de Cuvier, 

  • o ser vivo se envolve sobre si mesmo, rompe suas vizinhanças taxinômicas, se arranca ao vasto plano constringente das continuidades e se constitui um novo espaço: espaço duplo, na verdade – pois que
    • é aquele, interior, das coerências anatômicas e das compatibilidades fisiológicas, 
    • e aquele, exterior, dos elementos onde ele reside para deles fazer seu corpo próprio. 

Todavia, esses dois espaços têm um comando unitário: 

  • não mais o das possibilidades do ser, 
  • mas o das condições de vida. 

Todo o a priori histórico de uma ciência dos seres vivos acha-se assim abalado e renovado. 

Considerada na sua profundidade arqueológica e não ao nível mais aparente das descobertas, das discussões, teorias, ou das opções filosóficas, a obra de Cuvier tende de longe para o que viria a ser o futuro da biologia. 

Freqüentemente, opõem-se 

  • as intuições “transformistas” de Lamarck, que parecem “prefigurar” o que será o evolucionismo, 
  • e o velho fixismo, todo impregnado de preconceitos tradicionais e de postulados teológicos, no qual se obstinava Cuvier. 

E por todo um jogo de amálgamas, de metáforas, de analogias mal controladas, desenha-se o perfil de um pensamento “reacionário” que se empenha apaixonadamente na imobilidade das coisas para garantir a ordem precária dos homens; 

tal seria a filosofia de Cuvier, homem de todos os poderes; 

de outro lado, 

descreve-se o destino difícil de um pensamento progressista, que crê na força do movimento, na incessante novidade, na vivacidade das adaptações: 

Lamarck, o revolucionário, estaria aí. 

Fornece-se assim, sob o pretexto de fazer história das idéias num sentido rigorosamente histórico, um belo exemplo de ingenuidade. 

Pois, na historicidade do saber, o que conta não são as opiniões, nem as semelhanças que, através das idades, se podem estabelecer entre elas (há, com efeito, uma “semelhança” entre Lamarck e um certo evolucionismo, assim como entre este e as idéias de Diderot, de Robinet ou de Benoit de Maillet); 

o que é importante, o que permite articular em si mesma a história do pensamento, são suas condições internas de possibilidade. 

Ora, basta tentar sua análise para logo se perceber que Lamarck só pensava as transformações das espécies a partir da continuidade ontológica que era a da história natural dos clássicos. Ele supunha uma gradação progressiva, um aperfeiçoamento ininterrupto, uma grande superfície dos seres que podiam formar-se uns a partir dos outros. O que torna possível o pensamento de Lamarck não é a apreensão longínqua de um evolucionismo por vir, é a continuidade dos seres, tal como a descobriam e a supunham os “métodos” naturais. 

Lamarck é contemporâneo de A.-L. de Jussieu. Não de Cuvier. 

Este introduziu na escala clássica dos seres uma descontinuidade radical; e, por isso mesmo, fez surgir noções como 

  • as de incompatibilidade biológica, de relações com os elementos exteriores, de condições de existência; 
  • fez surgir também uma certa força que deve manter a vida e uma certa ameaça que a pune com a morte; 

aí se acham reunidas várias das condições que tornam possível alguma coisa como o pensamento da evolução. 

A descontinuidade das formas vivas permitiu conceber um grande fluxo temporal, que não autorizava, apesar das analogias de superfície, a continuidade das estruturas e dos caracteres. 

Pôde-se substituir 

  • a história natural 
  • por “história” da natureza, 

graças ao descontínuo espacial, 

graças à ruptura do quadro, 

graças ao fracionamento dessa superfície onde todos os seres naturais vinham, em ordem, achar seu lugar. 

Certamente, o espaço clássico, como se viu, não excluía a possibilidade de um devir, mas esse devir nada mais fazia que assegurar um percurso sobre o tablado discretamente prévio das variações possíveis. 

A ruptura desse espaço permitiu descobrir uma historicidade própria à vida: aquela de sua manutenção em suas condições de existência. 

O “fixismo” de Cuvier, como análise de tal manutenção, foi a maneira inicial de refletir essa historicidade no momento em que ela aflorava, pela primeira vez, no saber ocidental. 

A historicidade, pois, introduziu-se agora na natureza – ou, antes, no ser vivo; mas ela aí é bem mais do que uma forma provável de sucessão; constitui como que um modo de ser fundamental. 

Sem dúvida, na época de Cuvier não existe ainda história do ser vivo, como a que descreverá o evolucionismo; mas o ser vivo é pensado, logo de início, com as condições que lhe permitem ter uma história. 

É do mesmo modo que as riquezas receberam, na época de Ricardo, um estatuto de historicidade que ele tampouco formulara ainda como história econômica. 

A estabilidade próxima dos rendimentos industriais, da população e da renda tal como a previra Ricardo, a fixidez das espécies afirmada por Cuvier podem passar, após um exame superficial, por uma recusa da história; 

de fato, Ricardo e Cuvier só recusavam as modalidades da sucessão cronológica tais como foram pensadas no século XVIII; eles desfaziam a dependência do tempo em relação à ordem hierárquica ou classificatória das representações. 

Em contrapartida, essa imobilidade atual ou futura que descreviam ou anunciavam, só podiam concebê-Ia a partir da possibilidade de uma história; e esta lhes era dada 

  • quer pelas condições de existência do ser vivo, 
  • quer pelas condições de produção do valor. 

Paradoxalmente, o pessimismo de Ricardo, o fixismo de Cuvier só aparecem sobre um fundo histórico: 

  • eles definem a estabilidade dos seres que, doravante, têm direito, ao nível de sua modalidade profunda, a ter uma história; 
  • a ideia clássica de que as riquezas podiam crescer segundo um progresso contínuo, ou de que as espécies pudessem com o tempo transformar-se umas nas outras, definia, ao contrário, a mobilidade de seres que, antes mesmo de toda história, já obedeciam a um sistema de variáveis de identidades ou de equivalências. 

Foi necessária a suspensão e como que a colocação entre parênteses daquela história, para que os seres da natureza e os produtos do trabalho recebessem uma historicidade que permitisse ao pensamento moderno apreendê-los e desenvolver, em seguida, a ciência discursiva de sua sucessão. 

Para o pensamento do século XVIII, as sequências cronológicas não passam de uma propriedade e de uma manifestação mais ou menos confusa da ordem dos seres; 

a partir do século XIX, elas exprimem, de um modo mais ou menos direto e até na sua interrupção, o modo de ser profundamente histórico das coisas e dos homens. 

Em todo o caso, essa constituição de uma historicidade viva teve, para o pensamento europeu, vastas consequências. Tão vastas, sem dúvida, quanto aquelas acarretadas pela formação de uma historicidade econômica. 

Ao nível superficial dos grandes valores imaginários, a vida, doravante votada à história, se delineia sob a forma da animalidade. A besta, cuja grande ameaça ou estranheza radical tinham ficado suspensas e como que desarmadas no final da Idade Média ou pelo menos ao cabo do Renascimento, encontra, no século XIX, novos poderes fantásticos. 

Nesse ínterim, a natureza clássica privilegiara os valores vegetais – a planta trazendo sobre seu brasão visível a marca sem reticências de cada ordem eventual; com todas as suas figuras desdobradas, do caule à semente, da raiz ao fruto, o vegetal formava, para um pensamento em quadro, um puro objeto transparente aos segredos generosamente restituídos. 

A partir do momento em que caracteres e estruturas se escalonam em profundidade na direção da vida – esse ponto de fuga soberano, indefinidamente distante mas constituinte – é o animal então que se torna figura privilegiada, com seus arcabouços ocultos, seus órgãos encobertos, tantas funções invisíveis e essa força longínqua, no fundo de tudo, que o mantém em vida. 

Se o ser vivo é uma classe de seres, a erva, melhor que tudo, enuncia sua límpida essência; 

mas se o ser vivo é manifestação da vida, o animal deixa melhor perceber o que é o seu enigma. 

Mais que a imagem calma dos caracteres, ele mostra a passagem incessante do inorgânico ao orgânico, pela respiração ou pela nutrição, e a transformação inversa, sob o efeito da morte, das grandes arquiteturas funcionais em poeira sem vida: 

“As substâncias mortas são conduzidas para os corpos vivos”, dizia Cuvier, “para aí terem um lugar e aí exercerem uma ação, determinados pela natureza das combinações em que ingressaram, e para daí escaparem um dia, a fim de entrarem novamente sob as leis da natureza morta”(29). 

A planta reinava nos confins do movimento e da imobilidade, do sensível e do insensível; já o animal mantém-se nos confins da vida e da morte. Esta o assedia de todos os lados; bem mais, ameaça-o também do interior, pois somente o organismo pode morrer, e é do fundo de sua vida que a morte sobrevém aos seres vivos. 

Daí, sem dúvida, os valores ambíguos assumidos, por volta do fim do século XVIII, pela animalidade: 

  • a besta aparece como portadora dessa morte, à qual, ao mesmo tempo, está sujeita; 
  • há nela uma devoração perpétua da vida por ela mesma. Ela só pertence à natureza quando encerra em si um núcleo de contranatureza. 

Transferindo sua mais secreta essência do vegetal ao animal, a vida abandona o espaço da ordem e volta a ser selvagem. Revela-se mortífera nesse mesmo movimento que a vota à morte. Mata porque vive. A natureza já não sabe ser boa. 

Que a vida não possa mais ser separada do assassínio, a natureza do mal, nem os desejos da contranatureza, Sade o anunciava ao século XVIII, cuja linguagem ele esgotava, bem como à idade moderna, que por longo tempo quis condená-lo ao mutismo. Que se desculpe a insolência (para com quem?): Les 120 journées são o reverso aveludado, maravilhoso, das Leçons d’anatomie comparée. Em todo. o caso, no calendário de nossa arqueologia, tem a mesma idade. 

Mas esse estatuto imaginário da animalidade, totalmente carregada de poderes inquietantes e noturnos, remete de maneira mais profunda às funções múltiplas e simultâneas da vida no pensamento do século XIX. 

Pela primeira vez talvez na cultura ocidental, a vida escapa às leis gerais do ser, tal como ele se dá e se analisa na representação. 

Do outro lado de todas as coisas que estão aquém mesmo daquelas que podem ser, suportando-as para fazê-Ias aparecer, e destruindo-as incessantemente pela violência da morte, a vida se torna uma força fundamental e que se opõe ao ser como o movimento à imobilidade, o tempo ao espaço, o querer secreto à manifestação visível. 

A vida é a raiz de toda existência, e o nãovivo, a natureza inerte, nada mais são que a vida decaída; o ser puro e simples é o não-ser da vida. 

Pois esta, e é por isso que ela tem um valor radical no pensamento do século XIX, é ao mesmo tempo núcleo do ser e do não-ser: só há ser porque há vida e, nesse movimento fundamental que os vota à morte, os seres dispersos e estáveis por instantes formam-se, detêm-se, imobilizam-na – e, num sentido, a matam -.:., mas são por sua vez destruídos por essa força inesgotável. 

A experiência da vida apresenta-se, pois, como a lei mais geral dos seres, o aclaramento dessa força primitiva a partir da qual eles são; ela funciona como uma ontologia selvagem que buscasse dizer o ser e o não-ser indissociáveis de todos os seres. 

Mas essa ontologia desvela menos o que funda os seres do que o que os leva, por um instante, a uma forma precária e secretamente já os mina por dentro, para os destruir. 

Em relação à vida, 

  • os seres não passam de figuras transitórias 
  • e o ser que eles mantêm, durante o episódio de sua existência, 
  • nada mais é que sua presunção, sua vontade de subsistir. 

De sorte que, para o conhecimento, o ser das coisas é ilusão, véu que se deve rasgar, para se reencontrar a violência muda e invisível que os devora na noite. A ontologia do aniquilamento dos seres vale, portanto, como crítica do conhecimento; 

  • mas trata-se menos de fundar o fenômeno, de dizer ao mesmo tempo seu limite e sua lei, de reportá-lo à finitude que o torna possível, 
  • do que de dissipá-lo e destruí-lo como a própria vida destrói os seres: pois todo o seu ser é só aparência. 

Vê-se constituir-se assim um pensamento que se opõe, quase em cada um de seus termos, ao que estava ligado à formação de uma historicidade econômica. 

Vimos como esta última se apoiava sobre uma tríplice teoria 

  • das necessidades irredutíveis, 
  • da objetividade do trabalho 
  • e do fim da história. 

Aqui vemos, ao contrário, desenvolver-se 

  • um pensamento em que a individualidade, com suas formas, seus limites e suas necessidades, não passa de um momento precário, votado à destruição, formando, em tudo e por tudo, um simples obstáculo que, na via desse aniquilamento, tem de ser afastado; 
  • um pensamento em que a objetividade das coisas não passa de aparência, quimera da percepção, ilusão que é preciso dissipar e restituir à pura vontade sem fenômeno que as fez nascer e as suportou por um instante; 
  • um pensamento, enfim, para o qual o recomeço da vida, suas retomadas incessantes, sua obstinação, excluem que se lhe estabeleça um limite no curso do tempo, tanto mais que o próprio tempo, com suas divisões cronológicas e seu calendário quase espacial, não é, sem dúvida, mais que uma ilusão do conhecimento. 

Lá onde um pensamento prevê o fim da história, o outro anuncia o infinito da vida; 

onde um reconhece a produção real das coisas pelo trabalho, o outro dissipa as quimeras da consciência; 

onde um afirma com os limites do indivíduo as exigências de sua vida, o outro os apaga no murmúrio da morte. 

Será essa oposição o sinal de que, a partir do século XIX, o campo do saber não pode mais dar lugar a uma reflexão homogênea e uniforme em todos os seus pontos? 

Será preciso admitir que, doravante, cada forma de positividade tem a “filosofia” que lhe convém: 

  • a economia, a de um trabalho marcado pelo signo da necessidade, mas destinado finalmente à grande recompensa do tempo; 
  • a biologia, a de uma vida marcada por essa continuidade que só forma os seres para os desfazer, achando-se com isso liberada de todos os limites da História? 

E as ciências da linguagem, uma filosofia das culturas, de sua relatividade e de seu poder singular de manifestação?

 
Notifications
Clear all

Projeto Formulador Fórum

Categoria Principal
Posts
Tópicos

Fórum Principal

This is a simple parent forum
2
1
Compartilhar:

espaço para discussão de conceitos

icone-MFoucault-01
Michel Foucault 1926-1984

A percepção da contaminação do pensamento com o qual pensamos, pela impossibilidade de fundar as sínteses na representação

“Eis que nos adiantamos bem para além
do acontecimento histórico que se impunha situar
– bem para além das margens cronológicas
dessa ruptura que divide, em sua profundidade,
a epistémê do mundo ocidental
e isola para nós o começo
de certa maneira moderna de conhecer as empiricidades.

É que o pensamento que nos é contemporâneo
e com o qual, queiramos ou não, pensamos,
se acha ainda muito dominado
pela impossibilidade,
trazida à luz por volta do fim do século XVIII,
de fundar as sínteses no espaço da representação
e pela obrigação
correlativa, simultânea,

mas logo dividida contra si mesma,
de abrir o campo transcendental da subjetividade
e de constituir inversamente,
para além do objeto,
esses “quase-transcendentais” que são para nós
a Vida, o Trabalho, a Linguagem.”

A nova forma de reflexão se instaura no pensamento em nossa cultura, o motor constituinte “dessa maneira moderna de conhecer empiricidades”

“Instaura-se um tipo de reflexão
bastante afastado do cartesianismo
e da análise kantiana,
em que está em questão,
pela primeira vez,
o ser do homem,
nessa dimensão segundo a qual
o pensamento
se dirige ao impensado
e com ele se articula.”

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Cap. VIII – Trabalho, Vida e Linguagem;
tópico I. As novas empiricidades

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Cap. IX – O homem e seus duplos ;
tópico V – O “cogito” e o impensado.

  • a impossibilidade de fundar as sínteses [da empiricidade objeto da operação] no espaço da representação leva o pensamento para a epistemé clássica.
  • essa impossibilidade de fundar as sínteses implica na seleção da visão de ‘operações’ e análise de valor no exato ponto de cruzamento entre o dado e o recebido, e para a primeira possibilidade de análise de valor. 
  • a possibilidade de fundar as sínteses [da empiricidade objeto da operação] no espaço da representação leva o pensamento para a epistemé moderna.
  • essa possibilidade de fundar as sínteses no espaço da representação implica em uma visão de ‘operações’ e análise de valor antes do ponto de cruzamento acima, o que leva o modelo para a segunda possibilidade de análise de valor.
  • essa forma de reflexão que se instaura no pensamento em nossa cultura exige duas coisas: 
    • o ‘ser do homem’;
    • o impensado e sua contrapartida no espaço da representação

a percepção  dessa contaminação, dominação mesmo,
do pensamento com o qual ‘queiramos ou não‘ pensamos,
– hoje em dia, e aqui e agora –
por configurações de pensamento
com a possibilidade, e também
com impossibilidade
de fundar as sínteses – da empiricidade objeto – 
no espaço da representação
muda completamente os domínios e os lugares onde ocorrem as operações,
 as paletas de ideias ou elementos de imagem, assim como as estruturas e os relacionamentos entre eles.

A primeira pedra de tropeço
no caminho de Michel Foucault
comparações feitas por Foucault de diferentes configurações de pensamento
Uma operação, de pensamento, de produção, etc. com a paleta de ideias e a estrutura do pensamento moderno, de depois da descontinuidade epistemológica ocorrida no período 1775-1825, segundo Michel Foucault

Há diferentes modelos
que formulamos para 
visões de ocorrências 
no espaço-tempo x, y, z e t.

Ao suspeitar
da contaminação do pensamento
– do nosso, daquele com o qual queiramos ou não pensamos –
por essa impossibilidade de fundar as sínteses no espaço da representação, ele manifesta sua percepção de que de fato isso acontece em volta de nós e conosco.

Esses modelos,
diferentes em seus fundamentos,
são usados juntos
e/ou simultaneamente
no mesmo domínio e ambiente 
em um pensamento
contaminado
por duas epistemologias,
ou por duas maneiras
de conhecer
aquilo que dizemos
que conhecemos.

Existem modelos,
todos em uso atualmente,
que podem ser agrupados
em duas famílias:

  • aqueles com a possibilidade
  • e aqueles com a impossibilidade 

 de fundar as sínteses
 – da empiricidade objeto da operação-
no espaço da representação.

Essa a distinção entre modelos
  com e modelos sem essa possibilidade
de fundar as sínteses
[da empiricidade objeto da operação]
no espaço da representação,
que Michel Foucault faz sugere que analisemos os modelos de operações e de organizações existentes, isto é, nos modelos que usamos hoje, em busca de características de características, ou características de segunda ordem, pelas quais podem ser associados com o pensamento antes, depois da descontinuidade epistemológica de 1775-1825, oferecendo os necessários elementos para identificação.

A figura na coluna do meio acima mostra a configuração do pensamento (o clássico,  de antes de 1775), com a impossibilidade de fundar as sínteses (da(s) empiricidade(s) objeto da operação) no espaço da representação.

Clicando nessa figura, a animação mostrará as alterações em toda a configuração do pensamento, para levantar essa impossibilidade.

A alteração se passa no lado direito da figura. 

A primeira coisa que muda é o tipo de reflexão que se instaura. 

Como decorrência, muda toda a paleta de ideias, ou elementos de imagem; 

Muda ainda o perfil do pensamento em cada configuração: 

  • o referencial
      • a ordem pela ordem
      • dá lugar à utopia do não articulado;
  • os princípios organizadores
      • que eram Caráter e Similitude
      • passam a ser Analogia e Sucessão;
  • e os métodos,
      • que eram identidade e semelhança
      • passam a ser Análise e Síntese.

Lista de posts

IV. Bopp

Capítulo VIII – Trabalho, vida e linguagem; tópico IV – Bopp Franz Bopp, 1791-1867 Franz Bopp (Mogúncia, 1791 — Berlim, 1867) foi um linguista alemão e professor de filologia e sânscrito na Universidade de Berlim. Foi um dos

Leia mais »

V. A linguagem tornada objeto

Capítulo VIII – Trabalho, vida e linguagem; tópico V – A linguagem tornada objeto Pode-se observar que os quatro segmentos teóricos que acabam de ser

Leia mais »

III. Cuvier

Capítulo VIII – Trabalho, vida e linguagem; tópico III – Cuvier Georges Cuvier, 1769-1832 Georges Cuvier foi um naturalista e zoologista francês da primeira metade

Leia mais »

dez (10) pontos para contextualização entre Prefácio e texto do livro
'As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas'

1. A Forma de Reflexão que se instaura em nossa cultura
2. Proposição: o bloco padrão genérico e fundamental
para construção de representações
3. Princípios organizadores do pensamento de depois da descontinuidade epistemológica de 1775-1825
4. O Conceito de verbo no pensamento clássico,
o de antes da descontinuidade epistemológica de 1775-1825
5. O conceito de verbo no pensamento moderno, o de depois da descontinuidade epistemológica de 1775-1825
6. As duas sintaxes mencionadas por Foucault no Prefácio
6.1 A sintaxe que autoriza a construção das frases
6.2 A sintaxe que autoriza manter juntas
as palavras e as coisas
7. O princípio monolítico de trabalho de Adam Smith,
de 1776
8. O princípio dual de trabalho de David Ricardo,
de 1817
8.1 A importância de David Ricardo,

Nosso roteiro (Michel Foucault) e nossa inspiração (Humberto Maturana)

Influências e inspirações

1 a influência de Vilém Flusser no livro ‘Filosofia da caixa preta’: 

uso das funções reversíveis Imaginação e Conceituação para navegar, ida e volta, entre 

textos ↔ imagens ↔ e ocorrências espacio-temporais; 

e ainda, não menos importante

    • as imagens tradicionais, as imagens técnicas, as classes de abstrações que usamos cotidianamente;
Vilém-Flusser-Portrait-008
Vilém Flusser
1920-1991

2 as sugestões de Humberto Maturana nos livros: Cognição, Ciência e Vida cotidiana; Emoções e Linguagem na Educação e na Política; ‘De máquinas e de seres vivos’:

objeções e propostas de mudança feitas por Maturana ao fazer dos pesquisadores em IA do MIT do final dos anos ’50, aceitação de algumas das críticas feitas, e aparentemente, uma alteração de rota;

Humberto Maturana
1928-

3 a influência especialmente muito forte de Michel Foucault no livro ‘As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas’:

a descoberta de duas pedras de tropeço durante seu trabalho nesse livro, a saber:

    • uma impossibilidade (ainda em nossos dias) de fundar as sínteses no espaço da representação, presente no nosso pensamento cotidiano;
    • e uma obrigação de abrir o campo transcendental da subjetividade constituindo, para além do objeto, os quase-transcendentais Vida(Biologia), Trabalho(Economia) e Linguagem(Filologia).
Michel Foucault
1926-1984

 

A Figura 2 original de Maturana

Figura 2 - Diagrama ontológico; Reflexões epistemológicas, do livro Cognição, Ciência e Vida cotidiana;
pi Figura 2 - O explicar e a experiência; Linguagem, Emoções e Ética nos Afazeres Politicos,
do livro Emoções e Linguagem na Educação e na Política

Esquadrinhamento da Figura 2 de Maturana para ajustes

A Figura 2 - Diagrama ontológico ou O explicar e a experiência, de Maturana 
esquadrinhamento da figura com comentários e propostas de alterações
usando o pensamento de Michel Foucault

 

O circuito ida e volta possibilitado por funções
Imaginação e Conceituação reversíveis

classes de abstrações:
Graus da abstração;
Dimensões próprias a cada caso

Roteiro e inspiração

 

  • Estar na linguagem segundo Humberto Maturana

    Estar na linguagem é uma coordenação de coordenações consensuais de ações

  • Pedra fundamental do pensamento de Maturana no início do seu trabalho

    A pedra fundamental do pensamento de Humberto Maturana

HM foto 1

Humberto Maturana Romesin
1928 –

  • Um salto para fora do cartesianismo

    Salto para fora do cartesianismo: Vilém Flusser em Pensamento e Reflexão

  • As imagens tradicionais

  • As imagens técnicas, as construídas por aparelhos

    Imagem técnica – aquele tipo de imagem produzida por um aparelho.

vilem

Vilém Flusser
1920-1991

Fale conosco

O sistema SIPOC/FEPSC

O ontologia do sistema SIPOC/FEPSC

- História, modo de ser fundamental das empiricidades,
. o Circuito das trocas e o Lugar de nascimento do que é empírico
. Pensamento conservador e pensamento progressista

Posição relativa do par sujeito-objeto e o modelo de operações

Aquém 

história como sucessão de fatos
tais como se sucederam

História como sucessão de fatos tais como se sucederam

Diante e Além

história como alterações no ‘modo de ser fundamental’ das empiricidades

História como mudança no 'modo de ser fundamental'

Duas possibilidades de leitura de operações;
duas origens de valor (interna e externa na linguagem) para representações

Duas visões, duas leituras do fenômeno 'operações':
sob o pensamento clássico, o de antes de 1775; (seta amarela)
sob o pensamento moderno, o de depois de 1825 (seta vermelha)
com duas amplitudes - duas abrangências muito diferentes

Ciência e Tecnologia dependem da Filosofia e são funções das ferramentas de pensamento de que dispõe a configuração do pensamento utilizada em sua geração.

Os três movimentos do pensamento segundo Vilém Flusser

Usando o pensamento de Vilém Flusser:

  • Pensamento é um transformador do duvidoso em língua;
  • Filosofia, ou Reflexão, é texto produzido pelo pensamento ao voltar-se contra si mesmo para corrigir-se e renovar-se.
  • ciência, como o resultado de um movimento do pensamento em direção ao mundo, para compreendê-lo, é texto filosófico aplicado. 
  • e tecnologia, como resultado de um movimento do pensamento em direção ao mundo para modificá-lo, é texto científico aplicado; 

Descontinuidades epistemológicas refletem conquistas humanas no pensamento e são aprimoramentos na maneira que usamos para conhecer.  Há portanto uma relação entre, de um lado, o modo como colocamos em marcha nosso desejo de transformar o duvidoso em língua a cada nível, e de outro lado, a filosofia que temos, e a Ciência que temos, ou a tecnologia de que dispomos. Filosofia, Ciência e Tecnologia são funções do como como vemos o mundo e as coisas.

Michel Foucault (*) descreve uma descontinuidade epistemológica (uma alteração no modo como nos voltamos para o mundo para conhecer o que dizemos que conhecemos), e aponta com toda clareza diferentes jogos de ferramentas de pensamento ou estruturas conceituais, características de uma e de outra dessas epistemologias, de um e de outro lado desse evento. E aponta um período em nossa cultura ocidental, em que o pensamento esteve dominado por uma característica do período anterior.

A solução de questões trazidas à luz por essa nova maneira de conhecer (a nova epistemologia) não poderão ser resolvidas se correspondentes ciência e tecnologia não forem desenvolvidas também.

Pensamento conservador e progressista

Acompanhando o trabalho arqueológico de Michel Foucault em direção a essa classe especial de saberes, a esse conjunto de discursos chamado de ciências humanas, vê-se que em certo período consolidou-se um tipo de pensamento em cuja configuração a etapa de construção de novas representações foi incorporada. Antes disso, essa etapa de construção da representação nova ficava fora do escopo do pensamento, e depois disso essa etapa permaneceu definitivamente incorporada.

Para a configuração de pensamento que deixa fora do seu escopo a etapa de construção de novas representações a alternativa é conviver com tudo o que existe desde sempre e para sempre, tomando as coisas como pré-existentes e pertencentes ao Universo. Esse modo de pensar tem características de conservadorismo, enquanto aquela outra configuração do pensamento que inclui em seu escopo a geração de novas representações, as características de progressismo.

Neste trabalho algumas – bastantes – características de uma e de outra dessas duas características de configurações do pensamento foram apresentadas o que de certa forma pode ser usado para qualificar com algo mais do que a qualidade ‘conservador’ um pensamento de direita; e com a qualidade ‘progressista’ um pensamento de esquerda, delineando com mais precisão uma e outra dessas configurações.

(*) As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VIII- Trabalho, Vida e Linguagem; tópico I. As novas empiricidades

Panorama visto desde meu posto de observação

É real hoje, aqui, agora, e entre nós, a percepção – feita por Foucault – do domínio/contaminação do pensamento – ‘com o qual queiramos ou não pensamos‘ – pela impossibilidade de fundar as sínteses (do pensamento sobre a empiricidade objeto da operação) no espaço da representação(*).

Esse tipo de pensamento dominante, aquele com a impossibilidade de fundar as sínteses, é ao mesmo tempo o tipo de pensamento que não inclui a operação de construção de novas representações. E a estrutura das operações sem essa etapa reforça essa impossibilidade. Nesse contexto modelos com e modelos sem essa impossibilidade são tratados como se variações sobre o mesmo tema fossem, e não produções do pensamento completamente diferentes.

Estamos projetando e usando hoje, modelos para operações e organizações, de produção e outras, com o pensamento de exatos dois séculos atrás.

Para que isso possa ser percebido pelo projetista de modelos em diversas áreas é necessário o rompimento das condições em que se dá essa contaminação e esse domínio de uma das configurações de pensamento sobre a outra, obliterando justamente aquela que corresponde a uma conquista humana no pensamento. Para que isso aconteça é necessário que seja atendido um requisito: a construção de um critério para identificação e comparação de modelos, e sua aplicação no caso presente.

Daqui de onde vejo as coisas, é unânime a visão das coisas em termos de processo. Ninguém fala de nada além de processos: mapeia-se processos, otimiza-se processos, etc. etc. o que quer que seja, mas sempre processos. Sem que nos demos conta de como sejam as diferentes estruturas das operações em que tais ‘processos’ ocupam posição operacional. 

Michel Foucault pode fornecer os elementos necessários para a construção desse critério. Nossa intenção aqui é destacar em Foucault o que pode ser usado para o estabelecimento de uma relação pensamento – e sua aplicação na modelagem de operações em organizações. 

(*) As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VIII- Trabalho, Vida e Linguagem; tópico I. As novas empiricidades

Cronologia do evento fundador da nossa modernidade no pensamento;
linha de tempo com os períodos de contaminação do pensamento
por configurações diferentes.

uma cronologia da descontinuidade epistemológica de 1775-1825
o evento fundador da nossa modernidade no pensamento
Linha de tempo das conquistas humanas no pensamento e respectiva utilização prática

Acoplamentos estruturais do sistema descrito no LD - o Explicar com Reformular: os internos e aqueles com o ambiente externo

Diante e para Além do objeto

Acoplamento estrutural interno:
condições de possibilidade
Acoplamento estrutural interno:
pontos de acoplamento
Acoplamento estrutural externo:
parcial quando há diferenças nas estruturas
  • os domínios do Operar – retângulo vermelho; e do Suporte ao operar – domínio amarelo, que compõem o ‘Lugar de nascimento do que é empírico’ parte do ‘Explicar com ‘Reformular’ a empiricidade objeto, durante o caminho da Construção da representação, são exemplo do primeiro acoplamento interno. Acoplamento semelhante ocorre durante o caminho do Instanciamento da representação.(*)

     

  • há ainda acoplamentos externos ‘por cima’, lateralmente, e por baixo da estrutura no LD da figura nos dois caminhos o da Construção e o do Instanciamento. O acoplamento externo ‘por cima’ depende da estrutura com a qual se dará acopamento, e pode ser parcial.

Playground para projetistas de modelos: uma coleção de modelos de diversos tipos, para aplicação dos conceitos apresentados

Uma coleção com mais de duas dúzias de modelos, (*) para descobrir com que tipo de pensamento foram feitos:

  • se COM a possibilidade de fundar as sínteses do pensamento no espaço da representação; ou
  • ou se SEM a possibilidade de fundar as sínteses do pensamento no espaço da representação

(*) Proposta de metodologia para o planejamento e implantação de manufatura integrada por computador
de Bremer, C. F. USP SC fev 1995; entre outras fontes

Estruturas dos modelos, resultantes da utilização do referencial,dos princípios organizadores e dos métodos usados pelo pensamento, por segmento de modelos 

Aquém do objeto

Modelo de operações de Buffa e modelo de uma organização adaptado de Mauro Zilbovicius

Diante do objeto

Modelo de operações do Kanban e modelo de organização da Reengenharia

Além do objeto

Modelo de uma ciência humana Análise da produção como exemplo de qualquer outro modelo de ciência humana
Estrutura matricial – Quadro de categorias clássico. Utilização de várias ordens ligeiramente diferentes em um mesmo modelo de operações.
Estrutura hierárquica característica do objeto análogo composto substitutivo ao vislumbrado. Utilização de uma única ordem ao longo do modelo.
Mesmas características dos modelos para o segmento Diante do objeto, mas aqui, com um modelo constituinte combinação dos três pares constituintes das ciências da Vida, do Trabalho e da Linguagem.

O modelo 5W2H, de um lado, e de outro, o modelo de operações do Kanban
e o modelo proposto no LD da Figura 2: usos diferentes para as mesmas ideias
ou elementos de imagem envolvidos na formulação da proposição

Aquém do objeto

Diante e Além do objeto

Modelo Provision Workbench, da Proforma
Modelo de operações de produção do Kanban
Modelo proposto para 'uma certa maneira de conhecer empiricidades'

O exame dessas três figuras mostra que ideias, elementos de imagem, homônimos, podem ser usados de modo diferente em modelos feitos sob estruturas conceituais diferentes.

No modelo 5W e 2H no lado esquerdo acima, o destaque dado pelo losango em vermelho é nosso. Não estava na figura original. A figura é organizada por um sistema de categorias composto pelas 7 perguntas 5W2H. 

O modelo da produção do Kanban é sim-discriminativo com relação ao elemento componente do objeto da operação de produção, e é formulado como uma proposição instanciativa de um objeto previamente projetado, e portanto cuja representação foi anteriormente construída

O modelo de operações de construção de representação para empiricidade objeto (LD da figura) é feito calcado no Princípio Dual de Trabalho de David Ricardo; está evidenciada a formulação no formato de uma proposição. A origem de valor adotada está nas designações primitivas ( conjunto de operações de busca por origem, condições de possibilidade e de generalidade dentro de limites) e da linguagem de uso (o Repositório)

O pensamento de outros grandes pensadores:
John Dewey e seus dois modos de ver o mundo;
Ilya Prigogine e o conceito de caos para a ciência moderna

Diante do objeto

Ver [homem e experiência] e [natureza] vistos juntos
Os conceitos de caos, na ciência moderna;
e de Arte como a formulação com leis e eventos

As duas animações acima – a nosso ver – apenas mostram que tanto John Dewey na sua visão [homem] [experiência] e [natureza] juntos; quanto Ilya Prigogine  na sua visão do que seja caos na ciência moderna, estão pensando com uma configuração de pensamento COM a possibilidade de fundar as sínteses no espaço da representação, o que não era comum para a ciência clássica, toda reversível.

Sistema Formulador

Aquém do objeto

Modelo relacional de dados do Microsoft Project 4.0

Diante do objeto

Módulo central do Sistema Formulador

O Sistema Formulador:

É um ante-projeto de um sistema para gestão de projetos com estrutura conceitual consistente com o pensamento moderno. 
O módulo principal do sistema é uma unidade lógica que relaciona entidades envolvidas na proposição enunciadora de operações, mantidas em banco de dados, e gera sistematicamente o modelo de operações. O Microsoft Project, então, importa o modelo gerado como se fosse próprio, e a gestão continua, agora com um modelo gramaticalmente correto e criteriosamente estruturado.

Este é um ante-projeto de um sistema de gestão COM a possibilidade de fundar as sínteses do pensamento no espaço da representação; esse sistema pode evoluir para um sistema visual de gestão e outros aplicativos.

Destaque para dois modelos existentes:
1) LE, o SIPOC (FEPSC) do SixSigma; 2) LD e o Visão da PHD, da PHD Brasil
e no centro, as diferenças entre eles

Aquém do objeto

O diagrama FEPSC (SIPOC) mostrando a estrutura

diferenças

Comparação

Diante do objeto

A Visão da PHD

Comparação do modelo SIPOC ou FEPSC – SixSigma(*) com o modelo Visão da PHD(**) do ponto de vista das estruturas respectivas.
A animação central mostra o que falta – estruturalmente – ao SixSigma para ter a estrutura do modelo da direita.

(*) Gestão integrada de processos e da tecnologia da informação; capítulo Identificação, análise e melhoria de processos críticos Figura 3.1 Representação da FEPSC, de Roberto Gilioli Rotondaro
Coordenadores: Fernando José Barbin Laurindo e Roberto Gilioli Rotondaro, Editora Atlas, jan/2006
(**) A Visão da PHD, da empresa PHD Brasil

O mapa de operações de produção do Kanban;
e o mapa da organização segundo a Reengenharia

Diante do objeto

Modelo de operações
do Kanban

Modelo de operações do Kanban

Mapa da organização
segundo a Reengenharia

Mapa da Reengenharia (modificado) e comentado

Temos à esquerda, o modelo do Kanban com a referência (*) abaixo. e á direita, a Figura 7.1 do livro Reengenharia, referência (**) abaixo. São organizados sobre a proposição, e pertencem à configuração do pensamento moderno.  Você pode certificar-se  da veracidade dessas duas afirmativas neste ponto (17).

(*) Artigo ‘A comparison of Kanban and MRP concepts for the control of Repetitive Manufacturing Systems’ de:
James W. Rice da Western Kentucky University e Takeo Yoshikawa da Yolohama National University
(**) Reengenharia – revolucionando a empresa: em função dos clientes, da concorrência e das grandes mudanças da gerência 
de Michael Hammer e James Champy

Exemplos de modelos existentes, e muito usados,
nas diferentes estruturas conceituais

Aquém do objeto

Diante do objeto

Modelos de: operação de produção; e organização típica
Modelos de: operação contábil/financeira e modelo de organização
Modelos de: operação de produção do Kanban; e modelo de organização da Reengenharia

Exemplos de modelos muito conhecidos para operações e para as organizações

  • operação: Operações de produção, de Elwood S. Buffa;
  • organização: adaptação de Organização típica.
  • operação: operação contábil financeira débito e crédito;
  • organização: Ativo, Passivo e Resultados.
  • operação: modelo do Kanban;
  • organização: mapa da reengenharia.

A proposição como o bloco construtivo padrão  (Lego)
fundamental para a construção de representações

Aquém do objeto

Proposição ausente
do sistema Input-Output

Diante do objeto

A proposição no caminho
da Construção da representação

Além do objeto

A proposição no caminho
do Instanciamento da Representação

‘A proposição é, para a linguagem,
o que a representação é para o pensamento:
sua forma ao mesmo tempo mais geral e mais elementar porquanto, desde que a decomponhamos, não encontraremos mais o discurso, mas seus elementos como tantos materiais dispersos.’(*)

“A língua é
a mais complexa,
a mais milagrosa,
a mais estranha,
a mais gigantesca e variada
invenção humana.” (**)

(*) As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo IV – Falar; tópico III. Teoria do verbo

 


(**) Frases de Millor Fernandes

Os dois conceitos para o que seja um verbo:
verbo Processo, e verbo Forma de produção

Aquém do objeto
verbo ‘Processo

Verbo tratado como Processo

Diante e Além do objeto
verbo ‘Forma de produção’

Verbo tratado como Forma de produção

“A única coisa que o verbo afirma
é a coexistência de duas representações; 
por exemplo
a do verde e da árvore,
a do homem e da existência ou da morte. 

É por isso que o tempo dos verbos
não indica aquele em que
as coisas aconteceram no absoluto, 
mas um sistema relativo  
de anterioridade
ou simultaneidade 
das coisas entre si.”
(*)

“O limiar da linguagem
está onde surge o verbo.
É preciso portanto 
tratar esse verbo como um ser misto, 
ao mesmo tempo palavra entre palavras,
preso às mesmas regras 
de regência
e de concordância;
e depois, em recuo em relação a elas todas, 
numa região que não é aquela do falado 
mas aquela donde se fala.
Ele está na orla do discurso, na juntura entre 
aquilo que é dito e aquilo que se diz; 
exatamente lá onde os signos 
estão em via de se tornar linguagem.
(*)

(*) As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo IV – Falar; tópico III. Teoria do verbo

Os dois conceitos para o que seja 'Classificar'

Aquém do objeto

Classificar como uma referência
do visível a si mesmo

Diante e Além do objeto

Classificar como uma referência
do visível ao invisível

Classificar é referir
o visível a si mesmo,
encarregando um dos elementos
de representar os outros.(*)

Classificar é referir
o visível ao invisível
– como a sua razão profunda –
e depois, alçar de novo dessa secreta arquitetura, em direção aos seus sinais manifestos, que são dados
à superfície dos corpos.
(*)


(*) As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
cap. VII – Os limites da representação;
tópico III. A organização dos seres; sub-item 3

Os dois princípios filosóficos para o que seja de trabalho

Aquém do objeto
Adam Smith, de 1776(*)

Princípio monolítico de trabalho
de Adam Smith, de 1776

Diante e Além do objeto
David Ricardo, de 1817(**)

Princípio dual de trabalho
de David Ricardo, de 1817


As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas; 
(*) Capítulo VII – Os limites da representação;
tópico II. A medida do trabalho;


As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
(**) Capítulo VIII- Trabalho, Vida e Linguagem;
tópico II. Ricardo

Elementos centrais em cada formulação por segmento do espectro

Aquém do objeto
PROCESSO

Diante do objeto
Forma de produção

Além do objeto
NEXO DA PRODUÇÃO

Processo: elemento central
no modelo de operação clássico
Forma de produção: elemento central
no modelo de operações moderno
Nexo da produção: resultante da visão
SSS da organização

Em um pensamento mágico sobre a produção – nos moldes ‘varinha mágica de condão’ –  é possível desejar algo e, sem mais qualquer providência, vê-lo surgir à nossa frente depois do Plin!!! 

Num ambiente de produção real, porém, nada é produzido sem um instrumento (laboratório piloto, fábrica) com o qual instanciar esse objeto na realidade. A estrutura SSS é isso: a modelagem das operações de produção do objeto desejado juntamente com as operações de produção do objeto – distinto deste – laboratório piloto, ou fábrica, subindo um nível estrutural e impondo como elemento central o Nexo da produção

(*) As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo IV – Falar; tópico II. Gramática geral
Capítulo VIII – Trabalho, Vida e Linguagem; I. As novas empiricidades

Espaços Gerais do Saber
em cada segmento do espectro

Aquém do objeto

Diante do objeto

Além do objeto

Espaço Geral do Saber Clássico
Espaço Geral do Saber no pensamento Moderno
Espaço interior do Triedro do Saber

As mudanças nas configurações do pensamento promoveram reposicionamentos das positividades umas em relação às outras, resultando em três espaços gerais do saber.(*)

(*) As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo III – Representar; tópico VI. Mathésis e Taxinomia;
Capítulo X – As ciências humanas; tópico I – O triedro dos saberes; 
de Michel Foucault

O tempo em cada uma das faixas do espectro;
e para as diferentes etapas das operações indicadas

Aquém
do objeto
qualquer operação

Diante 
do objeto
caminho da Construção 

Diante 
do objeto
caminho da Instanciamento

Tempo no LE, em qualquer operação no sistema Input-Output, sob o deus Chronos
Tempo LD, operação no caminho da Construção da representação,
sob o deus Kairós
Tempo LD, operação no caminho do Instanciamento da representação,
novamente sob o deus Chronos

Tempo, em cada um dos segmentos do espectro, muda:

  • aquém do objeto, na estrutura input-output sob o pensamento clássico, temos um tempo relativo, ou um tempo calendário, cujo deus é Chronos;
  • diante do objeto mas no caminho da Construção da representação, sob o pensamento filosófico moderno, temos um tempo absoluto, um tempo não-calendário, cujo deus é Kairós;
  • e ainda diante, e também além do objeto, tempos um tempo que volta a ser relativo, calendário, e a soberania volta a ser a de Chronos.

O espaço dado ao homem - 'naquilo que ele tem de empírico' -
na estrutura dos modelos

Aquém do objeto

Diante e Além do objeto

Sistema clássico de pensamento:
sem espaço em sua estrutura
para os dois papéis do homem.
Os dois papéis do homem
presentes e operativos na estrutura
d'essa maneira moderna de conhecer empiricidades'

Antes do fim do século XVIII,
o homem não existia. (…)
Sem dúvida,
as ciências naturais trataram do homem
como de uma espécie ou de um gênero.”

As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas;
Cap. IX – O homem e seus duplos; tópico II. O lugar do rei

‘Na medida, porém, em que as coisas giram sobre si mesmas, reclamando para seu devir não mais que o princípio de sua inteligibilidade e abandonando o espaço da representação, o homem, por seu turno, entra e pela primeira vez,
no campo do saber ocidental’ (*)

“O modo de ser do homem, tal como se constituiu no pensamento moderno, permite-lhe desempenhar dois papéis: está, ao mesmo tempo, 

  • no fundamento de todas as positividades,
  • presente, de uma forma
    que não se pode sequer dizer privilegiada,
    no elemento das coisas empíricas.” (**)

 (*) As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas; 
Prefácio

(**) As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;  
Capítulo X – As ciências humanas;
I. O triedro dos saberes

Desenvolvimento das operações
por segmento do espectro de modelos

Aquém do objeto

Diante do objeto

Além do objeto

  • no sistema Input-Output; usando uma ordem arbitrariamente escolhida;
  • e com propriedades não-originais e não-constitutivas das coisas, as chamadas ‘aparências’;
  • No sistema correspondente ao que Foucault chama de ‘essa maneira moderna de conhecer empiricidades’, que tem como elemento construtivo padrão fundamental a proposição, da qual herda as categorias de ideias ou elementos de imagem de primeiro nível;
  • e com propriedades sim-originais e sim-constitutivas daquilo que se constitui na existência em decorrência das operações.
  • No sistema formulado no campo das ciências humanas, com modelos constituintes compostos por uma combinação dos modelos constituintes das ciências que integram a região epistemológica fundamental, as ciências da Vida, do Trabalho e da Linguagem.
  • Nexo da operação.

Veja mais detalhes nas animações que podem ser encontradas nas páginas de detalhe deste tópico.

Funcionamento do pensamento
em cada um dos segmentos desse espectro

Antes do objeto

Diante do objeto

Além do objeto

Operação no sistema Input-Output
sobre representações pré-existentes
Operação de construção de representação não existente no repositório
Operação de instanciamento de representação pré-existente no repositório

Paletas com o conjunto completo de ideias ou elementos de imagem necessários para a formulação das respectivas imagens das ocorrências no espaço-tempo x, y, z e t ; incluindo relacionamentos entre esses elementos de imagem.(*)

(*) As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VIII – Trabalho, Vida e Linguagem;
tópico I. As novas empiricidades, de Michel Foucault

Estruturas de conceitos em cada ambiente de formulação identificado pela possibilidade ou pela impossibilidade de fundar as sínteses no espaço da representação

Posição em relação ao par sujeito-objeto

Estrutura conceitual
para o pensamento clássico
Estrutura conceitual
para o pensamento moderno

Referencial:

  • Ordem pela ordem;

Princípios organizadores: 

  • Caráter e similitude;

Métodos:

  • Identidade e semelhança

Referencial:

  • Utopia;

Princípios organizadores: 

  • Analogia e Sucessão;

Métodos:

  • Análise e Síntese

‘Assim, estes três pares,
função-norma,
conflito-regra,
significação-sistema,

cobrem, por completo,
o domínio inteiro
do conhecimento do homem.'(*)

São essas as ferramentas de que se arma o pensamento – em cada segmento do espectro de modelos, para produzir as imagens que servem de mapas, para orientação na construção das representações.

(*) As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo X – As ciências humanas; tópico III. Os três modelos

Imaginação e Conceituação - funções humanas reversíveis:
Imagens tradicionais e Técnicas

Imagens tradicionais

Imagens técnicas

Classes de abstrações

As imagens tradicionais
Imagens técnicas, as imagens produzidas por aparelhos (computadores)
Classes de abstrações
  • Imaginação e Conceituação, funções humanas reversíveis que todos temos para codificar e decodificar imagens tradicionais e textos;
    • idolatria é o uso continuado de imagens que, quando decodificadas, não mais nos levam à visão da ocorrência no espaço-tempo x, y, z e t, isto é, imagens que não mais nos servem de guias para o mundo, mas de biombos;
    • textolatria é o uso continuado de textos que, quando decodificados, não mais nos levam às imagens que fizemos para as ocorrências no espaço-tempo x, y, z e t
  • e as Imagens técnicas, especiais, aquelas imagens produzidas por aparelhos (computadores em destaque); as Imagens técnicas exigem, para seu entendimento, uma Conceituação especial.(*)

(*) Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia;
Capítulos I – A imagem; e II – A imagem técnica,
de Vilém Flusser 

Modelos constituintes de modelos
em cada uma das faixas desse espectro

Posição relativa modelo de operações - sujeito-objeto

Aquém

não há modelos constituintes nesse segmento do espectro, já que, pelos pressupostos adotados (Universo, realidade única) nada é constituído na existência em decorrência das operações feitas

Diante

modelo constituinte composto pelo par constituinte correspondente ao campo em que o modelo é formulado, tomados isoladamente em cada área: 

  • Vida (Biologia) –
    [função-norma]; 
  • Trabalho (Economia) –
    [conflito-regra]; 
  • Linguagem (Filologia)- [significação-sistema]

para Além

campo das Ciências Humanas com modelos constituintes formados por uma combinação dos três pares constituintes das ciências da Vida, do Trabalho e da Linguagem, tomados todos em conjunto em cada modelo, dada ênfase a uma das áreas das ciências da região epistemológica fundamental

(*) As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo X – As ciências humanas; tópico III. Os três modelos

 

O espectro de modelos, segundo essa possibilidade de sim-fundar, ou não-fundar, as sínteses no espaço da representação: Aquém, Diante e para Além do objeto - os segmentos do espectro de modelos de visões de ocorrências no espaço-tempo x, y, z e t

O modo como Foucault descreve o problema que encontrou em seu trabalho pode ser mapeado em um espectro de modelos agrupados segundo os dois fatores por ele percebidos:  fator 1, com duas regiões quanto à fundação das sínteses na representação e com três regiões quanto à posição relativa ao objeto e ao sujeito: 
Aquém, Diante e para Além do objeto. 

Fundação das sínteses no espaço da representação

Impossibilidade

Possibilidade

Aquém

do objeto
(e do sujeito)

Diante

do objeto
(e do sujeito)

para Além

do objeto
(e do sujeito)

Fator 1 – o domínio/contaminação do pensamento com o uso simultâneo de configurações de pensamento 

  • com a  impossibilidade 
  • e também com a possibilidade,

de fundar as sínteses da representação da empiricidade objeto, no espaço da representação’; com duas regiões em um espectro de modelos:

Fator 2 – dar conta da obrigação correlativa (…) de abrir o campo transcendental da subjetividade constituindo, para além do objeto, os “quase-transcendentais”

com as seguintes regiões no espectro de modelos:

 1. região do espectro: ‘Aquém do objeto’ (na impossibilidade);

 2. região do espectro: ‘Diante do objeto’ (na possibilidade)

    • da Vida, (Biologia) par constituinte função-norma
    • do Trabalho, (Economia) par conflito-regra
    • e da Linguagem. (Filologia) par significação-sistema

 3. região do espectro: ‘para Além do objeto’, (na possibilidade) e no campo das ciências humanas, no espaço interior do triedro dos saberes.

outra região no espectro de modelos, com modelo constituinte único composto dos três pares constituintes das três regiões epistemológicas fundamentais

- A pedra de tropeço no caminho de Michel Foucault e
- Os caminhos (e alterações de rota) de Maturana

Michel Foucault
1926-1984

“É que o pensamento que nos é contemporâneo e com o qual, queiramos ou não, pensamos, se acha ainda muito dominado 

  • pela impossibilidade, trazida à luz por volta do fim do século XVIII, de fundar as sínteses [da empiricidade objeto do pensamento] no espaço da representação;
  • e pela obrigação correlativa, simultânea, mas logo dividida contra si mesma,
    de abrir o 
    campo transcendental da subjetividade e de constituir inversamente, para além do objeto, esses “quase-transcendentais” que são para nós a Vida, o Trabalho, e a Linguagem.”  (*)
Humberto Maturana
1928-

“Substituir 

  • a noção de input-output 
  • pela de acoplamento estrutural 

foi um passo importante na boa direção por evitar a armadilha da linguagem clássica de fazer do organismo um sistema de processamento de informação.
(…) Contudo é uma formulação fraca por não propor uma alternativa construtiva e deixar a interação na bruma de uma simples perturbação. (…) Frequentemente se tem feito a crítica de que a autopoiese leva a uma posição solipsista. (**)

(*) As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas; capítulo VIII – Trabalho, Vida e Linguagem; tópico: I. As novas empiricidades
(**) De máquinas e de seres vivos: autopoiese – a organização do vivo; Prefácio à segunda edição; tópico Além da autopoiese; sub-tópico: Enacção e cognição, de Francisco José Garcia Varela

Rua Dona Inácia Uchôa, 365
04110-021 São Paulo SP
Fone: (11) 5573-2312
Cel: (11) 97512-6317
e-mail: srm@projeto-formulador.xyz

Rua Dona Inácia Uchôa, 365
04110-021 São Paulo SP
Fone: 11 5573-2312
Cel: 11 97512-6317

Fale conosco

Rua Dona Inácia Uchôa, 365
04110-021 São Paulo SP
Fone: (11) 5573-2312 Cel: (11) 97512-6317
e-mail: srm@projeto-formulador.xyz

Modelo descritivo da produção clássico

Paleta de ideias ou elementos de imagem
presentes na configuração de pensamento clássico

Paleta de ideias ou elementos de imagem presentes na
configuração de pensamento moderno caminho Construção