
O livro 'As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas', na visão de Michel Foucault
“Ora, esta investigação arqueológica mostrou duas grandes descontinuidades na epistémê da cultura ocidental:
- aquela que inaugura a idade clássica (por volta dos meados do século XVII)
- e aquela que, no início do século XIX, marca o limiar de nossa modernidade.
A ordem, sobre cujo fundamento pensamos, não tem o mesmo modo de ser
que a dos clássicos.
Por muito forte que seja a impressão que temos de um movimento quase ininterrupto da ratio européia desde o Renascimento até nossos dias,
- por mais que pensemos que a classificação de Lineu, mais ou menos adaptada, pode de modo geral continuar a ter uma espécie de validade,
- que a teoria do valor de Condillac se encontra em parte no marginalismo do século XIX,
- que Keynes realmente sentiu a afinidade de suas próprias análises com as de Cantillon,
- que o propósito da Gramática geral (tal como o encontramos nos autores de Port-Royal ou em Bauzée) não está tão afastado de nossa atual linguística
– toda esta quase-continuidade ao nível das idéias e dos temas não passa, certamente, de um efeito de superfície; no nível arqueológico, vê-se que o sistema das positividades mudou de maneira maciça na curva dos séculos XVIII e XIX.
Não que a razão tenha feito progressos;
- mas o modo de ser das coisas e da ordem que, distribuindo-as, oferece-as ao saber; é que foi profundamente alterado.
Se a história natural de Tournefort, de Lineu e de Buffon tem relação com alguma coisa que não ela mesma,
- não é com a biologia, a anatomia comparada de Cuvier ou o evolucionismo de Darwin,
- mas com a gramática geral de Bauzée, com a análise da moeda e da riqueza tal como a encontramos em Law, em Véron de Fortbonnais ou em Turgot.
Os conhecimentos chegam talvez a se engendrar; as ideias a se transformar e a agir umas sobre as outras (mas como? até o presente os historiadores não no-lo disseram);
- uma coisa, em todo o caso, é certa:
- a arqueologia,
- dirigindo-se ao espaço geral do sabe!;
- a suas configurações
- e ao modo de ser das coisas que aí aparecem,
- define sistemas de simultaneidade, assim como a série de mutações necessárias e suficientes para circunscrever o limiar de uma positividade nova.
- a arqueologia,
Assim, a análise pôde mostrar a coerência que existiu, durante toda a idade clássica, entre
- a teoria da representação e as
- da linguagem,
- das ordens naturais,
- da riqueza e do valor:
É esta configuração que, a partir do século XIX, muda inteiramente;
- a teoria da representação desaparece como fundamento geral de todas as ordens possíveis;
- a linguagem, por sua vez, como quadro espontâneo e quadriculado primeiro das coisas, como suplemento indispensável entre a representação e os seres, desvanece-se;
- uma historicidade profunda penetra no coração das coisas, isola-as e as define na sua coerência própria.
Impõe-lhes formas de ordem que são implicadas pela continuidade do tempo;
- a análise das trocas e da moeda cede lugar ao estudo da produção,
- a do organismo toma dianteira sobre a pesquisa dos caracteres taxinômicos;
- e, sobretudo, a linguagem perde seu lugar privilegiado e torna-se, por sua vez, uma figura da história coerente com a espessura de seu passado.
Na medida, porém, em que as coisas giram sobre si mesmas,
- reclamando para seu devir não mais que o princípio de sua inteligibilidade
- e abandonando o espaço da representação,
o homem,
por seu turno, entra,
e pela primeira vez,
no campo do saber ocidental.
Estranhamente, o homem – cujo conhecimento passa, a olhos ingênuos, como a mais velha busca desde Sócrates – não é, sem dúvida, nada mais que uma certa brecha na ordem das coisas, uma configuração, em todo o caso, desenhada pela disposição nova que ele assumiu recentemente no saber:
Daí nasceram todas as quimeras dos novos humanismos, todas as facilidades de uma “antropologia “, entendida como reflexão geral, meio positiva, meio filosófica, sobre o homem.
Contudo, é um reconforto e um profundo apaziguamento pensar que
- o homem não passa de uma invenção recente, uma figura que não tem dois séculos, uma simples dobra de nosso saber;
- e que desaparecerá desde que este houver encontrado uma forma nova.”
“Vê-se que esta investigação responde um pouco, como em eco, ao projeto de escrever uma história da loucura na idade clássica; ela tem, em relação ao tempo, as mesmas articulações, tomando como seu ponto de partida o fim do Renascimento e encontrando, também ela, na virada do século XIX; o limiar de uma modernidade de que ainda não saímos.
Enquanto, na história da loucura,
- se interrogava a maneira como uma cultura pode colocar sob uma forma maciça e geral a diferença que a limita,
trata-se aqui
- de observar a maneira como ela experimenta a proximidade das coisas, como ela estabelece o quadro de seus parentescos e a ordem segundo a qual é preciso percorrê-los.
Trata-se, em suma, de uma história da semelhança:
- sob que condições o pensamento clássico pôde refletir, entre as coisas, relações de similaridade ou de equivalência que fundam e justificam as palavras, as classificações, as trocas?
- A partir de qual a priori histórico foi possível definir o grande tabuleiro das identidades distintas que se estabelece sobre o fundo confuso, indefinido, sem fisionomia e como que indiferente, das diferenças?
A história da loucura
seria a história do Outro
– daquilo que, para uma cultura
é ao mesmo tempo
interior e estranho,
a ser portanto excluído
(para conjurar-lhe o perigo interior),
encerrando-o porém
(para reduzir-lhe a alteridade);
a história da ordem das coisas
seria a história do Mesmo
– daquilo que, para uma cultura,
é ao mesmo tempo
disperso e aparentado,
a ser portanto distinguido por marcas
e recolhido em identidades.
E se se pensar que a doença é, ao mesmo tempo,
- a desordem, a perigosa alteridade no corpo humano e até o cerne da vida,
mas também
- um fenômeno da natureza que tem suas regularidades, suas semelhanças e seus tipos –
vê-se que lugar poderia ter uma arqueologia do olhar médico.
Da experiência-limite do Outro às formas constitutivas do saber médico e, destas, à ordem das coisas e ao pensamento do Mesmo, o que se oferece à análise arqueológica
- é todo o saber clássico,
- ou melhor; esse limiar que nos separa do pensamento clássico e constitui nossa modernidade.
Nesse limiar apareceu pela primeira vez esta estranha figura do saber que se chama homem e que abriu um espaço próprio às ciências humanas.
Tentando trazer à luz esse profundo desnível da cultura ocidental, é a nosso solo silencioso e ingenuamente imóvel que restituímos suas rupturas, sua instabilidade, suas falhas; e é ele que se inquieta novamente sob nossos passos.”
As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas
Prefácio
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