IV. O empírico e o transcendental

IV. O empírico e o transcendental

O homem, na analítica da finitude, é um estranho duplo empírico-transcendental, porquanto é um ser tal que nele se tomará conhecimento do que torna possível todo conhecimento. 

Mas a natureza humana dos empiristas não desempenhava, no século XVIIl, o mesmo papel?

De fato, 

  • o que então se analisava eram as propriedades e as formas da representação que permitiam o conhecimento em geral (é assim que Condillac definia as operações necessárias e suficientes para que a representação se desdobrasse em conhecimento: reminiscência, consciência de si, imaginação, memória); 
  • agora que o lugar da análise não é mais a representação, mas o homem em sua finitude, trata-se de trazer à luz as condições do conhecimento a partir dos conteúdos empíricos que nele são dados. 

Para o movimento geral do pensamento moderno, pouco importa onde esses conteúdos se acham localizados: a questão não está em saber se foram buscados na introspecção ou em outras formas de análise. Pois o limiar da nossa modernidade não está situado no momento em que se pretendeu aplicar ao estudo do homem métodos objetivos, mas no dia em que se constituiu um duplo empírico-transcendental a que se chamou homem. 

Viu-se então aparecer duas espécies de análises: 

  • as que se alojaram no espaço do corpo e que, pelo estudo da percepção, dos mecanismos sensoriais, dos esquemas neuromotores, da articulação comum às coisas e ao organismo, funcionaram como uma espécie de estética transcendental; aí se descobria que o conhecimento tinha condições anatomofisiológicas, que ele se formava pouco a pouco na nervura do corpo, que nele tinha talvez uma sede privilegiada, que suas formas, em todo o caso, não podiam ser dissociadas das singularidades de seu funcionamento; em suma, que havia uma natureza do conhecimento humano que lhe determinava as formas e que podia, ao mesmo tempo, ser-lhe manifestada nos seus próprios conteúdos empíricos. 
  • Houve também as análises que, pelo estudo das ilusões da humanidade, mais ou menos antigas, mais ou menos difíceis de vencer, funcionaram como uma espécie de dialética transcendental; mostrava-se assim que o conhecimento tinha condições históricas, sociais ou econômicas, que ele se formava no interior de relações tecidas entre os homens e que não era independente da figura particular que elas poderiam assumir aqui ou ali, em suma, que havia uma história do conhecimento humano que podia ao mesmo tempo ser dada ao saber empírico e prescrever-lhe suas formas.

Ora, o que há de particular nessas análises é que não têm, ao que parece, necessidade alguma umas das outras; bem mais, podem dispensar todo recurso a uma analítica (ou a uma teoria do sujeito): elas pretendem poder repousar apenas sobre si mesmas, já que são os próprios conteúdos que funcionam como reflexão transcendental. 

Mas, de fato, a busca de uma natureza ou de uma história do conhecimento, no movimento em que ela restringe a dimensão própria da crítica aos conteúdos de um conhecimento empírico, supõe o uso de uma certa crítica.

Crítica que não é o exercício de uma reflexão pura, mas o resultado de uma série de divisões mais ou menos obscuras. E, antes de tudo, divisões relativamente elucidadas, mesmo se arbitrárias: 

  • a que distingue o conhecimento rudimentar, imperfeito, mal equilibrado, nascente, daquele que se pode dizer, se não acabado, ao menos constituído em suas formas estáveis e definitivas (esta divisão toma possível o estudo das condições naturais do conhecimento); 
  • a que distingue a ilusão da verdade, a quimera ideológica da teoria científica (esta divisão torna possível o estudo das condições históricas do conhecimento); 

mas há uma divisão mais obscura e mais fundamental: é a da própria verdade; 

  • deve existir, com efeito, uma verdade que é da ordem do objeto – aquela que pouco a pouco se esforça, se forma, se equilibra e se manifesta através do corpo e dos rudimentos da percepção, aquela igualmente que se desenha à medida que as ilusões se dissipam e que a história se instaura num estatuto desalienado; 
  • mas deve existir também uma verdade que é da ordem do discurso – uma verdade que permite sustentar sobre a natureza ou a história do conhecimento uma linguagem que seja verdadeira. 

É o estatuto desse discurso verdadeiro que permanece ambíguo. 

Das duas uma: 

  • ou esse discurso verdadeiro encontra seu fundamento e seu modelo nessa verdade empírica cuja gênese ele retraça na natureza e na história, e ter-se-á uma análise de tipo positivista (a verdade do objeto prescreve a verdade do discurso que descreve sua formação); 
  • ou o discurso verdadeiro se antecipa a essa verdade de que define a natureza e a história, esboça-a de antemão e a fomenta de longe, e, então, ter-se-á um discurso de tipo escatológico (a verdade do discurso filosófico constitui a verdade em formação). 

A bem dizer, trata-se aí menos de uma alternativa que da oscilação inerente a toda análise que faz valer o empírico ao nível do transcendental. 

Comte e Marx são realmente testemunhas desse fato de que 

  • a escatologia (como verdade objetiva por vir do discurso sobre o homem) 
  • e o positivismo (como verdade do discurso definida a partir daquela do objeto) 

são arqueologicamente indissociáveis: um discurso que se pretende ao mesmo tempo empírico e crítico só pode ser, a um tempo, positivista e escatológico; o homem aí aparece como uma verdade ao mesmo tempo reduzida e prometida. A ingenuidade pré-crítica nele reina sem restrições.

É por isso que o pensamento moderno não pôde evitar e a partir justamente desse discurso ingênuo – a busca do lugar de um discurso que não fosse nem da ordem da redução nem da ordem da promessa: 

  • um discurso cuja tensão mantivesse separados o empírico e o transcendental, permitindo, no entanto, visar a um e outro ao mesmo tempo; 
  • um discurso que permitisse analisar o homem como sujeito, isto é, como lugar de conhecimentos empíricos mas reconduzidos o mais próximo possível do que os toma possíveis, e como forma pura imediatamente presente nesses conteúdos; 
  • um discurso, em suma, que desempenhasse em relação à quase-estética e à quase-dialética o papel de uma analítica que, ao mesmo tempo, as fundasse numa teoria do sujeito e lhes permitisse talvez articular-se com esse termo terceiro e intermediário em que se enraizariam, ao mesmo tempo, a experiência do corpo e a da cultura. 

Um papel tão complexo, tão super-determinado e tão necessário foi desempenhado, no pensamento moderno, pela análise do vivido. 

O vivido, com efeito, é o espaço onde todos os conteúdos empíricos são dados à experiência; é também a forma originária que os torna em geral possíveis e designa seu enraizamento primeiro; ele estabelece, na verdade, comunicação entre o espaço do corpo e o tempo da cultura, as determinações da natureza e o peso da história, sob a condição, porém, de que o corpo e, através dele, a natureza sejam primeiramente dados na experiência de uma espacialidade irredutível, e de que a cultura, portadora de história, seja primeiramente experimentada no imediato das significações sedimentadas. 

Pode-se compreender perfeitamente que a análise do vivido se tenha instaurado, na reflexão moderna, como uma contestação radical do positivismo e da escatologia; 

  • que tenha tentado restaurar a dimensão esquecida do transcendental; 
  • que tenha pretendido conjurar o discurso ingênuo de uma verdade reduzida ao empírico, e o discurso profético que ingenuamente promete o advento à experiência de um homem, enfim. 

É também verdade que a análise do vivido não deixa de ser um discurso de natureza mista: 

  • endereça-se a uma camada específica mas ambígua, bastante concreta, para que se lha possa aplicar uma linguagem meticulosa e descritiva, e bastante recuada, 
  • entretanto, em relação à positividade das coisas, para que se possa, a partir daí, escapar a essa ingenuidade, contestá-la e buscar-lhe fundamentos. 

Ela procura articular 

  • a objetividade possível de um conhecimento da natureza 
  • com a experiência originária que se esboça através do corpo; 

e articular 

  • a história possível de uma cultura 
  • com a espessura semântica que, a um tempo, se esconde e se mostra na experiência vivida. 

Portanto, não faz mais que preencher, com mais cuidado, as exigências apressadas que foram postas quando se pretendeu fazer valer, no homem, o empírico pelo transcendental. 

Vê-se a rede cerrada que, apesar das aparências, religa os pensamentos de tipo positivista ou escatológico (o marxismo em primeiro lugar) com as reflexões inspiradas na fenomenologia. 

A aproximação recente não é da ordem da conciliação tardia: ao nível das configurações arqueológicas, eles eram necessários, uns como outros – e uns aos outros – desde a constituição do postulado antropológico, isto é, desde o momento em que o homem apareceu como duplo empírico-transcendental.

A verdadeira contestação do positivismo e da escatologia não está, pois, num retorno ao vivido (que, na verdade, antes os confirma, enraizando-os); mas, se ela pudesse exercer-se, seria a partir de uma questão que, sem dúvida, parece aberrante, de tal modo está em discordância com o que tornou historicamente possível todo o nosso pensamento. 

Essa questão consistiria em perguntar se verdadeiramente o homem existe. Acredita-se que é simular um paradoxo supor, por um só instante, o que poderiam ser o mundo, o pensamento e a verdade se o homem não existisse. 

É que estamos tão ofuscados pela recente evidência do homem que sequer guardamos em nossa lembrança o tempo, todavia pouco distante, em que existiam o mundo, sua ordem, os seres humanos, mas não o homem. 

Compreende-se o poder de abalo que pôde ter e que conserva ainda para nós o pensamento de Nietzsche, quando anunciou, sob a forma do acontecimento iminente, da Promessa-Ameaça, que, bem logo, o homem não seria mais – mas, sim, o super-homem; o que, numa filosofia do Retorno, queria dizer que o homem, já desde muito tempo, havia desaparecido e não cessava de desaparecer, e que nosso pensamento moderno do homem, nossa solicitude para com ele, nosso humanismo dormiam serenamente sobre sua retumbante inexistência. 

A nós, que nos acreditamos ligados a uma finitude que só a nós pertence e que nos abre, pelo conhecer, a verdade do mundo, não deveria ser lembrado que estamos presos ao dorso de um tigre?

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
capítulo IX – O homem e seus duplos;
tópico IV. O empírico e o transcendental

III. A analítica da finitude

III. A analítica da finitude

Quando 

  • a história natural se torna biologia, 
  • quando a análise das riquezas se torna economia,
  • quando sobretudo a reflexão sobre a linguagem se faz filologia 
  • e se desvanece esse discurso clássico
    em que o ser e a representação
    encontravam seu lugar-comum, 

então, no movimento profundo de uma tal mutação arqueológica, o homem aparece com sua posição ambígua 

  • de objeto para um saber 
  • e de sujeito que conhece: 

soberano submisso, espectador olhado, surge ele aí, nesse lugar do Rei que, antecipadamente, lhe designavam Las meninas, mas donde, durante longo tempo, sua presença real foi excluída. 

Como se nesse espaço vacante, em cuja direção estava voltado todo o quadro de Velásquez, mas que ele, contudo, só refletia pelo acaso de um espelho e como que por violação, todas as figuras de que se suspeitava a alternância, a exclusão recíproca, o entrelaçamento e a oscilação (o modelo, o pintor, o rei, o espectador) cessassem de súbito sua imperceptível dança, se imobilizassem numa figura plena e exigissem que fosse enfim reportado a um olhar de carne todo o espaço da representação.

O motivo dessa presença nova, a modalidade que lhe é própria, a disposição singular da epistémê que a autoriza, a relação nova que através dela se estabelece entre as palavras, as coisas e sua ordem – tudo isso pode ser agora trazido à luz. 

  • Cuvier e seus contemporâneos haviam requerido à vida que ela mesma definisse, na profundidade de seu ser, as condições de possibilidade do ser vivo; 
  • do mesmo modo, Ricardo havia requerido ao trabalho as condições de possibilidade da troca, do lucro e da produção; 
  • os primeiros filólogos haviam buscado, na profundidade histórica das línguas, a possibilidade do discurso e da gramática. 

Por isso mesmo, a representação deixou de valer para os seres vivos, para as necessidades e para as palavras, como seu lugar de origem e a sede primitiva de sua verdade; em relação a eles, ela nada mais é, doravante, que um efeito, seu acompanhante mais ou menos confuso numa consciência que os apreende e os restitui. 

A representação que se faz das coisas não tem mais que desdobrar, num espaço soberano, o quadro de sua ordenação; ela é, do lado desse indivíduo empírico que é o homem, o fenômeno – menos ainda talvez, a aparência – de uma ordem que pertence agora às coisas mesmas e à sua lei interior. Na representação, os seres não manifestam mais sua identidade, mas a relação exterior que estabelecem com o ser humano. 

Este, com seu ser próprio, com seu poder de se fornecer representações, surge num vão disposto pelos seres vivos, pelos objetos de troca e pelas palavras quando, abandonando a representação que fora até então seu lugar natural, retiram-se na profundidade das coisas e se enrolam sobre si mesmos segundo as leis da vida, da produção e da linguagem. 

Em meio a todos eles, comprimido pelo círculo que formam, o homem é designado – bem mais, é requerido – por eles, já que é ele quem fala, já que é visto residindo entre os animais (e num lugar que não é somente privilegiado, mas ordenador do conjunto que eles formam: mesmo se não é concebido como termo da evolução, nele se reconhece a extremidade de uma longa série), já que, enfim, a relação entre as necessidades e os meios que ele possui para satisfazê-las é tal que ele é necessariamente princípio meio de toda produção.

Mas essa imperiosa designação é ambígua. Em certo sentido, o homem é dominado pelo trabalho, pela vida e pela linguagem: sua existência concreta neles encontra suas determinações; só se pode ter acesso a ele através de suas palavras, de seu organismo, dos objetos que ele fabrica – como se eles primeiramente (e somente eles talvez) detivessem a verdade; e ele próprio, desde que pensa, só se desvela a seus próprios olhos sob a forma de um ser que, numa espessura necessariamente subjacente, numa irredutível anterioridade, é já um ser vivo, um instrumento de produção, um veículo para palavras que lhe preexistem. 

Todos esses conteúdos que seu saber lhe revela exteriores a ele e mais velhos que seu nascimento antecipam-no, vergam-no com toda a sua solidez e o atravessam como se ele não fosse nada mais do que um objeto da natureza ou um rosto que deve desvanecer-se na história. 

A finitude do homem se anuncia – e de uma forma imperiosa – na positividade do saber; sabe-se que o homem é finito, como se conhecem a anatomia do cérebro, o mecanismo dos custos de produção ou o sistema da conjugação indo-européia; ou, antes, pela filigrana de todas essas figuras sólidas, positivas e plenas, percebem-se a finitude e os limites que elas impõem, adivinha-se como que em branco tudo o que elas tornam impossível.

Na verdade, porém, essa primeira descoberta da finitude é instável; nada permite detê-la sobre si; e não se poderia supor que ela promete também esse mesmo infinito que ela recusa, segundo o sistema da atualidade? 

A evolução da espécie não está talvez concluída; 

  • as formas da produção e do trabalho não cessam de modificar-se e, talvez um dia, o homem não encontre mais no seu labor o princípio de sua alienação, nem nas suas necessidades a constante evocação de seus limites; 
  • e nada prova, tampouco, que ele não descobrirá sistemas simbólicos suficientemente puros para dissolver a velha opacidade das linguagens históricas. 

Anunciada na positividade, a finitude do homem se perfila sob a forma paradoxal do indefinido; ela indica, mais que o rigor do limite, a monotonia do caminhar que, sem dúvida, não tem limite mas que talvez não seja sem esperança. 

No entanto, todos esses conteúdos, com o que encobrem e com o que também deixam apontar em direção aos confins do tempo, só têm positividade no espaço do saber, só se oferecem à tarefa de um conhecimento possível, se ligados inteiramente à finitude. Pois eles não estariam aí, nessa luz que os ilumina parcialmente, se o homem que se descobre através deles estivesse preso na abertura muda, noturna, imediata e feliz da vida animal; mas tampouco se dariam sob o ângulo agudo que os dissimula a partir deles próprios, se o homem pudesse percorrê-los por inteiro no clarão de um entendimento infinito. 

Mas, à experiência do homem é dado 

  • um corpo que é seu corpo – fragmento de espaço ambíguo, cuja espacialidade própria e irredutível se articula contudo com o espaço das coisas; 
  • a essa mesma experiência é dado o desejo, como apetite primordial a partir do qual todas as coisas adquirem valor e valor relativo; 
  • a essa mesma experiência é dada uma linguagem em cujo fio todos os discursos de todos os tempos, todas as sucessões e todas as simultaneidades podem ser franqueados. 

Isso quer dizer que cada uma dessas formas positivas, em que o homem pode aprender que é finito, só lhe é dada com base na sua própria finitude. Ora, esta não é a essência mais bem purificada da positividade, mas aquilo a partir do que é possível que ela apareça. 

O modo de ser da vida e aquilo mesmo que faz com que a vida não exista sem me prescrever suas formas me são dados, fundamentalmente, por meu corpo; 

  • o modo de ser da produção, o peso de suas determinações sobre minha existência me são dados pelo meu desejo; 
  • e o modo de ser da linguagem, todo o rastro da história que as palavras fazem luzir no instante em que são pronunciadas e, talvez, até num tempo mais imperceptível ainda, 

só me são dados ao longo da tênue cadeia de meu pensamento falante. 

No fundamento de todas as positividades empíricas e do que se pode indicar como limitações concretas à existência do homem, descobre-se uma finitude – que em certo sentido é a mesma: ela é marcada 

  • pela espacialidade do corpo, 
  • pela abertura do desejo 
  • e pelo tempo da linguagem; 

e, contudo, ela é radicalmente outra: nela o limite não se manifesta como determinação imposta ao homem do exterior (por ter uma natureza ou uma história), mas como finitude fundamental que só repousa sobre seu próprio fato e se abre para a positividade de todo limite concreto.

Assim, do coração mesmo da empiricidade, indica-se a obrigação de ascender ou, se se quiser, de descer até urna analítica da finitude, em que o ser do homem poderá fundar, na possibilidade delas, todas as formas que lhe indicam que ele não é infinito. E o primeiro caráter com que essa analítica marcará o modo de ser do homem, ou, antes, o espaço no qual ela se desenrolará por inteiro, será o da repetição – da identidade e da diferença entre o positivo e o fundamental: a morte que corrói anonimamente a existência cotidiana do ser vivo é a mesma que aquela, fundamental, a partir da qual se dá a mim mesmo minha vida empírica; o desejo que liga e separa os homens na neutralidade do processo econômico é o mesmo a partir do qual alguma coisa me é desejável; o tempo que transporta as linguagens, nelas se aloja e acaba por desgastá-las, é esse tempo que alonga meu discurso antes mesmo que eu o tenha pronunciado numa sucessão que ninguém pode dominar. De um extremo ao outro da experiência, a finitude responde a si mesma; ela é, na figura do Mesmo, a identidade e a diferença das positividades e de seu fundamento. Vê-se como a reflexão moderna, desde o primeiro esboço dessa analítica, se inclina em direção a certo pensamento do Mesmo – em que a Diferença é a mesma coisa que a Identidade – exposição da representação, com sua realização em quadro, tal como o ordenava o saber clássico. É nesse espaço estreito e imenso, aberto pela repetição do positivo no fundamental, que toda essa analítica da finitude – tão ligada ao destino do pensamento moderno – vai desdobrar-se: é aí que se verá sucessivamente o transcendental repetir o empírico, o cogito repetir o impensado, o retorno da origem repetir seu recuo; é aí que se afirmará, a partir dele próprio, um pensamento do Mesmo irredutível à filosofia clássica.

Dir-se-á talvez que não era preciso esperar o século XIX para que a idéia da finitude fosse trazida à luz. É verdade que ele talvez a tenha somente deslocado no espaço do pensamento, fazendo-a desempenhar um papel mais complexo, mais ambíguo, de contorno menos fácil: para o pensamento dos séculos XVII e XVIII, era sua finitude que constrangia o homem a viver uma existência animal, a trabalhar com o suor de seu rosto, a pensar com palavras opacas; era essa mesma finitude que o impedia de conhecer de modo absoluto os mecanismos de seu corpo, os meios de satisfazer suas necessidades, o método para pensar sem o perigoso auxílio de uma linguagem toda tramada de hábitos e de imaginações. Como inadequação ao infinito, o limite do homem explicava tanto a existência desses conteúdos empíricos quanto a impossibilidade de conhecê-los imediatamente. E, assim, a relação negativa com o infinito – quer fosse concebida como criação, ou queda, ou ligação da alma e do corpo, ou determinação no interior do ser infinito, ou ponto de vista singular sobre a totalidade, ou liame da representação com a impressão – dava-se como anterior à empiricidade do homem e ao conhecimento que dela ele pode ter. Aquele limite fundava, num só movimento, mas sem retorno recíproco nem circularidade, a existência dos corpos, das necessidades e das palavras e a impossibilidade de dominá-los num conhecimento absoluto. A experiência que se forma no começo do século XIX aloja a descoberta da finitude não mais no interior do pensamento do infinito, mas no coração mesmo desses conteúdos que são dados, por um saber [mito, como as formas concretas da existência finita. Daí o jogo interminável de uma referência reduplicada: se o saber do homem é finito, é porque ele está preso, sem liberação possível, nos conteúdos positivos da linguagem, do trabalho e da vida; e inversamente, se a vida, o trabalho e a linguagem se dão em sua positividade, é porque o conhecimento tem formas finitas. Em outros termos, para o pensamento clássico, a finitude (como determinação positivamente constituída a partir do infinito) explica essas formas negativas que são o corpo, a necessidade, a linguagem, e o conhecimento limitado que deles se pode ter; para o pensamento moderno, a positividade da vida, da produção e do trabalho (que têm sua existência, sua historicidade e suas leis próprias) funda, como sua correlação negativa, o caráter limitado do conhecimento; e, inversamente, os limites do conhecimento fundam positivamente a possibilidade de saber, mas numa experiência sempre limitada, o que são a vida, o trabalho e a linguagem. Enquanto esses conteúdos empíricos estivessem alojados no espaço da representação, uma metafisica do infinito era não somente possível, mas exigida: com efeito, era realmente necessário que eles fossem as formas manifestas da finitude humana e que, no entanto, pudessem ter seu lugar e sua verdade no interior da representação; a ideia do infinito e a da sua determinação na finitude permitiam uma coisa e outra. Mas, quando os conteúdos empíricos foram desligados da representação e envolveram em si mesmos o princípio de sua existência, então a metafisica do infinito tomou-se inútil; a finitude não cessou mais de remeter a ela própria (da positividade dos conteúdos às limitações do conhecimento, e da positividade limitada deste ao saber limitado dos conteúdos). Então, todo o campo do pensamento ocidental foi invertido. Lá onde outrora havia correlação entre uma metafisica da representação e do infinito e uma análise dos seres vivos, dos desejos do homem, e das palavras de sua língua, vê-se constituir-se uma analítica da finitude e da existência humana, e em oposição a ela (mas numa oposição correlativa) uma perpétua tentação de constituir uma metafisica da vida, do trabalho e da linguagem. Mas isso não passa jamais de tentações, logo contestadas e como que minadas por dentro, pois não pode haver metafísicas medidas pelas finitudes humanas: metafisica de uma vida que converge para o homem, ainda que nele não se detenha; metafisica de um trabalho que libera o homem, de modo que o homem, em troca, possa dele liberar-se; metafisica de uma linguagem de que o homem pode reapropriar-se na consciência de sua própria cultura. De sorte que o pensamento moderno se contestará nos seus próprios arrojos metafísicos e mostrará que as reflexões sobre a vida, o trabalho e a linguagem, na medida em que valem como analíticas da finitude, manifestam o fim da metafisica: a filosofia da vida denuncia a metafisica como véu da ilusão, a do trabalho a denuncia como pensamento alienado e ideologia, a da linguagem, como episódio cultural.

Mas o fim da metafisica não é senão a face negativa de um acontecimento muito mais complexo que se produziu no pensamento ocidental. Esse acontecimento foi o aparecimento do homem. Não se deveria contudo crer que ele surgiu de súbito no horizonte, impondo de maneira irruptiva e absolutamente embaraçosa para nossa reflexão, o fato brutal de seu corpo, de seu labor, de sua linguagem; não foi a miséria positiva do homem que reduziu violentamente a metafisica. Sem dúvida, ao nível das aparências, a modernidade começa quando o ser humano começa a existir no interior de seu organismo, na concha de sua cabeça, na armadura de seus membros e em meio a toda a nervura de sua fisiologia; quando ele começa a existir no coração de um trabalho cujo princípio o domina e cujo produto lhe escapa; quando aloja seu pensamento nas dobras de uma linguagem, tão mais velha que ele não pode dominar-lhe as significações, reanimadas, contudo, pela insistência de sua palavra. Porém, mais fundamentalmente, nossa cultura transpôs o limiar a partir do qual reconhecemos nossa modernidade, no dia em que a finitude foi pensada numa referência interminável a si mesma. Se é verdade, ao nível dos diferentes saberes, que a finitude é sempre designada a partir do homem concreto e das formas empíricas que se podem atribuir à sua existência, ao nível arqueológico, que descobre o a priori histórico e geral de cada um dos saberes, o homem moderno – esse homem determinável em sua existência corporal, laboriosa e falante – só é possível a título de figura da finitude. A cultura moderna pode pensar o homem porque ela pensa o finito a partir dele próprio. 

Compreende-se, nessas condições, que o pensamento clássico e todos os que o procederam tenham podido falar do espírito e do corpo, do ser humano, de seu lugar tão limitado no universo, de todos os limites que medem seu conhecimento ou sua liberdade, mas que nenhum dentre eles jamais conheceu o homem tal como é dado ao saber moderno. 

O “humanismo” do Renascimento, o “racionalismo” dos clássicos podem realmente ter conferido um lugar privilegiado aos humanos na ordem do mundo, 

  • mas não puderam pensar o homem.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
capítulo IX – O homem e seus duplos;
tópico III – A analítica da finitude

I. O retorno da linguagem

I. O retorno da linguagem

Com a literatura, com o retorno da exegese e a preocupação da formalização, com a constituição de uma filologia, em suma, com o reaparecimento da linguagem num pulular múltiplo, a ordem do pensamento clássico pode doravante apagar-se. 

Nessa data entra ela, para todo olhar futuro, numa região de sombra. Nem é de obscuridade que se deveria ainda falar, mas de uma luz um pouco confusa, falsamente evidente e que oculta mais do que manifesta: parece, com efeito, que conhecemos tudo de saber clássico, se compreendemos 

  • que é racionalista, 
  • que atribui, desde Galileu e Descartes, um privilégio absoluto à mecânica, 
  • que supõe uma organização geral da natureza, 
  • que admite uma possibilidade de análise bastante radical para descobrir o elemento ou a origem, 
  • mas que já pressente, através e apesar de todos esses conceitos de entendimento, 
    • o movimento da vida,
    • a espessura da história 
    • e a desordem, difícil de dominar, da natureza. 

Mas reconhecer o pensamento clássico somente por esses sinais é desconhecer-lhe a disposição fundamental; é negligenciar inteiramente a relação entre tais manifestações e o que as tornava possíveis. 

E como, afinal de contas (a não ser por uma técnica laboriosa e lenta), reencontrar

  • a complexa relação das representações,
  • das identidades,
  • das ordens,
  • das palavras,
  • dos seres naturais, 
  • dos desejos
  • e dos interesses, 

a partir do momento em que toda essa grande rede se desfez, 

  • em que as necessidades organizaram por si mesmas sua produção
  • em que os seres vivos se voltaram para as funções essenciais da vida, 
  • em que as palavras se carregaram com o peso de sua história material 

em suma, a partir do momento em que as identidades da representação cessaram de manifestar, sem reticências nem reservas, a ordem dos seres? 

Todo o sistema dos crivos que analisava a seqüência das representações (tênue série temporal desenrolando-se no espírito dos homens) para fazê-la oscilar, para detê-la, desenvolvê-la e reparti-la num quadro permanente, todas essas querelas constituídas pelas palavras e pelo discurso, pelos caracteres e pela classificação, pelas equivalências e pela troca são agora abolidas a ponto de ser difícil reencontrar a maneira como esse conjunto pôde funcionar. 

A última “peça” que saltou – e cujo desaparecimento afastou de nós para sempre o pensamento clássico – é justamente o primeiro desses crivos: 

  • o discurso que assegurava o desdobramento inicial, espontâneo, ingênuo da representação em quadro. 

Desde o dia em que ele cessou de existir e de funcionar no interior da representação como sua ordenação primeira, o pensamento clássico cessou, no mesmo movimento, de nos ser diretamente acessível. 

O limiar do classicismo para a modernidade (mas pouco importam as próprias palavras – digamos, de nossa pré história para o que nos é ainda contemporâneo) foi definitivamente transposto quando as palavras cessaram de entrecruzar-se com as representações e de quadricular espontaneamente o conhecimento das coisas. 

No começo do século XIX, elas encontraram sua velha, sua enigmática espessura; não, porém, para reintegrar a curva do mundo que as alojava no Renascimento, nem para se misturar às coisas num sistema circular de signos. 

Destacada da representação, a linguagem doravante não mais existe, e até hoje ainda, senão de um modo disperso: 

  • para os filólogos, as palavras são como tantos objetos constituídos e depositados pela história;
  • para os que querem formalizar, a linguagem deve despojar-se de seu conteúdo concreto e só deixar aparecer as formas universalmente válidas do discurso;
  • se se quer interpretar, então as palavras tornam-se texto a ser fraturado para que se possa ver emergir, em plena luz, esse outro sentido que ocultam; ocorre enfim à linguagem surgir por si mesma num ato de escrever que não designa nada mais que ele próprio. 

Essa dispersão impõe à linguagem, se não um privilégio, ao menos um destino que parece singular quando comparado ao do trabalho ou da vida. 

  • Quando o quadro da história natural foi dissociado, os seres vivos foram dispersados, mas reagrupados, ao contrário, em torno do enigma da vida; 
  • quando a análise das riquezas desapareceu, todos os processos econômicos se reagruparam em torno da produção e do que a tornava possível; 
  • em contrapartida, quando a unidade da gramática geral – o discurso – se dissipou, então a linguagem apareceu segundo modos de ser múltiplos, cuja unidade, sem dúvida, não podia ser restaurada. 

Foi por essa razão, talvez, que a reflexão filosófica manteve-se durante muito tempo distanciada da linguagem. Enquanto buscava incansavelmente do lado da vida ou do trabalho alguma coisa que fosse seu objeto, ou seus modelos conceptuais, ou seu solo real e fundamental, só prestava à linguagem uma atenção marginal; para ela, tratava-se sobretudo de afastar os obstáculos que a linguagem podia opor à sua tarefa; era necessário, por exemplo, liberar as palavras dos conteúdos silenciosos que as alienava, ou, ainda, tornar a linguagem flexível e como que interiormente fluida, a fim de que, liberta das espacializações do entendimento, pudesse restituir o movimento da vida e sua duração própria. 

A linguagem só entrou diretamente e por si própria no campo do pensamento no fim do século XIX. 

Poder-se-ia mesmo dizer no século XX, se Nietzsche, o filólogo – e nisso também era ele tão erudito, a esse respeito sabia tanto e escrevia tão bons livros -, não tivesse sido o primeiro a aproximar a tarefa filosófica de uma reflexão radical sobre a linguagem. 

E eis que agora, nesse espaço filosófico-filológico que Nietzsche abriu para nós, a linguagem surge numa multiplicidade enigmática que precisaria ser dominada. Aparecem então, como tantos projetos (quimeras, quem pode sabê-lo no momento?), os temas de uma formalização universal de todo discurso, ou os de uma exegese integral do mundo que seria ao mesmo tempo sua perfeita desmistificação, ou os de uma teoria geral dos signos; ou ainda o tema (que foi, sem dúvida, historicamente primeiro) de uma transformação sem resíduo, de uma reabsorção integral de todos os discursos numa única palavra, de todos os livros numa página, de todo o mundo num livro. 

A grande tarefa a que se votou Mallarmé, e até a morte, é a que nos domina agora; no seu balbucio, envolve todos os nossos esforços de hoje para reconduzir à coação de uma unidade talvez impossível o ser fragmentado da linguagem. O empenho de Mallarmé para encerrar todo discurso possível na frágil espessura da palavra, nessa tênue e material linha negra traçada a tinta sobre o papel, responde, no fundo, à questão que Nietzsche prescrevia à filosofia. 

Para Nietzsche, não se tratava de saber o que eram em si mesmos o bem e o mal, mas quem era designado, ou antes, quem falava, quando, para designar-se a si próprio se dizia Agathós, e Deilós para designar os outros. 

Pois é aí, naquele que mantém o discurso e mais profundamente detém a palavra, que a linguagem inteira se reúne. 

A esta questão nietzschiana: 

  • quem fala? 

Mallarmé responde e não cessa de retomar sua resposta, dizendo que 

  • o que fala é, em sua solidão, em sua vibração frágil, em seu nada, a própria palavra – não o sentido da palavra, mas seu ser enigmático e precário. 

Enquanto Nietzsche mantinha até o fim a interrogação sobre aquele que fala, com o risco de fazer afinal a irrupção de si próprio no interior desse questionamento para fundá-lo em si mesmo, sujeito falante e interrogante: Ecce homo – Mallarmé não cessa de apagar-se na sua própria linguagem, a ponto de não mais querer aí figurar senão a título de executor numa pura cerimônia do Livro, em que o discurso se comporia por si mesmo. 

É bem possível que todas as questões que atravessam atualmente nossa curiosidade (Que é linguagem? Que é um signo? O que é mudo no mundo, nos nossos gestos, em todo o brasão enigmático de nossas condutas, em nossos sonhos e em nossas doenças – tudo isso fala, e que linguagem sustenta, segundo que gramática? Tudo é significante, ou o que o é, e para quem, segundo que regras? Que relação há entre a linguagem e o ser, e é realmente ao ser que sempre se endereça a linguagem, pelo menos aquela que fala verdadeiramente? Que é, pois, essa linguagem que nada diz, jamais se cala e se chama “literatura”?) – é bem possível que todas essas questões se coloquem hoje na distância jamais superada entre a questão de Nietzsche e a resposta que lhe deu Mallarmé. 

Sabemos agora donde nos vêm essas questões. 

Elas tornaram-se possíveis pelo fato de que, no começo do século XIX, estando a lei do discurso destacada da representação, o ser da linguagem achou-se como que fragmentado; mas elas se tornaram necessárias quando, com Nietzsche, com Mallarmé, o pensamento foi reconduzido, e violentamente, para a própria linguagem, para seu ser único e difícil. 

Toda a curiosidade de nosso pensamento se aloja agora na questão: 

  • que é a linguagem, como contorná-la para fazê-la aparecer em si mesma e em sua plenitude? 

Em certo sentido, essa questão toma o lugar daquelas que, no século XIX, concerniam à vida ou ao trabalho. Mas o estatuto dessa busca e de todas as questões que a diversificam não é perfeitamente claro. 

Dever-se-á pressentir aí o nascimento, menos ainda, o primeiro vislumbre no horizonte de um dia que mal se anuncia, mas em que já adivinhamos que o pensamento – esse pensamento que fala desde milênios sem saber o que é falar, nem mesmo que ele fala – vai recuperar-se por inteiro e iluminar-se de novo no fulgor do ser? 

Não é isso o que Nietzsche preparava quando, no interior de sua linguagem, matava o homem e Deus ao mesmo tempo e assim prometia, com o Retorno, o cintilar múltiplo e recomeçado dos deuses? 

Ou será preciso admitir, muito simplesmente, que tantas questões sobre a linguagem não fazem mais que prosseguir e no máximo concluir esse acontecimento, cuja existência e cujos primeiros efeitos, desde o fim do século XVIII, a arqueologia nos ensinou? 

O fracionamento da linguagem, contemporâneo de sua passagem à objetividade filológica, seria, então, apenas a conseqüência mais recentemente visível (porque a mais secreta e a mais fundamental) da ruptura da ordem clássica; esforçando-nos por dominar essa quebra e fazer aparecer a linguagem por inteiro, levaríamos a seu termo o que se passou antes de nós e sem nós, por volta do fim do século XVIII. 

Mas que seria, pois, esse acabamento? 

Pretendendo reconstituir a unidade perdida da linguagem, estar-se-ia indo até o fim de um pensamento que é o do século XIX, ou não se estaria indo em direção a formas que já são incompatíveis com ele? 

A dispersão da linguagem está ligada, com efeito, de um modo fundamental, a esse acontecimento arqueológico que se pode designar pelo desaparecimento do Discurso. 

Reencontrar num espaço único o grande jogo da linguagem tanto poderia ser 

  • dar um salto decisivo para uma forma inteiramente nova de pensamento 
  • quanto fechar sobre si mesmo um modo de saber constituído no século precedente. 

É verdade que a essas questões eu não sei responder, nem, entre essas alternativas, qual termo conviria escolher. Sequer adivinho se poderia jamais responder a elas ou se um dia me virão razões para me determinar. 

Todavia, sei agora por que é que, como todo o mundo, eu as posso formular a mim próprio – e que não as posso deixar de formular. 

Somente aqueles que não sabem ler se espantarão de que eu o tenha aprendido mais claramente 

  • em Cuvier, [naturalista]
  • em Bopp, [linguista]
  • em Ricardo, [economista]

do que em Kant ou Hegel.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
capítulo IX – O homem e seus duplos;
tópico I – O retorno da linguagem

III. Os três modelos

III. Os três modelos

As três faces do conhecimento

Assim, estes três pares,

  • função e norma,
  • conflito e regra,
  • significação e sistema,

cobrem, por completo, o domínio inteiro do conhecimento do homem.

Numa primeira abordagem, pode-se dizer que o domínio das ciências humanas é coberto por três “ciências” – ou, antes, por três regiões epistemológicas, todas subdivididas no interior de si mesmas e todas entrecruzadas umas com as outras; essas regiões são definidas pela tríplice relação das ciências humanas em geral com a biologia, a economia, a filologia. 

Poder-se-ia admitir assim que 

  • a “região psicológica” encontrou seu lugar lá onde o ser vivo, no prolongamento de suas funções, de seus esquemas neuromotores, de suas regulações fisiológicas, mas também na suspensão que os interrompe e os limita, se abre à possibilidade da representação; 
  • do mesmo modo, a “região sociológica” teria encontrado seu lugar lá onde o indivíduo que trabalha, produz e consome se confere a representação da sociedade em que se exerce essa atividade, dos grupos e dos indivíduos entre os quais ela se reparte, dos imperativos, das sanções, dos ritos, das festas e das crenças mediante os quais ela é sustentada ou regulada; 
  • enfim naquela região onde reinam as leis e as formas de uma linguagem, mas onde, entretanto, elas permanecem à margem de si mesmas, permitindo ao homem fazer aí passar o jogo de suas representações, lá nascem o estudo das literaturas e dos mitos, a análise de todas as manifestações orais e de todos os documentos escritos, em suma, a análise dos vestígios verbais que uma cultura ou um indivíduo podem deixar de si mesmos.

Essa repartição, ainda que muito sumária, não é certamente demasiado inexata. Ela deixa, porém, na íntegra, dois problemas fundamentais: 

  • um concerne à forma de positividade que é própria às ciências humanas (os conceitos em torno dos quais elas se organizam, o tipo de racionalidade ao qual se referem e pelo qual buscam constituir-se como saber); 
  • outro, à sua relação com a representação (e a este fato paradoxal de que, embora tendo lugar somente onde há representação, é a mecanismos, formas, processos inconscientes, é, em todo o caso, aos limites exteriores da consciência que elas se dirigem). 

São bem conhecidos os debates a que deu lugar a busca de uma positividade específica no campo das ciências humanas: análise genética ou estrutural? explicação ou compreensão? recurso ao “inferior” ou manutenção da decifração ao nível da leitura? 

Na verdade, todas essas discussões teóricas não nasceram e não prosseguiram ao longo de toda a história das ciências humanas porque estas teriam que lidar com o homem como com um objeto tão complexo que não se teria podido encontrar em sua direção um modo de acesso único, ou que se teria sido constrangido a utilizar vários alternadamente. De fato, essas discussões só puderam existir na medida em que a positividade das ciências humanas se apóia simultaneamente na transferência de três modelos distintos. Essa transferência não é, para as ciências humanas, um fenômeno marginal (uma espécie de estrutura de apoio, de desvio mediante uma inteligibilidade exterior, de confirmação no campo das ciências já constituídas); não é também um episódio limitado de sua história (uma crise de formação numa época em que eram ainda tão novas, que não podiam fixar por si próprias seus conceitos e suas leis). 

Trata-se de um fato indelével, que está ligado, para sempre, à sua disposição própria no espaço epistemológico. Convém, com efeito, distinguir duas espécies de modelos utilizados pelas ciências humanas (pondo à parte os modelos de formalização). 

  • Houve, por um lado – e ainda há freqüentemente – conceitos que são transportados a partir de outro domínio do conhecimento e que, perdendo então toda eficácia operatória, não desempenham mais que um papel de imagem (as metáforas organicistas na sociologia do século XIX; as metáforas energéticas em Janet; as metáforas geométricas e dinâmicas em Lewin). 
  • Mas há também os modelos constituintes que não são, para as ciências humanas, técnicas de formalização nem simples meios para, com o menor esforço, imaginar processos; eles permitem formar conjuntos de fenômenos como tantos “objetos” para um saber possível; asseguram sua ligação na empiricidade, mas os oferecem à experiência já ligados entre si. Desempenham o papel de “categorias” no saber singular das ciências humanas.

Esses modelos constituintes são tomados de empréstimo aos três domínios da biologia, da economia e do estudo da linguagem. 

  • É na superfície de projeção da biologia que o homem aparece como um ser que tem funções – que recebe estímulos (fisiológicos, mas também sociais, interhumanos, culturais), que responde a eles, que se adapta, evolui, submete-se às exigências do meio, harmoniza-se com as modificações que ele impõe, busca apagar os desequilíbrios, age segundo regularidades, tem, em suma, condições de existência e a possibilidade de encontrar normas médias de ajustamento que lhe permitem exercer suas funções. 
  • Na superfície de projeção da economia, o homem aparece enquanto tem necessidades e desejos, enquanto busca satisfazê-Ios, enquanto, pois, tem interesses, visa a lucros, opõe-se a outros homens; em suma, ele aparece numa irredutível situação de conflito; a esses conflitos ele se esquiva, deles foge ou chega a dominá-los, a encontrar uma solução que apazigue, ao menos em um nível e por algum tempo, sua contradição; instaura um conjunto de regras que são, ao mesmo tempo, limitação e dilatação do conflito. 
  • Enfim, na superfície de projeção da linguagem, as condutas do homem aparecem como querendo dizer alguma coisa; seus menores gestos, até em seus mecanismos involuntários e até em seus malogros, têm um sentido; e tudo o que ele deposita em torno de si, em matéria de objetos, de ritos, de hábitos, de discurso, toda a esteira de rastros que deixa atrás de si constitui um conjunto coerente e um sistema de signos. 

Assim, estes três pares,
– função e norma,
– conflito e regra,
– significação e sistema, 
cobrem, por completo,
o domínio inteiro do conhecimento do homem. 

Contudo, não se deve julgar que cada um desses pares de conceitos permanece localizado na superfície de projeção em que puderam nascer: 

  • a função e a norma não são conceitos psicológicos e exclusivamente tais; 
  • o conflito e a regra não têm uma aplicação limitada apenas ao domínio sociológico; 
  • a significação e o sistema não valem somente para os fenômenos mais ou menos aparentados à linguagem. 

Todos esses conceitos são retomados no volume comum das ciências humanas, valem em cada uma das regiões que ele envolve: daí se segue ser freqüentemente difícil fixar os limites, não só entre os objetos, mas também entre os métodos próprios à psicologia, à sociologia, à análise das literaturas e dos mitos. 

No entanto, pode-se dizer, de maneira global, que 

  • a psicologia é fundamentalmente um estudo do homem em termos de funções e de normas (funções e normas que se podem, de maneira secundária, interpretar a partir dos conflitos e das significações, das regras e dos sistemas); 
  • a sociologia é fundamentalmente um estudo do homem em termos de regras e de conflitos (mas estes podem ser interpretados, e somos constantemente levados a interpretá-los secundariamente, quer a partir das funções, como se fossem indivíduos organicamente ligados a si mesmos, quer a partir de sistemas de significações, como se fossem textos escritos ou falados); 
  • enfim, o estudo das literaturas e dos mitos procede essencialmente de uma análise das significações e dos sistemas significantes, mas sabe-se bem que esta pode ser retomada em termos de coerência funcional ou de conflitos e de regras. 

É assim que todas as ciências humanas se entrecruzam e podem sempre interpretar-se umas às outras, que suas fronteiras se apagam, que as disciplinas intermediárias e mistas se multiplicam indefinidamente, que seu objeto próprio acaba mesmo por dissolver-se. Mas, qualquer que seja a natureza da análise e o domínio a que ela se aplica, tem-se um critério formal para saber o que é do nível da psicologia, da sociologia ou da análise das linguagens: é a escolha do modelo fundamental e a posição dos modelos secundários que permitem saber em que momento se “psicologiza” ou se “sociologiza” no estudo das literaturas e dos mitos, em que momento se faz, em psicologia, decifração de textos ou análise sociológica. 

Mas essa superposição de modelos não é um defeito de método. Só há defeito se os modelos não forem ordenados e explicitamente articulados uns com os outros. Sabe-se com que precisão admirável se pôde conduzir o estudo das mitologias indo-europeias utilizando, com base numa análise dos significantes e das significações, o modelo sociológico. Sabe-se, em contrapartida, a que trivialidades sincréticas conduziu o sempre medíocre empreendimento de fundar uma psicologia dita “clínica”. Quer seja ele fundado e dominado, quer se realize na confusão, esse entrecruzamento dos modelos constituintes explica as discussões dos métodos há pouco evocadas. Elas não têm sua origem e sua justificação numa complexidade por vezes contraditória que seria o caráter próprio do homem; mas, sim, no jogo de oposição que permite definir cada um dos três modelos em relação aos dois outros. 

  • Opor a gênese à estrutura é opor a função (em seu desenvolvimento, em suas operações progressivamente diversificadas, em suas adaptações adquiridas e equilibradas no tempo) ao sincronismo do conflito e da regra, da significação e do sistema; 
  • opor a análise pelo “inferior” à que se mantém ao nível de seu objeto é opor o conflito (como dado primeiro, arcaico, inscrito já nas necessidades fundamentais do homem) à função e à significação tais como se desdobram na sua realização própria; 
  • opor a compreensão à explicação é opor a técnica que permite decifrar um sentido a partir do sistema significante àquelas que permitem explicar um conflito com suas conseqüências, ou as formas e as deformações que pode assumir e sofrer uma função com seus órgãos.

Mas é preciso ir mais longe

As três faces do conhecimento

Mas é preciso ir mais longe. 

Sabe-se que, nas ciências humanas, 

  • o ponto de vista da descontinuidade (limiar entre a natureza e a cultura, irredutibilidade mútua dos equilíbrios ou das soluções encontradas por cada sociedade ou cada indivíduo, ausência de formas intermediárias, inexistência de um continuum dado no espaço ou no tempo) 
  • se opõe ao ponto de vista da continuidade

A existência dessa oposição se explica pelo caráter bipolar dos modelos: 

a análise em estilo de continuidade apóia-se 

  • na permanência das funções (que se encontra desde o fundo da vida numa identidade que autoriza e enraíza as adaptações sucessivas), 
  • no encadeamento dos conflitos (ainda que assumam formas diversas, seu ruído de fundo não cessa jamais), 
  • na trama das significações (que se retomam umas às outras e constituem como que a superfície de um discurso); 

a análise das descontinuidades, ao contrário, 

  • procura antes fazer surgir a coerência interna dos sistemas significantes, 
  • a especificidade dos conjuntos de regras 
  • e o caráter de decisão que elas assumem em relação ao que deve ser regulado, a emergência da norma acima das oscilações funcionais. 

Poder-se-ia talvez retraçar toda a história das ciências humanas desde o século XIX, a partir desses três modelos. Com efeito, eles cobriram todo o seu devir, pois que se pode seguir, há mais de um século, a dinastia de seus privilégios: 

  • primeiro, o reino do modelo biológico (o homem, sua psique, seu grupo, sua sociedade, a linguagem que ele fala existem, na época romântica, enquanto vivos e na medida em que de fato vivem; seu modo de ser é orgânico e é analisado em termos de função); 
  • depois vem o reino do modelo econômico (o homem e toda a sua atividade são o lugar de conflitos de que constituem, ao mesmo tempo, a expressão mais ou menos manifesta e a solução mais ou menos bem-sucedida); 
  • enfim – assim como Freud vem após Comte e Marx – começa o reino do modelo filológico.(quando se trata de interpretar e de descobrir o sentido oculto) e linguístico (quando se trata de estruturar e de trazer à luz o sistema significante). 

Um amplo declive conduziu, pois, as ciências humanas de uma forma mais densa em modelos vivos a uma outra mais saturada de modelos tirados da linguagem. 

Esse desvio, porém, foi duplicado por outro: aquele que fez recuar o primeiro termo de cada um dos pares constituintes (função, conflito, significação) e fez surgir com mais intensidade a importância do segundo (norma, regra, sistema): Goldstein, Mauss, Dumezil podem representar, quase igualmente, o momento em que se realizou a reversão em cada um dos modelos. 

Uma tal reversão tem duas séries de conseqüências notáveis: 

  • enquanto o ponto de vista da função prevalecia sobre o da norma (enquanto não era a partir da norma e do interior da atividade que a estabelece que se tentava compreender a realização da função), era então preciso realmente separar de facto os funcionamentos normais daqueles que não o eram; 
    • admitia-se, assim, uma psicologia patológica bem ao lado da normal, mas para ser como que sua imagem invertida (daí a importância do esquema jacksoniano da desintegração em Ribot ou Janet); 
    • admitia-se também uma patologia das sociedades (Durkheim), das formas irracionais e quase mórbidas de crenças (Lévy-Brühl, Blondel); 
  • do mesmo modo, enquanto o ponto de vista do conflito prevalecia sobre o da regra, supunha-se que certos conflitos não podiam ser superados, que os indivíduos e as sociedades corriam o risco de neles soçobrar; 
  • enfim, enquanto o ponto de vista da significação prevalecia sobre o do sistema, separava-se o significante e o não-significante, admitia-se que em certos domínios do comportamento humano ou do espaço social havia sentido e que em outros não. 

De maneira que as ciências humanas exerciam no seu próprio campo uma partilha essencial, estendiam-se sempre entre um pólo positivo e um pólo negativo, designavam sempre uma alteridade (e isso a partir da continuidade que elas analisavam). 

Ao contrário, 

  • quando a análise foi efetuada do ponto de vista da norma, da regra e do sistemacada conjunto recebeu de si mesmo sua própria coerência e sua própria validade, não foi mais possível falar, 
    • mesmo a propósito dos doentes, de “consciência mórbida”, 
    • mesmo a propósito de sociedades abandonadas pela história, de “mentalidades primitivas”, 
    • mesmo a propósito de narrativas absurdas, de lendas aparentemente sem coerência, de “discursos não-significantes”. 

Tudo pode ser pensado na ordem do sistema, da regra e da norma. 

Ao pluralizar-se – visto que os sistemas são isolados, que as regras formam conjuntos fechados e que as normas se estabelecem na sua autonomia – o campo das ciências humanas achou-se unificado: deixou, de imediato, de estar cindido segundo uma dicotomia de valores. 

E se se lembrar que Freud, mais que qualquer outro, aproximou o conhecimento do homem de seu modelo filológico e linguístico, mas que foi também o primeiro a tentar apagar radicalmente a divisão entre o positivo e o negativo (o normal e o patológico, o compreensível e o incomunicável, o significante e o não-significante), compreende-se de que modo anuncia ele a passagem de uma análise em termos de funções, de conflitos e de significações para uma análise em termos de norma, de regras e de sistemas: e é assim que todo esse saber, em cujo interior a cultura ocidental se proveu, em um século, de uma certa imagem do homem, gira em tomo da obra de Freud, sem contudo sair de sua disposição fundamental. 

Mas não é ainda aí – como se verá dentro em pouco – que está a importância mais decisiva da psicanálise. Em todo o caso, essa passagem para o ponto de vista da norma, da regra e do sistema nos aproxima de um problema que foi deixado em suspenso: o do papel da representação nas ciências humanas. 

Já podia parecer bem contestável encerrar estas últimas (para opô-Ias à biologia, à economia, à filologia) no espaço da representação; não se deveria já estimar que uma função pode exercer-se, um conflito desenvolver suas conseqüências, uma significação impor sua inteligibilidade sem passar pelo momento de uma consciência explícita? 

E agora não será preciso reconhecer que o que é específico 

  • da norma em relação à função que ela determina, 
  • da regra em relação ao conflito que ela rege, 
  • do sistema em relação à significação que ele torna possível 

está precisamente em não serem dados à consciência? 

Às duas vertentes históricas já isoladas não será preciso acrescentar uma terceira e dizer que, desde o século XIX, as ciências humanas não cessaram de aproximar-se dessa região do inconsciente onde a instância da representação é mantida em suspenso? 

De fato, a representação não é a consciência e nada prova que este trazer à luz elementos ou organizações que jamais são dados como tais à consciência faça as ciências humanas escaparem à lei da representação. 

Com efeito, 

  • o papel do conceito de significação é mostrar de que modo alguma coisa como uma linguagem, ainda que não se trate de um discurso explícito e mesmo que não seja desdobrada para uma consciência, pode, em geral, ser dada à representação; 
  • o papel do conceito complementar de sistema é mostrar de que modo a significação jamais é primeira e contemporânea de si mesma, mas sempre segunda e como que derivada em relação a um sistema que a precede, que constitui sua origem positiva, e que se dá, pouco a pouco, por fragmentos e perfis através dela; em relação à consciência de uma significação, o sistema é, na verdade, sempre inconsciente, pois que já estava lá, antes dela, pois que é nele que ela se aloja e a partir dele que ela se efetua; mas isso porque ele fica sempre prometido a uma consciência futura que talvez jamais o totalizará. Em outras palavras, o par significação-sistema é o que assegura, a um tempo, a representabilidade da linguagem (como texto ou estrutura analisados pela filologia e pela linguística) e a presença próxima mas recuada da origem (tal como é manifestada como modo de ser do homem pela analítica da finitude). 

Da mesma forma, 

  • a noção de conflito mostra de que modo a necessidade, o desejo ou o interesse, ainda que não sejam dados à consciência que os experimenta, podem tomar forma na representação; e o papel do conceito inverso de regra é mostrar de que modo a violência do conflito, a insistência aparentemente selvagem da necessidade, o infinito sem lei do desejo estão, de fato, já organizados por um impensado que não só lhes prescreve sua regra, mas também os torna possíveis a partir de uma regra. O par conflito-regra assegura a representabilidade da necessidade (dessa necessidade que a economia estuda como processo objetivo no trabalho e na produção) e a representabilidade desse impensado desvelado pela analítica da finitude. 
  • Enfim, o conceito de função tem por papel mostrar de que modo as estruturas da vida podem dar lugar à representação (ainda que não sejam conscientes), e o conceito de norma, de que modo a função se dá a si mesma suas próprias condições de possibilidades e os limites de seu exercício. 

Compreende-se, assim, por que essas grandes categorias podem organizar todo o campo das ciências humanas: é que elas o atravessam de ponta a ponta, mantêm à distância, mas também reúnem as positividades empíricas da vida, do trabalho e da linguagem (a partir das quais o homem historicamente destacou-se como figura de um saber possível) às formas da finitude que caracterizam o modo de ser do homem (tal como se constituiu a partir do dia em que a representação cessou de definir o espaço geral do conhecimento). 

Essas categorias não são, pois, simples conceitos empíricos de uma bem grande generalidade; elas são, na verdade, aquilo a partir do qual o homem pode oferecer-se a um saber possível; elas percorrem todo o campo de sua possibilidade e o articulam fortemente com as duas dimensões que o delimitam. 

Mas isso não é tudo: 

  • elas permitem a dissociação, característica de todo saber contemporâneo sobre o homem, entre a consciência e a representação. Definem a maneira como as empiricidades podem ser dadas à representação, mas sob uma forma que não está presente à consciência (a função, o conflito, a significação constituem, realmente, a maneira como a vida, a necessidade, a linguagem são reduplicadas na representação, mas sob uma forma que pode ser perfeitamente inconsciente); 
  • por outro lado, definem a maneira como a finitude fundamental pode ser dada à representação sob uma forma positiva e empírica, mas não transparente à consciência ingênua (nem a norma, nem a regra, nem o sistema, são dados à experiência cotidiana: atravessam-na, dão lugar a consciências parciais, mas não podem ser inteiramente aclarados senão por um saber reflexivo). 

De sorte que as ciências humanas só falam no elemento do representável, mas segundo uma dimensão consciente-inconsciente, tanto mais acentuada quanto se tente trazer à luz a ordem dos sistemas, das regras e das normas. Tudo se passa como se a dicotomia do normal e do patológico tendesse a esvaecer-se em proveito da bipolaridade da consciência e do inconsciente. 

Não se deve, pois, esquecer que a importância cada vez mais acentuada do inconsciente em nada compromete o primado da representação. Essa primazia, no entanto, levanta um importante problema. 

Agora que os saberes empíricos como os da vida, do trabalho e da linguagem escapam à sua lei, agora que se tenta definir fora de seu campo o modo de ser do homem, o que é a representação, senão um fenômeno de ordem empírica que se produz no homem e que se poderia analisar como tal? E se a representação se produz no homem, que diferença há entre ela e a consciência? Mas a representação não é simplesmente um objeto para as ciências humanas; ela é, como se acaba de ver, o próprio campo das ciências humanas, e em toda a sua extensão; é o suporte geral dessa forma de saber, aquilo a partir do qual ele é possível. 

Daí duas conseqüências. 

Uma é de ordem histórica: é o fato de que as ciências humanas, diferentemente das ciências empíricas desde o século XIX, e diferentemente do pensamento moderno, não puderam contornar o primado da representação; como todo o saber clássico, alojam-se nelas; porém não são, de modo algum, suas herdeiras ou sua continuação, pois toda a configuração do saber modificou-se, e elas só nasceram na medida em que apareceu, com o homem, um ser que não existia outrora no campo da epistémê. 

Entretanto, pode-se compreender por que cada vez que há a intenção de servir-se das ciências humanas para filosofar, verter para o espaço do pensamento aquilo que se pôde aprender lá onde o homem estava em questão, falseia-se a filosofia do século XVIII, na qual, todavia, o homem não tinha lugar; 

  • é que, ao estender para além de seus limites o domínio do saber do homem, estende-se igualmente para além dele o reino da representação e se está a instalar-se de novo numa filosofia de tipo clássico. 

A outra conseqüência é que as ciências humanas, ao tratarem do que é representação (sob uma forma consciente ou inconsciente) estão tratando como seu objeto o que é sua condição de possibilidade. 

São, portanto, sempre animadas por uma espécie de mobilidade transcendental. Não cessam de exercer para consigo próprias uma retomada critica. Vão do que é dado à representação ao que torna possível a representação, mas que é ainda uma representação. De maneira que elas buscam menos, como as outras ciências, generalizar-se ou precisar-se do que desmistificar-se sem cessar: passar de uma evidência imediata e não-controlada a formas menos transparentes, porém mais fundamentais. 

Esse percurso quase transcendental dá-se sempre sob a forma do desvelamento. É sempre desvelando que, por contragolpe, elas podem generalizar-se ou se refinar até pensarem os fenômenos individuais. No horizonte de toda ciência humana, há o projeto de reconduzir a consciência do homem às suas condições reais, de restituí-Ia aos conteúdos e às formas que a fizeram nascer e que nela se esquivam; é por isso que o problema do inconsciente – sua possibilidade, seu estatuto, seu modo de existência, os meios de conhecê-lo e de o trazer à luz – não é simplesmente um problema interior às ciências humanas e que elas encontrassem ao acaso de seus procedimentos; é um problema que é, afinal, co-extensivo à sua própria existência. 

Uma sobrelevação transcendental revertida num desvelamento do não-consciente é constitutiva de todas as ciências do homem. Aí talvez se encontrasse o meio de demarcá-Ias no que elas têm de essencial. O que manifesta, em todo o caso, o específico das ciências humanas, vê-se bem que não é esse objeto privilegiado e singularmente nebuloso que é o homem. Pela simples razão de que não é o homem que as constitui e lhes oferece um domínio específico; mas, sim, é a disposição geral da epistémê que lhes dá lugar, as requer e as instaura – permitindo-lhes assim constituir o homem como seu objeto. 

Dir-se-á, pois, que há “ciência humana” não onde quer que o homem esteja em questão, mas onde quer que se analisem, na dimensão própria do inconsciente, normas, regras, conjuntos significantes que desvelam à consciência as condições de suas formas e de seus conteúdos. Falar de “ciências do homem”, em qualquer outro caso, é puro e simples abuso de linguagem. 

Avalia-se assim quão vãs e ociosas são todas as enfadonhas discussões para saber se tais conhecimentos podem ser ditos realmente científicos e a que condições deveriam sujeitar-se para vir a sê-lo. As “ciências do homem” fazem parte da epistémê moderna como a química ou a medicina ou alguma outra ciência; ou, ainda, como a gramática e a história natural faziam parte da epistémê clássica. 

Mas dizer que elas fazem parte do campo epistemológico significa somente que elas nele enraízam sua positividade, que nele encontram sua condição de existência, que não são, portanto, apenas ilusões, quimeras pseudocientíficas, motivadas ao nível das opiniões, dos interesses, das crenças, que elas não são aquilo a que outros dão o estranho nome de “ideologia”. O que não quer dizer, porém, que por isso sejam ciências. 

Se é verdade que toda ciência, qualquer que seja, quando interrogada ao nível arqueológico e quando se busca desenredar o solo de sua positividade, revela sempre a configuração epistemológica que a tornou possível, em contrapartida, toda configuração epistemológica, mesmo se perfeitamente demarcável em sua positividade, pode muito bem não ser uma ciência: nem por isso se reduz a uma impostura. 

É preciso distinguir, com cuidado, três coisas: 

  • há temas com pretensão científica que se podem encontrar ao nível das opiniões e que não fazem (ou não mais fazem) parte da rede epistemológica de uma cultura; 

a partir do século XVII, por exemplo, a magia natural cessou de pertencer à epistémê ocidental, mas prolongou-se por muito tempo no jogo das crenças e das valorizações afetivas. 

Há, em seguida, 

  • as figuras epistemológicas cujo desenho, posição, funcionamento, podem ser restituídos em sua positividade por uma análise de tipo arqueológico; 

e, por sua vez, podem obedecer a duas organizações diferentes: 

    • umas apresentam caracteres de objetividade e de sistematicidade que permitem defini-Ias como ciências; 
    • outras não respondem a esses critérios, isto é, sua forma de coerência e sua relação com seu objeto são determinadas tão somente por sua positividade. 

Estas últimas, conquanto não possuam os critérios formais de um conhecimento científico, pertencem, contudo, ao domínio positivo do saber. Seria, portanto, tão vão e injusto analisá-Ias como fenômenos de opinião, quanto confrontá-Ias, pela história ou pela crítica, com as formações propriamente científicas; mais absurdo ainda seria tratá- Ias como uma combinação que misturasse, segundo proporções variáveis, “elementos racionais” com outros que não o fossem. É preciso recolocá-las ao nível da positividade que as torna possíveis e determina necessariamente sua forma. A arqueologia tem, pois, para com elas, duas tarefas: determinar a maneira como elas se dispõem na epistémê em que se enraízam; mostrar também em que sua configuração é radicalmente diferente daquela das ciências no sentido estrito. Essa configuração que lhes é peculiar não deve ser tratada como um fenômeno negativo: não é a presença de um obstáculo, não é alguma deficiência interna que as fazem malograr no limiar das formas científicas. Elas constituem, na sua figura própria, ao lado das ciências e sobre o mesmo solo arqueológico, outras configurações do saber. 

Já foram encontrados exemplos de tais configurações na gramática geral ou na teoria clássica do valor; tinham o mesmo solo de positividade que a matemática cartesiana, mas não eram ciências, ao menos para a maioria daqueles que lhes eram contemporâneos. 

  • É o caso também do que se denomina hoje ciências humanas; 

elas desenham, quando se lhes faz a análise arqueológica, configurações perfeitamente positivas; mas, desde que se determinam essas configurações e a maneira como estão dispostas na epistémê moderna, compreende-se por que não podem ser ciências: o que as torna possíveis, com efeito, é uma certa situação de “vizinhança” em relação à biologia, à economia, à filologia (ou à linguística); elas só existem na medida em que se alojam ao lado destas – ou antes, debaixo delas, no seu espaço de projeção. Com elas mantêm, entretanto, uma relação que é radicalmente diferente daquela que se pode estabelecer entre duas ciências “conexas” ou “afins”: essa relação, com efeito, supõe a transferência de modelos exteriores na dimensão do inconsciente e da consciência e o refluxo da reflexão crítica em direção ao próprio lugar donde vêm esses modelos. 

Inútil, pois, dizer que as “ciências humanas” são falsas ciências; simplesmente não são ciências; a configuração que define sua positividade e as enraíza na epistémê moderna coloca-as, ao mesmo tempo, fora da situação de serem ciências; e se se perguntar então por que assumiram esse título, bastará lembrar que pertence à definição arqueológica de seu enraizamento o fato de que elas requerem e acolhem a transferência de modelos tomados de empréstimo a ciências. 

Não é, pois, a irredutibilidade do homem, aquilo que se designa como sua invencível transcendência, nem mesmo sua complexidade demasiado grande que o impede de tornar-se objeto de ciência. 

A cultura ocidental constituiu, sob o nome de homem, um ser que, por um único e mesmo jogo de razões, deve ser domínio positivo do saber e não pode ser objeto de ciência.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;

Capítulo X – As ciências humanas;
tópico III. Os três modelos

II. A forma das ciências humanas

II. A forma das ciências humanas

É preciso esboçar agora a forma dessa positividade. 

De ordinário, tenta-se defini-la em função das matemáticas: 

  • quer porque se busca aproximá-la o mais possível destas, fazendo o inventário de tudo o que nas ciências humanas é matematizável e supondo que tudo o que não é suscetível de semelhante formalização não recebeu ainda sua positividade científica; 
  • quer porque se tenta, ao contrário, distinguir com cuidado o domínio do matematizável e aquele outro que lhe seria irredutível, porque seria o lugar da interpretação, porque se lhes aplicariam sobretudo os métodos da compreensão, porque se acharia estreitado em torno do pólo clínico do saber. 

Semelhantes análises não são somente cansativas porque gastas, mas antes de tudo porque carecem de pertinência. Certamente, não há dúvida de que essa forma de saber empírico que se aplica ao homem (e que, para obedecer à convenção, pode-se ainda chamar de “ciências humanas” antes mesmo de saber em que sentido e dentro de que limites podem ser denominadas “ciências”) tem relação com as matemáticas: como qualquer outro domínio do saber, elas podem, sob certas condições, servir-se do instrumental matemático; alguns de seus procedimentos, muitos dos seus resultados podem ser formalizados. 

É, seguramente, de primeira importância, conhecer esses instrumentos, poder praticar essas formalizações, definir os níveis em que podem ser efetuadas; é, sem dúvida, interessante para a história saber como Condorcet pôde aplicar o cálculo das probabilidades à política, como Fechner definiu a relação logarítmica entre o crescimento da sensação e o da excitação, como os psicólogos contemporâneos se servem da teoria da informação para compreender os fenômenos da aprendizagem. 

Mas, apesar da especificidade dos problemas colocados, é pouco provável que a relação com as matemáticas (as possibilidades de matematização, ou a resistência a todos os esforços de formalização) seja constitutiva das ciências humanas na sua positividade singular. E isso por duas razões: 

  • porque, no essencial, elas têm esses problemas em comum com muitas outras disciplinas (como a biologia, a genética) ainda que eles não sejam, aqui e lá, identicamente os mesmos; 
  • e sobretudo porque a análise arqueológica não descortinou, no a priori histórico das ciências humanas, uma forma nova das matemáticas ou um brusco avanço destas no domínio do humano, mas, sim, muito mais uma espécie de retraimento da máthêsis, uma dissociação de seu campo unitário e a liberação, em relação à ordem linear das menores diferenças possíveis, de organizações empíricas como a vida, a linguagem e o trabalho. 

Nesse sentido, o aparecimento do homem e a constituição das ciências humanas (ainda que sob a forma de um projeto) seriam correlativos de uma espécie de “des-matematização”. 

Dir-se-á, sem dúvida, que essa dissociação de um saber concebido por inteiro como máthêsis não era um recuo das matemáticas, pela simples razão de que esse saber jamais conduzira (salvo em astronomia e sobre certos pontos de física) a uma matematização efetiva; ao desaparecer, ele antes liberava a natureza e todo o campo das empiricidades para uma aplicação, a cada instante limitado e controlado, das matemáticas; os primeiros grandes progressos da física matemática, as primeiras utilizações maciças do cálculo das probabilidades não datam do momento em que se renunciou a constituir imediatamente uma ciência geral das ordens não-quantificáveis? 

Com efeito, não se pode negar que a renúncia a uma máthêsis (ao menos provisoriamente) permitiu, em certos domínios do saber, suspender o obstáculo da qualidade, e aplicar o instrumental matemático lá onde ele ainda não penetrara. Mas se, ao nível da física, a dissociação do projeto da máthêsis constitui uma única e mesma coisa com a descoberta de novas aplicações das matemáticas, o mesmo não ocorreu em todos os domínios: a biologia, por exemplo, além de uma ciência das ordens qualitativas, constituiu-se como análise das relações entre os órgãos e as funções, estudo das estruturas e dos equilíbrios, investigações sobre sua formação e seu desenvolvimento na história dos indivíduos ou das espécies; tudo isso não impediu que a biologia utilizasse as matemáticas e que estas pudessem aplicar-se à biologia bem mais amplamente que no passado. 

Todavia, não foi em sua relação com as matemáticas que a biologia assumiu sua autonomia e definiu sua positividade. O mesmo ocorreu com as ciências humanas: 

  • foi o retraimento da máthêsis e não o avanço das matemáticas que permitiu ao homem constituir-se como objeto de saber; 
  • foi o envolvimento do trabalho, da vida e da linguagem em torno deles próprios que prescreveu, do exterior, o aparecimento desse novo domínio; 
  • e é o aparecimento desse ser empírico-transcendental, desse ser cujo pensamento é indefinidamente tramado com o impensado, desse ser sempre separado de uma origem que lhe é prometida na imediatidade do retorno – é esse aparecimento que dá às ciências humanas sua feição singular. 

Também aí, como em outras disciplinas, pode ser que a aplicação das matemáticas tenha sido facilitada (e o seja cada vez mais) por todas as modificações que se produziram, no começo do século XIX, no saber ocidental. Imaginar, porém, que as ciências humanas definiram seu projeto mais radical e inauguraram sua história positiva no dia em que se pretendeu aplicar o cálculo das probabilidades aos fenômenos da opinião política e utilizar logaritmos para medir a intensidade crescente das sensações é tomar um contra-efeito de superfície pelo acontecimento fundamental.

Em outros termos, entre as três dimensões que abrem às ciências humanas seu espaço próprio e lhes facultam o volume em que elas tomam corpo, 

  • a das matemáticas é talvez a menos problemática; 

é com ela, em todo o caso, que as ciências humanas entretêm as relações mais claras, mais serenas e, de certo modo, mais transparentes: tanto mais que o recurso às matemáticas, sob uma forma ou outra, sempre foi a maneira mais simples de emprestar ao saber positivo sobre o homem um estilo, uma forma, uma justificação científica. Em contrapartida, as dificuldades mais fundamentais, as que permitem melhor definir o que são, em sua essência, as ciências humanas, alojam-se do lado das outras duas dimensões do saber: 

  • aquela em que se desenrola a analítica da finitude 
  • e aquela ao longo da qual se repartem as ciências empíricas que tomam por objeto a linguagem, a vida e o trabalho.

As ciências humanas, com efeito, endereçam-se ao homem, na medida em que ele vive, em que fala, em que produz. 

  • É como ser vivo que ele cresce, que tem funções e necessidades, que vê abrir-se um espaço cujas coordenadas móveis ele articula em si mesmo; de um modo geral, sua existência corporal fá-Io entrecruzar-se, de parte a parte, com o ser vivo; 
  • produzindo objetos e utensílios, trocando aquilo de que tem necessidade, organizando toda uma rede de circulação ao longo da qual perpassa o que ele pode consumir e em que ele próprio se acha definido como elemento de troca, aparece ele em sua existência imediatamente imbricado com os outros; 
  • enfim, porque tem uma linguagem, pode constituir por si todo um universo simbólico, em cujo interior se relaciona com seu passado, com coisas, com outrem, a partir do qual pode imediatamente construir alguma coisa com um saber (particularmente esse saber que tem de si mesmo e do qual as ciências humanas desenham uma das formas possíveis). 

Pode-se, portanto, fixar o lugar das ciências do homem nas vizinhanças, nas fronteiras imediatas e em toda a extensão dessas ciências em que se trata da vida, do trabalho e da linguagem. 

Não chegam estas justamente a se formar na época em que, pela primeira vez, o homem se oferece à possibilidade de um saber positivo? 

Contudo, nem a biologia, nem a economia, nem a filologia devem ser tomadas como as primeiras ciências humanas nem como as mais fundamentais. 

Isso se reconhece sem dificuldade no caso da biologia, que se dirige a muitos outros seres vivos além do homem; 

tem-se mais dificuldade em admiti-lo no caso da economia ou da filologia, que têm por domínio próprio e exclusivo atividades específicas do homem. 

Mas não se pergunta por que é que a biologia ou a fisiologia humanas, por que é que a anatomia dos centros corticais da linguagem não podem, de modo algum, ser consideradas como ciências do homem. 

É que o objeto destas últimas jamais se dá ao modo de ser de um funcionamento biológico (nem mesmo sob sua forma singular e como que a de seu prolongamento no homem); ele é antes seu reverso, sua marca no vazio; ele começa lá onde pára – não a ação ou os efeitos – mas o ser próprio desse funcionamento – lá onde se liberam representações, verdadeiras ou falsas, claras ou obscuras, perfeitamente conscientes ou embrenhadas na profundidade de alguma sonolência, observáveis direta ou indiretamente, oferecidas naquilo que o próprio homem enuncia ou detectáveis somente do exterior; a busca das ligações intracorticais entre os diferentes centros de integração da linguagem (auditivos, visuais, motores) não é da alçada das ciências humanas; mas estas encontrarão seu espaço de desempenho, desde que se interrogue esse espaço de palavras, essa presença ou esse esquecimento de seu sentido, essa distância entre o que se quer dizer e a articulação em que essa intenção é investida, coisas de que o sujeito talvez não tenha consciência, mas que não teriam nenhum modo de ser assinalável se esse mesmo sujeito não tivesse representações.

De um modo mais geral, o homem, para as ciências humanas, 

  • não é esse ser vivo que tem uma forma bem particular (uma fisiologia bastante especial e uma autonomia quase única); 
  • é esse ser vivo que, do interior da vida à qual pertence inteiramente e pela qual é atravessado em todo o seu ser, constitui representações graças às quais ele vive e a partir das quais detém esta estranha capacidade de poder se representar justamente a vida. 

Do mesmo modo, conquanto o homem seja a única espécie no mundo que trabalha, ao menos aquela em que a produção, a distribuição, o consumo dos bens assumiram tanta importância e receberam formas tão múltiplas e tão diferenciadas, nem por isso a economia é uma ciência humana. 

Dir-se-á talvez que esta, 

  • para definir leis que são contudo interiores aos mecanismos da produção (como o acúmulo do capital ou as relações entre as taxas dos salários e os custos de produção), recorre a comportamentos humanos e a uma representação que o fundamentam (o interesse, a busca do lucro máximo, a tendência para a poupança); mas, ao fazê-lo, ela utiliza as representações como requisito de um funcionamento (que passa, com efeito, por uma atividade humana explícita); 
  • em contrapartida, só haverá ciência do homem se nos dirigirmos à maneira como os indivíduos ou os grupos se representam seus parceiros na produção e na troca, o modo como esclarecem, ou ignoram, ou mascaram esse funcionamento e a posição que aí ocupam, a maneira como se representam a sociedade em que isso ocorre, o modo como se sentem integrados a ela ou isolados, dependentes, submetidos ou livres; 

o objeto das ciências humanas 

  • não é esse homem que, desde a aurora do mundo, ou o primeiro grito de sua idade de ouro, está destinado ao trabalho; 
  • é esse ser que, do interior das formas da produção pelas quais toda a sua existência é comandada, forma a representação dessas necessidades, da sociedade pela qual, com a qual ou contra a qual as satisfaz, de sorte que, a partir daí, pode ele finalmente se dar a representação da própria economia. 

Quanto à linguagem, ocorre o mesmo: embora o homem seja, no mundo, o único ser que fala, 

  • não constitui ciência humana conhecer as mutações fonéticas, o parentesco das línguas, a lei dos desvios semânticos; 
  • em contrapartida, poder-se-á falar de ciência humana desde que se busque definir a maneira como os indivíduos ou os grupos se representam as palavras, utilizam sua forma e seu sentido, compõem discursos reais, mostram e escondem neles o que pensam, dizem, talvez à sua revelia, mais ou menos do que pretendem, deixam desses pensamentos, em todo o caso, uma massa de traços verbais que é preciso decifrar e restituir, tanto quanto possível, à sua vivacidade representativa. 

O objeto das ciências humanas 

  • não é, pois, a linguagem (falada, contudo, apenas pelos homens), 
  • mas, sim, esse ser que, do interior da linguagem pela qual está cercado, se representa, ao falar, o sentido das palavras ou das proposições que enuncia e se dá, finalmente, a representação da própria linguagem.

Vê-se que as ciências humanas 

  • não são uma análise do que o homem é por natureza; 
  • são antes uma análise que se estende entre o que o homem é em sua positividade (ser que vive, trabalha, fala) e o que permite a esse mesmo ser saber (ou buscar saber) o que é a vida, em que consistem a essência do trabalho e suas leis, e de que modo ele pode falar. 

As ciências humanas ocupam, pois, essa distância que separa (não sem uni-Ias) a biologia, a economia, a filologia daquilo que lhes dá possibilidade no ser mesmo do homem. Seria errôneo, portanto, fazer das ciências humanas o prolongamento, interiorizado na espécie humana, no seu organismo complexo, na sua conduta e na sua consciência, dos mecanismos biológicos; não menos errôneo colocar, no interior das ciências humanas, a ciência da economia e da linguagem (cuja irredutibilidade às ciências humanas é manifestada pelo esforço para constituir uma economia e uma linguística puras). 

De fato, nem as ciências humanas estão no interior dessas ciências, nem as interiorizam, inclinando-as em direção à subjetividade do homem; se as retomam na dimensão da representação, é antes reassumindo-as em sua vertente exterior, deixando-as na sua opacidade, acolhendo como coisas os mecanismos e os funcionamentos que elas isolam, interrogando estes últimos não no que são, mas no que deixam de ser quando se abre o espaço da representação; e, a partir daí, elas mostram como pode nascer e desdobrar-se uma representação do que eles sejam. 

Elas reconduzem sub-repticiamente as ciências da vida, do trabalho e da linguagem, para o lado dessa analítica da finitude que mostra como pode o homem haver-se, no seu ser, com essas coisas que ele conhece e conhecer essas coisas que determinam, na positividade, seu modo de ser. 

Mas aquilo que a analítica requer na interioridade ou ao menos na dependência profunda de um ser que não deve sua finitude senão a si mesmo, as ciências humanas o desenvolvem na exterioridade do conhecimento. 

É por isso que o específico das ciências humanas não é o direcionamento a certo conteúdo (esse objeto singular que é o ser humano); é muito mais um caráter puramente formal: o simples fato de estarem, em relação às ciências em que o ser humano é dado como objeto (exclusivo para a economia e a filologia, ou parcial para a biologia), numa posição de reduplicação, e de que essa reduplicação possa valer a fortiori para elas mesmas.

Essa posição torna-se perceptível em dois níveis: 

  • as ciências humanas não tratam a vida, o trabalho e a linguagem do homem na maior transparência em que se podem dar, mas naquela camada de condutas, de comportamentos, de atitudes, de gestos já feitos, de frases já pronunciadas ou escritas, em cujo interior eles foram dados antecipadamente, numa primeira vez, àqueles que agem, se conduzem, trocam, trabalham e falam; 
  • em outro nível (é sempre a mesma propriedade formal, mas desenvolvida até o ponto extremo e mais raro), é sempre possível tratar, em estilo de ciências humanas (de psicologia, de sociologia, de história das culturas ou das idéias ou das ciências) o fato de haver para certos indivíduos ou certas sociedades alguma coisa como um saber especulativo da vida, da produção e da linguagem – em última análise, uma biologia, uma economia e uma filologia. 

Sem dúvida, isso é apenas a indicação de uma possibilidade que raramente é efetuada e que talvez não seja suscetível, ao nível das empiricidades, de oferecer uma grande riqueza; mas, o fato de que ela existe como distância eventual, como espaço de recuo dado às ciências humanas em relação àquilo mesmo donde elas vêm, o fato também de que esse jogo pode aplicar-se a elas próprias (podem-se sempre fazer as ciências humanas das ciências humanas, a psicologia da psicologia, a sociologia da sociologia etc.) bastam para mostrar sua singular configuração. 

Em relação à biologia, à economia, às ciências da linguagem, elas não estão, portanto, em carência de exatidão ou de rigor; estão antes, como ciências da reduplicação, numa posição “metaepistemológica”. 

Ainda assim, o prefixo não está talvez muito bem escolhido: pois só se fala de metalinguagem quando se trata de definir as regras de interpretação de uma linguagem primeira. 

Aqui as ciências humanas, quando reduplicam as ciências da linguagem, do trabalho e da vida, quando, na sua mais fina extremidade, se reduplicam a si mesmas, não visam a estabelecer um discurso formalizado: ao contrário, elas embrenham o homem que tomam por objeto no campo da finitude, da relatividade, da perspectiva – no campo da erosão indefinida do tempo. 

Talvez fosse melhor falar a seu propósito de posição “ana” ou “hipoepistemológica”; se libertássemos este último prefixo do que pode ter de pejorativo, ele explicaria sem dúvida as coisas: faria compreender que a invencível impressão de fluidez, de inexatidão, de imprecisão que deixam quase todas as ciências humanas não é senão o efeito de superfície daquilo que permite defini-Ias em sua positividade.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas
Capítulo X – As ciências humanas;
tópico II – A forma das ciências humanas

II. O lugar do rei: Las meninas

O lugar do rei: Las meninas

Las meniñas, de Diego Velazquez, de 1656

pintura a óleo, com 3,18 m x 2,76 m
do período barroco, Museu do Prado

Em tantas ignorâncias, em tantas interrogações permanecidas em suspenso, seria preciso, sem dúvida, deter-se: 

  • aí está fixado o fim do discurso, 
  • e o recomeço talvez do trabalho. 

Há ainda, no entanto, algumas palavras a dizer. 

Palavras cujo estatuto é, sem dúvida, difícil de justificar, pois se trata de introduzir no último instante e como que por um lance de teatro artificial, uma personagem que não figurara ainda no grande jogo clássico das representações. 

Seria interessante encontrar a lei prévia desse jogo no quadro Las meninas, onde a representação é representada em cada um de seus momentos:

  • pintor, palheta, grande superfície escura da tela virada, quadros pendurados na parede, espectadores que olham e que são, por sua vez, enquadrados por aqueles que os olham; 
  • enfim, no centro, no coração da representação, o mais próximo do que é essencial, o espelho que mostra o que é representado, mas como um reflexo tão longínquo, tão imerso num espaço irreal, tão estranho a todos os olhares que se voltam para outras partes, que não é mais do que a mais frágil reduplicação da representação. 

Todas as linhas interiores do quadro e sobretudo aquelas que vêm do reflexo central apontam para aquilo mesmo que é representado mas que está ausente. 

Ao mesmo tempo 

  • objeto – por ser o que o artista representado está em via de recopiar sobre a tela – 
  • e sujeito -, 
    • visto que o que o pintor tinha diante dos olhos ao se representar no seu trabalho era ele próprio, 
    • visto que os olhares figurados no quadro estão dirigidos para esse lugar fictício da personagem régia que é o lugar real do pintor, 
    • visto finalmente que o hóspede desse lugar ambíguo, onde se alternam, como que num pestanejar sem limite, o pintor e o soberano, é o espectador cujo olhar transforma o quadro num objeto, pura representação dessa ausência essencial. 

Ademais, essa ausência não é uma lacuna, salvo para o discurso que laboriosamente decompõe o quadro, pois ela não cessa jamais de ser habitada e de o ser realmente, como o provam a atenção do pintor representado, o respeito das personagens que o quadro figura, a presença da grande tela vista ao revés e nosso próprio olhar para quem esse quadro existe e para quem, do fundo do tempo, ele foi disposto.

No pensamento clássico, 
aquele para quem a representação existe, 
e que nela se representa a si mesmo, 
aí se reconhecendo por imagem ou reflexo, 
aquele que trama
[o homem] todos os fios entrecruzados 
da “representação em quadro” -, 

esse jamais se encontra lá presente. 

Antes do fim do século XVIII,
o homem não existia. 

Não mais que a potência da vida, a fecundidade do trabalho ou a espessura histórica da linguagem. 

É uma criatura muito recente que a demiurgia do saber fabricou com suas mãos há menos de 200 anos: mas ele envelheceu tão depressa que facilmente se imaginou que ele esperara na sombra, durante milênios, o momento de iluminação em que seria enfim conhecido.

Certamente poder-se-ia dizer que 

  • a gramática geral, 
  • a história natural, 
  • a análise das riquezas 

eram, num certo sentido, maneiras de reconhecer o homem, mas é preciso discernir.

Sem dúvida, as ciências naturais trataram do homem como 

  • de uma espécie 
  • ou de um gênero

a discussão sobre o problema das raças, no século XVIII, o testemunha. 

A gramática e a economia, por outro lado, utilizavam noções como as de necessidade, de desejo, ou de memória e de imaginação

Mas não havia
consciência epistemológica
do homem como tal. 

A epistémê clássica se articula segundo linhas que de modo algum isolam o domínio próprio e específico do homem.

E se se insistir ainda, se se objetar que nenhuma época, porém, concedeu tanto à natureza humana, deu-lhe estatuto mais estável, mais definitivo, mais bem ofertado ao discurso – poder-se-á responder dizendo que o próprio conceito de natureza humana e a maneira como ele funcionava excluíam que houvesse uma ciência clássica do homem.

É preciso notar que, na epistémê clássica, as funções da “natureza” e da “natureza humana” opõem-se termo a termo: 

  • a natureza, pelo jogo de uma justaposição real e desordenada, faz surgir a diferença no contínuo ordenado dos seres; 
  • a natureza humana faz aparecer o idêntico na cadeia desordenada das representações, e isso pelo jogo de uma exposição das imagens. 

Uma implica um desarranjo de uma história para a constituição das paisagens atuais; a outra implica a comparação de elementos inatuais que desfazem a trama de uma seqüência cronológica.

Apesar dessa oposição, ou, antes, através dela, vê-se delinear-se a relação positiva entre a natureza e a natureza humana. 

Com efeito, elas lidam com elementos idênticos (o mesmo, o contínuo, a imperceptível diferença, a sucessão sem ruptura); ambas fazem aparecer, sobre uma trama ininterrupta, a possibilidade de uma análise geral que permite repartir identidades isoláveis e as visíveis diferenças, segundo um espaço em quadro e uma seqüência ordenada. 

Mas não o conseguem uma sem a outra, e é assim que se comunicam. 

Com efeito, pelo poder que tem de se reduplicar (na imaginação e na lembrança, e na atenção múltipla que compara), a cadeia das representações pode reencontrar, por sob a desordem da terra, a superfície sem ruptura dos seres; a memória, a princípio temerária e entregue aos caprichos das representações tais quais se oferecem, fixa-se, pouco a pouco, num quadro geral de tudo o que existe; o homem pode então fazer entrar o mundo na soberania de um discurso que tem o poder de representar sua representação.

No ato de falar, ou, antes (mantendo-se o mais perto possível do que há de essencial para a experiência clássica da linguagem), no ato de nomear, a natureza humana, como dobra da representação sobre si mesma, transforma a seqüência linear dos pensamentos numa tabela constante de seres parcialmente diferentes: o discurso em que ela reduplica suas representações e as manifesta liga-a à natureza. 

Inversamente, a cadeia dos seres é ligada à natureza humana pelo jogo da natureza: visto que o mundo real, tal como se dá aos olhares, não é o desenrolar puro e simples da cadeia fundamental dos seres, mas oferece-a em fragmentos misturados – repetidos e descontínuos -, a série das representações no espírito não é constrangida a seguir o caminho contínuo das diferenças imperceptíveis; nela os extremos se encontram, as mesmas coisas se dão várias vezes; os traços idênticos se superpõem na memória; as diferenças eclodem. 

Assim, a grande superfície indefinida e contínua imprime-se em caracteres distintos, em traços mais ou menos gerais, em marcas de identificação. E, por conseguinte, em palavras. A cadeia dos seres torna-se discurso, ligando-se assim à natureza humana e à série das representações.

Esse processo de comunicação entre a natureza e a natureza humana, a partir de duas funções opostas mas complementares, pois que não podem exercer-se uma sem a outra, traz consigo amplas conseqüências teóricas. 

Para o pensamento clássico, o homem não se aloja na natureza por intermédio dessa “natureza” regional, limitada e específica que lhe é concedida por direito de nascimento como a todos os outros seres. 

Se a natureza humana se imbrica com a natureza, é pelos mecanismos do saber e pelo seu funcionamento; ou, antes, na grande disposição da epistémê clássica, a natureza, a natureza humana e suas relações são momentos funcionais, definidos e previstos. 

E o homem,
como realidade espessa e primeira,
como objeto difícil
e sujeito soberano de todo conhecimento possível,
não tem aí nenhum lugar. 

Os temas modernos de um indivíduo que vive, fala e trabalha segundo as leis de uma economia, de uma filologia e de uma biologia, mas que, por uma espécie de torção interna e de superposição, teria recebido, pelo jogo dessas próprias leis, o direito de conhecê-las e de colocá-las inteiramente à luz, todos esses temas, para nós familiares e ligados à existência das “ciências humanas” são excluídos pelo pensamento clássico: não era possível naquele tempo que se erguesse, no limite do mundo, essa estatura estranha de um ser cuja natureza (a que o determina, o detém e o atravessa desde o fundo dos tempos) consistisse em conhecer a natureza e, por conseguinte, a si mesmo como ser natural.

Em contrapartida, no ponto de encontro entre a representação e o ser, lá onde se entrecruzam natureza e natureza humana – nesse lugar onde hoje cremos reconhecer a existência primeira, irrecusável e enigmática do homem – o que o pensamento clássico faz surgir é o poder do discurso. Isto é, da linguagem na medida em que ela representa – a linguagem que nomeia, que recorta, que combina, que articula e desarticula as coisas, tornando-as visíveis na transparência das palavras. 

Nesse papel, a linguagem transforma a seqüência das percepções em quadro e, em retorno, recorta o contínuo dos seres em caracteres. Lá onde há discurso, as representações se expõem e se justapõem; as coisas se reúnem e se articulam. 

A vocação profunda da linguagem clássica foi sempre a de constituir “quadro”: 

  • quer fosse como discurso natural, 
  • recolhimento da verdade, 
  • descrição das coisas, 
  • corpus e conhecimentos exatos, 
  • ou dicionário enciclopédico. 

Ela só existe, portanto, para ser transparente; 

  • perdeu aquela consistência secreta que, no século XVI, lhe dava a espessura de uma palavra a decifrar e a imbricava com as coisas do mundo; 
  • não adquiriu ainda essa existência múltipla acerca da qual hoje nos interrogamos: 

na idade clássica, o discurso é essa necessidade translúcida através da qual passam a representação e os seres – quando os seres são representados ao olhar do espírito, quando a representação torna visíveis os seres em sua verdade. 

A possibilidade de conhecer as coisas e sua ordem passa, na experiência clássica, pela soberania das palavras: 

  • estas não são estritamente nem marcas a decifrar (como na época do Renascimento), 
  • nem instrumentos mais ou menos fiéis e domináveis (como na época do positivismo); 
  • formam, antes, a rede incolor a partir da qual os seres se manifestam e as representações se ordenam. 

Daí, sem dúvida, o fato de que a reflexão clássica sobre a linguagem, embora faça parte de uma disposição geral em que ela entra ao mesmo título que a análise das riquezas e a história natural, exerça, em relação a elas, um papel diretivo.

Mas a conseqüência essencial é que a linguagem clássica como discurso comum da representação e das coisas, como lugar em cujo interior natureza e natureza humana se entrecruzam, exclui absolutamente qualquer coisa que fosse “ciência do homem”. 

Enquanto essa linguagem falou na cultura ocidental, não era possível que a existência humana fosse posta em questão por ela própria, pois o que nela se articulava eram a representação e o ser. 

O discurso que, no século XVII, ligou um ao outro o “Eu penso” e o “Eu sou” daquele que o efetivava – esse discurso permaneceu, sob uma forma visível, a essência mesma da linguagem clássica, pois o que nele se articulava, de pleno direito, eram a representação e o ser. 

A passagem do “Eu penso” ao “Eu sou” realizava-se sob a luz da evidência, no interior de um discurso cujo domínio e cujo funcionamento consistiam por inteiro em articular, um ao outro, o que se representa e o que é. 

Não há, pois, que objetar a essa passagem nem que o ser em geral não está contido no pensamento, nem que este ser singular tal como é designado pelo “Eu sou” não foi interrogado nem analisado por si próprio. 

Ou, antes, essas objeções podem realmente nascer e fazer valer seu direito, mas a partir de um discurso que é profundamente outro e que não tem por razão de ser o liame entre a representação e o ser; só uma problemática que contorne a representação poderá formular semelhantes objeções. 

Mas, enquanto durou o discurso clássico, uma interrogação sobre o modo de ser implicado pelo Cogito não podia ser articulada.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo IX – O homem e seus duplos;
tópico II. O lugar do rei

IV. A história

A História

Falou-se das ciências humanas; falou-se destas grandes regiões que a psicologia, a sociologia, a análise das literaturas e das mitologias aproximadamente delimitam. 

Não se falou da História, embora seja a primeira e como que a mãe de todas as ciências do homem, embora seja tão velha talvez quanto a memória humana. Ou melhor, é por esta razão mesma que ela permaneceu até agora em silêncio. 

Com efeito, ela talvez não tenha lugar entre as ciências humanas nem ao lado delas: é provável que entretenha com elas uma relação estranha, indefinida, indelével e mais fundamental do que o seria uma relação de vizinhança num espaço comum. 

É verdade que a História existiu bem antes da constituição das ciências humanas; desde os confins da idade grega, exerceu ela na cultura ocidental um certo número de funções maiores: memória, mito, transmissão da Palavra e do Exemplo, veículo da tradição, consciência crítica do presente, decifração do destino da humanidade, antecipação do futuro ou promessa de um retorno.

 O que caracterizava esta História – o que, ao menos, pode defini-Ia, em seus traços gerais, em oposição à nossa – é que, regulando o tempo dos humanos pelo devir do mundo (numa espécie de grande cronologia cósmica, como nos estóicos), ou, inversamente, estendendo até às menores parcelas da natureza o princípio e o movimento de uma destinação humana (um pouco à maneira da Providência cristã), concebia-se uma grande história plana, uniforme em cada um de seus pontos, que teria arrastado num mesmo fluir, numa mesma queda ou numa mesma ascensão, num mesmo ciclo, todos os homens e, com eles, as coisas, os animais, cada ser vivo ou inerte, e até os semblantes mais calmos da terra. 

Ora, é esta unidade que se achou fraturada no começo do século XIX, na grande reviravolta da epistémê ocidental: 

  • descobriu-se uma historicidade própria à natureza; 
  • definiu-se mesmo, para cada grande tipo do ser vivo, formas de ajustamento ao meio que iam permitir, em seguida, definir seu perfil de evolução; 
  • mais ainda, pôde-se mostrar que atividades tão singularmente humanas, como o trabalho ou a linguagem, detinham, em si mesmas, uma historicidade que não podia encontrar seu lugar na grande narrativa comum às coisas e aos homens; 
  • a produção tem modos de desenvolvimento, o capital, modos de acumulação, os preços, leis de oscilação e mudanças que não podem nem restringir-se às leis naturais nem reduzir-se à marcha geral da humanidade; 
  • do mesmo modo a linguagem modifica-se não tanto com as migrações, o comércio e as guerras, ao sabor do que sucede ao homem ou ao capricho do que ele pode inventar, mas, sim, sob condições que pertencem propriamente às formas fonéticas e gramaticais de que ela é constituída; 

e se se pôde dizer que as diversas linguagens nascem, vivem, perdem sua força envelhecendo e acabam por morrer, esta metáfora biológica não é feita para dissolver sua história num tempo que seria o da vida, mas, antes, para sublinhar que também elas têm leis internas de funcionamento e que sua cronologia se desenvolve segundo um tempo que decorre primeiramente da sua coerência singular.

Tende-se comumente a crer que o século XIX, por razões na maior parte políticas e sociais, dirigiu uma atenção mais aguda à história humana, que se abandonou a idéia de uma ordem ou de um plano contínuo do tempo, assim como a de um progresso ininterrupto, e que, pretendendo narrar sua própria ascensão, a burguesia encontrou, no calendário de sua vitória, a espessura histórica das instituições, o peso dos hábitos e das crenças, a violência das lutas, a alternância ou abreviar a validade das leis econômicas, pela consciência que delas tem e pelas instituições que organiza a partir delas ou em tomo delas, que lhe permite, enfim, exercer sobre a linguagem, em cada uma das palavras que pronuncia, uma espécie de pressão interior constante que, insensivelmente, fá-lo deslizar sobre si mesmo em cada instante do tempo? 

Assim aparece, por trás da história das positividades, aquela, mais radical, do próprio homem. História que concerne agora ao ser mesmo do homem, pois que se evidencia que não somente ele “tem”, em tomo de si, “História”, mas que ele mesmo é, em sua historicidade própria, aquilo pelo que se delineia uma história da vida humana, uma história da economia, uma história das linguagens. 

Haveria, pois, a um nível muito profundo, uma historicidade do homem que seria, por si mesma, sua própria história, mas também a dispersão radical que funda todas as outras. É justamente essa erosão primeira que o século XIX buscou na sua preocupação de tudo historicizar, de escrever, a propósito de cada coisa, uma história geral, de remontar incessantemente no tempo e de repor as coisas mais estáveis na liberação do tempo.

Também aí, é preciso, sem dúvida, rever a maneira como se escreve tradicionalmente a história da História; tem-se o hábito de dizer que, com o século XIX, cessou a pura crônica dos acontecimentos, a simples memória de um passado povoado somente de indivíduos e de acidentes, e que se buscaram as leis gerais do devir. 

De fato, nenhuma história foi mais “explicativa”, mais preocupada com leis gerais e com constantes que as da idade clássica – quando o mundo e o homem, num só movimento, se incorporavam numa história única. 

A partir do século XIX, o que vem à luz é uma forma nua da historicidade humana – o fato de que o homem enquanto tal está exposto ao acontecimento. Daí a preocupação, seja de encontrar leis para esta pura forma (e têm-se filosofias como as de Spengler), seja de defini-Ia a partir do fato de que o homem vive, de que o homem trabalha, de que o homem fala e pensa: e têm-se as interpretações da História a partir do homem considerado como espécie viva, ou a partir das leis da economia, ou a partir dos conjuntos culturais.

Em todo o caso, essa disposição da História no espaço epistemológico é de grande importância para sua relação com as ciências humanas. 

Uma vez que o homem histórico é o homem que vive, trabalha e fala, todo conteúdo da História, qualquer que seja, concerne à psicologia, à sociologia ou às ciências da linguagem. 

Mas, inversamente, uma vez que o ser humano se tornou, de ponta a ponta, histórico, nenhum dos conteúdos analisados pelas ciências humanas pode ficar estável em si mesmo nem escapar ao movimento da História. 

E isto por duas razões: 

  • porque a psicologia, a sociologia, a filosofia, mesmo quando aplicadas a objetos – isto é, a homens – que lhe são contemporâneos, não visar jamais senão a cortes sincrônicos no interior de uma historicidade que os constitui e os atravessa;
  • porque as formas assumidas sucessivamente pelas ciências humanas, a escolha que elas fazem de seu objeto, os métodos que lhes aplicam são dados pela História, incessantemente levados por ela e modificados a seu gosto. 

Quanto mais a História tenta ultrapassar seu próprio enraizamento histórico, quanto mais se esforça por atingir, para além da relatividade histórica de sua origem e de suas opções, a esfera da universalidade, tanto mais claramente traz ela os estigmas do seu nascimento histórico, tanto mais evidentemente aparece através dela a história de que ela, mesma faz parte (e disso, também Spengler e todos os filósofos da história dão testemunho); inversamente, quanto mais ela aceita sua relatividade, quanto mais se entranha no movimento que é comum a ela e ao que ela conta, tanto mais então ela tende à exiguidade da narrativa, e todo o conteúdo positivo que ela se conferia através das ciências humanas se dissipa.

A História forma, pois, para as ciências humanas, uma esfera de acolhimento ao mesmo tempo privilegiada e perigosa. 

 

A cada ciência do homem ela dá um fundo básico que a estabelece, lhe fixa um solo e como que uma pátria: ela determina a área cultural – o episódio cronológico, a inserção geográfica – em que se pode reconhecer, para este saber, sua validade; cerca-as, porém, com uma fronteira que as limita e, logo de início, arruína sua pretensão de valerem no elemento da universalidade. 

Desta maneira, ela revela que se o homem – antes mesmo de o saber – sempre esteve submetido às determinações que a psicologia, a sociologia, a análise das linguagens podem manifestar, nem por isso ele é o objeto intemporal de um saber que, pelo menos ao nível de seus direitos, seria, ele próprio, sem idade. 

Ainda quando evitam toda referência à história, as ciências humanas (e, a esse título, pode-se colocar a história entre elas) não fazem mais que pôr em relação um episódio cultural com outro (aquele a que elas se aplicam como ao objeto delas, e aquele em que se enraízam quanto à sua existência, seu modo de ser, seus métodos e seus conceitos); e se elas se aplicam à sua própria sincronia, é ao próprio homem que reportam o episódio cultural donde procedem. 

De sorte que o homem jamais aparece na sua positividade sem que esta seja logo limitada pelo ilimitado da História.

Vê-se reconstituir aqui um movimento análogo ao que animava interiormente todo o domínio das ciências do homem: tal como foi analisado acima, este movimento remetia perpetuamente das positividades que determinam o ser do homem à finitude que faz aparecer estas mesmas positividades; de sorte que as próprias ciências eram arrastadas nesta grande oscilação, a qual, porém, elas, por sua vez, retornavam na forma de sua própria positividade, buscando ir, sem cessar, do consciente ao inconsciente. 

Ora, eis que, com a História, uma oscilação semelhante recomeça; desta feita, porém, ela não se exerce 

  • entre a positividade do homem tomado como objeto (e manifestado empiricamente pelo trabalho, a vida e a linguagem) 
  • e os limites radicais de seu ser; 

exerce-se 

  • entre os limites temporais que definem as formas singulares do trabalho, da vida e da linguagem, 
  • e a positividade histórica do sujeito que, pelo conhecimento, tem acesso a eles. 

Também agora, o sujeito e o objeto estão ligados num questionamento recíproco; mas, 

  • enquanto que antes este questionamento se fazia no interior mesmo do conhecimento positivo e pelo progressivo desvelamento do inconsciente pela consciência, 
  • agora ele se faz nos confins exteriores do objeto e do sujeito; ele designa a erosão a que ambos estão submetidos, a dispersão que os afasta um do outro, arrancando-os a uma positividade calma, enraizada e definitiva. 

Desvelando o inconsciente como seu objeto mais fundamental, as ciências humanas mostravam que havia sempre o que pensar ainda no que já era pensado ao nível manifesto; descobrindo a lei do tempo como limite externo das ciências humanas, a História mostra que tudo o que é pensado o será ainda por um pensamento que ainda não veio à luz. 

Mas talvez não tenhamos aqui, sob as formas concretas do inconsciente e da História, senão as duas faces dessa finitude que, descobrindo que era por si mesma seu próprio fundamento, fez aparecer, no século XIX, a figura do homem: uma finitude sem infinito é, sem dúvida, uma finitude que jamais tem fim, que está sempre em recuo em relação a si mesma, à qual resta ainda alguma coisa para pensar no instante mesmo em que ela pensa, à qual resta sempre tempo para pensar de novo o que ela pensou.

No pensamento moderno, o historicismo e a analítica da finitude estão frente a frente. 

O historicismo é uma forma de fazer valer por ela mesma a perpétua relação critica que se exerce entre a História e as ciências humanas. 

Mas ele a instaura somente ao nível das positividades: o conhecimento positivo do homem é limitado pela positividade histórica do sujeito que conhece, de sorte que o momento da finitude é dissolvido no jogo de uma relatividade à qual não é possível escapar e que vale, ela mesma, como um absoluto. 

Ser finito seria, muito simplesmente, ser tomado pelas leis de uma perspectiva que, ao mesmo tempo, permite uma certa apreensão – do tipo da percepção ou da compreensão – e impede que esta jamais seja intelecção universal e definitiva. 

Todo conhecimento se enraíza numa vida, numa sociedade, numa linguagem que têm uma história; e, nesta história mesma, ele encontra o elemento que lhe permite comunicar-se com outras formas de vida, outros tipos de sociedade, outras significações: é por isto que o historicismo implica sempre uma filosofia ou, ao menos, uma certa metodologia da compreensão viva (no elemento da Lebenswelt), da comunicação inter-humana (sobre o fundo das organizações sociais) e da hermenêutica (como retomada, através do sentido manifesto de um discurso, de um sentido ao mesmo tempo segundo e primeiro, isto é, mais escondido porém mais fundamental). 

Com isto, as diferentes positividades formadas pela História e nela depositadas podem entrar em contato umas com as outras, envolverem-se à maneira de conhecimento, liberarem o conteúdo que nelas dormita; não são então os próprios limites que aparecem no seu rigor imperioso, mas totalidades parciais, totalidades que se acham limitadas de fato, totalidades cujas fronteiras se podem, até certo ponto, alterar, mas que jamais se estenderão no espaço de uma análise definitiva e também jamais se elevarão até a totalidade absoluta. 

É por isto que a análise da finitude não cessa de reivindicar, contra o historicismo, a parte de que este descuidara: ela tem por projeto fazer surgir, no fundamento de todas as positividades e antes delas, a finitude que as torna possíveis; 

  • lá onde o historicismo buscava a possibilidade e a justificação de relações concretas entre totalidades limitadas, cujo modo de ser era dado, de antemão, pela vida, ou pelas formas sociais, ou pelas significações da linguagem, 
  • a analítica da finitude quer interrogar esta relação do ser humano com o ser que, designando a finitude, torna possíveis as positividades em seu modo de ser concreto.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo X – As ciências humanas;
tópico IV – A História

V. Psicanálise, etnologia

V. Psicanálise, etnologia

[da psicanálise]

“A psicanálise e a etnologia ocupam, no nosso saber, um lugar privilegiado. 

Não certamente 

  • porque teriam, melhor que qualquer outra ciência humana, embasado sua positividade e realizado enfim o velho projeto de serem verdadeiramente científicas; 

antes porque, 

  • nos confins de todos os conhecimentos sobre o homem, elas formam seguramente um tesouro inesgotável de experiências e de conceitos, mas, sobretudo, um perpétuo princípio de inquietude, de questionamento, de crítica e de contestação daquilo que, por outro lado, pôde parecer adquirido. 

Ora, há para isto uma razão que tem a ver com o objeto que respectivamente cada uma se atribui, mas tem mais ainda a ver com a posição que ocupam e com a função que exercem no espaço geral da epistémê. 

A psicanálise, com efeito, mantém-se o mais próximo possível desta função crítica acerca da qual se viu que era interior a todas as ciências humanas.

Dando-se por tarefa fazer falar através da consciência o discurso do inconsciente, 

a psicanálise avança na direção desta região fundamental onde se travam as relações entre a representação e a finitude. 

Enquanto todas as ciências humanas

  •  só se dirigem ao inconsciente virando-lhe as costas, esperando que ele se desvele à medida que se faz, como que por recuos, a análise da consciência, 

já a psicanálise 

  • aponta diretamente para ele, de propósito deliberado – 
    • não em direção ao que deve explicitar-se pouco a pouco na iluminação progressiva do implícito, 
    • mas em direção ao que está aí e se furta, que existe com a solidez muda de uma coisa, de um texto fechado sobre si mesmo, ou de uma lacuna branca num texto visível e que assim se defende. 

Não há que supor que o empenho freudiano seja o componente de uma interpretação do sentido e de uma dinâmica da resistência ou da barreira; 

  • seguindo o mesmo caminho que as ciências humanas, 

mas com o olhar voltado em sentido contrário, 

  • a psicanálise se encaminha 

em direção ao momento –inacessível, por definição, a todo conhecimento teórico do homem, a toda apreensão contínua em termos 

        • de significação
        • de conflito 
        • ou de função

– em que os conteúdos da consciência se articulam com,
ou antes, ficam abertos para a finitude do homem. 

Isto quer dizer que, 

  • ao contrário das ciências humanas que, 
    • retrocedendo embora em direção ao inconsciente, 
      • permanecem sempre no espaço do representável, 
  • a psicanálise 
    • avança para transpor a representação, extravasá-la do lado da finitude
    • e fazer assim surgir, lá onde se esperavam 
      • as funções portadoras de suas normas
      • os conflitos carregados de regras 
      • e as significações formando sistema
    • o fato nu de que pode haver 
      • sistema (portanto, significação), 
      • regra (portanto, oposição), 
      • norma (portanto, função). 

E, nessa região onde a representação fica em suspenso, à margem dela mesma, aberta, de certo modo ao fechamento da finitude, desenham-se as três figuras pelas quais 

  • a vida, com suas funções e suas normas, vem fundar-se na repetição muda da Morte, 
  • os conflitos e as regras, na abertura desnudada do Desejo, 
  • as significações e os sistemas, numa linguagem que é ao mesmo tempo Lei. “

[a etnologia)]

Sabe-se como psicólogos e filósofos denominaram tudo isso: mitologia freudiana. 

Era realmente necessário que este empenho de Freud assim lhes parecesse; 

  • para um saber que se aloja no representável, 
  • aquilo que margeia e define, em direção ao exterior, a possibilidade mesma da representação 
  • não pode ser senão mitologia. 

Mas, quando se segue, no seu curso, o movimento da psicanálise, ou quando se percorre o espaço epistemológico em seu conjunto, vê-se bem que estas figuras – imaginárias, sem dúvida, para um olhar míope – são as próprias formas da finitude, tal como é analisada no pensamento moderno: 

não é a morte aquilo a partir de que o saber em geral é possível de sorte tal que ela seria, do lado da psicanálise, a figura desta reduplicação empírico-transcendental que caracteriza na finitude o modo de ser do homem? 

Não é o desejo o que permanece sempre impensado no coração do pensamento? 

E esta Lei-Linguagem (ao mesmo tempo fala e sistema da fala) que a psicanálise se esforça por fazer falar, não é aquilo em que toda significação assume uma origem mais longínqua que ela mesma, mas também aquilo cujo retorno é prometido no ato mesmo da análise? 

É bem verdade que nem esta Morte, nem este Desejo, nem esta Lei podem jamais encontrar-se no interior do saber que percorre em sua positividade o domínio empírico do homem; mas a razão disto é que designam as condições de possibilidade de todo saber sobre o homem. 

E precisamente 

  • quando esta linguagem se mostra em estado nu, mas se furta ao mesmo tempo para fora de toda significação 
    • como se fosse um grande sistema despótico e vazio, 
  • quando o Desejo reina em estado selvagem, 
    • como se o rigor de sua regra tivesse nivelado toda oposição, 
  • quando a Morte domina toda função psicológica e se mantém acima dela 
    • como sua norma única e devastadora 

então reconhecemos a loucura em sua forma presente, a loucura tal como se dá à experiência moderna, como sua verdade e sua alteridade. 

Nessa figura empírica, e contudo estranha a (e em) tudo o que podemos experimentar, nossa consciência 

  • não encontra mais, como no século XVI, o vestígio de um outro mundo; 
  • ela não constata mais o vaguear da razão extraviada; 
  • ela vê surgir o que nos é perigosamente o mais próximo – como se subitamente se perfilasse, em relevo, o recôncavo mesmo de nossa existência; 

a finitude, a partir da qual nós somos, pensamos e sabemos, está subitamente diante de nós, existência a um tempo real e impossível, pensamento que não podemos pensar, objeto para nosso saber mas que a ele se furta sempre. 

É por isso que a psicanálise encontra nesta loucura por excelência – a que os psiquiatras chamam esquizofrenia – o seu íntimo, o seu mais invencível tormento: pois nesta loucura se dão, sob uma forma absolutamente manifesta e absolutamente retraída, as formas da finitude em direção à qual, de ordinário, ela avança indefinidamente (e no interminável), a partir do que lhe é voluntária-involuntariamente oferecido na linguagem do paciente. 

De sorte que a psicanálise “reconhece-se aí”, quando é colocada diante destas mesmas psicoses às quais, no entanto (ou antes, por essa mesma razão) ela quase não tem acesso: como se a psicose expusesse numa iluminação cruel e oferecesse de um modo demasiado longínquo, mas justamente demasiado próximo, aquilo em cuja direção a análise deve lentamente caminhar. 

Mas esta relação da psicanálise com o que torna possível todo saber em geral na ordem das ciências humanas tem ainda uma outra consequência. 

É que ela não pode desenvolver-se como puro conhecimento especulativo ou teoria geral do homem. Não pode atravessar o campo inteiro da representação, tentar contornar suas fronteiras, apontar para o mais fundamental, na forma de uma ciência empírica construída a partir de observações cuidadosas; 

essa travessia só pode ser feita no interior de uma prática em que não é apenas o conhecimento que se tem do homem que está empenhado, mas o próprio homem – 

  • o homem com essa Morte que age no seu sofrimento, 
  • esse Desejo que perdeu seu objeto 
  • e essa linguagem pela qual, através da qual se articula silenciosamente sua Lei. 

Todo saber analítico é, pois, invencivelmente ligado a uma prática, a este estrangulamento da relação entre dois indivíduos, em que um escuta a linguagem do outro, libertando assim seu desejo do objeto que ele perdeu (fazendo-o entender que o perdeu) e libertando-o da vizinhança sempre repetida da morte (fazendo-o entender que um dia morrerá). 

É por isso que nada é mais estranho à psicanálise que alguma coisa como uma teoria geral do homem ou uma antropologia. 

Assim como 

  • a psicanálise se coloca na dimensão do inconsciente 
    (dessa animação crítica que inquieta interiormente todo o domínio das ciências humanas), 
  • a etnologia se coloca na da historicidade 
    (desta perpétua oscilação que faz com que as ciências humanas sejam sempre contestadas, do exterior, por sua própria história). 

É sem dúvida difícil sustentar que a etnologia tem uma relação fundamental com a historicidade, já que ela é tradicionalmente o conhecimento dos povos sem história; em todo o caso, ela estuda nas culturas (ao mesmo tempo por escolha sistemática e por falta de documentos) antes as invariantes de estrutura que a sucessão dos acontecimentos. 

Suspende o longo discurso “cronológico” pelo qual tentamos refletir nossa própria cultura no interior dela mesma, para fazer surgir correlações sincrônicas em outras formas culturais. E, contudo, a própria etnologia só é possível a partir de uma certa situação, de um acontecimento absolutamente singular, em que se acham empenhadas a um tempo a nossa historicidade e a de todos os homens que podem constituir o objeto de uma etnologia (ficando entendido que podemos perfeitamente fazer a etnologia de nossa própria sociedade): a etnologia se enraíza, com efeito, numa possibilidade que pertence propriamente à história de nossa cultura, mais ainda, à sua relação fundamental com toda história, e que lhe permite ligar-se às outras culturas à maneira da pura teoria. 

Há uma certa posição da ratio ocidental que se constituiu na sua história e que funda a relação que ela pode ter com todas as outras sociedades, mesmo com aquela sociedade em que ela historicamente apareceu. Isto não quer dizer, evidentemente, que a situação colonizadora seja indispensável à etnologia: nem a hipnose, nem a alienação do doente na personagem fantasmática do médico são constitutivos da psicanálise; mas, assim como esta só pode desenvolver-se na violência calma de uma relação singular e da transferência que ela requer, do mesmo modo a etnologia só assume suas dimensões próprias na soberania histórica – sempre retida, mas sempre atual – do pensamento europeu e da relação que o pode confrontar com todas as outras culturas e com ele próprio. 

Mas essa relação (na medida em que a etnologia não busca apagá- Ia, mas, ao contrário, escava-a, instalando-se definitivamente nela) não a encerra nos jogos circulares do historicismo; coloca-a, antes, em posição de contornar seu perigo, invertendo o movimento que os faz nascer: com efeito, em vez de reportar os conteúdos empíricos, tais como psicologia, a sociologia ou a análise das literaturas e dos mitos podem fazê-los aparecer, à positividade histórica do sujeito que os percebe, a etnologia coloca as formas singulares de cada cultura, as diferenças que as opõem às outras, os limites pelos quais se define e se fecha sobre sua própria coerência na dimensão em que se estabelecem suas relações com cada uma das três grandes positividades (a vida, a necessidade e o trabalho, a linguagem); 

assim, a etnologia mostra como se faz numa cultura 

  • a normalização das grandes funções biológicas, 
  • as regras que tornam possíveis ou obrigatórias todas as formas de troca, de produção e de consumo, 
  • o sistemas que se organizam em torno ou sobre o modelo das estruturas linguísticas. 

A etnologia avança, pois, em direção à região onde as ciências humanas se articulam com aquela biologia, com aquela economia, com aquela filologia e aquela linguística acerca das quais se viu de que altura as dominavam: é por isto que o problema geral de toda etnologia é exatamente aquele das relações (de continuidade ou de descontinuidade) entre a natureza e a cultura. 

Mas, neste tipo de interrogação, o problema da história se acha invertido: pois trata-se então de determinar, 

  • segundo os sistemas simbólicos utilizados, 
  • segundo as regras prescritas, 
  • segundo as normas funcionais escolhidas e estabelecidas, 

de que espécie de devir histórico cada cultura é suscetível; ela busca retomar, desde raiz, o modo de historicidade que aí pode aparecer, as razões pelas quais a história aí será necessariamente cumulativa ou circular, progressiva ou submetida a oscilações reguladoras, capaz de ajustamentos espontâneos ou submetida a crises. 

E assim se acha esclarecido o fundamento deste fluir histórico em cujo interior as diferentes ciências humanas assumem sua validade e podem ser aplicadas a uma dada cultura e numa dada região sincrônica. 

A etnologia, como a psicanálise, interroga 

  • não o próprio homem tal como pode aparecer nas ciências humanas, 
  • mas a região que torna possível, em geral, um saber sobre o homem; 

como a psicanálise, ela atravessa todo o campo desse saber num movimento que tende a atingir seus limites. 

Mas a psicanálise 

  • se serve da relação singular da transferência para descobrir, nos confins exteriores da representação, o Desejo, a Lei, a Morte que desenham, no extremo da linguagem e da prática analíticas, as figuras concretas da finitude; 

já a etnologia 

  • aloja-se no interior da relação singular que a ratio ocidental estabelece com todas as outras culturas; e, a partir daí, ela traça o contorno das representações que os homens, numa civilização, se podem dar de si mesmos, de sua vida, de suas necessidades, das significações depositadas em sua linguagem; e ela vê surgir, por trás destas representações, 
    • as normas a partir das quais os homens cumprem as funções da vida, mas repelindo sua pressão imediata, 
    • as regras através das quais experimentam e mantêm suas necessidades, 
    • os sistemas sobre cujo fundo toda significação lhes é dada. 

O privilégio da etnologia e da psicanálise, a razão de seu profundo parentesco e de sua simetria – não devem, pois, ser buscados numa certa preocupação que uma e outra teriam em penetrar o profundo enigma, a parte mais secreta da natureza humana; de fato, o que se espelha no espaço de seu discurso é muito mais o a priori histórico de todas as ciências humanas – as grandes cesuras, os sulcos, as partilhas que, na epistémê ocidental, desenharam o perfil do homem e o dispuseram para um saber possível. 

Era, portanto, muito necessário que ambas fossem ciências do inconsciente: 

  • não porque atingem no homem o que está por sob a sua consciência, 
  • mas porque se dirigem ao que, fora do homem, permite que se saiba, com um saber positivo, o que se dá ou escapa à sua consciência. 

Pode-se compreender, a partir daí, um certo número de fatos decisivos. 

E, no primeiro plano, o seguinte: 

que a psicanálise e a etnologia não são tanto ciências humanas ao lado das outras, 

mas percorrem o domínio inteiro destas, o animam em toda a sua superfície, expandem por toda a parte seus conceitos, podem propor em todos os lugares seus métodos de decifração e suas interpretações. 

Nenhuma ciência humana pode assegurar-se de nada lhes dever, nem de ser totalmente independente do que elas puderam descobrir, nem estar certa de não depender delas de uma forma ou de outra. 

Porém seu desenvolvimento tem a particularidade de que 

  • por mais que pretendam ter um “alcance” quase universal, 
  • nem por isso se aproximam de um conceito geral do homem: 
    • em nenhum momento elas tendem a delimitar o que nele poderia haver de específico, 
    • de irredutível, 
    • de uniformemente válido em toda a parte onde ele é dado à experiência. 

A ideia de uma “antropologia psicanalítica”, a ideia de uma “natureza humana” restituída pela etnologia não passam de pretensões piegas. Não apenas elas podem dispensar o conceito de homem, como ainda não podem passar por ele, pois se dirigem sempre ao que constitui seus limites exteriores. 

Em relação às “ciências humanas”, a psicanálise e a etnologia são antes “contraciências”; 

  • o que não quer dizer que sejam menos “racionais” ou “objetivas” que as outras, 
  • mas que elas as assumem no contra-fluxo, 
  • reconduzem-nas a seu suporte epistemológico 
  • e não cessam de “desfazer” esse homem que, nas ciências humanas, faz e refaz sua positividade. 

Compreende-se, enfim, que psicanálise e etnologia sejam estabelecidas uma em face da outra, numa correlação fundamental: desde Totem e tabu, a instauração de um campo que lhes seria comum, a possibilidade de um discurso que poderia ir de uma à outra sem descontinuidade, a dupla articulação 

  • da história dos indivíduos com o inconsciente das culturas 
  • e da historicidade destas com o inconsciente dos indivíduos 

abrem, sem dúvida, os problemas mais gerais que se podem levantar a propósito do homem. 

Adivinha-se o prestígio e a importância de uma etnologia que, 

  • em vez de se definir primeiramente, como o fez até então, pelo estudo das sociedades sem história, 
  • buscasse deliberadamente seu objeto do lado dos processos inconscientes que caracterizam o sistema de uma dada cultura;

ela poria em jogo, assim, 

  • a relação da historicidade, relação essa constitutiva de toda etnologia em geral, 
  • no interior da dimensão em que sempre se desenrolou a psicanálise. 

Assim fazendo, ela não assimilaria os mecanismos e as formas de uma sociedade à pressão e à repressão de fantasmas coletivos, reencontrando deste modo, mas a uma escala mais larga, o que a análise pode descobrir ao nível dos indivíduos; 

  • definiria como sistema dos inconscientes culturais o conjunto das estruturas formais que tornam significantes os discursos míticos, 
  • dão às regras que regem as necessidades sua coerência e sua imprescindibilidade, 
  • fundam, não na natureza, não nas puras funções biológicas, as normas de vida. 

Adivinha-se a importância simétrica de uma psicanálise que, por seu lado, encontrasse a dimensão de uma etnologia, não pela instauração de uma “psicologia cultural”, não pela explicação sociológica de fenômenos manifestados ao nível dos indivíduos, mas pela descoberta de que também o inconsciente possui – ou, antes de que ele próprio é uma certa estrutura formal. 

Por aí etnologia e psicanálise viriam, não a se superpor nem mesmo talvez a se reunir, mas a se cruzar como duas linhas diferentemente orientadas: 

  • uma, indo da elisão aparente do significado na neurose à lacuna no sistema significante por onde esta vem a manifestar-se; 
  • a outra, indo da analogia dos significados múltiplos (nas mitologias, por exemplo) à unidade de uma estrutura, cujas transformações formais liberariam a diversidade de narrativas. 

Não seria, portanto, ao nível das relações entre indivíduos e sociedade, como frequentemente se acreditou, que a psicanálise e a etnologia poderiam articular-se uma com a outra; 

  • não é porque o indivíduo faz parte de seu grupo, 
  • não é porque uma cultura se reflete e se exprime de um modo mais ou menos refratado no indivíduo, 

que essas duas formas de saber são vizinhas. 

Na verdade, elas têm somente um ponto comum, porém essencial e inevitável: é aquele em que elas se cortam em ângulo reto; pois a cadeia significante pela qual se constitui a experiência única do indivíduo é perpendicular ao sistema formal a partir do qual se constituem as significações de uma cultura; 

  • a cada instante a estrutura própria da experiência individual encontra nos sistemas da sociedade certo número de escolhas possíveis (e de possibilidades excluídas); 

inversamente,

  • as estruturas sociais encontram, em cada um de seus pontos de escolha, certo número de indivíduos possíveis (e outros que não o são) – 
  • assim como na linguagem a estrutura linear torna sempre possível, em dado momento, a escolha entre várias palavras ou vários fonemas (mas exclui todos os outros). 

Forma-se, então, o tema de uma teoria pura da linguagem, que daria à etnologia e à psicanálise assim concebidas seu modelo formal. Haveria assim uma disciplina que poderia cobrir, no seu único percurso, 

  • tanto esta dimensão da etnologia que refere as ciências humanas às positividades que as margeiam, 
  • quanto esta dimensão da psicanálise que refere o saber do homem à finitude que o funda. 

Com a linguística, 

ter-se-ia uma ciência perfeitamente fundada na ordem das positividades exteriores ao homem (pois que se trata de linguagem pura) e que, atravessando todo o espaço das ciências humanas, atingiria a questão da finitude (pois que é através da linguagem e nela que o pensamento pode pensar: de sorte que ela é, em si mesma, uma positividade que vale como o fundamental). 

Acima da etnologia e da psicanálise, mais exatamente intrincada com elas, uma terceira “contraciência” viria percorrer, animar, inquietar todo o campo constituído das ciências humanas e, extravasando-o, tanto do lado das positividades quanto do lado da finitude, formaria sua contestação mais geral. Como as duas outras contraciências, ela faria aparecer, num modo discursivo, as formas-limites das ciências humanas; como elas, alojaria sua experiência nestas regiões iluminadas e perigosas onde o saber do homem trava, sob as espécies do inconsciente e da historicidade, sua relação com o que as torna possíveis. 

Todas as três põem em risco, “expondo-o”, aquilo mesmo que permitiu ao homem ser conhecido. 

Assim se tece sob nossos olhos o destino do homem, mas tece-se às avessas; nestes estranhos fusos, é ele reconduzido às formas de seu nascimento, à pátria que o tornou possível. 

Mas não é essa uma forma de conduzi-Io ao seu fim? 

Pois a linguística, tanto quanto a psicanálise ou a etnologia, não fala do próprio homem. 

Dir-se-á talvez que, desempenhando este papel, a linguística não faz mais que retomar as funções que foram outrora as da biologia ou da economia quando, no século XIX e no começo do século XX, se pretendeu unificar as ciências humanas sob conceitos tomados à biologia ou à economia.

Mas a linguística arrisca-se a ter um papel muito mais fundamental. E por várias razões. 

Primeiro porque ela permite – esforça-se, ao menos, por tornar possível – a estruturação dos próprios conteúdos; 

  • não é, pois, uma retomada teórica dos conhecimentos adquiridos alhures, interpretação de uma leitura já feita dos fenômenos; 
  • não propõe uma “versão linguística” de fatos observados nas ciências humanas, é o princípio de uma decifração primeira; 
  • sob um olhar armado por ela, as coisas só acedem à existência na medida em que podem formar os elementos de um sistema significante. 

A análise linguística é mais uma percepção que uma explicação: isso quer dizer que é constitutiva de seu objeto mesmo. 

Ademais, eis que, por esta emergência da estrutura (como relação invariante num conjunto de elementos), a relação das ciências humanas com as matemáticas acha-se novamente aberta e segundo uma dimensão totalmente nova; 

  • não se trata mais de saber se se podem quantificar resultados, ou se os comportamentos humanos são suscetíveis de entrar no campo de uma probabilidade mensurável; 
  • a questão que se coloca é a de saber se se pode utilizar sem jogo de palavras a noção de estrutura, 
  • ou, ao menos, se é da mesma estrutura que se fala em matemáticas e nas ciências humanas; 

questão que é central, se se quiser conhecer as possibilidades e os direitos, as condições e os limites de uma formalização justificada; vê-se que a relação das ciências humanas com o eixo das disciplinas formais e a priori – relação que não fora essencial até então e se torna fundamental agora que, no espaço das ciências humanas, surge igualmente sua relação com a positividade empírica da linguagem e com a analítica da finitude; os três eixos que definem o volume próprio às ciências do homem tornam-se assim visíveis, e quase simultaneamente, nas questões que elas colocam. 

Enfim, a importância da linguística e de sua aplicação ao conhecimento do homem faz reaparecer, em sua insistência enigmática, a questão do ser da linguagem acerca da qual se viu quanto estava ligada aos problemas fundamentais de nossa cultura. 

Questão que a utilização cada vez mais ampliada das categorias linguísticas avoluma ainda mais, uma vez que é necessário doravante indagar o que deve ser a linguagem, para assim estruturar o que não é, todavia, por si mesmo, nem palavra nem discurso, e para articular-se com as formas puras do conhecimento. 

Por um caminho muito mais longo e muito mais imprevisto, somos reconduzidos a esse lugar que Nietzsche e Mallarmé haviam indicado quando um deles perguntara: Quem fala? e o outro vira cintilar a resposta na própria Palavra. A interrogação sobre o que é a linguagem em seu ser reassume, ainda uma vez, seu tom imperativo. 

Neste ponto em que a questão da linguagem ressurge com uma tão forte superdeterminação e em que ela parece investir, por todas as partes, a figura do homem 

(esta figura que justamente tomara outrora
o lugar do Discurso clássico),

 a cultura contemporânea está se fazendo numa parte importante de seu presente e talvez de seu porvir. 

De um lado aparecem, como que subitamente, muito próximas de todos estes domínios empíricos, questões que pareciam, até então, bastante afastadas deles: estas questões são aquelas de uma formalização geral do pensamento e do conhecimento; e no momento em que se julgava que elas ainda estavam votadas tão somente à relação entre a lógica e as matemáticas, eis que elas se abrem à possibilidade e também à tarefa de purificar a velha razão empírica, pela constituição de linguagens formais, e de exercer uma segunda crítica da razão pura, a partir de formas novas do a priori matemático. 

Entrementes, na outra extremidade de nossa cultura, a questão da linguagem se acha confiada àquela forma de palavra que, sem dúvida, não cessou de colocá-Ia, mas que, pela primeira vez, coloca-a a si mesma. 

Que a literatura de nossos dias seja fascinada pelo ser da linguagem – isso não é nem o sinal de um fim nem a prova de uma radicalização: é um fenômeno que enraíza sua necessidade numa bem vasta configuração em que se desenha toda a nervura de nosso pensamento e de nosso saber. 

Mas se a questão das linguagens formais faz valer a possibilidade ou a impossibilidade de estruturar os conteúdos positivos, uma literatura votada à linguagem faz valer, em sua vivacidade empírica, as formas fundamentais da finitude. 

Do interior da linguagem experimentada e percorrida como linguagem, no jogo de suas possibilidades estiradas até seu ponto extremo, 

  • o que se anuncia é que o homem é “finito” e que, 
  • alcançando o ápice de toda palavra possível, não é ao coração de si mesmo que ele chega, 
  • mas às margens do que o limita: 
    • nesta região onde ronda a morte, 
    • onde o pensamento se extingue, 
    • onde a promessa da origem recua indefinidamente. 

Era imprescindível que esse novo modo de ser da literatura fosse desvelado em obras como as de Artaud ou de Roussel – e por homens como eles; 

  • em Artaud, a linguagem, recusada como discurso e retomada na violência plástica do choque, e remetida ao grito, ao corpo torturado, à materialidade do pensamento, à carne; 
  • em Roussel, a linguagem, pulverizada por um acaso sistematicamente manejado, conta indefinidamente a repetição da morte e o enigma das origens desdobradas. 

E, como se essa prova das formas da finitude na linguagem não pudesse ser suportada, ou como se ela fosse insuficiente (talvez sua insuficiência mesma fosse insuportável), foi no interior da loucura que ela se manifestou – oferecendo-se assim a figura da finitude na linguagem (como o que nela se desvela), mas também antes dela, aquém dela, como esta região informe, muda, não-significante onde a linguagem pode liberar-se. 

E é realmente neste espaço assim posto a descoberto que a literatura, com o surrealismo primeiramente (mas sob uma forma ainda bem travestida), depois, cada vez mais puramente, com Kafka, com Bataille, com Blanchot, se deu como experiência: como experiência da morte (e no elemento da morte), do pensamento impensável (e na sua presença inacessível), da repetição (da inocência originária, sempre lá, no extremo mais próximo da linguagem e sempre o mais afastado); como experiência da finitude (apreendida na abertura e na coerção dessa finitude). 

Vê-se que este “retorno” da linguagem não tem em nossa cultura valor de interrupção súbita; não é a descoberta irruptiva de uma evidência há muito escondida; não é a marca de uma dobra do pensamento sobre si mesmo, no movimento pelo qual ele se liberta de todo conteúdo, nem de um narcisismo da literatura, liberando-se enfim do que ela teria a dizer para não mais falar senão do fato de que ela é linguagem posta a nu. 

De fato, trata-se aí do desdobramento rigoroso da cultura ocidental, segundo a necessidade que ela atribuiu a si própria no início do século XIX. 

Seria falso ver, neste índice geral de nossa experiência a que se pode chamar o “formalismo”, o sinal de uma petrificação, de uma rarefação do pensamento incapaz de reassumir a plenitude dos conteúdos; não seria menos falso colocá-lo de imediato no horizonte de um novo pensamento e de um novo saber. 

Foi no interior do desenho muito cerrado, muito coerente da epistémê moderna que essa experiência contemporânea encontrou sua possibilidade; foi mesmo ele que, por sua lógica, suscitou-a, constituiu-a de parte a parte e tornou impossível que ela não existisse. 

O que se passou na época de Ricardo, de Cuvier e de Bopp, esta forma de saber que se instaurou com a economia, a biologia e a filologia, o pensamento da finitude que a critica kantiana prescreveu como tarefa para a filosofia, tudo isto forma ainda o espaço imediato de nossa reflexão. 

É neste lugar que nós pensamos. 

E, contudo, a impressão de acabamento e de fim, o sentimento surdo que sustenta, anima nosso pensamento, acalenta-o talvez assim com a facilidade de suas promessas, e que nos faz crer que alguma coisa de novo está em vias de começar, de que apenas se suspeita um leve traço de luz na orla do horizonte – este sentimento e esta impressão talvez não sejam infundados. 

Dir-se-á que existem, que não cessaram de se formular sempre de novo desde o começo do século XIX; dir-se-á que Hôlderlin, que Hegel, que Feuerbach e Marx já tinham, todos eles, esta certeza de que neles um pensamento e talvez uma cultura findavam, e que, do fundo de uma distância que talvez não fosse invencível, uma outra se aproximava – no recato da aurora, no fulgor do meio-dia, ou no contraste do dia que acaba. 

Mas esta próxima, esta perigosa iminência cuja promessa hoje tememos, cujo perigo acolhemos, não é, sem dúvida, da mesma ordem. O que este anúncio prescrevia então ao pensamento era estabelecer para o homem uma morada estável nesta terra, donde os deuses se tinham evadido ou desaparecido. 

Em nossos dias, e ainda aí Nietzsche indica de longe o ponto de inflexão, 

  • não é tanto a ausência ou a morte de Deus que é afirmada, mas sim o fim do homem (este tênue, este imperceptível desnível este recuo na forma da identidade que fazem com que a finitude do homem se tenha tornado o seu fim); 
  • descobre-se então que a morte de Deus e o último homem estão vinculados: não é acaso o último homem que anuncia ter matado Deus, colocando assim sua linguagem, seu pensamento, seu riso no espaço do Deus já morto, mas também se apresentando como aquele que matou Deus e cuja existência envolve a liberdade e a decisão deste assassínio? 

Assim, o último homem é ao mesmo tempo mais velho e mais novo que a morte de Deus; uma vez que matou Deus, é ele mesmo que deve responder por sua própria finitude; mas, uma vez que é na morte de Deus que ele fala, que ele pensa e existe, seu próprio assassinato está condenado a morrer; deuses novos, os mesmos, já avolumam o Oceano futuro; o homem vai desaparecer. 

Mais que a morte de Deus – ou antes, no rastro desta morte e segundo uma correlação profunda com ela, o que anuncia o pensamento de Nietzsche é o fim de seu assassino; é o esfacelamento do rosto do homem no riso e o retorno das máscaras; é a dispersão do profundo escoar do tempo, pelo qual ele se sentia transportado e cuja pressão ele suspeitava no ser mesmo das coisas; é a identidade do Retomo do Mesmo e da absoluta dispersão do homem. 

Durante todo o século XIX, o fim da filosofia e a promessa de uma cultura próxima constituíam, sem dúvida, uma única e mesma coisa, juntamente com o pensamento da finitude e o aparecimento do homem no saber; hoje, o fato de que a filosofia esteja sempre e ainda em via de acabar e o fato de que nela talvez, porém mais ainda fora dela e contra ela, na literatura como na reflexão formal, a questão da linguagem se coloque, provam sem dúvida que o homem está em via de desaparecer. 

É que toda a epistémê moderna – aquela que se formou por volta do fim do século XVIII e serve ainda de solo positivo ao nosso saber, aquela que constituiu o modo de ser singular do homem e a possibilidade de conhecê-lo empiricamente – toda essa epistémê estava ligada ao desaparecimento do Discurso e de seu reino monótono, ao deslizar da linguagem para o lado da objetividade e ao seu reaparecimento múltiplo. 

Se essa mesma linguagem surge agora com insistência cada vez maior numa unidade que devemos mas não podemos ainda pensar, não será isto o sinal de que toda essa configuração vai agora deslocar-se, e que o homem está em via de perecer, na medida em que brilha mais forte em nosso horizonte o ser da linguagem? 

Tendo o homem se constituído quando a linguagem estava votada à dispersão, não vai ele ser disperso quando a linguagem se congrega? 

E se isto fosse verdade, não seria um erro – um erro profundo, pois que nos esconderia o que cumpre pensar agora – interpretar a experiência atual como uma aplicação das formas da linguagem à ordem do humano? 

Não seria antes preciso renunciar a pensar o homem, ou, para ser mais rigoroso, pensar mais de perto este desaparecimento do homem – e o solo de possibilidade de todas as ciências do homem – na sua correlação com nossa preocupação com a linguagem? 

Não se deve admitir que, estando a linguagem novamente aí, o homem retomará àquela existência serena em que outrora o mantivera a unidade Imperiosa do Discurso? 

O homem fora uma figura entre dois modos de ser da linguagem; ou antes, ele não se constituiu senão no tempo em que a linguagem, após ter sido alojada no interior da representação e como que dissolvida nela, dela só se liberou despedaçando-se: o homem compôs sua própria figura nos interstícios de uma linguagem em fragmentos. 

Certamente, não se trata aí de afirmações quando muito e questões às quais não é possível responder; é preciso deixá-Ias em suspenso Iá onde elas se colocam, sabendo apenas que a possibilidade de as colocar abre sem dúvida, para um pensamento futuro.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
capítulo X – As ciências humanas;
tópico V – Psicologia, etnologia

I. O triedro dos saberes

O triedro dos saberes e o habitat das Ciências Humanas

I. O triedro dos saberes

Triedro dos saberes: espaço interior

Clicando na figura ao lado será mostrada uma animação visual com um resumo rápido de três tópicos do
capítulo X – As ciências humanas,
do livro ‘As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas.

São eles:

  • tópico I. O triedro dos saberes;
  • tópico II. A forma das ciências humanas;
  • tópico III. Os três modelos

A figura ao lado mostra uma animação visual que associa ao conceito abaixo de ‘modo de ser do homem’ no pensamento moderno, a uma estrutura na qual as ideias intervenientes expressas pelos respectivos elementos de imagem, ocupam seus lugares em uma estrutura proposta.

O modo de ser do homem no pensamento moderno

“O modo de ser do homem,
tal como se constituiu no pensamento moderno,
permite-lhe desempenhar dois papéis: 
está, ao mesmo tempo,

  • no fundamento de todas as positividades,

presente, de uma forma que não se
pode sequer dizer privilegiada,

  • no elemento das coisas empíricas.”
Os dois papéis do homem no pensamento de depois da
descontinuidade epistemológica ocorrida entre 1775 e 1825

Segue o texto formatado do tópico I. O triedro dos saberes;  do Capítulo X – As ciências humanas

O modo de ser do homem, tal como se constituiu no pensamento moderno, permite-lhe desempenhar dois papéis: 

está, ao mesmo tempo,

  • no fundamento de todas as positividades,

presente, de uma forma que não se
pode sequer dizer privilegiada,

  • no elemento das coisas empíricas.

Esse fato [o modo de ser do homem em sua constituição no pensamento moderno] – e não se trata aí da essência em geral do homem, mas pura e simplesmente desse a priori histórico que, desde o século XIX, serve de solo quase evidente ao nosso pensamento – esse fato é, sem dúvida, decisivo para o estatuto a ser dado às “ciências humanas”, a esse corpo de conhecimentos (mas mesmo esta palavra é talvez demasiado forte: digamos, para sermos mais neutros ainda, a esse conjunto de discursos) que toma por objeto o homem no que ele tem de empírico.

A primeira coisa a constatar é que as ciências humanas não receberam por herança um certo domínio já delineado, dimensionado talvez em seu conjunto, mas não-desbravado, que elas teriam por tarefa elaborar com conceitos enfim científicos e métodos positivos; o século XVIII não lhes transmitiu, sob o nome de homem ou de natureza humana, um espaço circunscrito exteriormente, mas ainda vazio, que elas tivessem, em seguida, a tarefa de cobrir e analisar.

O campo epistemológico que percorrem as ciências humanas não foi prescrito de antemão: 

nenhuma filosofia, nenhuma opção política ou moral, nenhuma ciência empírica, qualquer que fosse, nenhuma observação do corpo humano, nenhuma análise da sensação, da imaginação ou das paixões, jamais encontrou, nos séculos XVII e XVIII, alguma coisa como o homem; pois o homem não existia (assim como a vida, a linguagem e o trabalho); e as ciências humanas não apareceram quando, sob o efeito de algum racionalismo premente, de algum problema científico
não-resolvido, de algum interesse prático, decidiu-se fazer passar o homem (por bem ou por mal, e com maior ou menor êxito) para o campo dos objetos científicos – em cujo número, talvez, não esteja ainda provado que seja possível incluí-lo de modo absoluto;

elas apareceram no dia em que
o homem se constituiu na cultura ocidental,
ao mesmo tempo como

  • o que é necessário pensar
  • e o que se deve saber.

Certamente, não resta dúvida de que a emergência histórica de cada uma das ciências humanas tenha ocorrido por ocasião de um problema, de uma exigência, de um obstáculo de ordem teórica ou prática; 

  • por certo foram necessárias novas normas impostas pela sociedade industrial aos indivíduos para que, lentamente, no decurso do século XIX, a psicologia se constituísse como ciência;

 

  • também foram necessárias, sem dúvida, as ameaças que, desde a Revolução, pesaram sobre os equilíbrios sociais e sobre aquele mesmo que instaurara a burguesia, para que aparecesse uma reflexão de tipo sociológico.

Mas se essas referências podem bem explicar por que é que foi realmente em tal circunstância determinada e para responder a tal questão precisa que essas ciências se articularam, sua possibilidade intrínseca, o fato nu de que, pela primeira vez, desde que existem seres humanos e que vivem em sociedade, o homem, isolado ou em grupo, se tenha tornado objeto de ciência – isso não pode ser considerado nem tratado como um fenômeno de opinião: é um acontecimento na ordem do saber.

E esse acontecimento produziu-se, por sua vez, numa redistribuição geral da epistémê: quando, 

  • abandonando o espaço da representação,
    • os seres vivos alojaram-se na profundeza específica da vida,
    • as riquezas no surto progressivo das formas da produção,
    • as palavras no devir das linguagens.

Nessas condições, era necessário que o conhecimento do homem surgisse, com seu escopo científico, como contemporâneo e do mesmo veio que

  • a biologia,
  • a economia
  • e a filologia,

de tal sorte que nele se viu, muito naturalmente, um dos mais decisivos progressos realizados, na história da cultura européia, pela racionalidade empírica.

Mas, como ao mesmo tempo a teoria geral da representação desaparecia e impunha-se, em contrapartida, a necessidade de interrogar o ser do homem como fundamento de todas as
positividades, não podia deixar de produzir-se um  desequilíbrio: 

o homem tornava-se aquilo a partir do qual todo conhecimento podia ser constituído em sua evidência imediata e não-problematizada; 

tornava-se, a fortiori, aquilo que autoriza o questionamento de todo conhecimento do homem. 

Daí esta dupla e inevitável contestação: 

  • a que institui o perpétuo debate entre as ciências do homem e as ciências propriamente ditas, tendo as primeiras a pretensão invencível de fundar as segundas, que, sem cessar são obrigadas a buscar seu próprio fundamento, a justificação de seu método e a purificação de sua história, contra o “psicologismo”, contra o “sociologismo”, contra o “historicismo”; 
  • e a que institui o perpétuo debate entre a filosofia, que objeta às ciências humanas a ingenuidade com a qual tentam fundar-se a si mesmas, e essas ciências humanas, que reivindicam como seu objeto próprio o que teria constituído outrora o domínio da filosofia.

(os três eixos e as três faces do triedro dos saberes)

As três faces do conhecimento

Interrogado a esse nível arqueológico, o campo da epistémê moderna não se ordena conforme o ideal de uma matematização perfeita e não desenrola, a partir da pureza formal, uma longa seqüência de conhecimentos descendentes, cada vez mais carregados de empiricidade. Antes, deve-se representar o domínio da epistémê moderna com um espaço volumoso e aberto segundo três dimensões.

  • Eixo E3: Numa delas, situar-se-iam as ciências matemáticas e físicas, para as quais a ordem é sempre um encadeamento dedutivo e linear de proposições
    evidentes ou verificadas;
  • Eixo E1: haveria, em outra dimensão, ciências (como as
    da linguagem, da vida, da produção e da distribuição das riquezas) que procedem ao estabelecimento de relações entre elementos descontínuos mas análogos, de sorte que elas pudessem estabelecer entre eles relações causais e constantes de estrutura.

Essas duas primeiras dimensões definem entre si

  • Face F1: um plano comum: aquele que pode aparecer, conforme o sentido em que é percorrido, como campo de aplicação das matemáticas a essas ciências empíricas, ou domínio do matematizável na linguistica, na biologia e na economia. 

Quanto à terceira dimensão,

  • Eixo E2: seria a da reflexão filosófica, que se desenvolve como pensamento do Mesmo
  • Face F2: com [E1 – o eixo epistemológico fundamental] a dimensão da linguística, da biologia e da economia, ela [E2 – a reflexão filosófica] delineia um plano comum: lá podem aparecer, e efetivamente apareceram, as diversas filosofias da vida, do homem alienado, das formas simbólicas (quando se transpõem para a filosofia os conceitos e os problemas que nasceram nos diferentes domínios empíricos); mas, lá também apareceram, se se interrogar de um ponto de vista radicalmente filosófico o fundamento dessas empiricidades, ontologias regionais, que tentam definir o que são, em seu ser próprio, a vida, o trabalho e a linguagem; 
  • Face F3: enfim, [o eixo E2] a dimensão filosófica define com [o eixo E3] a das disciplinas matemáticas um plano comum [a face F1]: o da formalização do pensamento.

 

(o espaço interior do triedro)

Desse triedro epistemológico,
as ciências humanas são excluídas,
no sentido ao menos de que
não podem ser encontradas
em nenhuma das dimensões,

nem à superfície de nenhum dos planos
assim delineados.

As três faces do conhecimento

Mas, pode-se também dizer que elas são incluídas por ele, pois é no interstício  desses saberes, mais exatamente no volume definido por suas três dimensões, que elas encontram seu lugar. 

Essa situação (menor num sentido, privilegiada noutro) coloca-as em relação com todas as outras formas de saber: 

  • têm o projeto, mais ou menos protelado, porém constante, de se conferirem ou, em todo o caso, de utilizarem, num nível ou noutro, uma formalização matemática
  • procedem segundo modelos ou conceitos tomados à biologia, à economia e às ciências da linguagem
  • endereçam-se, enfim, a esse modo de ser do homem que a filosofia busca pensar ao nível da finitude radical, enquanto elas pretendem percorrê-lo em suas manifestações empíricas. 

É talvez essa repartição nebulosa num espaço de três dimensões que toma as ciências humanas tão difíceis de situar, que confere sua irredutível precariedade à localização destas no domínio epistemológico, que as faz aparecer ao mesmo tempo como perigosas e em perigo. 

Perigosas, pois representam para todos os outros saberes como que um risco permanente: por certo, nem as ciências dedutivas, nem as ciências empíricas, nem a reflexão filosófica, desde que permaneçam na sua dimensão própria, arriscam-se a “passar” para as ciências humanas ou encarregar-se de sua impureza; sabe-se, porém, que dificuldades por vezes encontra o estabelecimento desses planos intermediários que unem, umas às outras, as três dimensões do espaço epistemológico; é que o menor desvio em relação a esses planos rigorosos faz cair o pensamento no domínio investido pelas ciências humanas; 

daí o perigo 

  • do “psicologismo”, 
  • ou do “sociologismo” – 

do que se poderia chamar, numa palavra, 

  • “antropologismo” 

– que se torna ameaçador desde que, por exemplo, não se reflita corretamente sobre as relações entre o pensamento e a formalização, ou desde que não se analisem convenientemente os modos de ser da vida, do trabalho e da linguagem.

A “antropologização” é, em nossos dias, o grande perigo interior do saber. Facilmente se acredita que o homem liberou-se de si mesmo, desde que descobriu que não estava nem no centro da criação, nem no núcleo do espaço, nem mesmo talvez no cume e no fim derradeiro da vida; mas, se o homem não é mais soberano no reino do mundo, se já não reina no âmago do ser, as “ciências humanas” são perigosos intermediários no espaço do saber. 

Na verdade, porém, essa postura mesma as condena a uma instabilidade essencial. O que explica a dificuldade das “ciências humanas”, sua precariedade, sua incerteza como ciências, sua perigosa familiaridade com a filosofia, seu apoio mal definido sobre outros domínios do saber, seu caráter sempre secundário e derivado, como também sua pretensão ao universal, 

  • não é, como freqüentemente se diz, a extrema densidade de seu objeto; não é o estatuto metafisico ou a indestrutível transcendência desse homem de que elas falam, 
  • mas, antes, a complexidade da configuração epistemológica em que se acham colocadas, sua relação constante com as três dimensões que lhes confere seu espaço.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas
Capítulo X – As ciências humanas;
topico I – O triedro dos saberes

O segundo dos dois obstáculos encontrados por Michel Foucault
no curso do seu trabalho de arqueologia das ciências humanas:
a obrigação de abrir o campo transcendental da subjetividade e constituir,
para além do objeto,os quase-transcendentais da Vida, do Trabalho e da Linguagem

O segundo dos dois obstáculos encontrados por Michel Foucault
em seu trabalho de arqueologia das ciências humanas no 'As palavras e as coisas'

A abertura do campo transcendental da subjetividade constituindo,
para além do objeto, os quase-transcendentais Vida, Trabalho e Linguagem:
O passo adiante do objeto: o espaço e o modelo constituinte das ciências humanas

Em seguida à percepção de que o pensamento contemporâneo, com o qual queiramos ou não pensamos, estava contaminado pela impossibilidade de fundar as sínteses (da empiricidade objeto cuja representação havia sido delineada pela análise) no espaço da representação, Foucault descobre uma obrigação, e relata a empreitada seguinte que empreendeu para dar conta dela. Trata-se de:

“a obrigação correlativa, simultânea,
mas logo dividida contra si mesma,
de abrir o campo transcendental da subjetividade
e de constituir inversamente, para além do objeto,
esses “quase-transcendentais” que são para nós
a Vida, o Trabalho, a Linguagem.”

As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VIII – Trabalho, Vida e Linguagem,
tópico I. As novas empiricidades
O Triedro dos saberes: faces e espaço interior
As ciências humanas: modelo constituinte composto por uma combinação dos três modelos constituintes das ciências
que integram o eixo epistemológico fundamental

Mas é preciso ir mais longe

Com a ajuda de Michel Foucault, intentamos enfrentar os desafios:

  • de obter a fundação das sínteses no espaço da representação, 
  • de abrir o campo transcendental da subjetividade e constituir os “quase-transcendentais” Vida, Trabalho e Linguagem

Neste tópico – a partir do alerta de Michel Foucault de que “É preciso ir mais longe”

O texto está em “As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas”;
Capítulo X – As ciências humanas; tópico III. Os três modelos

Trata-se de um quase manual com instruções dadas por Michel Foucault sobre como utilizar os modelos constituintes das ciências da Vida, do Trabalho e da Linguagem no projeto do modelo constituinte composto dessa classe especial de saberes chamada Ciências humanas.

É preciso ir mais longe:
como usar os modelos constituintes de cada par, na construção de um modelo no espaço das ciências humanas
Uma crítica ao metodo de construção de modelos no espaço das ciências humanas, feita por Michel Foucault
Duas visões, duas leituras do fenômeno 'operações':
sob o pensamento clássico, o de antes de 1775; (seta amarela)
sob o pensamento moderno, o de depois de 1825 (seta vermelha)
com duas amplitudes - abrangências muito diferentes
]
Caos como um tipo de ordem instável
em que as sequências temporais são muito complexas e revelam estruturas
que nos permitem melhor entender o mundo que nos cerca

Designações primitivas
(inoperantes no Instanciamento) 

Representação objeto do Instanciamento
recuperada do Repositório

Ambiente de onde são importados 
os recursos e insumos de todos os tipos,
consumidos durante o Instanciamento

Circuito das trocas 
operação inteiramente no interior do
Domínio do Discurso e da Representação

Circuito das trocas 
operação inteiramente no interior do
Domínio do Discurso e da Representação

Representação da empiricidade 
objeto da operação de Instanciamento
recuperada do Repositório, antes da operação

Representação da empiricidade   
objeto da operação de Instanciamento
recuperada do Repositório, depois da operação

Propriedades da empiricidade 
objeto da operação de Instanciamento
idênticas às da representação recuperada do Repositório,
antes da operação

Propriedades da empiricidade  
objeto da operação de Instanciamento
idênticas às da representação recuperada do Repositório,
depois da operação

Operação de instanciamento de representação
de empiricidade objeto pré-existente no Repositório
(sem alteração no modo de ser fundamental da empiricidade)

Processos, atividades, tasks
suporte da Forma de produção
desencadeados durante a operação de instanciamento

Evento (i) de início
da operação de instanciamento
da representação da empiricidade objeto

Evento (f) de fim  
da operação de instanciamento
da representação da empiricidade objeto

Operação de instanciamento ocorre
sem alteração  no modo de ser fundamental
da empiricidade objeto

Operação de instanciamento ocorre
sem alteração  no modo de ser fundamental
da empiricidade objeto

Domínio do Discurso e da Representação
(perfil amarelo)

Domínio do Pensamento e da Língua
(perfil vermelho)

Visão, utopia,
limite da estratégia, etc

Homem
na posição de sujeito

Compromisso de obtenção 
da representação para esta empiricidade objeto

Operação transcorre
com alteração do modo de ser fundamental
da empiricidade objeto

Empiricidade objeto
(antes da operação)

Propriedades da empiricidade objeto
sim e não originais constitutivas
(inexistentes antes da operação)

Propriedades da empiricidade objeto
sim e não originais constitutivas
(existentes depois da operação) 

Designações primitivas
(ativas e parte da origem da linguagem)

Repositório
linguagem de uso

Evento de início da operação
de construção da representação
para a empiricidade objeto

Evento de fim da operação
de construção da representação
para a empiricidade objeto

Empiricidade objeto 
(depois da operação) 

Forma de produção
(elemento central do modelo de operação)

Processos, atividades, tasks
como elementos de suporte
à Forma de produção

Sucessão de analogias
coleção relacionada de objetos análogos
que compõem representação em construção

Lugar de nascimento do que é empírico

Lugar de nascimento do que é empírico

Domínio do Discurso e da Representação
(perímetro amarelo)

Domínio do Pensamento e da Língua 
(perímetro vermelho)

Representação A
(pré-existente)

Representação B
(pré-existente)

Quadro ordenado
(ordem arbitrária selecionada)

Categoria selecionada na ordem arbitrária
que guarda similitude com aparências

Representação R 
(composição de (a) e (b), pré-existentes)  

Circuito das trocas 

Domínio do Discurso e da Representação 

Domínio do Discurso e da Representação

Circuito das trocas

Pacote de coisas
selecionadas por "aparências" 
Entradas

Evento (i) de início
do instanciamento de (r)  

VC - Volume de controle
espaço orientado onde ocorre a operação

Evento (f) de final
do instanciamento de (r)

Propriedades "aparências" 
não-originais e não-constitutivas das coisas
existentes antes da operação

Propriedades "aparências" 
não-originais e não-constitutivas das coisas
existentes depois da operação

Pacote de coisas
selecionadas por "aparências" 
Saídas 

Paleta de ideias ou elementos de imagem
presentes na configuração de pensamento clássico

Las meninas, Diego Velázquez, 1656; óleo sobre tela; Museu do Prado, Madrid, Espanha

O ontologia do sistema SIPOC/FEPSC

Proposição instanciativa: pensamento moderno, caminho da Construção da representação
designações primitivas inativas; elementos de suporte da Forma de produção existentes e ativados; linguagem de ação ou raiz sim contém a representação para essa empiricidade objeto
recuperada desde o Repositório para objeto desta operação
Proposição explicativa: pensamento moderno, caminho da Construção da representação
designações primitivas ativas; elementos de suporte da Forma de produção existentes; linguagem de ação ou raiz sim contém a representação para essa empiricidade objeto
Proposição enunciativa: pensamento moderno, caminho da Construção da representação
designações primitivas ativas; elementos de suporte da Forma de produção inexistentes; linguagem de ação ou raiz não contém a representação para essa empiricidade objeto
a proposição no pensamento clássico
ponto de aplicação da leitura de operações no momento da troca
a proposição no pensamento moderno: ponto de aplicação da leitura de operações antes da troca
ECA-moderno
Características do pensamento moderno
o de depois de 1825
ECA-Clássico
Características do pensamento clássico
o de antes de 1775
homem no modelo de operações do pensamento clássico, o de antes de 1775,
considerado como uma das categorias do sistema de categorias,
como um gênero, ou uma espécie
os dois obstáculos encontrados por Michel Foucault em seu trabalho
no livro 'As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas
caminho do Instanciamento da representação, com valor já atribuído;
que tem início novamente no interior do Circuito das trocas
fontes de valor para a representação em construção: a) designações primitivas; b) linguagem de ação ou taiz.

Exemplos de modelos de operações e de organizações sem a possibilidade de fundar as sínteses (do objeto das operações) no espaço da representação e com ponto de inserção da análise de operações no cruzamento entre o dado e o recebido na operação de troca

Funcionamento
do pensamento
funcionamento das operações no pensamento clássico
Modelo de
Operação de produção
relação do modelo de operações de produção de E. S. Buffa
e o sistema Input-Output
do LE da figura.
Modelo da 
Organização de produção
Um modelo de organização sob o pensamento clássico, destacando a utilização de múltiplas ordens, ou
múltiplos sistemas de categorias
Modelo de operações
e de organização
Modelo FEPSC(SIPOC), Six Sigma
Modelo de  Operação
contábil-financeira
O modelo de operação
no sistema contábil-financeiro
Modelo da  Organização
ponto de vista financeiro
a organização no sistema contábil-financeiro

Exemplos de modelos de operações e de organizações no pensamento moderno, e assim  com a possibilidade de fundar as sínteses (do objeto das operações) no espaço da representação e com ponto de inserção da análise de operações antes do cruzamento entre o dado e o recebido na operação de troca

Funcionamento
de operação do pensamento
O funcionamento das operações no pensamento moderno
Modelo de
Operação de produção
relação entre o modelo descritivo da produção do Kanban e 'essa maneira moderna de conhecer empiricidades'
Modelo da 
Organização de produção
o modelo de organização 'Mapa da atividade semicondutores', da Reengenharia, o modelo de operações do Kanban e o modelo moderno de operações
O modelo descritivo da produção do Kanban operação de
instanciamento de representação
O mapa da atividade semicondutores da Texas Instruments: modelo de organização
do movimento Reengenharia

O espaço interior do Triedro dos saberes – habitat das ciências humanas, com modelos situados no espectro de modelos no segmento para além do objeto

Assim, estes três pares,

  • função e norma,
  • conflito e regra,
  • significação e sistema,

cobrem, por completo, o domínio inteiro do conhecimento do homem. 

Mas, qualquer que seja a natureza da análise e o domínio a que ela se aplica, tem-se um critério formal para saber o que é

  • do nível da psicologia,
  • da sociologia
  • ou da análise das linguagens

é a escolha do modelo fundamental e a posição dos modelos secundários que permitem saber em que momento

  • se “psicologiza” ou se “sociologiza” no estudo das literaturas e dos mitos, em que momento se faz, em psicologia, decifração de textos ou análise sociológica. 

Mas essa superposição de modelos não é um defeito de método. 

Só há defeito se os modelos não forem ordenados e explicitamente articulados uns com os outros.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo X  – As ciências humanas;
 III. Os três modelos
Michel Foucault 

O Triedro dos saberes: eixos e faces
espaço das ciências da Vida, do Trabalho e da Linguagem
O interior ao Triedro dos saberes
o espaço das Ciências humanas

Aquém do objeto

Não há modelos constituintes nesta faixa do espectro, já que nada é constituído na existência durante as operações;

  • o ponto de inserção na análise do fenômeno ‘operações está no cruzamento entre o que é dado e o que é recebido na operação de troca.

Na configuração do pensamento pressupõe-se que todas as coisas
existem desde sempre e para sempre,
e integram o Universo em uma visão única.

Existem múltiplas ordens que podem ser arbitrariamente escolhidas para cada operação; e em uma mesma organização podem conviver ordens – como diz Foucault – ligeiramente diferentes. Tem-se inúmeras categorias para cada ordem escolhida, e muitas ordens possíveis de serem selecionadas.

Nada é constituído na existência como resultado das distinções feitas durante as operações nesta faixa do espectro.

Diante do objeto

No eixo epistemológico fundamental – ciências da Vida, do Trabalho e da Linguagem, a modelagem em cada área do saber pode ser feita com um modelo constituinte específico e próprio de cada uma delas:

  • em todas, o ponto de inserção na análise do fenômeno ‘operações’ está antes do cruzamento entre o dado e o recebido, e portanto antes da existência destes.

No que Foucault chama de ‘Região epistemológica Fundamental’ os Modelos constituintes são compostos por pares constituintes, próprios a cada região do saber ou área do conhecimento em que o modelo é feito:

  • Ciências da vida (Biologia):


    função-norma
    ;

  • Ciências do trabalho (Economia):


    conflito-regra;

  • Ciências da Linguagem (Filologia):

    significação-sistema.

Além do objeto

No campo das ciências humanas, o modelo constituinte de qualquer uma delas se unifica. 

Os Modelos constituintes são compostos por uma combinação dos três pares de modelos constituintes das ciências

  • da Vida-(Biologia),
  • do Trabalho-(Economia)
  • e da Linguagem-(Filologia).

O Modelo constituinte  de cada uma das Ciências Humanas – é uma combinação – ponderada pelo projetista de modelos.

O modelo composto é uma combinação dos três pares de modelos constituintes: 

  • Ciências da vida  (Biologia):
    função-norma;

    +
    Ciências do trabalho (Economia):

    conflito-regra;
    +
    Ciências da Linguagem (Filologia):
    significação-sistema.

Sob ciências humanas como:

  • economia política;
  • sociologia,
  • psicologia e psicanálise

estão modelos compostos, que são combinações ponderadas dos três pares de modelos constituintes das ciências integrantes do eixo epistemológico fundamental.

- Lugar do nascimento do que é empírico:
pensamento moderno - caminho da Construção da representação
- Circuito das trocas, ou Mercado: pensamento clássico, ou pensamento moderno, sempre no caminho do Instanciamento da representação objeto

Mercado, ou Circuito das trocas: lugar onde ocorrem operações nas quais o ‘modo de ser fundamental’ das empiricidades não muda.

Encontra-se 

  • sob o pensamento clássico, o de antes de 1775,
  • e também ocorre no pensamento moderno, o de depois de 1825, no caminho do Instanciamento da representação.

Lugar do nascimento do que é empírico: lugar onde ocorrem operações nas quais o ‘modo de ser fundamental das empiricidade sim, muda.

Encontra-se somente sob o pensamento moderno, o de depois de 1825, no caminho da Construção da representação

O 'Circuito das trocas', ou 'Mercado'
lugar onde transcorre uma operação sob o pensamento clássico
O Lugar de nascimento do que é empírico
lugar onde transcorre a operação de construção de representação nova
e onde se dá a articulação do pensamento do homem, com o impensado
O Circuito das trocas
as chaves horizontais amarelas
onde ocorrem operações durante as quais o 'modo de ser fundamental'
não se altera

no pensamento clássico
antes de 1775

no pensamento moderno
depois de 1825

questão/pergunta

2Assim como a Ordem
no pensamento clássico
não era
a harmonia visível
das coisas,
seu ajustamento,
sua regularidade
ou sua simetria constatados,
mas o espaço próprio de seu ser
e aquilo que,
antes de todo
conhecimento efetivo,
as estabelecia no saber,

1″Mas vê-se bem
que a História
não deve ser aqui entendida
como a coleta das sucessões de fatos, tais como se constituíram;

ela é
o modo de ser fundamental
das empiricidades,

aquilo a partir de que elas são

  • afirmadas,
  • postas,
  • dispostas
  • e repartidas no espaço do saber para eventuais conhecimentos e para ciências possíveis.

[veja citação 2 à esquerda]

A referência ao ‘Circuito das trocas’ – ou Mercado é uma quase unanimidade na literatura especializada filosófica ou técnica.

Qual será a explicação para isso?

Por que praticamente ninguém fala no ‘Lugar de nascimento do que é empírico’?

Seria o caso de haver um desalinhamento filosófico no trabalho desses autores?

3assim também a História,
a partir do século XIX,
define o
lugar de nascimento
do que é empírico,
lugar onde,
aquém
de toda cronologia estabelecida,
ele assume o ser
que lhe é próprio.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VII – Os limites da representação;
I. A idade da história
Michel Foucault 

- Lugar do nascimento do que é empírico:
pensamento moderno - caminho da Construção da representação
- Circuito das trocas, ou Mercado: pensamento clássico, ou pensamento moderno, sempre no caminho do Instanciamento da representação objeto

Mercado, ou Circuito das trocas: lugar onde ocorrem operações nas quais o ‘modo de ser fundamental’ das empiricidades não muda.

Encontra-se 

  • sob o pensamento clássico, o de antes de 1775,
  • e também ocorre no pensamento moderno, o de depois de 1825, no caminho do Instanciamento da representação.

Lugar do nascimento do que é empírico: lugar onde ocorrem operações nas quais o ‘modo de ser fundamental das empiricidade sim, muda.

Encontra-se somente sob o pensamento moderno, o de depois de 1825, no caminho da Construção da representação

no pensamento clássico
antes de 1775

no pensamento moderno
depois de 1825

questão/pergunta

2Assim como a Ordem
no pensamento clássico
não era
a harmonia visível
das coisas,
seu ajustamento,
sua regularidade
ou sua simetria constatados,
mas o espaço próprio de seu ser
e aquilo que,
antes de todo
conhecimento efetivo,
as estabelecia no saber,

1″Mas vê-se bem
que a História
não deve ser aqui entendida
como a coleta das sucessões de fatos, tais como se constituíram;

ela é
o modo de ser fundamental
das empiricidades,

aquilo a partir de que elas são

  • afirmadas,
  • postas,
  • dispostas
  • e repartidas no espaço do saber para eventuais conhecimentos e para ciências possíveis.

[veja citação 2 à esquerda]

assim também a História,
a partir do século XIX,
define o
lugar de nascimento
do que é empírico,
lugar onde,
aquém de toda cronologia estabelecida,
ele assume o ser
que lhe é próprio.

A referência ao ‘Circuito das trocas’ – ou Mercado é uma quase unanimidade na literatura especializada filosófica ou técnica.

Qual será a explicação para isso?

Por que praticamente ninguém fala no ‘Lugar de nascimento do que é empírico’?

Seria o caso de haver um desalinhamento filosófico no trabalho desses autores?

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VII – Os limites da representação;
I. A idade da história
Michel Foucault 

Questões/Perguntas

_thumb história do livro

A intenção com este estudo é buscar no pensamento de Michel Foucault,
 – com foco no livro ‘As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas’ – subsídios para responder ao seguinte tipo de questões:

tratamento dado ao homem em nossa cultura

Os tratamentos dados ao homem em nossa cultura, no pensamento clássico e no moderno, segundo Michel Foucault; 

e as ideias – ou elementos de imagem – requeridos para compor estruturalmente modelos de operações e modelos de organizações
com os respectivos tratamentos dados ao homem

homem no modelo de operações do pensamento clássico, o de antes de 1775, considerado como uma das categorias do sistema de categorias,
como um gênero, ou uma espécie
homem no sistema de operações do pensamento moderno, o de depois de 1825 considerado em sua duplicidade de papéis:
1. raiz e fundamento de toda positividade
2. elemento do que é empírico.

“Instaura-se
uma forma de reflexão
bastante afastada
do cartesianismo
e da análise kantiana,
em que está em questão,
pela primeira vez,
o ser do homem,
nessa dimensão
segundo a qual
o pensamento
se dirige ao impensado,
e com ele se articula.”

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo IX  – O homem e seus duplos;
V. O cogito e o impensado
Michel Foucault 

no pensamento clássico
antes de 1775

no pensamento moderno
depois de 1825

questão/pergunta

“No pensamento clássico,
aquele para quem
a representação existe,
e que nela se representa a si mesmo,
aí se reconhecendo
por imagem ou reflexo,
aquele que trama
todos os fios entrecruzados
da “representação em quadro” -,
esse [o ser do homem]
jamais se encontra lá presente.

Antes do fim do século XVIII,
o homem não existia.

Sem dúvida,
as ciências naturais
trataram do homem como 

  • de uma espécie
  • ou de um gênero

a discussão
sobre o problema das raças,
no século XVIII, o testemunha.
A gramática e a economia,
por outro lado, utilizavam noções como as de necessidade,
de desejo,
ou de memória
e de imaginação.”

Mas não havia
consciência epistemológica

do homem como tal.

“Antes do fim do século XVIII,
o homem não existia.”

“O modo de ser do homem,
tal como se constituiu
no pensamento moderno,
permite-lhe desempenhar dois papéis:
está, ao mesmo tempo,

  • no fundamento
    de todas as positividades,
  • presente, de uma forma que não se pode sequer dizer privilegiada,
    no elemento
    das coisas empíricas.

Esse fato
– e não se trata aí
da essência em geral do homem,
mas pura e simplesmente
desse a priori histórico que,
desde o século XIX,
serve de solo quase evidente
ao nosso pensamento –
esse fato é, sem dúvida, decisivo
para o estatuto a ser dado
às “ciências humanas”,
a esse corpo de conhecimentos
(mas mesmo esta palavra
é talvez demasiado forte:
digamos,
para sermos mais neutros ainda,
a esse conjunto de discursos)
que toma por objeto o homem
no que ele tem de empírico.”

É possível pensar as condições em que se dá a subjetividade de um ‘homem’ tratado como espécie, ou gênero?

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo IX – O homem e seus duplos;
II. O lugar do rei
Michel Foucault 

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo X  – As ciências humanas;
 I. O triedro dos saberes
Michel Foucault 

Veja o ponto “2. as possibilidades de leitura do fenômeno ‘operações de troca’ e respectivas possibilidades de análise de valor que elas nos permitem fazer”

Parece ser a opção de leitura da ‘operação de troca’ deslocada para um ponto antes das existência dos objetos da troca o que arrasta o ser do homem e cada objeto da troca para a Forma de reflexão que se instaura em nossa cultura.

as possibilidades de leitura do fenômeno 'operações de troca' e as respectivas possibilidades de análises de valor

O fenômeno ‘operações’ (em qualquer área): visões com duas abrangências muito diferentes dependendo da leitura que fazemos.

As duas possibilidades de inserção do ponto de início da leitura do fenômeno ‘operações’ – de qualquer tipo – e a análise das diferentes origens do valor carregado pelas proposições para as representações em função da inserção do ponto de início de leitura de ‘operações’; 

Duas visões, duas leituras do fenômeno ‘operações’:
sob o pensamento clássico, o de antes de 1775; (seta amarela)
sob o pensamento moderno, o de depois de 1825 (seta vermelha)
com duas amplitudes – duas abrangências muito diferentes

Note-se que as condições para a ocorrência da troca – a existência simultânea dos dois objetos de troca, o que é dado e o que é recebido – são satisfeitas em duas situações:

  • 1. no pensamento clássico pelo posicionamento do ponto de início de leitura sob essa condição, quer dizer, a existência prévia do que é dado e do que é recebido;
  • 2. no pensamento moderno, pela satisfação dessa pré-condição no início do Instanciamento da representação, porém com a condição da execução anterior da Construção da representação, também incluída no escopo da operação. 

Nos pontos marcados por setas amarelas para baixo (1) e (2) as pré-condições para a ocorrência da troca são dadas, qualquer que seja a estrutura de pensamento – clássico ou moderno – segundo o pensamento de Michel Foucault.

O que não muda entre essas duas possibilidades

A proposição como bloco construtivo padrão fundamental e genérico para construção de representações e suas duas possibilidades de carregamento de valor, quanto às respectivas origens

A proposição é para a linguagem
o que a representação é
para o pensamento:
sua forma, ao mesmo tempo
mais geral e mais elementar,
porquanto, desde que a decomponhamos, não reencontraremos mais o discurso,
mas seus elementos
como tantos materiais dispersos.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo IV  – Falar;
tópico III – Teoria do verbo
Michel Foucault 

(…) Em outras palavras,
para que, numa troca,
uma coisa possa representar outra,
é preciso que elas existam
já carregadas de valor;
e, contudo,
o valor só existe
no interior da representação

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VI – Trocar;
V. A formação do valor
Michel Foucault 

O que sim muda entre essas duas possibilidades

A origem do valor carregado pelo veículo de carregamento de valor na representação: a proposição, sempre, porém em linguagens essencialmente diferentes e representações com origens de valor distintas.

“Valer, para o pensamento clássico,
é primeiramente valer alguma coisa,
poder substituir essa coisa num processo de troca.

A moeda só foi inventada,
os preços só foram fixados e só se modificam
na medida em que essa troca existe.

Ora, a troca é um fenômeno simples
apenas na aparência.

Com efeito, só se troca numa permuta,
quando cada um dos dois parceiros
reconhece um valor
para aquilo que o outro possui.

Num sentido, é preciso, pois,
que as coisas permutáveis,
com seu valor próprio,
existam antecipadamente nas mãos de cada um,
para que a dupla cessão e a dupla aquisição
finalmente se produzam.

Mas, por outro lado,

  • o que cada um come e bebe,
    aquilo de que precisa para viver
    não tem valor
    enquanto não o cede;
  • e aquilo de que não tem necessidade
    é igualmente desprovido de valor
    enquanto não for usado
    para adquirir alguma coisa de que necessite.

Em outras palavras,
para que, numa troca,
uma coisa possa representar outra,
é preciso que elas existam
já carregadas de valor;
e, contudo,
o valor só existe
no interior da representação

  • (atual [troca imediata]
  • ou possível [permutabilidade]),

isto é, no interior

  1. da troca
    [representação existente]
  2. ou da permutabilidade
    [representação possível]
    .

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VI – Trocar;
V. A formação do valor
Michel Foucault 

O funcionamento da troca em cada uma das duas possibilidades de leitura do fenômeno ‘operação’: no ato mesmo da troca; ou anterior à troca, na criação das condições de troca

“Daí duas possibilidades simultâneas de leitura:

  1. leitura já dadas as condições de troca;
  2. leitura na permutabilidade, isto é na criação de condições de troca

1 uma analisa o valor
no ato mesmo da troca,
no ponto de cruzamento
entre o dado e o recebido;

  • A primeira dessas duas leituras corresponde a uma análise que coloca e encerra
    • toda a essência da linguagem no interior da proposição;

3 no primeiro caso, com efeito, a linguagem encontra seu lugar de possibilidade numa atribuição assegurada pelo verbo – isto é, por esse elemento da linguagem em recuo relativamente a todas as palavras mas que as reporta umas às outras; o verbo, tornando possíveis todas as palavras da linguagem a partir de seu liame proposicional, corresponde à troca que funda, como um ato mais primitivo que os outros, o valor das coisas trocadas e o preço pelo qual são cedidas;

2 outra analisa-o
como anterior à troca
e como condição primeira
para que esta possa ocorrer.

  • a outra, a uma análise que descobre essa mesma essência da linguagem do lado das
    • designações primitivas
    • linguagem de ação ou raiz;

4 a outra forma de análise, a linguagem está enraizada 

fora de si mesma e como que

    • na natureza, ou nas   
    • analogias das coisas;

a raiz, o primeiro grito que dera nascimento às palavras antes mesmo que a linguagem tivesse nascido, corresponde à formação imediata do valor, antes da troca e das medidas recíprocas da necessidade.”

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VI – Trocar;
V. A formação do valor
Michel Foucault 

Esta segunda leitura para ‘operações’
– que orienta a análise de valor
desde antes do momento da troca -,
não é possível sem a presença do homem
na estrutura dos modelos.

Isso fica bastante claro com a descrição da forma de reflexão que se instaura em nossa cultura depois da descontinuidade epistemológica de 1775-1825

Esses dois pontos de inserção da leitura da operação de troca
mostrados nos modelos de operações

Colocando o ponto de inserção de leitura do fenômeno ‘operações’ antes da existência dos objetos envolvidos na troca, ocorre uma portentosa ampliação no escopo da operação – de qualquer natureza -, incorporando toda a etapa de construção de representação nova. Veja isso aqui.

a forma de reflexão que se instaura em nossa cultura

o lugar onde ocorrem as operações de troca tais como as vemos nas leituras que fazemos

- Lugar do nascimento do que é empírico:
pensamento moderno - caminho da Construção da representação
- Circuito das trocas, ou Mercado: pensamento clássico, ou pensamento moderno, sempre no caminho do Instanciamento da representação objeto

Mercado, ou Circuito das trocas: lugar onde ocorrem operações nas quais o ‘modo de ser fundamental’ das empiricidades não muda.

Encontra-se 

  • sob o pensamento clássico, o de antes de 1775,
  • e também ocorre no pensamento moderno, o de depois de 1825, no caminho do Instanciamento da representação.

Lugar do nascimento do que é empírico: lugar onde ocorrem operações nas quais o ‘modo de ser fundamental das empiricidade sim, muda.

Encontra-se somente sob o pensamento moderno, o de depois de 1825, no caminho da Construção da representação

O 'Circuito das trocas', ou 'Mercado'
lugar onde transcorre uma operação sob o pensamento clássico
O Lugar de nascimento do que é empírico
lugar onde transcorre a operação de construção de representação nova
e onde se dá a articulação do pensamento do homem, com o impensado
O Circuito das trocas
as chaves horizontais amarelas
onde ocorrem operações durante as quais o 'modo de ser fundamental'
não se altera

no pensamento clássico
antes de 1775

no pensamento moderno
depois de 1825

questão/pergunta

2Assim como a Ordem
no pensamento clássico
não era
a harmonia visível
das coisas,
seu ajustamento,
sua regularidade
ou sua simetria constatados,
mas o espaço próprio de seu ser
e aquilo que,
antes de todo
conhecimento efetivo,
as estabelecia no saber,

1″Mas vê-se bem
que a História
não deve ser aqui entendida
como a coleta das sucessões de fatos, tais como se constituíram;

ela é
o modo de ser fundamental
das empiricidades,

aquilo a partir de que elas são

  • afirmadas,
  • postas,
  • dispostas
  • e repartidas no espaço do saber para eventuais conhecimentos e para ciências possíveis.

[veja citação 2 à esquerda]

A referência ao ‘Circuito das trocas’ – ou Mercado é uma quase unanimidade na literatura especializada filosófica ou técnica.

Qual será a explicação para isso?

Por que praticamente ninguém fala no ‘Lugar de nascimento do que é empírico’?

Seria o caso de haver um desalinhamento filosófico no trabalho desses autores?

3assim também a História,
a partir do século XIX,
define o
lugar de nascimento
do que é empírico,
lugar onde,
aquém
de toda cronologia estabelecida,
ele assume o ser
que lhe é próprio.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VII – Os limites da representação;
I. A idade da história
Michel Foucault 

Questões/Perguntas

_thumb história do livro

A intenção com este estudo é buscar no pensamento de Michel Foucault,  – com foco no livro ‘As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas’ – subsídios para responder ao seguinte tipo de questões:

Os dois obstáculos, as duas pedras de tropeço no caminho,
encontradas por Foucault durante seu trabalho no livro
‘As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas’

exemplos de modelos de operações e de organizações muito usados ainda hoje, mostrando esses dois obstáculos presentes entre nós atualmente.

os dois obstáculos encontrados por Michel Foucault em seu trabalho
no livro ‘As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas
Michel Foucault
1926-1984

“Eis que nos adiantamos
bem para além do acontecimento histórico
que se impunha situar
– bem para além das margens cronológicas dessa ruptura
que divide, em sua profundidade,
a epistémê do mundo ocidental
e isola para nós o começo de certa
maneira moderna de conhecer as empiricidades.

É que o pensamento que nos é contemporâneo
e com o qual, queiramos ou não, pensamos,
se acha ainda muito dominado

1 pela impossibilidade
trazida à luz por volta 
do fim do século XVIII, 
de fundar as sínteses
no espaço da representação:

2 e pela obrigação 
correlativa, simultânea, 

mas logo dividida contra si mesma, 
de abrir o campo transcendental da subjetividade e de constituir inversamente, 
para além do objeto, 

esses “quase-transcendentais” 
que são para nós 
Vida, o Trabalho, a Linguagem.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;

Capítulo VIII – Trabalho, vida e linguagem;
tópico I – As novas empiricidades

no pensamento clássico
aquém do objeto
antes de 1775

no pensamento moderno
diante do objeto
depois de 1825

espaço interior
Triedro dos saberes
para além do objeto
reservado às
Ciências humanas

comparações de diferentes configurações de pensamento feitas por Michel Foucault
A impossibilidade
[no pensamento clássico,
LE da figura]
contra a sim-possibilidade
[no pensamento moderno,
LD da figura]
de fundar as sínteses
[da empiricidade objeto]
no espaço da representação.
o espaço interno do
Triedro dos saberes
– o habitat das ciências humanas –
mostrando o modelo constituinte composto e comum a todas as Ciências Humanas

Os obstáculos no caminho de Foucault 

aquém do objeto

diante do objeto

para além do objeto

0 Foucault havia anteriormente identificado o perfil do pensamento no período clássico, com uma configuração tal que a capacidade (ou a possibilidade – e mesmo a intenção) de fundar as sínteses – dos objetos de operações cujas representações resultassem dessas operações – no espaço da representação não era sequer cogitada:

  • em razão dos pressupostos adotados,

e principalmente, em razão 

  • do tipo de leitura feita do fenômeno ‘operações’ das trocas, 
    • na leitura então feita, o ponto de início do fenômeno  ‘operações’, estava inserido no exato momento em que a troca tem todas as condições para acontecer; (os dois objetos da troca – o dado e o obtido –  tinham representações disponíveis e já carregadas de valor).

1 Michel Foucault relata a seguinte situação:

  • ele havia delineado um tipo de pensamento ‘com o qual queiramos ou não pensamos’, um pensamento que segundo ele ‘tem a nossa idade e a nossa geografia’,
    • com a possibilidade de fundar as sínteses (da empiricidade objeto da operação) no espaço da representação;

para conseguir fundar as sínteses no espaço da representação,

  • foi necessário alterar profundamente todos os pressupostos

e a leitura feita do que seja uma operação e a análise de valor, exigiram:

  • o deslocamento do ponto de inserção da análise desde o ponto de cruzamento entre o dado e o recebido;
  • para um ponto antes da possibilidade da troca, quando os elementos que dão as condições de efetivação dessa troca, ainda não existissem,

incorporando à análise, a operação de construção da representação nova. 

E ele havia percebido que esse pensamento com o qual queiramos ou não pensamos

  • estava muito contaminadodominado, mesmo –
    • justamente pela impossibilidade de fazer isso (essa fundação das sínteses do objeto da operação no espaço da representação), sendo esta impossibilidade  uma característica do pensamento clássico.

2 Ele percebia ainda uma obrigação a cumprir:

  • a de abrir o campo transcendental da subjetividade
    • e constituir, para além do objeto, os quase-transcendentais Vida, Trabalho e Linguagem.

Ele descobre que operações nos domínios das ciências da Vida, do Trabalho e da Linguagem podem ser expressos completamente em cada domínio, por pares de modelos constituintes:

  • Vida(Biologia)
    • função-norma;
  • Trabalho(Economia)
    • conflito-regra;
  • Linguagem(Filologia)
    • significação sistema;

e que os modelos constituintes das Ciências humanas são sempre compostos por uma combinação desses três pares de modelos constituintes.

O Modelo constituinte  de cada uma das Ciências Humanas – é sempre uma combinação dos modelos constituintes das:

  • Ciências da vida  (Biologia):
    [função-norma];

    +
    Ciências do trabalho (Economia):
    [conflito-regra];
    +
    Ciências da Linguagem (Filologia):
    [significação-sistema].

Podemos ver a atualidade dessa percepção de Foucault
com Exemplos de modelos para operações e organizações
construídos sobre estruturas de conceitos
uns que não permitem, e outros que ao contrário sim permitem
a fundação das sínteses (do objeto das operações) no espaço da representação.

Veja isso aqui.

Os tratamentos dados ao homem em nossa cultura, no pensamento clássico e no moderno, segundo Michel Foucault; 

e as ideias – ou elementos de imagem – requeridos para compor estruturalmente modelos de operações e modelos de organizações
com os respectivos tratamentos dados ao homem

homem no modelo de operações do pensamento clássico, o de antes de 1775, considerado como uma das categorias do sistema de categorias,
como um gênero, ou uma espécie
homem no sistema de operações do pensamento moderno, o de depois de 1825 considerado em sua duplicidade de papéis:
1. raiz e fundamento de toda positividade
2. elemento do que é empírico.

“Instaura-se
uma forma de reflexão
bastante afastada
do cartesianismo
e da análise kantiana,
em que está em questão,
pela primeira vez,
o ser do homem,
nessa dimensão
segundo a qual
o pensamento
se dirige ao impensado,
e com ele se articula.”

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo IX  – O homem e seus duplos;
V. O cogito e o impensado
Michel Foucault 

no pensamento clássico
antes de 1775

no pensamento moderno
depois de 1825

questão/pergunta

“No pensamento clássico,
aquele para quem
a representação existe,
e que nela se representa a si mesmo,
aí se reconhecendo
por imagem ou reflexo,
aquele que trama
todos os fios entrecruzados
da “representação em quadro” -,
esse [o ser do homem]
jamais se encontra lá presente.

Antes do fim do século XVIII,
o homem não existia.

Sem dúvida,
as ciências naturais
trataram do homem como 

  • de uma espécie
  • ou de um gênero

a discussão
sobre o problema das raças,
no século XVIII, o testemunha.
A gramática e a economia,
por outro lado, utilizavam noções como as de necessidade,
de desejo,
ou de memória
e de imaginação.”

Mas não havia
consciência epistemológica

do homem como tal.

“Antes do fim do século XVIII,
o homem não existia.”

“O modo de ser do homem,
tal como se constituiu
no pensamento moderno,
permite-lhe desempenhar dois papéis:
está, ao mesmo tempo,

  • no fundamento
    de todas as positividades,
  • presente, de uma forma que não se pode sequer dizer privilegiada,
    no elemento
    das coisas empíricas.

Esse fato
– e não se trata aí
da essência em geral do homem,
mas pura e simplesmente
desse a priori histórico que,
desde o século XIX,
serve de solo quase evidente
ao nosso pensamento –
esse fato é, sem dúvida, decisivo
para o estatuto a ser dado
às “ciências humanas”,
a esse corpo de conhecimentos
(mas mesmo esta palavra
é talvez demasiado forte:
digamos,
para sermos mais neutros ainda,
a esse conjunto de discursos)
que toma por objeto o homem
no que ele tem de empírico.”

É possível pensar as condições em que se dá a subjetividade de um ‘homem’ tratado como espécie, ou gênero?

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo IX – O homem e seus duplos;
II. O lugar do rei
Michel Foucault 

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo X  – As ciências humanas;
 I. O triedro dos saberes
Michel Foucault 

Veja o ponto “2. as possibilidades de leitura do fenômeno ‘operações de troca’ e respectivas possibilidades de análise de valor que elas nos permitem fazer”

Parece ser a opção de leitura da ‘operação de troca’ deslocada para um ponto antes das existência dos objetos da troca o que arrasta o ser do homem e cada objeto da troca para a Forma de reflexão que se instaura em nossa cultura.

O fenômeno ‘operações’ (em qualquer área): visões com duas abrangências muito diferentes dependendo da leitura que fazemos.

As duas possibilidades de inserção do ponto de início da leitura do fenômeno ‘operações’ – de qualquer tipo – e a análise das diferentes origens do valor carregado pelas proposições para as representações em função da inserção do ponto de início de leitura de ‘operações’; 

Duas visões, duas leituras do fenômeno ‘operações’:
sob o pensamento clássico, o de antes de 1775; (seta amarela)
sob o pensamento moderno, o de depois de 1825 (seta vermelha)
com duas amplitudes – duas abrangências muito diferentes

Note-se que as condições para a ocorrência da troca – a existência simultânea dos dois objetos de troca, o que é dado e o que é recebido – são satisfeitas em duas situações:

  • 1. no pensamento clássico pelo posicionamento do ponto de início de leitura sob essa condição, quer dizer, a existência prévia do que é dado e do que é recebido;
  • 2. no pensamento moderno, pela satisfação dessa pré-condição no início do Instanciamento da representação, porém com a condição da execução anterior da Construção da representação, também incluída no escopo da operação. 

Nos pontos marcados por setas amarelas para baixo (1) e (2) as pré-condições para a ocorrência da troca são dadas, qualquer que seja a estrutura de pensamento – clássico ou moderno – segundo o pensamento de Michel Foucault.

O que não muda entre essas duas possibilidades

A proposição como bloco construtivo padrão fundamental e genérico para construção de representações e suas duas possibilidades de carregamento de valor, quanto às respectivas origens

A proposição é para a linguagem
o que a representação é
para o pensamento:
sua forma, ao mesmo tempo
mais geral e mais elementar,
porquanto, desde que a decomponhamos, não reencontraremos mais o discurso,
mas seus elementos
como tantos materiais dispersos.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo IV  – Falar;
tópico III – Teoria do verbo
Michel Foucault 

(…) Em outras palavras,
para que, numa troca,
uma coisa possa representar outra,
é preciso que elas existam
já carregadas de valor;
e, contudo,
o valor só existe
no interior da representação

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VI – Trocar;
V. A formação do valor
Michel Foucault 

O que sim muda entre essas duas possibilidades

A origem do valor carregado pelo veículo de carregamento de valor na representação: a proposição, sempre, porém em linguagens essencialmente diferentes e representações com origens de valor distintas.

“Valer, para o pensamento clássico,
é primeiramente valer alguma coisa,
poder substituir essa coisa num processo de troca.

A moeda só foi inventada,
os preços só foram fixados e só se modificam
na medida em que essa troca existe.

Ora, a troca é um fenômeno simples
apenas na aparência.

Com efeito, só se troca numa permuta,
quando cada um dos dois parceiros
reconhece um valor
para aquilo que o outro possui.

Num sentido, é preciso, pois,
que as coisas permutáveis,
com seu valor próprio,
existam antecipadamente nas mãos de cada um,
para que a dupla cessão e a dupla aquisição
finalmente se produzam.

Mas, por outro lado,

  • o que cada um come e bebe,
    aquilo de que precisa para viver
    não tem valor
    enquanto não o cede;
  • e aquilo de que não tem necessidade
    é igualmente desprovido de valor
    enquanto não for usado
    para adquirir alguma coisa de que necessite.

Em outras palavras,
para que, numa troca,
uma coisa possa representar outra,
é preciso que elas existam
já carregadas de valor;
e, contudo,
o valor só existe
no interior da representação

  • (atual [troca imediata]
  • ou possível [permutabilidade]),

isto é, no interior

  1. da troca
    [representação existente]
  2. ou da permutabilidade
    [representação possível]
    .

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VI – Trocar;
V. A formação do valor
Michel Foucault 

O funcionamento da troca em cada uma das duas possibilidades de leitura do fenômeno ‘operação’: no ato mesmo da troca; ou anterior à troca, na criação das condições de troca

“Daí duas possibilidades simultâneas de leitura:

  1. leitura já dadas as condições de troca;
  2. leitura na permutabilidade, isto é na criação de condições de troca

1 uma analisa o valor
no ato mesmo da troca,
no ponto de cruzamento
entre o dado e o recebido;

  • A primeira dessas duas leituras corresponde a uma análise que coloca e encerra
    • toda a essência da linguagem no interior da proposição;

3 no primeiro caso, com efeito, a linguagem encontra seu lugar de possibilidade numa atribuição assegurada pelo verbo – isto é, por esse elemento da linguagem em recuo relativamente a todas as palavras mas que as reporta umas às outras; o verbo, tornando possíveis todas as palavras da linguagem a partir de seu liame proposicional, corresponde à troca que funda, como um ato mais primitivo que os outros, o valor das coisas trocadas e o preço pelo qual são cedidas;

2 outra analisa-o
como anterior à troca
e como condição primeira
para que esta possa ocorrer.

  • a outra, a uma análise que descobre essa mesma essência da linguagem do lado das
    • designações primitivas
    • linguagem de ação ou raiz;

4 a outra forma de análise, a linguagem está enraizada 

fora de si mesma e como que

    • na natureza, ou nas   
    • analogias das coisas;

a raiz, o primeiro grito que dera nascimento às palavras antes mesmo que a linguagem tivesse nascido, corresponde à formação imediata do valor, antes da troca e das medidas recíprocas da necessidade.”

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VI – Trocar;
V. A formação do valor
Michel Foucault 

Esta segunda leitura para ‘operações’
– que orienta a análise de valor
desde antes do momento da troca -,
não é possível sem a presença do homem
na estrutura dos modelos.

Isso fica bastante claro com a descrição da forma de reflexão que se instaura em nossa cultura depois da descontinuidade epistemológica de 1775-1825

Esses dois pontos de inserção da leitura da operação de troca
mostrados nos modelos de operações

Colocando o ponto de inserção de leitura do fenômeno ‘operações’ antes da existência dos objetos envolvidos na troca, ocorre uma portentosa ampliação no escopo da operação – de qualquer natureza -, incorporando toda a etapa de construção de representação nova. Veja isso aqui.

As características das duas configurações do pensamento:

  • a do pensamento clássico, de antes de 1775;
  • e a do pensamento moderno, de depois de 1825

características de características, ou características de segunda ordem,
das configurações do pensamento em cada caso.

no pensamento clássico
antes de 1775

no pensamento moderno
depois de 1825

questão/pergunta

_Estrutura IO-transformação
Os princípios organizadores
sob o pensamento clássico:
o de antes de 1775
‘Caráter’ e ‘Similitude’
Características do pensamento clássico, o de antes de 1775
Os princípios organizadores desse espaço de empiricidades sob o pensamento moderno,
o de depois de 1825
‘Analogia’ e ‘Sucessão’
Características do pensamento moderno, o de depois de 1825

“Instaura-se
uma forma de reflexão
bastante afastada
do cartesianismo
e da análise kantiana,
em que está em questão,
pela primeira vez,
o ser do homem,
nessa dimensão
segundo a qual
o pensamento
se dirige ao impensado,
e com ele se articula.”

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo IX  – O homem e seus duplos;
V. O cogito e o impensado
Michel Foucault 

“Assim o círculo se fecha.

Vê-se, porém, através de qual sistema de desdobramentos. 

As semelhanças exigem uma assinalação, pois nenhuma dentre elas poderia ser notada se não fosse legivelmente marcada. 

Mas que são esses sinais? 

Como reconhecer, entre todos os aspectos do mundo e tantas figuras que se entrecruzam, 

  • que há aqui um caráter 

no qual convém se deter, porque ele indica uma secreta e essencial semelhança? 

Que forma constitui o signo no seu singular valor de signo? 

  • – É a semelhança

Ele significa na medida em que tem semelhança com o que indica (isto é, com uma similitude).

Contudo, não é a homologia que ele assinala, pois seu ser distinto de assinalação se desvaneceria no semelhante de que é signo; trata-se de outra semelhança, uma similitude vizinha e de outro tipo que serve para reconhecer a primeira, mas que, por sua vez, é patenteada por uma terceira. 

Toda semelhança recebe uma assinalação; essa assinalação, porém, é apenas uma forma intermediária da mesma semelhança. De tal sorte que o conjunto das marcas faz deslizar, sobre o círculo das similitudes, um segundo círculo que duplicaria exatamente e, ponto por ponto, o primeiro, se não fosse esse pequeno desnível que faz com que 

  • o signo da simpatia resida na analogia, 
  • o da analogia na emulação, 
  • o da emulação na conveniência, 

que, por sua vez, para ser reconhecida, requer 

  • a marca da simpatia… 

A assinalação e o que ela designa são exatamente da mesma natureza; apenas a lei da distribuição a que obedecem é diferente; a repartição é a mesma.”

De sorte que se vêem surgir,
como princípios organizadores
desse espaço de empiricidades, 

  • a Analogia 
  • e a Sucessão

de uma organização a outra,
o liame, com efeito,
não pode mais ser
a identidade de um
ou vários elementos,
mas a identidade
da relação entre os elementos
(onde a visibilidade
não tem mais papel)
e da função que asseguram;
ademais, se porventura essas organizações se avizinham
por efeito de uma densidade singularmente grande de analogias, não é porque ocupem
localizações próximas
num espaço de classificação,
mas sim porque
foram formadas uma ao mesmo tempo que a outra e uma logo após a outra
no devir das sucessões.
Enquanto, no pensamento clássico,
a seqüência das cronologias
não fazia mais que percorrer
o espaço prévio e mais fundamental
de um quadro
que de antemão apresentava
todas as suas possibilidades,
doravante
as semelhanças contemporâneas
e observáveis simultaneamente
no espaço não serão mais que
as formas depositadas e fixadas de uma sucessão que procede
de analogia em analogia.
A ordem clássica
distribuía num espaço permanente
as identidades
e as diferenças não-quantitativas
que separavam e uniam as coisas:
era essa a ordem
que reinava soberanamente,
mas a cada vez
segundo formas e leis
ligeiramente diferentes,
sobre o discurso dos homens,
o quadro dos seres naturais
e a troca das riquezas.

A partir do século XIX,
a História
vai desenrolar
numa série temporal
as analogias
que aproximam umas das outras
as organizações distintas.

É essa História que,
progressivamente,
imporá suas leis

  • à análise da produção,
  • à dos seres organizados, enfim,
  • à dos grupos linguísticos.

A História dá lugar
às organizações analógicas,
assim como a Ordem
abria o caminho
das identidades
e das diferenças sucessivas.

Essa forma de reflexão surgida será decorrência da segunda leitura do que seja uma operação de troca e portanto não pode prescindir do homem e do objeto?

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo II – A prosa do mundo;
II. As assinalações
Michel Foucault 

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VII – Os limites da representação;
I. A idade da história
Michel Foucault 

os lugares onde ocorrem as operações: 

  • Lugar de nascimento do que é empírico
    – operações de Construção de representações;
    • lugar onde o ‘modo de ser fundamental’ das empiricidades sim muda
  • Circuito onde ocorrem as trocas‘ ou Mercado
    – operações de Instanciamento de representações já existentes;
    • lugar onde o ‘modo de ser fundamental’ das empiricidades não muda.
Lugar do nascimento do que é empírico:
pensamento moderno – caminho da Construção da representação
Circuito das trocas, ou Mercado: pensamento clássico, ou pensamento moderno, sempre no caminho do Instanciamento da representação objeto

Mercado, ou Circuito das trocas: lugar onde ocorrem operações nas quais o ‘modo de ser fundamental’ das empiricidades não muda.

Encontra-se 

  • sob o pensamento clássico, o de antes de 1775,
  • e também ocorre no pensamento moderno, o de depois de 1825, apenas no caminho do Instanciamento da representação.

Lugar do nascimento do que é empírico: lugar onde ocorrem operações nas quais o ‘modo de ser fundamental das empiricidade sim, muda.

Encontra-se somente sob o pensamento moderno, o de depois de 1825, e apenas no caminho da Construção da representação

O ‘Circuito das trocas’,
ou ‘Mercado’
as chaves amarelas no LE da figura, lugar onde transcorre uma operação sob o pensamento clássico
O Lugar de nascimento do que é empírico – fora e antes do Mercado –
lugar onde transcorre a operação de construção de representação nova
e onde se dá a articulação
do pensamento do homem,
com o impensado
O Circuito das trocas
as chaves horizontais amarelas
no LD da figura, onde ocorrem operações durante as quais
o ‘modo de ser fundamental’
não se altera; é novamente o Mercado, agora no pensamento moderno

‘modo de ser fundamental das empiricidades’ é o conceito chave aqui.

No pensamento clássico, o de antes de 1775, pelos pressupostos adotados, é impossível definir o que seja ‘modo de ser fundamental’ de empiricidades cuja definição escapa ao escopo destas operações.

Estas operações transcorrem no interior do Circuito das trocas, a chave amarela horizontal, lugar onde não há alteração no modo como as coisas se apresentam à operação.

No pensamento moderno, o de depois de 1825, pelos pressupostos adotados é sim possível definir o que seja ‘modo de ser fundamental’ de empiricidades objeto da operação de Construção da representação que, se nova nesse domínio e ambiente, é o próprio escopo destas operações.

Operações no caminho da Construção da representação transcorrem no interior do ‘Lugar de nascimento do que é empírico’, as chaves coloridas verticais, em um espaço que engloba os lugares  desde onde se fala e do falado. O sucesso dessas operações altera ‘o modo de ser fundamental’ da empiricidade objeto, e com isso, faz-se História.

No pensamento moderno, o de depois de 1825, em uma operação de Instanciamento de representação objeto cuja construção da representação foi anteriormente feita e incorporada ao Repositório, a representação objeto de Instanciamento é recuperada do Repositório.

Assim, a operação de Instanciamento não altera o ‘modo de ser fundamental’ da empiricidade objeto de instanciamento.

no pensamento clássico
antes de 1775

no pensamento moderno
depois de 1825

questão/pergunta

2Assim como a Ordem
no pensamento clássico
não era
a harmonia visível
das coisas,
seu ajustamento,
sua regularidade
ou sua simetria constatados,
mas o espaço próprio de seu ser
e aquilo que,
antes de todo
conhecimento efetivo,
as estabelecia no saber,

1″Mas vê-se bem
que a História
não deve ser aqui entendida
como a coleta das sucessões de fatos, tais como se constituíram;

ela é

o modo de ser fundamental
das empiricidades,

aquilo a partir de que elas são

  • afirmadas,
  • postas,
  • dispostas
  • e repartidas no espaço do saber

para eventuais conhecimentos
e para ciências possíveis.

3 assim também
a História,
a partir do século XIX,
define o

lugar de nascimento
do que é empírico,

lugar onde,
aquém
de toda cronologia estabelecida,
ele assume o ser
que lhe é próprio.

A referência ao ‘Circuito das trocas’ – ou Mercado é uma quase unanimidade na literatura especializada filosófica ou técnica.

Qual será a explicação para isso?

Por que praticamente ninguém fala no ‘Lugar de nascimento do que é empírico’?

Seria o caso de haver um desalinhamento filosófico no trabalho desses autores?

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VII – Os limites da representação;
I. A idade da história
Michel Foucault 

os princípios organizadores dos modelos de operações que fazemos

no pensamento clássico
antes de 1775

no pensamento moderno
depois de 1825

questão/pergunta

_Estrutura IO-transformação
Os princípios organizadores
sob o pensamento clássico:
o de antes de 1775
‘Caráter’ e ‘Similitude’
Características do pensamento clássico
o de antes de 1775

“Assim o círculo se fecha.

Vê-se, porém, através de qual sistema de desdobramentos. 

As semelhanças exigem uma assinalação, pois nenhuma dentre elas poderia ser notada se não fosse legivelmente marcada. 

Mas que são esses sinais? 

Como reconhecer, entre todos os aspectos do mundo e tantas figuras que se entrecruzam, 

  • que há aqui um caráter 

no qual convém se deter, porque ele indica uma secreta e essencial semelhança? 

Que forma constitui o signo no seu singular valor de signo? 

  • – É a semelhança

Ele significa na medida em que tem semelhança com o que indica (isto é, com uma similitude).

Contudo, não é a homologia que ele assinala, pois seu ser distinto de assinalação se desvaneceria no semelhante de que é signo; trata-se de outra semelhança, uma similitude vizinha e de outro tipo que serve para reconhecer a primeira, mas que, por sua vez, é patenteada por uma terceira. 

Toda semelhança recebe uma assinalação; essa assinalação, porém, é apenas uma forma intermediária da mesma semelhança. De tal sorte que o conjunto das marcas faz deslizar, sobre o círculo das similitudes, um segundo círculo que duplicaria exatamente e, ponto por ponto, o primeiro, se não fosse esse pequeno desnível que faz com que 

  • o signo da simpatia resida na analogia, 
  • o da analogia na emulação, 
  • o da emulação na conveniência, 

que, por sua vez, para ser reconhecida, requer 

  • a marca da simpatia… 

A assinalação e o que ela designa são exatamente da mesma natureza; apenas a lei da distribuição a que obedecem é diferente; a repartição é a mesma.”

Os princípios organizadores desse espaço de empiricidades sob o pensamento moderno,
o de depois de 1825
‘Analogia’ e ‘Sucessão’
Características do pensamento moderno
o de depois de 1825

De sorte que se vêem surgir,
como princípios organizadores
desse espaço de empiricidades, 

  • a Analogia 
  • e a Sucessão

de uma organização a outra,
o liame, com efeito,
não pode mais ser
a identidade de um
ou vários elementos,
mas a identidade
da relação entre os elementos
(onde a visibilidade
não tem mais papel)
e da função que asseguram;
ademais, se porventura essas organizações se avizinham
por efeito de uma densidade singularmente grande de analogias, não é porque ocupem
localizações próximas
num espaço de classificação,
mas sim porque
foram formadas uma ao mesmo tempo que a outra e uma logo após a outra
no devir das sucessões.
Enquanto, no pensamento clássico,
a seqüência das cronologias
não fazia mais que percorrer
o espaço prévio e mais fundamental
de um quadro
que de antemão apresentava
todas as suas possibilidades,
doravante
as semelhanças contemporâneas
e observáveis simultaneamente
no espaço não serão mais que
as formas depositadas e fixadas de uma sucessão que procede
de analogia em analogia.
A ordem clássica
distribuía num espaço permanente
as identidades
e as diferenças não-quantitativas
que separavam e uniam as coisas:
era essa a ordem
que reinava soberanamente,
mas a cada vez
segundo formas e leis
ligeiramente diferentes,
sobre o discurso dos homens,
o quadro dos seres naturais
e a troca das riquezas.

A partir do século XIX,
a História
vai desenrolar
numa série temporal
as analogias
que aproximam umas das outras
as organizações distintas.

É essa História que,
progressivamente,
imporá suas leis

  • à análise da produção,
  • à dos seres organizados, enfim,
  • à dos grupos linguísticos.

A História dá lugar
às organizações analógicas,
assim como a Ordem
abria o caminho
das identidades
e das diferenças sucessivas.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo II – A prosa do mundo;
II. As assinalações
Michel Foucault 

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VII – Os limites da representação;
I. A idade da história
Michel Foucault 

os lugares contidos dentro do ‘Lugar de nascimento do que é empírico’:

  • o lugar ‘desde onde se fala
  • e o lugar ‘do falado‘;

consistentes com os blocos do ‘operar‘ e do ‘suporte ao operar‘ de Humberto Maturana

Esses dois lugares – o ‘desde onde se fala’ e o ‘do falado’ –
juntos delimitam o espaço onde se dá a articulação
do pensamento do homem com o impensado feita
no domínio do Pensamento e da Língua
e sua ligação com o domínio do Discurso e da Representação

no pensamento clássico
antes de 1775

no pensamento moderno
depois de 1825

questão/pergunta

O ‘Circuito das trocas’, ou ‘Mercado’
lugar onde transcorre uma operação sob o pensamento clássico

Lugar desde onde se fala

Lugar do falado

são sub-espaços do Lugar de nascimento do que é empírico o que implica que o pensamento está funcionando com o entendimento do pensamento moderno, o de depois de 1825, a coluna ao lado, portanto.

  • Lugar desde onde se fala não pode ser delineado sob o pensamento clássico pela falta da ideia e do elemento de imagem ‘homem’, aquele que fala, raiz e fundamento de toda positividade, e também da ideia do objeto resultado da articulação do pensamento com o impensado, feita pelo homem,;
  • e o Lugar do falado, analogamente, não pode ser delineado no LE da figura. 

todo o espaço  corresponde, no LE da figura, ao domínio todo em que ocorrem as operações sob o pensamento clássico, a saber, o domínio do Discurso e da Representação.

A leitura do que sejam Operações sob o entendimento no pensamento clássico pressupõe o ponto de inserção para análise no exato cruzamento entre o dado e o recebido na operação de troca, cuja condição de possibilidade está, desse modo, dada.

Lugar deste onde se fala:
ideias que formulam a proposição /
(sujeito e predicado do sujeito);
Lugar do falado:
ideias que dão suporte na experiência ao instanciamento da representação
no domínio e ambiente

Lugar do nascimento do que é empírico: espaço ocupado por:

  • Lugar desde onde se fala;
  • Lugar do falado

O Lugar de nascimento do que é empírico, como o nome sugere, está situado antes do circuito das trocas, e em seu interior ocorre a construção de representação nova.

Essa visão do que sejam operações corresponde à leitura de operações, ou visão desse fenômeno como desde um ponto de inserção anterior à troca

Lugar desde onde se fala

As ideias ou elementos de imagem que estão envolvidas na formulação da proposição estão contidas no espaço chamado de Lugar desde onde se fala:

  • sujeito: o homem na posição de raiz de toda positividade
  • predicado do sujeito
    • verbo: Forma de produção, o elemento central da operação de construção da representação;
    • atributo: a representação em construção, nas posições extremas da operação de construção.

Esse espaço coincide com o espaço chamado por Humberto Maturana de ‘operar’, o retângulo vermelho na figura ao lado, parte do Lugar de nascimento do que é empírico, mas no interior do domínio do Pensamento e da Língua.

Lugar do falado

As ideias ou elementos de imagem que estão envolvidos na sustentação da Forma de produção na experiência estão no lugar do falado:

  • elementos de suporte na experiência à Forma de produção, onde se encontram
    • processos, atividades, tasks

A operação de construção da representação escolhe os elementos de suporte na experiência à Forma de produção, que deve ser capaz de produzir quando implementada, uma instância da representação com o operar vislumbrado – ou o mais próximo disso possível. Humberto Maturana chama esse espaço de ‘suporte ao operar’, o retângulo amarelo na figura ao lado. 

O Lugar do falado é parte do Lugar de nascimento do que é empírico, mas suas ideias – ou elementos de imagem – fazem parte do domínio do Discurso e da Representação.

“É preciso, portanto,
tratar esse verbo
como um ser misto,

ao mesmo tempo
palavra entre as palavras,

preso às mesmas regras,
obedecendo como elas
às leis de regência
e de concordância;


e depois,


em recuo em relação a elas todas,

numa região que

  • não é
    aquela do falado

  • mas aquela 
    donde se fala.

Ele está na orla do discurso,
na juntura entre

  • aquilo que é dito

  • e aquilo que se diz,

exatamente lá onde os signos
estão em via de se tornar linguagem.”

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo IV – Falar;
tópico III. A teoria do verbo
por Michel Foucault

Há correspondências que precisam ser anotadas, entre elas:

  • no princípio dual de trabalho de David Ricardo
    • aquela atividade que está na origem do valor das coisas 
    • tem suas ideias – ou seus elementos de imagem no lugar desde onde se fala
  • no LD – lado direito da figura 2 de Humberto Maturana
    • os dois blocos do ‘Explicar com Reformular’ em que Maturana divide suas explicações
      • sobre o que acontecia com o ser vivo,
      • e o modo como ele o via no seu espaço de distinções
    • correspondem apropriadamente com o que Foucault chama respectivamente de 
      • Lugar desde onde se fala e 
      • Lugar do falado.

Processo e Mercado são os conceitos largamente utilizados;
e ao mesmo tempo não se ouve falar 

  • em Forma de produção
  • ou em Lugar de nascimento do que é empírico,
  • e menos ainda em Nexo da produção

como ideias – ou elementos de imagem – em modelos de operações e organizações

no pensamento clássico
aquém do objeto
antes de 1775

no pensamento moderno
diante do objeto
depois de 1825

espaço interior Triedro dos saberes
para além do objeto
reservado às Ciências humanas

Aquém do objeto:
Processo

Diante do objeto:
Forma de produção

Além do objeto
Nexo da operação

o elemento central em operações
no pensamento clássico
Processo
o elemento central em operações
no pensamento moderno
Forma de produção
o Nexo da produção,
o elemento central do modelo de organização no formato SSS
  • Elemento central:
    • Processo

entendido sob o primeiro conceito de verbo explicado por Michel Foucault, como elemento gerador de um sistema relativo de anterioridade ou simultaneidade das coisas entre si, que o mais que faz é indicar a coexistência de duas representações.

  • característica emergente: 
    • fluxo
  • metáfora 
    • transformação única
  • Elemento central:
    • Forma de produção

entendida sob o segundo conceito de verbo explicado por Michel Foucault, tratado como um ser misto, inicialmente palavra entre palavras, preso às mesmas regras às mesmas regras, obedecendo como elas às mesmas leis de regência e concordância, e depois, em recuo em relação a elas todas, numa região que não é aquela do falado, mas aquela donde se fala.

  • característica emergente:
    • permanência
  • metáfora
    • conversão ou duas transformações
  • Elemento central:
    • Nexo da produção

a formulação para além do objeto associa o sistema cujo resultado é o produto, aquilo que se quer obter, com o instrumento imprescindível para obtê-lo.

  • propriedades emergentes:
    • simetria, simbiose e sinergia

Em um pensamento mágico sobre a produção – nos moldes ‘varinha mágica de condão’ –  é possível desejar algo e, sem mais nada, vê-lo surgir à nossa frente depois do Plin!!! 

Num ambiente de produção real, porém, nada é produzido sem um instrumento com o qual instanciar esse objeto na realidade. A estrutura SSS é isso: a modelagem das operações de produção do objeto desejado juntamente com as operações de produção do objeto – distinto deste – laboratório piloto, ou fábrica, subindo um nível estrutural e impondo como elemento central o Nexo da produção

o significado/tratamento atribuído ao que seja um ‘Verbo’;
para o antes e para o depois da descontinuidade epistemológica

Ideias – ou elementos de imagem – centrais no LE e no LD da figura
Processo o elemento central no pensamento clássico
Forma de produção o elemento central no pensamento moderno, com as
designações primitivas e a linguagem de ação ou raiz

no pensamento clássico
antes de 1775

no pensamento moderno
depois de 1825

questão/pergunta

Aquém do objeto

Conceito de Verbo ‘Processo’
na configuração de pensamento
do período clássico, antes de 1775

Verbo como
Processo

“A única coisa que o verbo afirma
é a coexistência de duas representações:
por exemplo, 

  • a do verde
    e da árvore,

  • a do homem
    e da existência

    ou da morte; 

é por isso que
o tempo dos verbos

não indica
aquele [tempo]

em que as coisas existiram
no absoluto,

mas um sistema relativo
de anterioridade ou de simultaneidade
das coisas entre si.”

Diante e Além do objeto

Conceito de Verbo ‘Forma de produção’
na configuração de pensamento
do período moderno, depois de 1825

Verbo como
Forma de produção

“É preciso, portanto,
tratar esse verbo
como um ser misto,

ao mesmo tempo
palavra entre as palavras,

preso às mesmas regras,
obedecendo como elas
às leis de regência
e de concordância;


e depois,


em recuo em relação a elas todas,

  • numa região que não é
    aquela do falado

  • mas aquela
    donde se fala.

Ele está na orla do discurso,
na juntura entre

  • aquilo que é dito

  • e aquilo que se diz,

exatamente lá onde os signos
estão em via de se tornar linguagem.”

Dadas as grandes diferenças entre esses dois conceitos e tratamentos consequentes, para o que seja um ‘Verbo’, e a total consistência entre o segundo conceito/tratamento e ‘Forma de produção’

  • por que será que ‘Processo’ seja uma unanimidade nos textos sobre o assunto?

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo IV – Falar;
tópico III. A teoria do verbo
por Michel Foucault

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo IV – Falar;
tópico III. A teoria do verbo
por Michel Foucault

o significado/tratamento atribuído ao que seja um ‘Classificar’;
para o antes e para o depois da descontinuidade epistemológica

no pensamento clássico
antes de 1775

no pensamento moderno
depois de 1825

questão/pergunta

Aquém
do objeto

O conceito de ‘Classificar’
no pensamento clássico
o de antes de 1775

‘Classificar’
no pensamento clássico

Aquém do objeto,
isto é,
no pensamento filosófico Classico
o de antes de 1775

nessa faixa do espectro de modelos
que o pensamento de Michel Foucault permite desenhar

Classificar
é referir

  • o visível
  • a si mesmo,

encarregando um dos elementos
de representar os outros.”

Diante e Além
do objeto

O conceito de ‘Classificar’
no pensamento moderno
o de depois de 1825

‘Classificar’
no pensamento moderno

Diante, e Além do objeto, 
isto é, 
no pesamento filosófico moderno,
o de depois de 1825

nessa faixa do espectro de modelos 
que o pensamento de Michel Foucault permite desenhar

“Em um movimento
que faz revolver a análise

Classificar
é referir

  • o visível 
  • ao invisível 

– como a sua razão profunda -, 

e depois,
alçar de novo
dessa secreta arquitetura,
em direção aos seus
sinais manifestos,
que são dados
à superfície dos corpos.”

Dadas as grandes diferenças entre esses dois conceitos e tratamentos consequentes, por que será que ‘Processo’ seja uma unanimidade nos textos sobre o assunto?

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Cap. VII – Os limites da representação; tópico III. A organização dos seres

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Cap. VII – Os limites da representação; tópico III. A organização dos seres

pares de modelos constituintes das ciências do eixo epistemológico fundamental

  • da Vida(Biologia) [função-norma],
  • do Trabalho(Economia) [conflito-regra]
  • e da Linguagem(Filologia) [significação-sistema]

e o modelo constituinte padrão, comum a todas das ciências humanas; um modelo composto por uma combinação entre esses três pares de modelos constituintes das ciências da Vida, do Trabalho e da Linguagem

no pensamento clássico
antes de 1775
aquém do objeto

no pensamento moderno
depois de 1825
diante do objeto

no pensamento moderno
também depois de 1825
para além do objeto

não há modelos constituintes sob o pensamento clássico

O Triedro dos saberes: eixos e faces
espaço das ciências da Vida, do Trabalho e da Linguagem
O interior ao Triedro dos saberes
o espaço das Ciências humanas

Aquém do objeto

Não há modelos constituintes nesta faixa do espectro, já que nada é constituído na existência durante as operações;

Na configuração do pensamento pressupõe-se que todas as coisas
existem desde sempre e para sempre,
e integram o Universo em uma visão única.

Existem múltiplas ordens que podem ser arbitrariamente escolhidas para cada operação; e em uma mesma organização podem conviver ordens – como diz Foucault – ligeiramente diferentes. Tem-se inúmeras categorias para cada ordem escolhida, e muitas ordens possíveis de serem selecionadas.

Nada é constituído na existência como resultado das distinções feitas durante as operações nesta faixa do espectro.

Diante do objeto

A modelagem em cada área do saber é feita com um modelo constituinte específico e próprio de cada uma delas:

No que Foucault chama de ‘Região epistemológica Fundamental’ os Modelos constituintes são compostos por pares constituintes, próprios a cada região do saber ou área do conhecimento em que o modelo é feito:

  • Ciências da vida (Biologia):


    [função-norma]
    ;

  • Ciências do trabalho (Economia):


    [conflito-regra];

  • Ciências da Linguagem (Filologia):

    [significação-sistema].

Além do objeto

No campo das ciências humanas, o modelo constituinte de qualquer uma delas se unifica. Os Modelos constituintes são compostos por uma combinação dos três pares de modelos constituintes das ciências
da Vida
-(Biologia), do Trabalho-(Economia) e da Linguagem-(Filologia).

O Modelo constituinte  de cada uma das Ciências Humanas – é sempre uma combinação dos modelos constituintes das:

  • Ciências da vida  (Biologia):
    [função-norma];

    +
    Ciências do trabalho (Economia):
    [conflito-regra];

    +
    Ciências da Linguagem (Filologia):
    [significação-sistema].

Proposição: o bloco construtivo

  • padrão,
  • genérico
  • e fundamental

oferecido pela gramática da língua para construção de representações.

Esse bloco construtivo ‘proposição’ carrega valor para as representações, mas faz isso de ao menos dois modos diferentes e com duas visões distintas para o que sejam ‘operações’.

“Valer, para o pensamento clássico, é primeiramente valer alguma coisa, poder substituir essa coisa num processo de troca. A moeda só foi inventada, os preços só foram fixados e só se modificam na medida em que essa troca existe.

Ora, a troca é um fenômeno simples apenas na aparência.

Com efeito, só se troca numa permuta, quando cada um dos dois parceiros reconhece um valor para aquilo que o outro possui.

Num sentido, é preciso, pois, que as coisas permutáveis, com seu valor próprio, existam antecipadamente nas mãos de cada um, para que

  • a dupla cessão
  • e a dupla aquisição

finalmente se produzam.

Mas, por outro lado, o que cada um come e bebe, aquilo de que precisa para viver não tem valor enquanto não o cede; e aquilo de que não tem necessidade é igualmente desprovido de valor enquanto não for usado para adquirir alguma coisa de que necessite.

Em outras palavras, para que, numa troca, uma coisa possa representar outra,

  • é preciso que elas existam já carregadas de valor;
    • e, contudo, o valor só existe no interior da representação
      (atual ou possível), isto é,
    • no interior da troca ou da permutabilidade.

“A proposição é
para a linguagem
o que a representação é
para o pensamento
sua forma,
ao mesmo tempo
mais geral
e mais elementar
porquanto,
desde que a decomponhamos,
não encontremos mais o discurso
mas seus elementos
como tantos materiais dispersos

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VI – Trocar;
V. A formação do valor
Michel Foucault 

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Cap. IV – Falar;
tópico: III – A teoria do verbo
Michel Foucault

no pensamento clássico
antes de 1775

no pensamento moderno
depois de 1825

questão/pergunta

a proposição no pensamento clássico
ponto de aplicação da leitura de operações no momento da troca

a toda a essência da linguagem  encerrada – diretamente – na própria proposição;

junto com esse ‘encerramento’ vão as ideias – ou elementos de imagem – necessários para a formulação da proposição, que assim, não participam do modelo de operações.

a proposição no pensamento moderno ponto de aplicação da leitura de operações antes da troca

a descoberta da essência da linguagem  fora dela mesma, linguagem; a proposição formulada no modelo por suas ideias ou elementos de imagem presentes; inicialmente vazia, apenas um enunciado, é preenchida de valor a partir de duas fontes:

  • as designações primitivas;
  • a linguagem de ação ou raiz

ambas assinaladas na figura.

“Daí duas possibilidades simultâneas de leitura:

1 uma analisa o valor

  • no ato mesmo da troca,

no ponto de cruzamento
entre o dado e o recebido;

  • A primeira dessas duas leituras corresponde a uma análise que coloca e encerra toda a essência da linguagem no interior da
    • proposição;

3 no primeiro caso, com efeito, a linguagem encontra seu lugar de possibilidade numa atribuição assegurada pelo verbo – isto é, por esse elemento da linguagem em recuo relativamente a todas as palavras mas que as reporta umas às outras; o verbo, tornando possíveis todas as palavras da linguagem a partir de seu liame proposicional, corresponde à troca que funda, como um ato mais primitivo que os outros, o valor das coisas trocadas e o preço pelo qual são cedidas;

2 outra analisa-o

  • como anterior à troca 

e como condição primeira
para que esta possa ocorrer.

  • a outra, a uma análise que descobre essa mesma essência da linguagem
    do lado das
    • designações primitivas
    • linguagem de ação ou raiz;

4 a outra forma de análise, a linguagem está enraizada 

  • fora de si mesma e como que
    • na natureza, ou nas   
    • analogias das coisas;

a raiz, o primeiro grito que dera nascimento às palavras antes mesmo que a linguagem tivesse nascido, corresponde à formação imediata do valor,

  • antes da troca
  • e das medidas recíprocas da necessidade.”

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VI – Trocar;
V. A formação do valor
Michel Foucault 

Ideias – ou elementos de imagem – requeridos para a
Formulação da proposição, e valor carregado 

Ideias – ou elementos de imagem requeridos para formulação da proposição ausentes da estrutura do modelo de operação.

Valor carregado diretamente na proposição.

impossibilidade de formulação da proposição com ideias – ou elementos de imagem – requeridos, pela ausência do homem em sua duplicidade de papéis, e pela noção de objeto descrito por suas propriedades originais e constitutivas.

Proposição formulada com ideias ou elementos de imagem pertencentes à estrutura interna do modelo de operações;

Valor carregado pela proposição com origem fora da linguagem

  • designações primitivas

a busca por origem, condições de possibilidade e de generalidade dentro de limites, para a representação da empiricidade objeto no domínio e ambiente em que a operação acontece. 

  • linguagem de ação ou raiz

todo o conteúdo do Repositório de proposições explicativas da experiência formuladas de acordo com as regras da língua, à disposição da construção de novas representações.

Os tipos de sistemas que dão suporte a operações,
em função da configuração do pensamento:

  • no pensamento clássico: o sistema Input-Output, ou um sistema relativo de anterioridade ou simultaneidade das coisas entre si;
  • no pensamento moderno: um sistema construído no interior do Lugar de nascimento do que é empírico, lugar onde as empiricidades objeto das operações adquirem ‘o ser que lhes é próprio’.

no pensamento clássico
antes de 1775
verbo ‘Processo

no pensamento moderno
depois de 1825
verbo ‘Forma de produção

questão/pergunta

Operação clássica sob o conceito de Verbo ‘Processo’
na configuração de pensamento
do período clássico, antes de 1775

“A única coisa
que o verbo afirma

é a coexistência de duas representações:
por exemplo, 

  • a do verde
    e da árvore,

  • a do homem
    e da existência

    ou da morte; 

é por isso
que o tempo dos verbos

não indica
aquele [tempo]

em que as coisas existiram
no absoluto,

mas um sistema relativo
de anterioridade ou de simultaneidade
das coisas entre si.”

Operação moderna sob o conceito de
Verbo ‘Forma de produção’
na configuração de pensamento
do período moderno, depois de 1825

“É preciso, portanto,
tratar esse verbo
como um ser misto,

ao mesmo tempo
palavra entre as palavras,

preso às mesmas regras,
obedecendo como elas
às leis de regência
e de concordância;


e depois,


em recuo em relação a elas todas,

  • numa região que não é
    aquela do falado

  • mas aquela
    donde se fala.

Ele está na orla do discurso,
na juntura entre

  • aquilo que é dito

  • e aquilo que se diz,

exatamente lá onde os signos
estão em via de se tornar linguagem.”

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo IV – Falar;
tópico III. A teoria do verbo
por Michel Foucault

O tipo de sistema

O conceito acima é explícito em fornecer uma descrição do tipo de sistema para operações sob o pensamento clássico.

Trata-se de 

  • um sistema relativo
    de anterioridade ou de simultaneidade
    das coisas entre si; 

uma definição magistral para o que seja o sistema Input-Output.

asdf

Trata-se de um sistema relativo de anterioridade ou de simultaneidade das coisas entre si; uma definição magistral para o que seja o sistema Input-Output.

O tipo de leitura

asdf

Trata-se de um sistema relativo de anterioridade ou de simultaneidade das coisas entre si; uma definição magistral para o que seja o sistema Input-Output.

asdf

Trata-se de um sistema relativo de anterioridade ou de simultaneidade das coisas entre si; uma definição magistral para o que seja o sistema Input-Output.

o tempo nas operações, em função dos sistemas
em cada segmento do espectro de modelos

no pensamento clássico
antes de 1775
aquém do objeto

no pensamento moderno
depois de 1825
diante e para além do objeto

no pensamento moderno
também depois de 1825
diante e para além do objeto

formulação reversível
e somente 
instanciamento
da representação;
deus Chronos

formulação irreversível
e operação de construção
da representação 
deus Kairós

formulação reversível
 e operação instanciamento
da representação
deus Chronos

pensamento clássico, o de antes de 1775
tempo calendário no sistema Input-Output
operação de instanciamento de representação anteriormente formulada
pensamento moderno, o de depois de 1825
tempo absoluto sistema absoluto
no caminho da Construção da representação
pensamento moderno, o de depois de 1825
tempo relativo, sistema relativo ou absoluto,
no caminho do Instanciamento da representação

Aquém do objeto

Diante ou para além do objeto

Nota: a existência precede as distinções feitas na operação.

Tempo na formulação e no instanciamento da representação:

  • formulação reversível durante a formulação;
  • tempo calendário, ou tempo relativo no sentido de que
    • dada a inserção calendário de um evento (i) ou (f),
    • a posição calendário do outro evento (f) ou (i) pode ser calculada com as propriedades aparentes disponíveis antes e depois da operação;
  • irreversibilidades somente na etapa de instanciamento da representação

Não há nada que possa ser afirmado, posto, disposto e repartido no espaço do saber para eventuais conhecimentos e ciências possíveis e assim não se pode falar em ‘modo de ser fundamental’ do que quer que seja. 

Assim, no pensamento clássico, não é possível adotar esse conceito ‘modo de ser fundamental das empiricidades’ como elemento ordenador da história, que é compreendida como sucessão de fatos assim como se sucedem.

caminho da
Construção da representação
Nota: a existência se constitui com as distinções feitas na operação

Durante essa operação, a empiricidade objeto da operação, sim, muda seu ‘modo de ser fundamental’ nesse domínio e ambiente em decorrência da operação.

Tempo no caminho da Construção da representação, durante a formulação da representação:

  • formulação irreversível durante a formulação;
  • tempo absoluto no sentido de que a empiricidade objeto ‘assume o ser que lhe é próprio’ em decorrência da operação, e então:
    • dada a inserção calendário de um evento (i) ou (f)
    • não é possível o cálculo da inserção calendário do outro evento (f) ou (i) a partir dessa inserção calendário do evento anterior em virtude da não disponibilidade das propriedades antes/depois da operação;
  •  irreversibilidades ocorrem na formulação da operação de construção da representação.

A empiricidade objeto da operação tem um novo ‘modo de ser fundamental’, isto é, pode ser ‘afirmada, posta, disposta e repartida no espaço do saber para eventuais conhecimentos e ciências possíveis’.

Tomando o ‘modo de ser fundamental’ das empiricidades como elemento ordenador da história, durante esse tipo de operações, sim, faz-se história.

 caminho do
Instanciamento da representação

Nota: a existência volta a preceder as distinções feitas na operação.
 

Durante essa operação a empiricidade objeto não muda seu ‘modo de ser fundamental’ nesse domínio e ambiente em decorrência da operação.

Tempo  no caminho do Instanciamento da representação previamente existente no Repositório e dele recuperada para a posição de empiricidade objeto na presente operação de instanciamento:

  • formulação volta a ser reversível; (é possível descartar uma formulação de instanciamento e formular outra com novas escolhas, sem perdas;
  • tempo volta a ser tempo calendário, ou tempo relativo;
  • irreversibilidades no caminho do Instanciamento da representação ocorrem em decorrência do desencadeamento dos elementos de suporte na experiência à Forma de produção.

A empiricidade objeto da operação tem exatamente o mesmo ‘modo de ser fundamental’ com que foi recuperada do repositório, isto é, pode ser ‘afirmada, posta, disposta e repartida no espaço do saber para eventuais conhecimentos e ciências possíveis’ exatamente da mesma forma como havia sido acrescentada ao repositório.

Tomando o ‘modo de ser fundamental’ das empiricidades como elemento ordenador da História, durante esse tipo de operações não se faz história.

Modelagem de operações e organizações organizadas pelo par sujeito-objeto, com operações específicas e separadas para cada um desses pares, porém relacionadas:

 

  • um modelo para a operação e organização para o objeto esperado pelo Cliente (Produto);
  • e um modelo para a operação e organização  para o instrumento capaz de obter o Produto, bem como obter o objeto esperado pelo Acionista (Benefícios de toda espécie, Lucros)

Mapa geral das operações na disposição SSS

Modelagem para uma organização incluindo o objeto esperado de interesse do Cliente
e o instrumento capaz de obtê-lo, e também o objeto esperado de interesse do Acionista
identificando o nexo da produção

Argumento: a modelagem de operações
organizada pelo par sujeito-objeto

Construção da estrutura de operações na disposição SSS – Simétrica, Simbiótica e Sinérgica

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Cronologia básica da descontinuidade epistemológica ocorrida em nossa cultura ocidental entre os anos 1775-1825 segundo Michel Foucault.

  • fases e ponto de ruptura desse evento;
  • linha de tempo com as defasagens entre conquistas no pensamento e respectivo uso nas áreas técnicas;
  • alguns autores importantes de um e de outro lado desse evento;
  • ponto de entrada do homem em nossa cultura;
  • alguns autores citados como referências em modelos sociais, econômicos e políticos
Michel Foucault
1926-1984

“E foi realmente necessário 
um acontecimento fundamental
– um dos mais radicais, sem dúvida, 1
que ocorreram na cultura ocidental,
para que se desfizesse a positividade do saber clássico
e se constituísse uma positividade de que, por certo,
não saímos inteiramente.”

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VII – Os limites da representação;
tópico I. A idade da história

Cronologia da descontinuidade epistemológica de 1775-1825;
defasagens entre conquistas no pensamento filosófico e respectiva utilização prática

cronologia básica da descontinuidade epistemológica de 1775-1825

A descontinuidade epistemológica ocorrida entre 1775 e 1825, segundo o pensamento de Michel Foucault
uma linha de tempo mostrando os intervalos de tempo entre o desenvolvimento de conhecimento e sua aplicação prática

O ponto de surgimento do homem em nossa cultura

 “É somente na segunda fase que as palavras, as classes e as riquezas adquirirão um modo de ser que não é mais compatível com o da representação.

Em contra partida, o que se modifica muito cedo, desde as análises de Adam Smith, de A.-L. de Jussieu ou de Viq d’Azyr, na época de Jones ou de Anquetil-Duperron,

  • é a configuração das positividades: a maneira como, no interior de cada uma,
    • os elementos representativos funcionam uns em relação aos outros, 
    • a maneira como asseguram seu duplo papel de designação e de articulação, 
    • como chegam, pelo jogo das comparações, a estabelecer uma ordem. “

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas
Cap.VII – Os limites da representação
tópico I. A idade da história

Datas e fases da descontinuidade epistemológica ocorrida entre 1775 e 1825, e surgimento do homem no pensamento em nossa cultura segundo o pensamento de Michel Foucault.

Alguns autores fundamentos filosóficos do liberalismo, e autores chave do pensamento moderno posicionados em relação à descontinuidade epistemológica de 1775-1825

Algumas personagens importantes para entendimento da descontinuidade epistemológica de 1775-1825

Michel Foucault ao delinear sua arqueologia das ciências humanas, propósito do ‘As palavras e as coisas’, com certeza tomou conhecimento do trabalho desses autores.

  • autores clássicos:
    • Adam Smith,
    • John Locke, 
    • David Hume, 
    • J. J. Rousseau, 
    • Jeremy Bentham, 
    • e J. M. Keynes (este, expressamente classificado por Foucault como não moderno)
  • autores modernos:
    • David Ricardo
    • Sigmund Schlomo Freud 
    • entre muitos outros.

Michel Foucault menciona ainda em destaque, como artífices do pensamento moderno e fontes para o seu próprio pensamento:

  • Georges Cuvier, naturalista, 1769-1832
  • Franz Bopp, linguista, 1792-1867
  • David Ricardo, economista, 1772-1823

Exemplos de modelos de operações e de organizações sem a possibilidade de fundar as sínteses (do objeto das operações) no espaço da representação e com ponto de inserção da análise de operações no cruzamento entre o dado e o recebido na operação de troca

Funcionamento
do pensamento
funcionamento das operações no pensamento clássico
Modelo de
Operação de produção
relação do modelo de operações de produção de E. S. Buffa
e o sistema Input-Output
do LE da figura.
Modelo da 
Organização de produção
Um modelo de organização sob o pensamento clássico, destacando a utilização de múltiplas ordens, ou
múltiplos sistemas de categorias
Modelo de operações
e de organização
Modelo FEPSC(SIPOC), Six Sigma
Modelo de  Operação
contábil-financeira
O modelo de operação
no sistema contábil-financeiro
Modelo da  Organização
ponto de vista financeiro
a organização no sistema contábil-financeiro

Exemplos de modelos de operações e de organizações no pensamento moderno, e assim  com a possibilidade de fundar as sínteses (do objeto das operações) no espaço da representação e com ponto de inserção da análise de operações antes do cruzamento entre o dado e o recebido na operação de troca

Funcionamento
de operação do pensamento
O funcionamento das operações no pensamento moderno
Modelo de
Operação de produção
relação entre o modelo descritivo da produção do Kanban e ‘essa maneira moderna de conhecer empiricidades’
Modelo da 
Organização de produção
o modelo de organização ‘Mapa da atividade semicondutores’, da Reengenharia, o modelo de operações do Kanban e o modelo moderno de operações
O modelo descritivo da produção do Kanban operação de
instanciamento de representação
O mapa da atividade semicondutores da Texas Instruments: modelo de organização
do movimento Reengenharia

O espaço interior do Triedro dos saberes – habitat das ciências humanas, com modelos situados no espectro de modelos no segmento para além do objeto

Assim, estes três pares,

  • função e norma,
  • conflito e regra,
  • significação e sistema,

cobrem, por completo, o domínio inteiro do conhecimento do homem. 

Mas, qualquer que seja a natureza da análise e o domínio a que ela se aplica, tem-se um critério formal para saber o que é

  • do nível da psicologia,
  • da sociologia
  • ou da análise das linguagens

é a escolha do modelo fundamental e a posição dos modelos secundários que permitem saber em que momento

  • se “psicologiza” ou se “sociologiza” no estudo das literaturas e dos mitos, em que momento se faz, em psicologia, decifração de textos ou análise sociológica. 

Mas essa superposição de modelos não é um defeito de método. 

Só há defeito se os modelos não forem ordenados e explicitamente articulados uns com os outros.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo X  – As ciências humanas;
 III. Os três modelos
Michel Foucault 

O Triedro dos saberes: eixos e faces
espaço das ciências da Vida, do Trabalho e da Linguagem
O interior ao Triedro dos saberes
o espaço das Ciências humanas

Aquém do objeto

Não há modelos constituintes nesta faixa do espectro, já que nada é constituído na existência durante as operações;

  • o ponto de inserção na análise do fenômeno ‘operações está no cruzamento entre o que é dado e o que é recebido na operação de troca.

Na configuração do pensamento pressupõe-se que todas as coisas
existem desde sempre e para sempre,
e integram o Universo em uma visão única.

Existem múltiplas ordens que podem ser arbitrariamente escolhidas para cada operação; e em uma mesma organização podem conviver ordens – como diz Foucault – ligeiramente diferentes. Tem-se inúmeras categorias para cada ordem escolhida, e muitas ordens possíveis de serem selecionadas.

Nada é constituído na existência como resultado das distinções feitas durante as operações nesta faixa do espectro.

Diante do objeto

No eixo epistemológico fundamental – ciências da Vida, do Trabalho e da Linguagem, a modelagem em cada área do saber pode ser feita com um modelo constituinte específico e próprio de cada uma delas:

  • em todas, o ponto de inserção na análise do fenômeno ‘operações’ está antes do cruzamento entre o dado e o recebido, e portanto antes da existência destes.

No que Foucault chama de ‘Região epistemológica Fundamental’ os Modelos constituintes são compostos por pares constituintes, próprios a cada região do saber ou área do conhecimento em que o modelo é feito:

  • Ciências da vida (Biologia):


    função-norma
    ;

  • Ciências do trabalho (Economia):


    conflito-regra;

  • Ciências da Linguagem (Filologia):

    significação-sistema.

Além do objeto

No campo das ciências humanas, o modelo constituinte de qualquer uma delas se unifica. 

Os Modelos constituintes são compostos por uma combinação dos três pares de modelos constituintes das ciências

  • da Vida-(Biologia),
  • do Trabalho-(Economia)
  • e da Linguagem-(Filologia).

O Modelo constituinte  de cada uma das Ciências Humanas – é uma combinação – ponderada pelo projetista de modelos.

O modelo composto é uma combinação dos três pares de modelos constituintes: 

  • Ciências da vida  (Biologia):
    função-norma;

    +
    Ciências do trabalho (Economia):

    conflito-regra;
    +
    Ciências da Linguagem (Filologia):
    significação-sistema.

Sob ciências humanas como:

  • economia política;
  • sociologia,
  • psicologia e psicanálise

estão modelos compostos, que são combinações ponderadas dos três pares de modelos constituintes das ciências integrantes do eixo epistemológico fundamental.

A descrição feita por Michel Foucault de duas possibilidades
de posicionamento do pensamento com relação a valor

“Valor, para o pensamento clássico, é primeiramente valer alguma coisa, poder substituir essa coisa num processo de troca. A moeda só foi inventada, os preços só foram fixados e só se modificam na medida em que essa troca existe.

Ora, a troca é um fenômeno simples apenas na aparência.

Com efeito, só se troca numa permuta, quando cada um dos dois parceiros reconhece um valor para aquilo que o outro possui.

Num sentido, é preciso, pois, que as coisas permutáveis, com seu valor próprio, existam antecipadamente nas mãos de cada um, para que a dupla cessão e a dupla aquisição finalmente se produzam.

Mas, por outro lado, o que cada um come e bebe, aquilo de que precisa para viver não tem valor enquanto não o cede; e aquilo de que não tem necessidade é igualmente desprovido de valor enquanto não for usado para adquirir alguma coisa de que necessite.

Em outras palavras, para que, numa troca, uma coisa possa representar outra, é preciso que elas existam já carregadas de valor; e, contudo, o valor só existe no interior da representação (atual ou possível), isto é, no interior da troca ou da permutabilidade.

Daí duas possibilidades simultâneas de leitura:

  1. uma analisa o valor no ato mesmo da troca, no ponto de cruzamento entre o dado e o recebido;
  2. outra analisa-o como anterior à troca e como condição primeira para que esta ossa ocorrer.

Os dois pontos de partida distintos adotados pelo pensamento para análise de valor

1. a primeira possibilidade de leitura

A análise de valor no ato mesmo da troca,
no ponto de cruzamento entre o dado e o recebido

2. a segunda possibilidade de leitura

A análise de valor como anterior à troca
e como condição primeira para que esta possa ocorrer.

A primeira dessas duas leituras corresponde a uma análise que coloca e encerra toda a essência da linguagem no interior da proposição;

  • no [neste] primeiro caso, com efeito, a linguagem encontra seu lugar de possibilidade numa atribuição assegurada pelo verbo – isto é, por esse elemento da linguagem em recuo relativamente a todas as palavras mas que as reporta umas às outras; o verbo, tomando possíveis todas as palavras da linguagem a partir de seu liame proposicional, corresponde à troca que funda, como um ato mais primitivo que os outros, o valor das coisas trocadas e o preço pelo qual são cedidas;

a outra, [corresponde] a uma análise que descobre essa mesma essência da linguagem do lado das designações primitivas – linguagem de ação ou raiz(*);

  • na outra [nesta] forma de análise, a linguagem está enraizada fora de si mesma e como que na natureza ou nas analogias das coisas; a raiz, o primeiro grito que dera nascimento às palavras antes mesmo que a linguagem tivesse nascido, corresponde à formação imediata do valor, antes da troca e das medidas recíprocas da necessidade.

Propriedades das operações e organizações modeladas com a paleta de ideias ou elementos de imagem do pensamento moderno, depois de 1825, e no caminho do Instanciamento da representação

Propriedades das operações e organizações modeladas com a paleta de ideias ou elementos de imagem do pensamento clássico, antes de 1775

Propriedades das operações e organizações modeladas com a paleta de ideias ou elementos de imagem do pensamento moderno, depois de 1825, e no caminho da Construção da representação

II. A ordem

Capítulo III. Representar; tópico II. A ordem

Não é fácil estabelecer o estatuto das descontinuidades para a história em geral. Menos ainda, sem dúvida, para a história do pensamento.

Pretende-se traçar uma divisória? Todo limite não é mais talvez que um corte arbitrário num conjunto indefinidamente móvel.

Pretende-se demarcar um período?

Tem-se porém o direito de estabelecer, em dois pontos do tempo, rupturas simétricas, para fazer aparecer entre elas um sistema contínuo e unitário?

A partir de que, então, ele se constituiria e a partir de que, em seguida, se desvaneceria e se deslocaria?

A que regime poderiam obedecer ao mesmo tempo sua existência e seu desaparecimento? Se ele tem em si seu princípio de coerência, donde viria o elemento estranho capaz de recusá-lo?

Como pode um pensamento esquivar-se diante de outra coisa que ele próprio?

Que quer dizer, de um modo geral: não mais poder pensar um pensamento?

E inaugurar um pensamento novo?

O descontínuo – o fato de que em alguns anos, por vezes, uma cultura deixa de pensar como fizera até então e se põe a pensar outra coisa e de outro modo – dá acesso, sem dúvida, a uma erosão que vem de fora, a esse espaço que, para o pensamento, está do outro lado, mas onde, contudo, ele não cessou de pensar desde a origem.

Em última análise, o problema que se formula é o das relações do pensamento com a cultura: como sucede que um pensamento tenha um lugar no espaço do mundo, que aí encontre como que uma origem, e que não cesse, aqui e ali, de começar sempre de novo?

Mas talvez não seja ainda o momento de formular o problema; é preciso provavelmente esperar que a arqueologia do pensamento esteja mais assegurada, tenha mais bem assumido a medida daquilo que ela pode descrever direta e positivamente, tenha definido os sistemas singulares e os encadeamentos internos aos quais se endereça, para tentar fazer o contorno do pensamento e interrogá-lo na direção por onde ele escapa de si mesmo. Bastará pois, por ora, acolher essas descontinuidades na ordem empírica, ao mesmo tempo evidente e obscura, em que se dão.

No começo do século XVII, nesse período que, com razão ou não, se chamou barroco, o pensamento cessa de se mover no elemento da semelhança. A similitude não é mais a forma do saber, mas antes a ocasião do erro, o perigo ao qual nos expomos quando não examinamos o lugar mal esclarecido das confusões.

“É um hábito frequente”, diz Descartes nas primeiras linhas das Regulae, “quando se descobrem algumas semelhanças entre duas coisas, atribuir tanto a uma como à outra, mesmo sobre os pontos em que elas são na realidade diferentes, aquilo que se reconheceu verdadeiro para somente uma das duas.”(1)

A idade do semelhante está fechando-se sobre si mesma. Atrás dela só deixa jogos. Jogos cujos poderes de encanto crescem com esse parentesco novo da semelhança com a ilusão;

  • por toda a parte se desenham as quimeras da similitude, mas sabe-se que são quimeras;
  • é o tempo privilegiado do trompe-l’oeil, da ilusão cômica, do teatro que se desdobra e representa um teatro, do quiproquó, dos sonhos e visões;
  • é o tempo dos sentidos enganadores;
  • é o tempo em que as metáforas, as comparações e as alegorias definem o espaço poético da linguagem.

E por isso mesmo, o saber do século XVI deixa a lembrança deformada de um conhecimento misturado e sem regra, onde todas as coisas do mundo se podiam aproximar ao acaso das experiências, das tradições ou das credulidades.

Doravante as belas figuras rigorosas e constringentes da similitude serão esquecidas. E se tornarão os signos que as marcavam por devaneios e encantos de um saber que ainda não se tornara razoável.

Encontra-se, já em Bacon, uma crítica da semelhança. Crítica empírica, que não concerne às relações de ordem e de igualdade entre as coisas, mas aos tipos de espírito e às formas de ilusão às quais elas podem estar sujeitas.

Trata-se de uma doutrina do quiproquó. Bacon não dissipa as similitudes por meio da evidência e de suas regras. Mostra que elas cintilam diante dos olhos, desvanecem-se quando nos aproximamos, mas se recompõem imediatamente, um pouco mais longe.

São ídolos. Os ídolos da caverna e os do teatro fazem-nos crer que as coisas se assemelham ao que aprendemos e às teorias que formamos para nós; outros ídolos fazem-nos crer que as coisas se assemelham entre si.

“O espírito humano é naturalmente levado a supor que há nas coisas mais ordem e semelhança do que possuem; e, enquanto a natureza é plena de exceções e de diferenças, por toda a parte o espírito vê harmonia, acordo e similitude. Daí esta ficção de que todos os corpos celestes descrevem, ao mover-se, círculos perfeitos”:

tais são os ídolos da tribo, ficções espontâneas do espírito.

A eles se juntam – efeitos e por vezes causas – as confusões da linguagem: um só e mesmo nome se aplica indiferentemente a coisas que não são da mesma natureza. São ídolos do fórum (2).

Só a prudência do espírito pode dissipá-los, desde que renuncie a sua pressa e ligeireza natural para tomar-se “penetrante”, e perceber enfim as diferenças próprias à natureza.

A crítica cartesiana da semelhança é de outro tipo.

  • Não é mais o pensamento do século XVI inquietando-se diante de si mesmo e começando a se desprender de suas mais familiares figuras;
  • é o pensamento clássico excluindo a semelhança como experiência fundamental e forma primeira do saber, denunciando nela um misto confuso que cumpre analisar em termos de identidade e de diferenças, de medida e de ordem.

Se Descartes recusa a semelhança,

  • não é excluindo do pensamento racional o ato de comparação, nem buscando limitá-lo,
  • mas, ao contrário, universalizando-o e dando-lhe assim sua mais pura forma.

Com efeito, é pela comparação que encontramos “a figura, a extensão, o movimento e outros semelhantes” – isto é, as naturezas simples – em todos os sujeitos onde elas podem estar presentes.

E, por outro lado, numa dedução do tipo

“todo A é B, todo B é C, logo todo A é C”,

é claro que o espírito

“compara entre si o termo procurado e o termo dado, a saber, A e C, através dessa relação segundo a qual um e outro são B”.

Por consequência, se se puser de parte a intuição de uma coisa isolada, pode-se dizer que todo conhecimento

“se obtém pela comparação de duas ou várias coisas entre si”(3).

Ora, não há conhecimento verdadeiro senão pela intuição, isto é, por um ato singular da inteligência pura e atenta, e pela dedução que liga entre si as evidências.

De que modo a comparação, que é requerida para quase todos os conhecimentos e que, por definição, não é uma evidência isolada nem uma dedução, pode autorizar um pensamento verdadeiro?

“Quase todo o trabalho da razão humana consiste, sem dúvida, em tornar essa operação possível.”4

Existem duas formas de comparação e somente duas:

  • a comparação da medida
  • e a da ordem.

Podem-se medir grandezas ou multiplicidades, isto é, grandezas contínuas ou descontínuas; mas, tanto num caso como no outro, a operação de medida supõe que, diferentemente do cálculo que vai dos elementos para a totalidade, consideremos primeiro o todo e que o dividamos em partes.

Essa divisão vai dar em unidades, entre as quais

  • umas são de convenção ou “de empréstimo” (para as grandezas contínuas)
  • e outras (para as multiplicidades ou grandezas descontínuas) são as unidades da aritmética.

Comparar duas grandezas ou duas multiplicidades exige, de toda maneira, que se aplique à análise de uma e de outra uma unidade comum.

Assim, a comparação efetuada pela medida se reduz, em todos os casos, às relações aritméticas da igualdade e da desigualdade. A medida permite analisar o semelhante segundo a forma calculável da identidade e da diferença(5).

Quanto à ordem, estabelece-se sem referência a uma unidade exterior:

“Reconheço, com efeito, qual é a ordem entre A e B sem nada considerar senão esses dois termos extremos”;

não se pode conhecer a ordem das coisas

  • “na sua natureza isoladamente”,
  • mas, sim, descobrindo aquela que é a mais simples, em seguida aquela que é a mais próxima

para que se possa aceder necessariamente, a partir daí, até as coisas mais complexas.

  • Enquanto a comparação por medida exigia primeiro uma divisão, depois a aplicação de uma unidade comum,
  • aqui comparar e ordenar são uma única e mesma coisa: a comparação pela ordem é um ato simples que permite passar de um termo a outro, depois a um terceiro etc., por um movimento “absolutamente ininterrupto”(6).

Assim se estabelecem séries em que

  • o primeiro termo é uma natureza da qual se pode ter a intuição independentemente de qualquer outra;
  • e em que os outros termos são estabelecidos segundo diferenças crescentes.

Tais são, portanto, os dois tipos de comparação:

  • uma analisa em unidades para estabelecer relações de igualdade e de desigualdade;
  • a outra estabelece elementos, os mais simples que se possam encontrar, e dispõe as diferenças segundo os graus mais fracos possíveis.

Ora, pode-se reduzir a medida das grandezas e das multiplicidades ao estabelecimento de uma ordem; os valores da aritmética são sempre ordenáveis segundo uma série: a multiplicidade das unidades pode, pois,

“dispor-se segundo uma ordem tal que a dificuldade, que pertence ao conhecimento da medida, acabe por depender somente da consideração da ordem”(7).

E é nisso justamente que consistem o método e seu “progresso”:

  • reduzir toda medida (toda determinação pela igualdade e a igualdade)
  • a uma colocação em série que, partindo do simples, faz aparecer as diferenças, como graus de complexidade.

O semelhante, depois de ter sido analisado segundo a unidade e as relações de igualdade ou de desigualdade, é analisado segundo a identidade evidente e as diferenças: diferenças que podem ser pensadas na ordem das inferências.

Entretanto, essa ordem ou comparação generalizada só se estabelece conforme o encadeamento no conhecimento; o caráter absoluto que se reconhece ao que é simples não concerne ao ser das coisas, mas, sim, à maneira como elas podem ser conhecidas.

De tal sorte que uma coisa pode ser absoluta sob certo aspecto e relativa sob outro(8); a ordem pode ser ao mesmo tempo

  • necessária e natural (em relação ao pensamento)
  • e arbitrária (em relação às coisas),

já que uma mesma coisa, segundo a maneira como a consideramos, pode ser colocada num ponto ou noutro da ordem.

Tudo isso teve grandes consequências para o pensamento ocidental.

O semelhante, que fora durante muito tempo categoria fundamental do saber – ao mesmo tempo forma e conteúdo do conhecimento – se acha dissociado numa análise feita em termos de identidade e de diferença; ademais, quer indiretamente por intermédio da medida, quer diretamente e como que nivelada a ela, a comparação é reportada à ordem; enfim, a comparação não tem mais como papel revelar a ordenação do mundo; ela se faz segundo a ordem do pensamento e indo naturalmente do simples ao complexo.

Daí, toda a epistémê da cultura ocidental se acha modificada em suas disposições fundamentais. E em particular o domínio empírico em que o homem do século XVI via ainda estabelecerem-se os parentescos, as semelhanças e as afinidades e em que se entrecruzavam sem fim a linguagem e as coisas – todo esse campo imenso vai assumir uma configuração nova.

Podemos, se quisermos, designá-lo pelo nome de “racionalismo”; podemos, se não tivermos na cabeça senão conceitos prontos, dizer que o século XVII marca o desaparecimento das velhas crenças supersticiosas ou mágicas e a entrada, enfim, da natureza na ordem científica.

Mas o que cumpre apreender e tentar restituir são as modificações que alteraram o próprio saber, nesse nível arcaico, que torna possíveis os conhecimentos e o modo de ser daquilo que se presta ao saber.

Essas modificações podem resumir-se da seguinte maneira.

Primeiro, substituição da hierarquia analógica pela análise:

  • no século XVI, admitia-se de inicio o sistema global das correspondências (a terra e o céu, os planetas e o rosto, o microcosmo e o macrocosmo), e cada similitude singular vinha alojar-se no interior dessa relação de conjunto;
  • doravante, toda semelhança será submetida à prova da comparação, isto é, só será admitida quando for encontrada,
    • pela medida, a unidade comum,
    • ou mais radicalmente, pela ordem, a identidade e a série das diferenças.

Ademais, o jogo das similitudes era outrora infinito; era sempre possível descobrir novas similitudes, e a única limitação vinha da ordenação das coisas, da finitude de um mundo comprimido entre o macrocosmo e o microcosmo.

Agora, uma enumeração completa se tornará possível:

  • quer sob a forma de um recenseamento exaustivo de todos os elementos que constitui o conjunto visado;
  • quer sob a forma de uma colocação em categorias que articula na sua totalidade o domínio estudado;
  • quer, enfim, sob a forma de uma análise de certo número de pontos, em número suficiente, tomados ao longo da série.

A comparação pode portanto atingir uma certeza perfeita: nunca acabado e sempre aberto para novas eventualidades, o velho sistema das similitudes podia, pela via de confirmações sucessivas, tornar-se cada vez mais provável; jamais era certo.

A enumeração completa e a possibilidade de determinar em cada ponto a passagem necessária ao seguinte permitem um conhecimento absolutamente certo das identidades e das diferenças:

“Somente a enumeração nos pode permitir, qualquer que seja a questão a que nos apliquemos, ter sobre ela um julgamento verdadeiro e certo.”(9)

A atividade do espírito – e este é o quarto ponto – não mais consistirá, pois, em aproximar as coisas entre si, em partir em busca de tudo o que nelas possa revelar como que um parentesco, uma atração ou uma natureza secretamente partilhada, mas ao contrário, em discernir: isto é,

  • em estabelecer as identidades,
  • depois a necessidade da passagem a todos os graus que delas se afastam.

Nesse sentido, o discernimento impõe à comparação a busca primeira e fundamental da diferença: obter pela intuição uma representação distinta das coisas e apreender claramente a passagem necessária de um elemento da série àquele que se lhe sucede imediatamente.

Enfim, última consequência, já que conhecer é discernir,

  • a história
  • e a ciência

vão se achar separadas uma da outra.

De um lado, haverá a erudição, a leitura dos autores, o jogo de suas opiniões; este pode, por vezes, ter valor de indicação, menos pelo acordo que aí se forma que pelo desentendimento:

“Quando se trata de uma questão difícil é mais verossímil que se encontrem poucos e não muitos para descobrir a verdade a seu respeito.”

Em face dessa história e sem comum medida com ela, erguem-se os juízos seguros que podemos fazer pelas intuições e seu encadeamento. Eles e só eles constituem a ciência, e mesmo que tivéssemos “lido todos os raciocínios de Platão e de Aristóteles,… não seriam ciências que teríamos aprendido, ao que parece, mas história”(10).

Desde então,

  • o texto cessa de fazer parte dos signos e das formas da verdade;
  • a linguagem não é mais uma das figuras do mundo nem a assinalação imposta às coisas desde o fundo dos tempos.

A verdade encontra sua manifestação e seu signo na percepção evidente e distinta. Compete às palavras traduzi-la, se o podem; não terão mais direito a ser sua marca. A linguagem se retira do meio dos seres para entrar na sua era de transparência e de neutralidade.

Esse é um fenômeno geral na cultura do século XVII – mais geral que a ventura singular do cartesianismo.

É necessário, com efeito, distinguir três coisas.

  • Houve, por um lado, o mecanicismo que, num período afinal bastante curto (quase apenas a segunda metade do século XVII), propôs um modelo teórico para certos domínios do saber como a medicina ou a fisiologia.
  • Houve também um esforço, bastante diverso em suas formas, de matematização do empírico; constante e contínuo para a astronomia e uma parte da física, foi esporádico em outros domínios – às vezes tentado realmente (como em Condorcet), às vezes proposto como ideal universal e horizonte da pesquisa (como em Condillac ou Destutt), às vezes também recusado em sua possibilidade mesma (em Buffon, por exemplo).
  • Todavia, nem esse esforço nem as tentativas do mecanicismo devem ser confundidos com a relação que todo o saber clássico, em sua forma mais geral, mantém com a máthêsis, entendida como ciência universal da medida e da ordem.

Sob as palavras vazias, obscuramente mágicas de “influência cartesiana” ou de “modelo newtoniano”, os historiadores das ideias têm o hábito de misturar essas três coisas e de definir o racionalismo clássico pela tentação de tornar a natureza mecânica e calculável.

Os outros – os semi-hábeis – esforçam-se por descobrir sob esse racionalismo o jogo de “forças contrárias”: aquelas de uma natureza e de uma vida que não se deixam reduzir nem à álgebra nem à física do movimento e que mantêm assim, no fundo do classicismo, o reduto do não-racionalizável.

Essas duas formas de análise são, uma e outra, igualmente insuficientes. Pois o fundamental, para a epistémê clássica,

  • não é nem o sucesso ou o fracasso do mecanicismo,
  • nem o direito ou a impossibilidade de matematizar a natureza,
  • mas sim uma relação com a máthêsis que, até o fim do século XVIII, permanece constante e inalterada.

Essa relação apresenta dois caracteres essenciais.

O primeiro é que as relações entre os seres serão realmente pensadas sob a forma da ordem e da medida, mas com este desequilíbrio fundamental de se poderem sempre reduzir os problemas da medida aos da ordem. De sorte que a relação de todo conhecimento com a máthêsis se oferece como a possibilidade de estabelecer entre as coisas, mesmo não-mensuráveis, uma sucessão ordenada. Nesse sentido, a análise vai adquirir bem depressa valor de método universal; e o projeto leibniziano de estabelecer uma matemática das ordens qualitativas se acha no coração mesmo do pensamento clássico; é em tomo dele que gravita todo esse pensamento.

Por outro lado, porém, essa relação com a máthêsis como ciência geral da ordem

  • não significa uma absorção do saber nas matemáticas nem que nelas se fundamente todo o conhecimento possível;
  • ao contrário, em correlação com a busca de uma máthêsis, vê-se aparecer um certo número de domínios empíricos que até então não tinham sido nem formados nem definidos.

Em nenhum desses domínios ou em quase nenhum é possível encontrar vestígios de um mecanicismo ou de uma matematização; e, contudo, eles se constituíram todos tendo por base uma ciência possível da ordem.

Se eles dependiam efetivamente da Análise em geral, seu instrumento particular não era o método algébrico, mas o sistema dos signos.

Assim apareceram

  • a gramática geral,
  • a história natural,
  • a análise das riquezas,

ciências da ordem no domínio das palavras, dos seres e das necessidades;

e todas essas empiricidades, novas na época clássica e coextensivas à sua duração (têm por pontos de referência cronológicos

  • Lancelot e Bopp,
  • Ray e Cuvier,
  • Petty e Ricardo,

que escreveram,

  • os primeiros por volta de 1660,
  • e os segundos por volta dos anos 1800-1810),

não se puderam constituir sem a relação que toda a epistémê da cultura ocidental manteve então com uma ciência universal da ordem.

Essa relação com a Ordem é tão essencial para a idade clássica quanto foi para o Renascimento a relação com a Interpretação.

E

  • assim como a interpretação do século XVI,
    • superpondo uma semiologia a uma hermenêutica,
    • era essencialmente um conhecimento da similitude,
  • assim a colocação em ordem por meio dos signos constitui todos os saberes empíricos
    • como saberes da identidade e da diferença.

O mundo, a um tempo indefinido e fechado, pleno e tautológico, da semelhança se acha dissociado e como que aberto em seu centro;

  • numa extremidade, encontrar-se-ão os signos tornados instrumentos da análise marcas da identidade e da diferença, princípios da colocação em ordem, chaves para uma taxinomia;
  • e na outra, a semelhança empírica e murmurante das coisas, essa similitude surda que, por sob o pensamento, fornece a matéria infinita das repartições e das distribuições.

De um lado,

  • a teoria geral dos signos, das divisões e das classificações;
  • de outro, o problema das semelhanças imediatas, do movimento espontâneo da imaginação, das repetições da natureza.

Entre os dois, os saberes novos que encontram seu espaço nessa distância aberta.

I. Dom Quixote

Capítulo III. Representar; tópico I. Dom Quixote

Miguel de Cervantes, 1547-1616
Dom Quixote em sua biblioteca

Com suas voltas e reviravoltas, as aventuras de Dom Quixote traçam o limite:

  • nelas terminam os jogos antigos da semelhança e dos signos;
  • nelas já se travam novas relações.

Dom Quixote não é o homem da extravagância, mas antes o peregrino meticuloso que se detém diante de todas as marcas da similitude.

Ele é o herói do Mesmo.

Assim como de sua estreita província, não chega a afastar-se da planície familiar que se estende em torno do Análogo. Percorre-a indefinidamente, sem transpor jamais as fronteiras nítidas da diferença, nem alcançar o coração da identidade.

Ora, ele próprio é semelhante a signos. Longo grafismo magro como uma letra, acaba de escapar diretamente da fresta dos livros. Seu ser inteiro é só linguagem, texto, folhas impressas, história já transcrita. É feito de palavras entrecruzadas; é escrita errante no mundo em meio à semelhança das coisas.

Não porém inteiramente: pois, em sua realidade de pobre fidalgo, só pode tornar-se cavaleiro, escutando de longe a epopeia secular que formula a Lei.

  • O livro é menos sua existência que seu dever.
  • Deve incessantemente consultá-lo, a fim de saber o que fazer e dizer, e quais signos dar a si próprio e aos outros para mostrar que ele é realmente da mesma natureza que o texto donde saiu.

Os romances de cavalaria escreveram de uma vez por todas a prescrição de sua aventura. E cada episódio, cada decisão, cada façanha serão signos, de que Dom Quixote é de fato semelhante a todos esses signos que ele decalcou.

Mas se ele quer ser-lhes semelhante

  • é porque deve prová-los,
  • é porque os signos (legíveis)
  • já não são semelhantes a seres (visíveis).

Todos esses textos escritos, todos esses romances extravagantes são justamente incomparáveis:

  • nada no mundo jamais se lhes assemelhou;
  • sua linguagem infinita fica em suspenso, sem que nenhuma similitude venha jamais preenchê-la;
  • podem ser queimados todos e inteiramente, mas a figura do mundo não será por isso alterada.

Assemelhando-se aos textos de que é o testemunho, o representante, o real análogo, Dom Quixote deve fornecer a demonstração e trazer a marca indubitável de que eles dizem a verdade, de que são realmente a linguagem do mundo. Compete-lhe preencher a promessa dos livros. Cabe-lhes refazer a epopeia, mas em sentido inverso:

  • esta narrava (pretendia narrar) façanhas reais prometidas à memória;
  • já Dom Quixote deve preencher com realidade os signos sem conteúdo da narrativa.

Sua aventura será uma decifração do mundo: um percurso minucioso para recolher em toda a superfície da terra as figuras que mostram que os livros dizem a verdade.

A façanha deve ser prova: consiste não em triunfar realmente é por isso que a vitória não importa no fundo -, mas em transformar a realidade em signo. Em signo de que os signos da linguagem são realmente conformes às próprias coisas.

Dom Quixote lê o mundo para demonstrar os livros. E não concede a si outras provas senão o espelhamento das semelhanças. Seu caminho todo é uma busca das similitudes: as menores analogias são solicitadas como signos adormecidos que cumprisse despertar para que se pusessem de novo a falar. Os rebanhos, as criadas, as estalagens tornam a ser a linguagem dos livros, na medida imperceptível em que se assemelham aos castelos, às damas e aos exércitos. Semelhança sempre frustrada, que transforma a prova buscada em irrisão e deixa indefinidamente vazia a palavra dos livros.

Mas a própria não-similitude tem seu modelo que ela imita servilmente:

  • encontra-o na metamorfose dos encantadores.

De sorte que todos os indícios da não-semelhança, todos os signos que mostram que os textos escritos não dizem a verdade assemelham-se a este jogo de enfeitiçamento que introduz, por ardil, a diferença no indubitável da similitude.

E, como essa magia foi prevista e descrita nos livros, a diferença ilusória que ela introduz nunca será mais que uma similitude encantada. Um signo suplementar, portanto, de que os signos realmente se assemelham à verdade.

Dom Quixote desenha o negativo do mundo do Renascimento;

  • a escrita cessou de ser a prosa do mundo;
  • as semelhanças e os signos romperam sua antiga aliança;
  • as similitudes decepcionam, conduzem à visão e ao delírio;
  • as coisas permanecem obstinadamente na sua identidade irônica: não são mais do que o que são;
  • as palavras erram ao acaso, sem conteúdo, sem semelhança para preenchê-las;
  • não marcam mais as coisas;
  • dormem entre as folhas dos livros, no meio da poeira.

A magia, que permitia a decifração do mundo descobrindo as semelhanças secretas sob os signos, não serve mais senão para explicar de modo delirante por que as analogias são sempre frustradas.

A erudição, que lia como um texto único a natureza e os livros, é reconduzida às suas quimeras: depositados nas páginas amarelecidas dos volumes, os signos da linguagem não têm como valor mais do que a tênue ficção daquilo que representam.

A escrita e as coisas não se assemelham mais. Entre elas, Dom Quixote vagueia ao sabor da aventura. A linguagem, no entanto, não se tornou completamente impotente.

Doravante, detém novos poderes e que lhe são próprios. Na segunda parte do romance, Dom Quixote reencontra personagens que leram a primeira parte do texto e que o reconhecem, a ele, homem real, como o herói do livro.

O texto de Cervantes se dobra sobre si mesmo, se enterra na sua própria espessura e torna-se para si objeto de sua própria narrativa. A primeira parte das aventuras desempenha na segunda o papel que assumiam no início os romances de cavalaria.

Dom Quixote deve ser fiel a esse livro em que ele realmente se tornou;

  • deve protegê-lo dos erros, das falsificações, das sequências apócrifas;
  • deve acrescentar os detalhes omitidos;
  • deve manter sua verdade.

Esse livro, porém, Dom Quixote mesmo não o leu nem pode lê-lo, já que ele o é em carne e osso. Ele, que à força de ler livros tornara-se um signo errante num mundo que não o reconhecia, ei-lo tornado, malgrado ele e sem o saber, um livro que detém sua verdade, reúne exatamente tudo o que ele fez e disse, viu e pensou e permite enfim que o reconheçam, de tal modo se assemelha a todos esses signos cujo sulco indelével deixou atrás de si.

Entre a primeira e a segunda parte do romance, no interstício desses dois volumes e somente pelo poder deles, Dom Quixote assumiu sua realidade. Realidade que ele deve somente à linguagem e que permanece totalmente interior às palavras.

A verdade de Dom Quixote não está na relação das palavras com o mundo,

mas nessa tênue e constante relação que as marcas verbais tecem de si para si mesmas.

A ficção frustrada das epopeias tornou-se no poder representativo da linguagem. As palavras acabam de se fechar na sua natureza de signos.

Dom Quixote é a primeira das obras modernas,

  • pois que aí se vê a razão cruel das identidades e das diferenças desdenhar infinitamente dos signos e das similitudes:
  • pois que aí a linguagem rompe seu velho parentesco com as coisas, para entrar nessa soberania solitária donde só reaparecerá, em seu ser absoluto, tornada literatura;
  • pois que aí a semelhança entra numa idade que é, para ela, a da desrazão e da imaginação.

Uma vez desligados a similitude e os signos, duas experiências podem se constituir e duas personagens aparecer face a face.

O louco, 

  • entendido não como doente,
  • mas como desvio constituído e mantido, como função cultural indispensável, 

tornou-se, na experiência ocidental, o homem das semelhanças selvagens.

Essa personagem, tal como é bosquejada nos romances ou no teatro da época barroca e tal como se institucionalizou pouco a pouco até a psiquiatria do século XIX, é aquela que se alienou na analogia. 

É o jogador desregrado do Mesmo e do Outro.

Toma as coisas pelo que não são e as pessoas umas pelas outras; ignora seus amigos, reconhece os estranhos; crê desmascarar e impõe uma máscara. Inverte todos os valores e todas as proporções, porque acredita, a cada instante, decifrar signos: para ela, os ouropéis fazem um rei. 

Segundo a percepção cultural que se teve do louco até o fim do século XVIII, ele só é o Diferente na medida em que não conhece a Diferença; por toda a parte vê semelhanças e sinais da semelhança; todos os signos para ele se assemelham e todas as semelhanças valem como signos.

Na outra extremidade do espaço cultural, mas totalmente próximo por sua simetria, 

o poeta 

  • é aquele que, por sob as diferenças nomeadas e cotidianamente previstas, reencontra os parentescos subterrâneos das coisas, suas similitudes dispersadas. 
  • Sob os signos estabelecidos e apesar deles, ouve um outro discurso, mais profundo, que lembra o tempo em que as palavras cintilavam na semelhança universal das coisas: a Soberania do Mesmo, tão difícil de enunciar, apaga na sua linhagem a distinção dos signos.

Daí sem dúvida, na cultura ocidental moderna, o face-a-face da poesia e da loucura.

Mas já não se trata do velho tema platônico do delírio inspirado. 

Trata-se da marca de uma nova experiência da linguagem e das coisas.

Às margens de um saber que separa os seres, os signos e as similitudes, e como que para limitar seu poder, o louco garante a função do homossemantismo: reúne todos os signos e os preenche com uma semelhança que não cessa de proliferar.

O poeta garante a função inversa; sustenta o papel alegórico; sob a linguagem dos signos e sob o jogo de suas distinções bem determinadas, põe-se à escuta de “outra linguagem”, aquela, sem palavras nem discursos, da semelhança.

O poeta faz chegar a similitude até os signos que a dizem,

o louco carrega todos os signos com uma semelhança que acaba por apagá-los.

Assim, na orla exterior da nossa cultura e na proximidade maior de suas divisões essenciais, estão ambos nessa situação de “limite” – postura marginal e silhueta profundamente arcaica – onde suas palavras encontram incessantemente seu poder de estranheza e o recurso de sua contestação.

Entre eles abriu-se o espaço de um saber onde, por uma ruptura essencial no mundo ocidental,

  • a questão não será mais a das similitudes,
  • mas a das identidades e das diferenças.

VII. O quadrilátero da linguagem

Capítulo IV - Falar; tópico VII. O quadrilátero da linguagem

Os 4 momentos que fixam
as funções essenciais da linguagem
atribuição, articulação, designação e derivação.
nos Séculos XVII e XVIII
Os 4 momentos que fixam
as funções essenciais da linguagem
atribuição, articulação, designação e derivação.
no Século XIX

Algumas observações para terminar.

As quatro teorias –

  • da proposição,
  • da articulação,
  • da designação
  • e da derivação

– formam como que os segmentos de um quadrilátero.

Opõem-se duas a duas e duas a duas se apoiam.

A articulação

  • é o que dá conteúdo à pura forma verbal, vazia ainda, da proposição;
  • preenche-a, mas a ela se opõe
    • como uma nomeação que diferencia as coisas
    • se opõe à atribuição que as religa.

A teoria da designação

  • manifesta o ponto de ligação de todas as formas nominais que a articulação recorta;
  • mas opõe-se a esta
  • como a designação instantânea, gestual, perpendicular
    • se opõe ao recorte das generalidades.

A teoria da derivação

  • mostra o movimento contínuo das palavras a partir de sua origem,
  • mas o desvio na superfície da representação
    • se opõe ao liame único e estável que liga uma raiz a uma representação.

Enfim, a derivação retorna à proposição, pois que

  • sem ela a designação permaneceria dobrada sobre si própria
  • e não poderia adquirir essa generalidade que autoriza um laço de atribuição;
    • contudo a derivação se faz segundo uma figura espacial,
    • enquanto a proposição se desenrola segundo uma ordem sucessiva.

É preciso notar que, entre os vértices opostos desse retângulo, existem como que relações diagonais.

Primeiro entre articulação e derivação:

se pode haver uma linguagem articulada, com palavras que se justapõem, ou se encaixam ou se ordenam umas às outras, é na medida em que,

  • a partir de seu valor de origem e do ato simples de designação que as fundou,
    • as palavras não cessaram de derivar, adquirindo uma extensão variável;
  • daí um eixo que atravessa todo o quadrilátero da linguagem; é ao longo dessa linha que se fixa o estado de uma língua:
    • suas capacidades de articulação são prescritas pelo ponto de derivação ao qual ela chegou;
    • aí se definem, ao mesmo tempo, sua postura histórica e seu poder de discriminação.

A outra diagonal vai da proposição à origem, isto é,

da afirmação envolvida em todo ato de julgar

à designação implicada em todo ato de nomear;

  • é ao longo desse eixo que se estabelece a relação das palavras com o que representam:
  •  mostra-se aí que as palavras
    • jamais dizem senão o ser da representação,
    • mas nomeiam sempre algo de representado.

A primeira diagonal

  • marca o progresso da linguagem em seu poder de especificação;

a segunda,

  • o enredamento indefinido entre a linguagem e a representação – o desdobramento que faz com que o signo verbal represente sempre uma representação.

Nesta última linha, a palavra funciona como substituto (com seu poder de representar); na primeira, como elemento (com seu poder de compor e de decompor).

No ponto de cruzamento dessas duas diagonais,

  • no centro do quadrilátero,
    • ali onde o desdobramento da representação se descobre como análise e onde o substituto tem o poder de repartir,
    • ali onde se alojam, por conseguinte, a possibilidade e o princípio de uma taxinomia geral da representação,
  • ali há o nome.

Nomear é, ao mesmo tempo,

  • dar a representação verbal de uma representação
  • e colocá-la num quadro geral.

Toda a teoria clássica da linguagem se organiza em torno desse ser privilegiado e central.

Nele se cruzam todas as funções da linguagem, pois é por ele que as representações podem vir a figurar numa proposição. Portanto, é por ele também que o discurso se articula com o conhecimento.

É claro que só o juízo pode ser verdadeiro ou falso.

Porém, se todos os nomes fossem exatos, se a análise em que repousam fosse perfeitamente refletida, se a língua fosse “bem-feita”, não haveria nenhuma dificuldade para pronunciar juízos verdadeiros, e o erro, no caso em que ocorresse, seria tão fácil de desvendar e tão evidente quanto num cálculo algébrico.

Mas a imperfeição da análise e todos os desvios da derivação impuseram nomes a análises, a abstrações ou a combinações ilegítimas. O que não teria inconveniente (como emprestar um nome aos monstros da fábula), se a palavra não se apresentasse como representação de uma representação:

  • de sorte que não se pode pensar uma palavra – por mais abstrata, geral e vazia que seja –
  • sem afirmar a possibilidade daquilo que ela representa.

É por isso que,

  • no meio do quadrilátero da linguagem, o nome aparece a um tempo
    • como o ponto para o qual convergem todas as estruturas da língua
      • (é sua figura mais íntima,
      • a mais bem protegida,
      • o puro resultado interior de todas as suas convenções, de todas as suas regras,
      • de toda a sua história)
    • e como o ponto a partir do qual toda a linguagem pode entrar numa relação com a verdade pela qual será julgada.

Aí se trava toda a experiência clássica da linguagem:

  • o caráter reversível da análise gramatical que é, num só movimento,
    • ciência e prescrição,
    • estudo das palavras e regra para construí-las, utilizá-las, reformá-las na sua função representativa;
  • o nominalismo fundamental da filosofia desde Hobes até a Ideologia, nominalismo que não é separável de uma crítica da linguagem e de toda essa desconfiança em relação às palavras gerais e abstratas que se encontra em Malebranche, em Berkeley, em Condillac e em Hume;
  • a grande utopia de uma linguagem perfeitamente transparente em que as próprias coisas seriam nomeadas sem confusão, quer por um sistema totalmente arbitrário mas exatamente refletido (língua artificial), quer por uma linguagem tão natural que traduzisse o pensamento como o rosto quando exprime uma paixão (é com essa linguagem feita de signos imediatos que Rousseau sonhou no primeiro de seus Diálogos).

Pode-se dizer que é o Nome que organiza todo o discurso clássico;

  • falar ou escrever não é dizer as coisas ou se exprimir, não é jogar com a linguagem,
  • é encaminhar-se em direção ao ato soberano de nomeação, é ir, através da linguagem, até o lugar onde as coisas e as palavras se ligam em sua essência comum, e que permite dar-lhes um nome.
  • Mas, uma vez enunciado esse nome,
    • toda a linguagem que a ele conduziu ou que se atravessou para atingi-lo,
    • nele se reabsorve e se desvanece.

De sorte que, em sua essência profunda, o discurso clássico tende sempre a esse limite; mas só subsiste se o recuar. Ele caminha no adiamento incessantemente mantido do Nome.

É por isso que, em sua possibilidade mesma, está ligado à retórica, isto é, a todo esse espaço que rodeia o nome, fá-lo oscilar em torno daquilo que ele representa, deixa aparecer os elementos ou a vizinhança ou as analogias daquilo que ele nomeia. As figuras que o discurso atravessa asseguram o retardamento do nome, que vem no último momento preenchê-las e aboli-las.

O nome é o termo do discurso.

E talvez toda a literatura clássica resida nesse espaço, nesse movimento para atingir um nome sempre temível porque mata, ao mesmo tempo que esgota, a possibilidade de falar.

É esse movimento que conduziu a experiência da linguagem desde a confissão tão discreta da Princesse de Cleves até a imediata violência de Juliette.

Aqui, a nomeação se oferece enfim na sua mais simples nudez,

  • e as figuras da retórica, que até então a mantinham em suspenso, oscilam
  • e se tornam as figuras indefinidas do desejo
    • que os  mesmos nomes sempre repetidos se exaurem em percorrer,
    • sem que jamais lhes seja dado atingir-lhes o limite.

Toda a literatura clássica se aloja no movimento que vai

  • da figura do nome ao próprio nome,
    • passando da tarefa de nomear ainda a mesma coisa por novas figuras (é o preciosismo)
    • à de nomear por palavras enfim precisas o que jamais o fora ou permanecera adormecido nas dobras de longínquas palavras:
      • tais como esses segredos da alma,
      • essas impressões nascidas no limite das coisas e do corpo,
      • para as quais a linguagem da Cinquieme promenade tornou-se espontaneamente límpida.

O romantismo acreditará ter rompido com a era precedente, porque terá aprendido a nomear as coisas por seu nome. Na verdade, todo o classicismo tendia a isso: Hugo cumpriu a promessa de Voiture.

Mas por isso mesmo o nome deixa de ser a recompensa da linguagem; toma-se sua enigmática matéria.

O único momento – intolerável e por longo tempo enterrado no segredo – em que o nome foi ao mesmo tempo

  • realização e substância da linguagem,
  • promessa e matéria bruta,
deu-se quando, com Sade, foi ele atravessado em toda a sua extensão pelo desejo, do qual era o lugar de aparição, a saciedade e o indefinido recomeço.
 

Daí o fato de que a obra de Sade desempenhe em nossa cultura o papel de um incessante murmúrio primordial.

Com essa violência do nome enfim pronunciado por si mesmo, a linguagem emerge na sua brutalidade de coisa;

  • as outras “partes da oração”, por sua vez, ganham autonomia,
  • escapam à soberania do nome,
  • deixam de formar em torno dele uma ronda acessória de ornamentos.

E, visto que não há mais beleza singular em

“reter” a linguagem em torno e à margem do nome, em fazê-la mostrar o que ela não diz,

  • haverá um discurso não-discursivo, cujo papel consistirá em manifestar a linguagem em seu ser bruto.

É a esse ser próprio da linguagem que o século XIX chamará

o Verbo
(por oposição ao “verbo” dos clássicos, cuja função é vincular, discreta mas continuamente, a linguagem ao ser da representação).

E o discurso que detém esse ser e o libera para ele próprio é a literatura.

Em torno desse privilégio clássico do nome, os segmentos teóricos (proposição, articulação, designação e derivação) definem a moldura do que foi então a experiência da linguagem.

Analisando-os passo a passo, não se tratava de fazer uma história das concepções gramaticais dos séculos XVII e XVIII, nem de estabelecer o perfil geral daquilo que os homens puderam pensar a propósito da linguagem.

Tratava-se de determinar sob que condições a linguagem podia tornar-se objeto de um saber e entre que limites se desdobrava esse domínio epistemológico.

Não calcular o denominador comum das opiniões, mas definir a partir de que era possível haver opiniões – tais ou quais – sobre a linguagem.

É por isso que esse retângulo desenha mais uma periferia que uma largura interior, e mostra de que modo a linguagem se imbrica com o que lhe é exterior e indispensável.

Viu-se que só havia linguagem em virtude da proposição:

  • sem a presença, ao menos implícita, do verbo ser e da relação de atribuição que ele autoriza, não se está lidando com linguagem mas com signos iguais aos outros.
  • A forma proposicional estabelece como condição da linguagem a afirmação de uma relação de identidade ou de diferença: só se fala na medida em que essa relação é possível.

Mas os outros três segmentos teóricos

  • envolvem uma exigência totalmente diversa:
    • para que haja derivação das palavras a partir de sua origem,
    • para que já haja pertença originária de uma raiz à sua significação,
    • para que haja, enfim, um recorte articulado das representações,
  •  é preciso haver, desde a mais imediata experiência, um rumor analógico das coisas, semelhanças que se dão de início.

Se tudo fosse absoluta diversidade, o pensamento seria votado à singularidade, e, como a estátua de Condillac antes de ter começado a se lembrar e a comparar, seria ele votado à dispersão absoluta e à absoluta monotonia.

Não haveria nem memória nem imaginação possíveis, nem, por consequência, reflexão.

E seria impossível comparar as coisas entre si, definir-lhes os traços idênticos e fundar um nome comum.

Não haveria linguagem.

Se a linguagem existe é que, por sob identidades e diferenças, há o fundo das continuidades, das semelhanças, das repetições, dos entrecruzamentos naturais.

A semelhança, que é excluída do saber desde o começo do século XVII, constitui sempre a orla exterior da linguagem: o anel que contorna o domínio daquilo que se pode analisar, pôr em ordem e conhecer. É o murmúrio que o discurso dissipa, mas sem o qual ele não poderia falar.

Pode-se apreender agora qual seja a unidade sólida e cerrada da linguagem na experiência clássica.

É ela que, pelo jogo de uma designação articulada, faz entrar a semelhança na relação proposicional.

Quer dizer, num sistema de identidades e de diferenças, tal como é fundado pelo verbo ser e manifestado pela rede dos nomes.

A tarefa fundamental do “discurso” clássico consiste em atribuir um nome às coisas e com esse nome nomear o seu ser:

Durante dois séculos, o discurso ocidental foi o lugar da ontologia.

  • Quando ele nomeava o ser de toda representação em geral, era filosofia: teoria do conhecimento e análise das ideias.
  • Quando atribuía a cada coisa representada o nome que convinha e, sobre todo o campo da representação, dispunha a rede de uma língua bem-feita, era ciência – nomenclatura e taxinomia.

VI. A derivação

Capítulo IV. Falar; tópico VI. A derivação

Os 4 momentos que fixam
as funções essenciais da linguagem
atribuição, articulação, designação e derivação.
nos Séculos XVII e XVIII
Os 4 momentos que fixam
as funções essenciais da linguagem
atribuição, articulação, designação e derivação.
no Século XIX

Como ocorre que as palavras que, em sua essência primeira são nomes e designações e que se articulam do modo como se analisa a própria representação,

possam afastar-se irresistivelmente de sua significação de origem, adquirir um sentido vizinho, mais amplo ou mais limitado?

Mudar não somente de forma, mas de extensão?

Adquirir novas sonoridades e também novos conteúdos de sorte tal que, a partir de um equipamento provavelmente idêntico de raízes, as diversas línguas formam sonoridades diferentes e, além disso, palavras cujo sentido não coincide?

As modificações de forma não têm regra, são quase indefinidas e jamais estáveis. Todas as suas causas são externas: facilidade de pronúncia, modos, hábitos, clima – o frio favorece “o silvo labial”, o calor, “as aspirações guturais”(83).

Em contrapartida, as alterações de sentido, porque limitadas a ponto de autorizarem uma ciência etimológica, se não absolutamente certa, ao menos “provável”(84) – obedecem a princípios que se podem assinalar.

Esses princípios que fomentam a história interior das línguas são todos de ordem espacial. Uns concernem à semelhança visível ou à vizinhança das coisas entre si; outros concernem ao lugar onde se depositam a linguagem e a forma segundo a qual ela se conserva.

As figuras e a escrita.

Conhecem-se dois grandes tipos de escrita:

  • a que retraça o sentido das palavras;
  • a que analisa e restitui os sons.

Entre elas há uma divisão rigorosa,

  • seja porque se admita que a segunda prevaleceu, em certos povos, sobre a primeira, em consequência de um verdadeiro “golpe de gênio”(85),
  • seja porque se admita, tão diferentes são uma da outra, que apareceram quase simultaneamente,
    • a primeira nos povos desenhadores,
    • a segunda nos povos cantores(86).

Representar graficamente o sentido das palavras é, na origem, fazer o desenho exato da coisa que ele designa: na verdade, quase não é uma escrita, quando muito uma reprodução pictórica, graças à qual só se podem transcrever as narrativas mais concretas. Segundo Warburton, os mexicanos só conheciam esse processo(87)

A escrita verdadeira começou quando se pôs a representar não mais a própria coisa, mas um dos elementos que a constituem, ou então uma das circunstâncias habituais que a marcam, ou ainda uma outra coisa a que ela se assemelha.

Daí três técnicas:

  • a escrita curiológica dos egípcios, a mais grosseira, que utiliza “a principal circunstância de um assunto para ocupar o lugar de tudo” (um arco para uma batalha, uma escada para o cerco das cidades);
  • depois, os hieróglifos “trópicos”, um pouco mais aperfeiçoados, que utilizam uma circunstância notável (por ser Deus todo-poderoso, saber tudo e poder vigiar os homens, será representado por um olho);
  • enfim, a escrita simbólica, que se serve de semelhanças mais ou menos ocultas (o sol que se levanta é figurado pela cabeça de um crocodilo, cujos olhos redondos afloram exatamente à superfície da água)(88).

Reconhecem-se aí as três grandes figuras da retórica:

  • sinédoque,
  • metonímia,
  • catacrese.

E é seguindo a nervura que elas prescrevem que essas linguagens duplicadas por uma escrita simbólica vão poder evoluir. Elas se investem, pouco a pouco, de poderes poéticos; as primeiras nomeações tornam-se o ponto de partida de longas metáforas: estas se complicam progressivamente e logo estão tão longe de seu ponto de origem que se torna difícil reencontrá-lo.

Assim nascem as superstições que deixam crer que o sol é um crocodilo ou Deus um grande olho que vigia o mundo; assim nascem igualmente os saberes esotéricos entre aqueles (os sacerdotes) que se transmitem metáforas de geração em geração; assim nascem as alegorias do discurso (tão frequentes nas mais arcaicas literaturas) e também a ilusão de que o saber consiste em conhecer as semelhanças.

Mas a história da linguagem dotada de uma escrita figurada é logo interrompida. É que com ela é pouco possível realizar progressos. Os signos não se multiplicam com a análise meticulosa das representações, mas com as mais longínquas analogias: de sorte que a imaginação dos povos é mais favorecida que sua reflexão.

Credulidade, não ciência.

Ademais, o conhecimento necessita de duas aprendizagens:

  • a das palavras primeiro (como para todas as linguagens),
  • em seguida a das siglas, que não têm relação com a pronúncia das palavras;

uma vida humana não é demasiado longa para essa dupla educação; e se, além disso, se teve o ensejo de fazer alguma descoberta, não se dispõe de signos para transmiti-la.

Inversamente, um signo transmitido, porque não mantém relação intrínseca com a palavra que ele figura, permanece sempre duvidoso: de época em época nunca se pode estar seguro de que o mesmo som habita a mesma figura.

As novidades são portanto impossíveis e as tradições comprometidas. De maneira que o único cuidado dos sábios está em guardar “um respeito supersticioso” para com as luzes recebidas dos ancestrais e para com as instituições que conservam sua herança:

“Eles sentem que toda mudança nos costumes acarreta mudança na língua e que toda mudança na língua confunde e aniquila toda a sua ciência.”(89)

Quando um povo possui somente uma escrita figurada, sua política deve excluir a história ou, pelo menos, toda história que não fosse pura e simples conservação.

É aí, nesta relação do espaço com a linguagem, que se situa, segundo Volney(90), a diferença essencial entre o Oriente e o Ocidente. Como se a disposição espacial da linguagem prescrevesse a lei do tempo; como se a língua não chegasse aos homens através da história, mas que inversamente eles só acedessem à história através do sistema de seus signos.

É nesse laço

  • da representação,
  • das palavras
  • e do espaço

(as palavras representando o espaço da representação,

e representando-se por sua vez, no tempo)

que se forma, silenciosamente, o destino dos povos.

De fato, com a escrita alfabética, a história dos homens muda inteiramente. Eles transcrevem no espaço não suas ideias mas os sons e, destes, extraem os elementos comuns para formar um pequeno número de signos únicos, cuja combinação permitirá formar todas as sílabas e todas as palavras possíveis.

Enquanto a escrita simbólica, pretendendo espacializar as próprias representações, segue a lei confusa das similitudes e faz deslizar a linguagem para fora das formas do pensamento refletido,

a escrita alfabética, renunciando a desenhar a representação, transpõe na análise dos sons as regras que valem para a própria razão.

De maneira que as letras, embora não representem ideias, combinam-se entre si como as ideias, e as ideias se ligam e se desligam como as letras do alfabeto(91).

A ruptura do paralelismo exato entre representação e grafismo permite alojar a totalidade da linguagem, mesmo escrita, no domínio geral da análise, e apoiar, um sobre outro, o progresso da escrita e o progresso do pensamento(92). Os mesmos signos gráficos poderão decompor todas as palavras novas e transmitir, sem receio de esquecimento, cada descoberta, desde que tenha sido feita; poder-se- á utilizar o mesmo alfabeto para transcrever diferentes línguas e assim transmitir a um povo as ideias de outro.

Sendo muito fácil a aprendizagem desse alfabeto por causa do pequeno número de seus elementos, cada qual poderá consagrar à reflexão e à análise das ideias o tempo que os outros povos desperdiçam para aprender as letras. E assim é que no interior da linguagem, exatamente nessa dobra das palavras onde a análise e o espaço se juntam, nasce a possibilidade primeira mas indefinida do progresso.

Na sua raiz, o progresso, tal como é definido no século XVIII, não é um movimento interior à história, é o resultado de uma relação fundamental entre o espaço e a linguagem:

“Os signos arbitrários da linguagem e da escrita dão aos homens o meio de assegurar a posse de suas ideias e de comunicá-las aos outros, assim como uma herança sempre avolumada das descobertas de cada século; e o gênero humano, considerado desde sua origem, aparece aos olhos de um filósofo como um todo Imenso que tem, ele próprio, como cada indivíduo, sua infância e seus progressos.”(93)

A linguagem confere à perpétua ruptura do tempo a continuidade do espaço, e é na medida em que analisa, articula e recorta a representação, que ela tem o poder de ligar – através do tempo o conhecimento das coisas. Com a linguagem, a monotonia confusa do espaço se fragmenta, enquanto se unifica a diversidade das sucessões.

Resta, contudo, um último problema. Pois a escrita é realmente o suporte e a guardiã sempre vigilante dessas análises progressivamente mais finas.

Não é, porém, seu princípio.

Nem o movimento primeiro.

Este é um deslizar comum à atenção, aos signos e às palavras. Numa representação, o espírito pode se vincular e vincular um signo verbal a um elemento que dela faz parte, a uma circunstância que a acompanha, a uma outra coisa, ausente, que lhe é semelhante e que, por causa dela, retoma à memória(94).

Foi realmente assim que a linguagem se desenvolveu e, pouco a pouco, prosseguiu seu desvio a partir das designações primeiras. Na origem tudo tinha um nome – nome próprio ou singular. Depois o nome vinculou-se a um único elemento dessa coisa e se aplicou a todos os outros indivíduos que o continham igualmente:

  • não é mais a tal carvalho que se deu o nome de árvore, mas a tudo o que continha ao menos tronco e galhos.
  • O nome vinculou-se também a uma circunstância marcante: a noite não designou o fim deste dia, mas a faixa de obscuridade que separa todos os poentes de todas as auroras.
  • Vinculou-se enfim a analogias: chamou-se folha a tudo o que fosse fino e leve como uma folha de árvore(95).

A análise progressiva e a articulação mais desenvolvida da linguagem, que permitem dar um só nome a várias coisas, efetuaram-se seguindo o fio destas figuras fundamentais que a retórica conhece bem: sinédoque, metonímia e catacrese (ou metáfora, se a analogia é menos imediatamente sensível).

É que elas não são o efeito de um refinamento de estilo; traem, ao contrário, a mobilidade própria a toda linguagem desde que espontânea:

“Compõem-se mais figuras num dia de compra no Mercado do que em vários dias de assembléias acadêmicas.”(96)

É bem provável que essa mobilidade fosse mesmo muito maior na origem do que hoje: em nossos dias, a análise é tão fina, o crivo tão cerrado, as relações de coordenação e de subordinação tão bem estabelecidas, que as palavras quase não têm ocasião de mover-se de seu lugar.

Mas nos primórdios da humanidade, quando as palavras eram raras, quando as representações eram ainda confusas e mal analisadas, quando as paixões as modificavam ou as fundavam simultaneamente, as palavras tinham um grande poder de deslocamento.

Pode-se mesmo dizer que as palavras foram figuradas antes de serem próprias: isto é, bastava-lhes terem seu estatuto de nomes singulares para já se expandirem sobre as representações por força de uma retórica espontânea. Como diz Rousseau, falou-se dos gigantes, sem dúvida, antes de se designarem os homens(97). Designaram-se primeiramente os barcos por suas velas, e a alma, a “Psique”, recebeu primitivamente a figura de uma borboleta(98).

De sorte que, no âmago da linguagem falada como da escrita, o que se descobre é o espaço retórico das palavras: esta liberdade que o signo tem de vir colocar-se, segundo a análise da representação, sobre um elemento interno, sobre um ponto de sua vizinhança, sobre uma figura análoga.

E se as línguas têm a diversidade que constatamos, se, a partir de designações primitivas que, sem dúvida, foram comuns por causa da universalidade da natureza humana, não cessaram de se desenvolver segundo formas diferentes, se tiveram cada qual sua história, seus modos, seus hábitos, seus esquecimentos, é porque as palavras têm seu lugar não no tempo, mas num espaço onde podem encontrar o seu local de origem, deslocar-se, voltar-se sobre si mesmas, e desenvolver lentamente toda uma curva: um espaço tropológico.

Atinge-se, assim, aquilo mesmo que servira de ponto de partida para a reflexão sobre a linguagem.

Entre todos os signos, a linguagem tinha a propriedade de ser sucessiva: não porque ela própria tivesse pertencido a uma cronologia, mas porque estendia em sonoridades sucessivas a simultaneidade da representação.

Mas essa sucessão, que analisa e faz surgir uns após outros elementos descontínuos, percorre o espaço que a representação oferece ao olhar do espírito. De sorte que a linguagem não faz mais que colocar numa ordem linear as dispersões representadas.

A proposição desdobra e faz ouvir a largura que a retórica torna sensível ao olhar. Sem esse espaço tropológico, a linguagem não seria formada de todos esses nomes comuns que permitem estabelecer uma relação de atribuição. E, sem essa análise das palavras, as figuras teriam permanecido mudas, instantâneas e, apenas distinguidas na incandescência do instante, logo cairiam numa noite em que nem sequer existe tempo.

Desde a teoria da proposição até a da derivação, toda a reflexão clássica da linguagem – tudo isso a que se chamou “gramática geral” – não é mais que o denso comentário desta simples frase:

“A linguagem analisa.”

Nisto é que foi abalada, no século XVII, toda a experiência ocidental da linguagem – ela, que até então sempre acreditara que a linguagem falava.

V. A designação

Capítulo IV. Falar; tópico V. A designação

Os 4 momentos que fixam
as funções essenciais da linguagem
atribuição, articulação, designação e derivação.
nos Séculos XVII e XVIII
Os 4 momentos que fixam
as funções essenciais da linguagem
atribuição, articulação, designação e derivação.
no Século XIX

E, contudo, a teoria da “nomeação generalizada” descobre no extremo da linguagem uma certa relação com as coisas, que é de uma natureza totalmente diferente do que a forma proposicional.

Se, no fundo de si mesma, a linguagem tem por função nomear, isto é, suscitar uma representação ou como que mostrá-Ia com o dedo, ela é indicação e não juízo.

Liga-se às coisas

  • por uma marca,
  • uma nota,
  • uma figura associada,
  • um gesto que designa:

nada que seja redutível a uma relação de predicação.

O princípio da nomeação primeira e da origem das palavras contrabalança a primazia formal do juízo. Como se, de um lado e outro da linguagem, desdobrada em todas as suas articulações, houvesse

  • o ser em seu papel verbal de atribuição
  • e a origem no seu papel de designação primeira.

Esta [a origem] permite substituir por um signo aquilo que é indicado,

aquele, [o papel verbal da atribuição] ligar um conteúdo a outro.

Encontram-se assim,

  • em sua oposição,
  • mas também em sua mútua dependência,

as duas funções de liame e de substituição que foram dadas ao signo em geral com seu poder de analisar a representação.

Reconduzir à luz a origem da linguagem é reencontrar o momento primitivo em que ela era pura designação.

E com isso se deve, ao mesmo tempo,

  • explicar seu caráter arbitrário (porquanto o que designa pode ser tão diferente daquilo que mostra quanto um gesto do objeto para o qual tende)
  • e sua relação profunda com o que ela nomeia (pois tal sílaba ou tal palavra sempre foram escolhidas para designar tal coisa).

À primeira exigência responde a análise da linguagem de ação,

à segunda, o estudo das raízes.

Elas não se opõem, porém, como no Crátilo

  • a explicação pela “natureza”
  • e a explicação pela “lei”;

são, ao contrário, absolutamente indispensáveis uma à outra, pois que

  • a primeira explica a substituição do designado pelo signo
  • e a segunda justifica o poder permanente de designação desse signo.

A linguagem de ação, é o corpo que a fala; e contudo não é dada logo de início.

O que a natureza permite é apenas que, nas diversas situações em que se encontra, o homem faça gestos; seu rosto é agitado por movimentos; ele emite gritos inarticulados – isto é, que não são “desferidos nem com a língua nem com os lábios”(67).

Tudo isso não é ainda nem linguagem nem mesmo signo, mas efeito e sequência de nossa animalidade. Esta manifesta agitação tem a seu favor, entretanto, ser universal, visto só depender da conformação de nossos órgãos.

Daí a possibilidade que o homem tem de notar a identidade dela em si mesmo e em seus companheiros.

  • Pode, portanto, associar ao grito que ouve do outro, ao trejeito que percebe em seu rosto, as mesmas representações que, tantas vezes, duplicaram seus próprios gritos e seus próprios movimentos.
  • Pode receber essa mímica como a marca e o substituto do pensamento do outro. Como um signo.

Tem início a compreensão.

Ele pode, em troca, utilizar essa mímica tornada signo para suscitar em seus parceiros a ideia que ele próprio experimenta, as sensações, as necessidades, as dores que ordinariamente são associadas a tais gestos e a tais sons: grito lançado de propósito perante o outro e em direção a um objeto, pura interjeição(68).

Com esse uso combinado do signo (expressão já), algo como uma linguagem está em via de nascer.

Vê-se, por essas análises comuns a Condillac e a Destutt, que a linguagem de ação religa bem, mediante uma gênese, a linguagem à natureza. Mais, porém, para dela separá-Ia que para aí a enraizar. Para marcar sua diferença indelével para com o grito e fundar o que constitui seu artifício.

Enquanto for simples prolongamento do corpo, a ação não tem nenhum poder para falar: não é linguagem.

Torna-se linguagem; mas ao cabo de operações definidas e complexas:

  • notação de uma analogia de relações (o grito do outro é em relação àquilo que ele experimenta – a incógnita – o que o meu é em relação ao meu apetite ou ao meu susto);
  • inversão do tempo e uso voluntário do signo antes da representação que ele designa (antes de experimentar uma sensação de fome bastante forte para me fazer gritar, emito o grito que lhe é associado);
  • enfim, propósito de fazer nascer no outro a representação correspondente ao grito ou ao gesto (mas com a particularidade de que, emitindo um grito, não faço nascer nem pretendo fazer nascer a sensação da fome, mas a representação da relação entre esse signo e meu próprio desejo de comer).

A linguagem só é possível com base nessa imbricação. Não repousa sobre um movimento natural de compreensão ou de expressão, mas sobre as relações reversíveis e analisáveis dos signos e das representações..

Não há linguagem quando a representação se exterioriza, mas sim, quando de uma forma combinada, ela destaca de si um signo e se faz por ele representar.

Portanto,

  • não é a título de sujeito falante, nem do interior de uma linguagem já feita, que o homem descobre em torno de si signos, que seriam como outras tantas palavras mudas a serem decifradas e tornadas novamente audíveis;
  • é porque a representação se provê de signos que as palavras podem nascer e com elas toda uma linguagem que é tão-somente a organização ulterior de signos sonoros.

Apesar do seu nome, a “linguagem de ação” faz surgir a irredutível rede de signos que separa a linguagem da ação.

Com isso, ela funda na natureza o seu artifício. É que os elementos de que essa linguagem de ação é composta (sons, gestos, trejeitos) são propostos sucessivamente pela natureza e contudo não têm, na sua maioria,

  • nenhuma identidade de conteúdo com o que eles designam,
  • mas, sobretudo, relações de simultaneidade ou de sucessão.

O grito não se assemelha ao medo, nem a mão estendida à sensação de fome. Uma vez combinados, esses signos ficarão sem “fantasia e sem capricho”(69), pois que foram de uma vez por todas instaurados pela natureza; mas não exprimem a natureza daquilo que designam, pois não são à sua imagem.

E, a partir daí, os homens poderão estabelecer uma linguagem convencional:

  • dispõem agora de suficientes signos marcando as coisas para fixarem novos que analisam e combinam os primeiros.

No Discours sur I ‘origine de l’inégalité(70), Rousseau salientava que nenhuma língua pode repousar sobre um acordo entre os homens, pois que este já supõe uma linguagem estabelecida, reconhecida e praticada; é preciso, portanto, imaginá-Ia recebida e não construída pelos homens.

De fato, a linguagem de ação confirma essa necessidade e torna inútil essa hipótese. O homem recebe da natureza aquilo com que fazer signos e estes signos

  • lhe servem primeiramente para se entender com os outros homens a fim de escolher aqueles que serão retidos, os valores que se lhes reconhecerá, as regras de seu uso;
  • e servem, em seguida, para formar novos signos segundo o modelo dos primeiros.

A primeira forma de. acordo consiste em escolher os signos sonoros (mais fáceis de recolher a distância e os únicos utilizáveis de noite),

a segunda, em compor, para designar representações vizinhas.

Assim se constitui a linguagem propriamente dita, por uma série de analogias que prolongam lateralmente a linguagem de ação ou, pelo menos, sua parte sonora: assemelha-se a ela e

“é essa semelhança que facilitará sua inteligência.
Chama-se-Ihe analogia…
Vedes que a analogia que nos constitui a lei não nos permite escolher os signos ao acaso ou arbitrariamente”(71).

A gênese da linguagem a partir da linguagem de ação escapa inteiramente à alternativa entre a imitação natural e a convenção arbitrária.

  • Lá onde há natureza – nos signos que nascem espontaneamente através de nosso corpo – não há nenhuma semelhança;
  • e lá onde há utilização das semelhanças, já foi estabelecido o acordo voluntário entre os homens.

A natureza justapõe as diferenças e as liga à força; a reflexão descobre as semelhanças, as analisa e as desenvolve. O primeiro tempo permite o artifício, mas com um material imposto de maneira idêntica a todos os homens; o segundo exclui o arbitrário mas abre à análise vias que não serão exatamente passíveis de sobreposição para todos os homens e para todos os povos.

A lei de natureza é a diferença das palavras e das coisas – a divisão vertical entre a linguagem e aquilo que, por sob ela, lhe cumpre designar;

a regra das convenções é a semelhança das palavras entre si, a grande rede horizontal que forma as palavras umas a partir das outras e as propaga ao infinito.

Compreende-se então por que a teoria das raízes de modo algum contradiz a análise da linguagem de ação, mas nela vem muito exatamente alojar-se.

As raizes são palavras rudimentares que se encontram, idênticas, num grande número de línguas – em todas talvez; foram impostas pela natureza como gritos involuntários e utilizados espontaneamente pela linguagem de ação. É aí que os homens foram buscá-Ias para fazê-Ias figurar nas suas línguas convencionais. E se todos os povos, em todos os climas, escolheram, entre o material da linguagem de ação, essas sonoridades elementares, é porque nelas descobriram, de uma forma porém secundária e refletida, uma semelhança com o objeto que designavam, ou a possibilidade de aplicá-Ia a um objeto análogo.

A semelhança da raiz com o que ela nomeia só adquire seu valor de signo verbal mediante a convenção que uniu os homens e regulou numa língua sua linguagem de ação.

É assim que, do interior da representação, os signos se reúnem à natureza mesma daquilo que designam e que se impõe, de modo idêntico, a todas as línguas, tesouro primitivo dos vocábulos.

As raízes podem formar-se de várias maneiras.

  • Por onomatopéia certamente, que não é expressão espontânea, mas articulação voluntária de um signo semelhante: “Fazer com a voz o mesmo ruído que faz o objeto que se quer nomear.”(72)
  • Por utilização de uma semelhança experimentada nas sensações: “A impressão da cor vermelha, que é viva, rápida, dura à vista, será muito bem traduzida pelo som r, que causa uma impressão análoga no ouvido.”(73)
  • Impondo aos órgãos da voz movimentos análogos aos que se tem o propósito de significar: “de sorte que o som que resulta da forma e do movimento natural do órgão posto nesse estado torna-se o nome do objeto”: a garganta raspa para designar a fricção de um corpo contra outro, abre-se inteiramente para indicar uma superfície côncava(74).
  • Enfim, utilizando, para designar um órgão, os sons que ele produz naturalmente: a articulação ghen deu seu nome à garganta, donde ela provém, e usam-se dentais (d e t) para designar os dentes(75).
Com essas articulações convencionais da semelhança, cada língua pode se prover do seu jogo de raízes primitivas. Jogo restrito, pois que elas são quase todas monossilábicas e existem em muito pequeno número – 200 para a língua hebraica, segundo as estimativas de Bergier(76); ainda mais restrito se se lembrar que são (por causa dessas relações de semelhança que instituem) comuns à maioria das línguas: De Brosses pensa que, para todos os dialetos da Europa e do Oriente, elas não preenchem, todas juntas, “uma página de papel de cartas”. Mas é a partir delas que cada língua, em sua particularidade, vem a se formar: “Seu desenvolvimento é prodigioso. Tal como uma semente de olmo produz uma grande árvore que, lançando novos rebentos de cada raiz, produz, com o tempo, uma verdadeira floresta”(77).

A linguagem pode desenrolar-se agora na sua genealogia. É ela que De Brosses queria expor num espaço de filiações contínuas a que ele chamava “Arqueólogo universal”(78).

No alto desse espaço escrever-se-iam as raízes – bem pouco numerosas – que as línguas da Europa e do Oriente utilizam; sob cada uma, colocar-se-iam as palavras mais complicadas que delas derivam, cuidando, porém, de colocar primeiramente as mais próximas delas e de seguir uma ordem bastante cerrada, para que haja entre as palavras sucessivas a menor distância possível.

Constituir-se-iam assim séries perfeitas e exaustivas, cadeias absolutamente contínuas, em que as rupturas, se existissem, indicariam incidentalmente o lugar de uma palavra, de um dialeto ou de uma língua hoje desaparecidos(79).

Uma vez constituída essa grande superfície sem costura, ter-se-ia um espaço em duas dimensões que se poderia percorrer em abscissas ou em ordenadas:

  • na vertical, ter-se-ia a filiação completa de cada raiz,
  • na horizontal, as palavras que são utilizadas por determinada língua;

quanto mais nos afastássemos das raízes primitivas, mais complicadas e, sem dúvida, mais recentes, seriam as línguas definidas por uma linha transversal, mas, ao mesmo tempo, mais eficácia e finura teriam as palavras para a análise das representações.

Assim o espaço histórico e o quadriculado do pensamento estariam exatamente superpostos.

Essa procura das raízes pode afigurar-se um retorno à história e à teoria das línguas-mães que o classicismo, por um instante, parecera manter em suspenso.

Na realidade, a análise das raízes não recoloca a linguagem numa história que fosse como que seu meio de nascimento e de transformação. Antes, faz da história o percurso, por etapas sucessivas, do recorte simultâneo da representação e das palavras.

A linguagem, na época clássica, não é um fragmento de história que autoriza, em tal ou qual momento, um modo definido de pensamento e de reflexão; é um espaço de análise sobre o qual o tempo e o saber dos homens desenrolam seu percurso.

E encontrar-se-ia bem facilmente a prova de que a linguagem não se tornou – ou não voltou a tornar-se – pela teoria das raízes, um ser histórico, na maneira como, no século XVIII, se procuraram as etimologias.

Não se tomava como fio condutor o estudo das transformações materiais da palavra, mas a constância das significações.

Essa procura tinha dois aspectos: definição da raiz, isoladamente das desinências e dos prefixos. Definir a raiz é fazer uma etimologia. Arte que tem suas regras codificadas (80); é preciso despojar a palavra de todos os traços que nela depositaram as combinações e as flexões; chegar a um elemento monossilábico; seguir esse elemento em todo o passado da língua através das antigas “cartas e glossários”; remontar a outras línguas mais primitivas.

E, ao longo de todo esse veio, é preciso certamente admitir que o monossílabo se transforma: todas as vogais podem substituir-se umas às outras na história de uma raiz, pois as vogais são a própria voz que é sem descontinuidade e sem ruptura; as consoantes, em contrapartida, se modificam segundo vias privilegiadas: guturais, linguais, palatais, dentais, labiais, nasais formam famílias de consoantes homófonas, no interior das quais se fazem preferencialmente, mas sem nenhuma obrigação, as mudanças de pronúncia(81). A única constante indelével que assegura a continuidade da raiz ao longo de toda a sua história é a unidade de sentido: região representativa que persiste indefinidamente.

É que “nada talvez pode limitar as induções e tudo lhes pode servir de fundamento desde a semelhança total até as semelhanças mais leves”: o sentido das palavras é “a luz mais segura que se possa consultar”

IV. A articulação

Capítulo IV. Falar; tópico IV. A articulação

Os 4 momentos que fixam
as funções essenciais da linguagem
atribuição, articulação, designação e derivação.
nos Séculos XVII e XVIII
Os 4 momentos que fixam
as funções essenciais da linguagem
atribuição, articulação, designação e derivação.
no Século XIX

O verbo ser,

  • misto de atribuição e de afirmação,
  • cruzamento do discurso com a possibilidade primeira e radical de falar,

define a primeira invariante da proposição, e a mais fundamental.

Ao lado dele, de uma parte e de outra, elementos: partes do discurso ou da “oração”.

Essas regiões são ainda indiferentes e determinadas apenas pela figura tênue, quase imperceptível e central que designa o ser;

  • funcionam, em torno desse “julgador”,
    • como a coisa a julgar – o judicande,
    • e a coisa julgada – o judicat(41).

Como pode esse puro esboço da proposição transformar-se em frases distintas?
Como pode o discurso enunciar todo o conteúdo de uma representação?

Porque ele é feito de palavras que nomeiam, parte por parte, o que é dado à representação.

A palavra designa, o que quer dizer que, em sua natureza, é nome. Nome próprio, pois que aponta para tal representação e mais nenhuma.

Assim é que, em face da uniformidade do verbo

  • – que nunca é mais que o enunciado universal da atribuição –

os nomes pululam e ao infinito.

Deveria haver tantos nomes quantas coisas a nomear. Mas então cada nome seria tão fortemente vinculado à única representação que ele designa, que não se poderia sequer formular a menor atribuição; e a linguagem recairia abaixo de si mesma:

“Se tivéssemos por substantivos somente nomes próprios, seria preciso multiplicá-los ao infinito. Essas palavras, cuja multidão sobrecarregaria a memória, não poriam ordem alguma nos objetos de nossos conhecimentos, nem, por conseguinte, em nossas ideias, e todos os nossos discursos estariam na maior confusão.”(42)

Os nomes podem funcionar na frase e permitir a atribuição somente se um dos dois (o atributo ao menos) designar algum elemento comum a várias representações.

A generalidade do nome é tão necessária às partes do discurso quanto a designação do ser à forma da proposição. Essa generalidade pode ser adquirida de duas maneiras.

  • Ou por uma articulação horizontal, agrupando os indivíduos que têm entre si certas identidades, separando aqueles que são diferentes;
    • forma ela então uma generalização sucessiva de grupos cada vez mais amplos (e cada vez menos numerosos);
    • pode também subdividi-los quase ao infinito por distinções novas e atingir assim o nome próprio do qual partiu(43);
    • toda a ordem das coordenações e das subordinações se acha recoberta pela linguagem e cada um desses pontos aí figura com seu nome;
      • do indivíduo à espécie,
      • desta em seguida ao gênero e à classe, a linguagem se articula exatamente sobre o domínio das generalidades crescentes; são os substantivos que manifestam na linguagem essa função taxinômica: diz-se
        • um animal,
          • um quadrúpede,
            • um cão,
              • um cão-d’água(44)
  • Ou então por uma articulação vertical – ligada à primeira, pois elas são indispensáveis uma à outra;
    • essa segunda articulação distingue
      • as coisas que subsistem por si mesmas
      • e aquelas – modificações, traços, acidentes, ou caracteres – que jamais se podem encontrar em estado independente:
      • em profundidade, as substâncias,
      • na superfície, as qualidades;
    • esse corte – essa metafísica, como dizia Adam Smith(45) – é manifestado no discurso pela presença de adjetivos que designam na representação tudo o que não pode subsistir por si.

A articulação primeira da linguagem (se se puser de parte o verbo ser, que é condição tanto quanto parte do discurso) faz-se, pois, segundo dois eixos ortogonais:

  • um que vai do indivíduo singular ao geral;
  • outro que vai da substância à qualidade.

No seu cruzamento reside o nome comum;

  • numa extremidade, o nome próprio,
  • na outra, o adjetivo.

Mas esses dois tipos de representação só distinguem as palavras entre si na medida exata em que a representação é analisada segundo esse mesmo modelo.

Como o dizem os autores de Port-Royal:

  • as palavras “que significam as coisas se chamam nomes substantivos, como terra, sol.
  • Aquelas que significam os modos, marcando ao mesmo tempo o sujeito ao qual convêm se chamam adjetivos, como bom, justo, redondo”(46).

Entre a articulação da linguagem e a da representação há, contudo, um jogo.

  • Quando se fala de “brancura”, é certamente uma qualidade que se designa, mas é designada por um substantivo:
  • quando se fala dos “humanos”, utiliza-se um adjetivo para designar indivíduos que subsistem por si mesmos.

Esse desnível não indica que a linguagem obedeça a outras leis além da representação: mas, ao contrário, que ela tem, consigo mesma e na sua espessura própria, relações que são idênticas às da representação.

Com efeito, não é ela uma representação desdobrada e não tem ela o poder de combinar, com os elementos da representação, uma representação distinta da primeira, embora não tenha por função e sentido senão representá-Ia? Se o discurso se apropria do adjetivo que designa uma modificação e fá-Io valer no interior da frase como a substância mesma da proposição, então o adjetivo torna-se substantivo; o nome, ao contrário, que se comporta na frase como um acidente, torna-se, por seu turno, adjetivo, mesmo designando, como que pelo passado, substâncias.

“Porque a substância é o que subsiste por si mesmo, chamou-se substantivos a todas as palavras que subsistem por si mesmas no discurso, ainda quando signifiquem acidentes.

E, ao contrário, chamou-se adjetivos àquelas que significam substância, quando, em sua maneira de significar, devem estar unidas a outros nomes no discurso.”(47)

Os elementos da proposição têm entre si relações idênticas às da representação; mas essa identidade não é assegurada ponto por ponto, de sorte que toda substância seria designada por um substantivo e todo acidente por um adjetivo.

Trata-se de uma identidade global e de natureza:

  • a proposição é uma representação;
  • articula-se segundo os mesmos modos que ela;
  • mas compete-lhe poder articular, de uma forma ou de outra, a representação que ela transforma em discurso.

Ela é, em si mesma, uma representação que articula outra, com uma possibilidade de desnível que constitui ao mesmo tempo a liberdade do discurso e a diferença das línguas.

Tal é a primeira camada de articulação: a mais superficial, em todo o caso, a mais aparente. Desde logo, tudo pode tornar-se discurso. Mas numa linguagem ainda pouco diferenciada:

  • para religar os nomes, só se dispõe ainda da monotonia do verbo ser e de sua função atributiva.

Ora, os elementos da representação se articulam segundo toda uma rede de relações complexas (sucessão, subordinação, consequência) que é necessário fazer passar para a linguagem a fim de que esta se tome realmente representativa.

Daí todas as palavras, sílabas, letras mesmo que, circulando entre os nomes e os verbos, devem designar essas ideias a que Port-Royal chamava “acessórias”(48);

  • são necessárias preposições e conjunções;
  • são necessários signos de sintaxe que indiquem as relações de identidade ou de concordância
  • e as de dependência ou de regência(49): marcas de plural e de gênero, casos de declinações;
  • são necessárias, enfim, palavras que reportem os nomes comuns aos indivíduos que eles designam – esses artigos ou esses demonstrativos a que Lemercier chamava “concretizadores” ou “desabstradores”(50).

Uma tal poeira de palavras constitui uma articulação inferior à unidade do nome (substantivo ou adjetivo) tal como é requerida pela forma nua da proposição:

  • nenhuma delas detém, no seu íntimo e em estado isolado, um conteúdo representativo que seja fixo e determinado;
  • só recobrem uma ideia – mesmo acessória – uma vez ligadas a outras palavras;
  • enquanto os nomes e os verbos são “significativos absolutos”, elas só têm significação de um modo relativo(51).

É certo que

  • se dirigem à representação;
  • só existem na medida em que essa, analisando-se, deixa ver a rede interior dessas relações; mas elas próprias só têm valor pelo conjunto gramatical de que fazem parte.

Estabelecem na linguagem uma articulação nova e de natureza mista, ao mesmo tempo

  • representativa
  • e gramatical,

sem que nenhuma dessas duas ordens possa ajustar-se exatamente à outra.

Eis que a frase se povoa de elementos sintáticos que são de um recorte mais fino que as figuras amplas da proposição.

Esse novo recorte coloca a gramática geral perante a necessidade de uma escolha:

  • ou prosseguir a análise por sob a unidade nominal, e fazer surgir, antes da significação, os elementos insignificantes de que é construída,
  • ou então reduzir, por um processo regressivo, essa unidade nominal, reconhecer-lhe medidas mais restritas e encontrar sua eficácia representativa abaixo das palavras completas, nas partículas, nas sílabas e até nas próprias letras.

Essas possibilidades são oferecidas – mais: são prescritas – desde o momento em que a teoria das línguas se dá por objeto o discurso e a análise de seus valores representativos.

  • Elas definem o ponto de heresia que divide a gramática do século XVIII.

“Suporemos”, diz Harris, “que toda significação é, como o corpo, divisível numa infinidade de outras significações, divisíveis, elas mesmas, ao infinito? Seria um absurdo; é preciso pois, necessariamente, admitir que há sons significativos dos quais nenhuma parte pode, por si mesma, ter significação.”(52)

A significação desaparece desde que são dissociados ou suspensos os valores representativos das palavras: aparecem, em sua independência, materiais que não se articulam com o pensamento e cujos liames não se podem reduzir aos do discurso.

Há uma “mecânica” própria às concordâncias, às regências, às flexões, às sílabas e aos sons e, essa mecânica, nenhum valor representativo pode explicar.

É preciso tratar a língua como essas máquinas que, pouco a pouco, se aperfeiçoam(53):

  • em sua forma mais simples, a frase é composta apenas de um sujeito, de um verbo, de um atributo;
  • e toda adição de sentido exige uma proposição nova e inteira;
    • assim as mais rudimentares máquinas supõem princípios de movimento que diferem para cada um de seus órgãos.

Mas, quando elas se aperfeiçoam, submetem a um só e mesmo princípio todos os seus órgãos que, desse princípio, não são então mais do que intermediários, meios de transformação, pontos de aplicação; do mesmo modo, aperfeiçoando-se, as línguas fazem passar o sentido de uma proposição por órgãos gramaticais que não têm, eles mesmos, valor representativo, mas cujo papel é precisá- Io, religar seus elementos, indicar suas determinações atuais.

Numa frase, e num só movimento, podem-se marcar relações de tempo, de consequência, de possessão, de localização, que entram realmente na série sujeito-verbo-atributo, mas não podem ser demarcadas por uma distinção tão vasta.

Daí a importância assumida, desde Bauzée(54), pelas teorias do complemento, da subordinação.

Daí também o papel crescente da sintaxe;

  • na época de Port-Royal, esta era identificada com a construção e a ordem das palavras, portanto, com o desenrolar interior da proposição (55) ;
  • com Sicard, ela tornou-se independente:
    • é ela “que comanda para cada palavra sua forma própria”(56).

E assim se esboça a autonomia do gramatical, tal como será definida, bem no fim do século, por Sylvestre de Saci, quando, pela primeira vez, junto com Sicard, distingue

  • a análise lógica da proposição
  • e a gramatical, da frase(57).

Compreende-se por que análises desse gênero permaneceram suspensas enquanto o discurso foi o objeto da gramática;

  • desde que se atingisse uma camada de articulação onde os valores representativos se pulverizassem,
  • passava-se para o outro lado da gramática, lá onde ela não tinha mais controle,
    num domínio que era
    •  o do uso
    • e da história –
  • a sintaxe, no século XVIII, era considerada como o lugar do arbitrário, onde se desenvolviam, em sua fantasia, os hábitos de cada povo(58).

Em todo o caso, elas não podiam ser, no século XVIII, nada mais que possibilidades abstratas, não prefigurações do que viria a ser a filologia, mas ramo não-privilegiado de uma escolha.

De outro lado, a partir do mesmo ponto de heresia, vê-se desenvolver-se uma reflexão que, para nós e para a ciência da linguagem que construímos desde o século XIX, é desprovida de valor, mas que permitia então manter toda a análise dos signos verbais no interior do discurso. E que, por esse recobrimento exato, fazia parte das figuras positivas do saber.

Buscava-se a obscura função nominal que se julgava investida e oculta nessas palavras, nessas sílabas, nessas flexões, nessas letras que a análise demasiado frouxa da proposição deixava passar através de seu crivo. É que afinal, como observavam os autores de Port- Royal, todas as partículas de ligação têm realmente um certo conteúdo, pois que representam a maneira pela qual os objetos são ligados e aquela pela qual eles se encadeiam em nossas representações(59)

Não se pode supor que foram nomes como todos os outros?

Porém, em vez de substituírem os objetos, eles teriam tomado o lugar dos gestos com que os homens os indicavam ou simulavam seus liames e sua sucessão(60).

São essas palavras que, ou perderam pouco a pouco seu sentido próprio (este, com efeito, não era sempre visível, já que ligado aos gestos, ao corpo e à situação do locutor), ou então se incorporavam às outras palavras em que encontravam um suporte estável e a que forneciam, em troca, todo um sistema de modificações(61).

De sorte que todas as palavras, quaisquer que sejam, são nomes adormecidos:

  • os verbos juntaram nomes adjetivos ao verbo ser;
  • as conjunções e as preposições são os nomes de gestos doravante imóveis;
  • as declinações e as conjugações nada mais são que nomes absorvidos.

As palavras, agora, podem se abrir e liberar o vôo de todos os nomes que nelas se depositaram.

Como dizia Le Bel, a título de princípio fundamental da análise,

“não há reunião cujas partes não tenham existido separadamente antes de serem reunidas”(62),

o que lhe permitia reduzir todas as palavras a elementos silábicos em que reapareciam enfim os velhos nomes esquecidos – os únicos vocábulos que tiveram a possibilidade de existir ao lado do verbo ser:

  • Romulus, por exemplo(63), vem de Roma e moliri (construir);
  • e Roma vem de Ro, que designava a força (Robur) e de Ma, que indicava a grandeza (magnus).

Do mesmo modo, Thiébault descobre em “abandonner” [“abandonar”] três significações latentes:

  • a, que “apresenta a ideia da tendência ou da destinação de uma coisa em direção a outra coisa qualquer”;
  • ban, que “dá a ideia da totalidade do corpo social”,
  • e do que indica “o ato pelo qual se renuncia a alguma coisa”(64).

E se é preciso não ficar nas sílabas, ir até as próprias letras, recolher-se-ão ainda os valores de uma nomeação rudimentar. Nisso empenhou-se maravilhosamente Court de Gébelin, para sua maior glória, e a mais perecível;

  • “o toque labial, o mais fácil de acionar, o mais suave, o mais gracioso, servia para designar os primeiros seres que o homem conhece, aqueles que o cercam e a quem deve tudo” (papai, mamãe, beijo).
  • Em contrapartida, “os dentes são tão firmes quanto os lábios são móveis e flexíveis; as entoações que deles provêm são fortes, sonoras, ruidosas… É pelo toque dental que se atroa, que se retumba, que se espanta; por ele, designam-se os tambores, os timbales, as trombetas”.

Isoladas, as vogais podem, por sua vez, manifestar o segredo dos nomes milenares em que o uso os encerrou:

  • A para a posse (haver),
  • E para a existência,
  • I para o poderio,
  • O para o espanto (os olhos que se arredondam),
  • U para umidade, portanto para o humor(65)

E talvez, nos recônditos mais antigos de nossa história, consoantes e vogais, distinguidas apenas como dois grupos ainda confusos, formassem como que dois únicos nomes que teriam articulado a linguagem humana:

  • as vogais cantantes diziam as paixões;
  • as rudes consoantes, as necessidades(66).

Pode-se ainda distinguir

  • o falar áspero do Norte – floresta das guturais, da fome e do frio –
  • ou as línguas meridionais, todas de vogais, nascidas do matinal encontro de pastores, quando “saíam do puro cristal das fontes os primeiros fogos do amor”.

Em toda a sua espessura e até os mais arcaicos sons que pela primeira vez a arrancaram ao grito, a linguagem conserva sua função representativa: em cada uma de suas articulações, desde os tempos mais remotos, ela sempre nomeou. Em si mesma, é tão-somente um imenso sussurro de denominações que se sobrepõem, se comprimem, se ocultam e, entretanto, se mantêm para permitir analisar ou compor as mais complexas representações.

No interior das frases, ali mesmo onde a significação parece ter um apoio mudo em sílabas insignificantes, há sempre uma nomeação adormecida, uma forma que guarda fechado entre suas paredes sonoras o reflexo de uma representação invisível e todavia inapagável.

Para a filologia do século XIX, semelhantes análises permaneceram, no sentido estrito do termo, “letra morta”.

Não, porém, para toda uma experiência da linguagem –

  • primeiramente esotérica e mística, na época de Saint-Marc, de Reveroni, de Fabre d’Olivet, d’Oegger,
  • depois literária, quando o enigma da palavra ressurge em seu ser maciço, com Mallarmé, Roussel, Leiris ou Ponge.
A ideia de que, destruindo as palavras, não são nem ruídos nem puros elementos arbitrários que se reencontram, mas outras palavras que, pulverizadas por sua vez, liberam outras – essa ideia é ao mesmo tempo o negativo de toda a ciência moderna das línguas e o mito no qual transcrevemos os mais obscuros poderes da linguagem, e os mais reais.
 
Sem dúvida, porque arbitrária e porque se pode definir sob que condição é significante, é que a linguagem pode tornar-se objeto de ciência.
Mas é porque ela jamais cessou de falar aquém de si mesma, porque valores inesgotáveis a penetram tão longe quanto se pode atingir, que dela podemos falar nesse murmúrio ao infinito em que viceja a literatura.

Na época clássica, porém, a relação não era a mesma; as duas figuras se recobriam exatamente:
 
  • para que a linguagem fosse inteiramente compreendida na forma geral da proposição,
  • era necessário que cada palavra, na menor de suas parcelas, fosse uma nomeação meticulosa.
 
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Michel Foucault 1926-1984

A percepção da contaminação do pensamento com o qual pensamos, pela impossibilidade de fundar as sínteses na representação

“Eis que nos adiantamos bem para além
do acontecimento histórico que se impunha situar
– bem para além das margens cronológicas
dessa ruptura que divide, em sua profundidade,
a epistémê do mundo ocidental
e isola para nós o começo
de certa maneira moderna de conhecer as empiricidades.

É que o pensamento que nos é contemporâneo
e com o qual, queiramos ou não, pensamos,
se acha ainda muito dominado
pela impossibilidade,
trazida à luz por volta do fim do século XVIII,
de fundar as sínteses no espaço da representação
e pela obrigação
correlativa, simultânea,

mas logo dividida contra si mesma,
de abrir o campo transcendental da subjetividade
e de constituir inversamente,
para além do objeto,
esses “quase-transcendentais” que são para nós
a Vida, o Trabalho, a Linguagem.”

A nova forma de reflexão se instaura no pensamento em nossa cultura, o motor constituinte “dessa maneira moderna de conhecer empiricidades”

“Instaura-se um tipo de reflexão
bastante afastado do cartesianismo
e da análise kantiana,
em que está em questão,
pela primeira vez,
o ser do homem,
nessa dimensão segundo a qual
o pensamento
se dirige ao impensado
e com ele se articula.”

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Cap. VIII – Trabalho, Vida e Linguagem;
tópico I. As novas empiricidades

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Cap. IX – O homem e seus duplos ;
tópico V – O “cogito” e o impensado.

  • a impossibilidade de fundar as sínteses [da empiricidade objeto da operação] no espaço da representação leva o pensamento para a epistemé clássica.
  • essa impossibilidade de fundar as sínteses implica na seleção da visão de ‘operações’ e análise de valor no exato ponto de cruzamento entre o dado e o recebido, e para a primeira possibilidade de análise de valor. 
  • a possibilidade de fundar as sínteses [da empiricidade objeto da operação] no espaço da representação leva o pensamento para a epistemé moderna.
  • essa possibilidade de fundar as sínteses no espaço da representação implica em uma visão de ‘operações’ e análise de valor antes do ponto de cruzamento acima, o que leva o modelo para a segunda possibilidade de análise de valor.
  • essa forma de reflexão que se instaura no pensamento em nossa cultura exige duas coisas: 
    • o ‘ser do homem’;
    • o impensado e sua contrapartida no espaço da representação

a percepção  dessa contaminação, dominação mesmo,
do pensamento com o qual ‘queiramos ou não‘ pensamos,
– hoje em dia, e aqui e agora –
por configurações de pensamento
com a possibilidade, e também
com impossibilidade
de fundar as sínteses – da empiricidade objeto – 
no espaço da representação
muda completamente os domínios e os lugares onde ocorrem as operações,
 as paletas de ideias ou elementos de imagem, assim como as estruturas e os relacionamentos entre eles.

A primeira pedra de tropeço
no caminho de Michel Foucault
comparações feitas por Foucault de diferentes configurações de pensamento
Uma operação, de pensamento, de produção, etc. com a paleta de ideias e a estrutura do pensamento moderno, de depois da descontinuidade epistemológica ocorrida no período 1775-1825, segundo Michel Foucault

Há diferentes modelos
que formulamos para 
visões de ocorrências 
no espaço-tempo x, y, z e t.

Ao suspeitar
da contaminação do pensamento
– do nosso, daquele com o qual queiramos ou não pensamos –
por essa impossibilidade de fundar as sínteses no espaço da representação, ele manifesta sua percepção de que de fato isso acontece em volta de nós e conosco.

Esses modelos,
diferentes em seus fundamentos,
são usados juntos
e/ou simultaneamente
no mesmo domínio e ambiente 
em um pensamento
contaminado
por duas epistemologias,
ou por duas maneiras
de conhecer
aquilo que dizemos
que conhecemos.

Existem modelos,
todos em uso atualmente,
que podem ser agrupados
em duas famílias:

  • aqueles com a possibilidade
  • e aqueles com a impossibilidade 

 de fundar as sínteses
 – da empiricidade objeto da operação-
no espaço da representação.

Essa a distinção entre modelos
  com e modelos sem essa possibilidade
de fundar as sínteses
[da empiricidade objeto da operação]
no espaço da representação,
que Michel Foucault faz sugere que analisemos os modelos de operações e de organizações existentes, isto é, nos modelos que usamos hoje, em busca de características de características, ou características de segunda ordem, pelas quais podem ser associados com o pensamento antes, depois da descontinuidade epistemológica de 1775-1825, oferecendo os necessários elementos para identificação.

A figura na coluna do meio acima mostra a configuração do pensamento (o clássico,  de antes de 1775), com a impossibilidade de fundar as sínteses (da(s) empiricidade(s) objeto da operação) no espaço da representação.

Clicando nessa figura, a animação mostrará as alterações em toda a configuração do pensamento, para levantar essa impossibilidade.

A alteração se passa no lado direito da figura. 

A primeira coisa que muda é o tipo de reflexão que se instaura. 

Como decorrência, muda toda a paleta de ideias, ou elementos de imagem; 

Muda ainda o perfil do pensamento em cada configuração: 

  • o referencial
      • a ordem pela ordem
      • dá lugar à utopia do não articulado;
  • os princípios organizadores
      • que eram Caráter e Similitude
      • passam a ser Analogia e Sucessão;
  • e os métodos,
      • que eram identidade e semelhança
      • passam a ser Análise e Síntese.

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dez (10) pontos para contextualização entre Prefácio e texto do livro
'As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas'

1. A Forma de Reflexão que se instaura em nossa cultura
2. Proposição: o bloco padrão genérico e fundamental
para construção de representações
3. Princípios organizadores do pensamento de depois da descontinuidade epistemológica de 1775-1825
4. O Conceito de verbo no pensamento clássico,
o de antes da descontinuidade epistemológica de 1775-1825
5. O conceito de verbo no pensamento moderno, o de depois da descontinuidade epistemológica de 1775-1825
6. As duas sintaxes mencionadas por Foucault no Prefácio
6.1 A sintaxe que autoriza a construção das frases
6.2 A sintaxe que autoriza manter juntas
as palavras e as coisas
7. O princípio monolítico de trabalho de Adam Smith,
de 1776
8. O princípio dual de trabalho de David Ricardo,
de 1817
8.1 A importância de David Ricardo,

Nosso roteiro (Michel Foucault) e nossa inspiração (Humberto Maturana)

Influências e inspirações

1 a influência de Vilém Flusser no livro ‘Filosofia da caixa preta’: 

uso das funções reversíveis Imaginação e Conceituação para navegar, ida e volta, entre 

textos ↔ imagens ↔ e ocorrências espacio-temporais; 

e ainda, não menos importante

    • as imagens tradicionais, as imagens técnicas, as classes de abstrações que usamos cotidianamente;
Vilém-Flusser-Portrait-008
Vilém Flusser
1920-1991

2 as sugestões de Humberto Maturana nos livros: Cognição, Ciência e Vida cotidiana; Emoções e Linguagem na Educação e na Política; ‘De máquinas e de seres vivos’:

objeções e propostas de mudança feitas por Maturana ao fazer dos pesquisadores em IA do MIT do final dos anos ’50, aceitação de algumas das críticas feitas, e aparentemente, uma alteração de rota;

Humberto Maturana
1928-

3 a influência especialmente muito forte de Michel Foucault no livro ‘As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas’:

a descoberta de duas pedras de tropeço durante seu trabalho nesse livro, a saber:

    • uma impossibilidade (ainda em nossos dias) de fundar as sínteses no espaço da representação, presente no nosso pensamento cotidiano;
    • e uma obrigação de abrir o campo transcendental da subjetividade constituindo, para além do objeto, os quase-transcendentais Vida(Biologia), Trabalho(Economia) e Linguagem(Filologia).
Michel Foucault
1926-1984

 

A Figura 2 original de Maturana

Figura 2 – Diagrama ontológico; Reflexões epistemológicas, do livro Cognição, Ciência e Vida cotidiana;
pi Figura 2 – O explicar e a experiência; Linguagem, Emoções e Ética nos Afazeres Politicos,
do livro Emoções e Linguagem na Educação e na Política

Esquadrinhamento da Figura 2 de Maturana para ajustes

A Figura 2 – Diagrama ontológico ou O explicar e a experiência, de Maturana 
esquadrinhamento da figura com comentários e propostas de alterações
usando o pensamento de Michel Foucault

 

O circuito ida e volta possibilitado por funções
Imaginação e Conceituação reversíveis

classes de abstrações:
Graus da abstração;
Dimensões próprias a cada caso

Roteiro e inspiração

 

  • Estar na linguagem segundo Humberto Maturana

    Estar na linguagem é uma coordenação de coordenações consensuais de ações

  • Pedra fundamental do pensamento de Maturana no início do seu trabalho

    A pedra fundamental do pensamento de Humberto Maturana

HM foto 1

Humberto Maturana Romesin
1928 –

  • Um salto para fora do cartesianismo

    Salto para fora do cartesianismo: Vilém Flusser em Pensamento e Reflexão

  • As imagens tradicionais

  • As imagens técnicas, as construídas por aparelhos

    Imagem técnica – aquele tipo de imagem produzida por um aparelho.

vilem

Vilém Flusser
1920-1991

Fale conosco

O sistema SIPOC/FEPSC

O ontologia do sistema SIPOC/FEPSC

- História, modo de ser fundamental das empiricidades,
. o Circuito das trocas e o Lugar de nascimento do que é empírico
. Pensamento conservador e pensamento progressista

Posição relativa do par sujeito-objeto e o modelo de operações

Aquém 

história como sucessão de fatos
tais como se sucederam

História como sucessão de fatos tais como se sucederam

Diante e Além

história como alterações no ‘modo de ser fundamental’ das empiricidades

História como mudança no 'modo de ser fundamental'

Duas possibilidades de leitura de operações;
duas origens de valor (interna e externa na linguagem) para representações

Duas visões, duas leituras do fenômeno 'operações':
sob o pensamento clássico, o de antes de 1775; (seta amarela)
sob o pensamento moderno, o de depois de 1825 (seta vermelha)
com duas amplitudes - duas abrangências muito diferentes

Ciência e Tecnologia dependem da Filosofia e são funções das ferramentas de pensamento de que dispõe a configuração do pensamento utilizada em sua geração.

Os três movimentos do pensamento segundo Vilém Flusser

Usando o pensamento de Vilém Flusser:

  • Pensamento é um transformador do duvidoso em língua;
  • Filosofia, ou Reflexão, é texto produzido pelo pensamento ao voltar-se contra si mesmo para corrigir-se e renovar-se.
  • ciência, como o resultado de um movimento do pensamento em direção ao mundo, para compreendê-lo, é texto filosófico aplicado. 
  • e tecnologia, como resultado de um movimento do pensamento em direção ao mundo para modificá-lo, é texto científico aplicado; 

Descontinuidades epistemológicas refletem conquistas humanas no pensamento e são aprimoramentos na maneira que usamos para conhecer.  Há portanto uma relação entre, de um lado, o modo como colocamos em marcha nosso desejo de transformar o duvidoso em língua a cada nível, e de outro lado, a filosofia que temos, e a Ciência que temos, ou a tecnologia de que dispomos. Filosofia, Ciência e Tecnologia são funções do como como vemos o mundo e as coisas.

Michel Foucault (*) descreve uma descontinuidade epistemológica (uma alteração no modo como nos voltamos para o mundo para conhecer o que dizemos que conhecemos), e aponta com toda clareza diferentes jogos de ferramentas de pensamento ou estruturas conceituais, características de uma e de outra dessas epistemologias, de um e de outro lado desse evento. E aponta um período em nossa cultura ocidental, em que o pensamento esteve dominado por uma característica do período anterior.

A solução de questões trazidas à luz por essa nova maneira de conhecer (a nova epistemologia) não poderão ser resolvidas se correspondentes ciência e tecnologia não forem desenvolvidas também.

Pensamento conservador e progressista

Acompanhando o trabalho arqueológico de Michel Foucault em direção a essa classe especial de saberes, a esse conjunto de discursos chamado de ciências humanas, vê-se que em certo período consolidou-se um tipo de pensamento em cuja configuração a etapa de construção de novas representações foi incorporada. Antes disso, essa etapa de construção da representação nova ficava fora do escopo do pensamento, e depois disso essa etapa permaneceu definitivamente incorporada.

Para a configuração de pensamento que deixa fora do seu escopo a etapa de construção de novas representações a alternativa é conviver com tudo o que existe desde sempre e para sempre, tomando as coisas como pré-existentes e pertencentes ao Universo. Esse modo de pensar tem características de conservadorismo, enquanto aquela outra configuração do pensamento que inclui em seu escopo a geração de novas representações, as características de progressismo.

Neste trabalho algumas – bastantes – características de uma e de outra dessas duas características de configurações do pensamento foram apresentadas o que de certa forma pode ser usado para qualificar com algo mais do que a qualidade ‘conservador’ um pensamento de direita; e com a qualidade ‘progressista’ um pensamento de esquerda, delineando com mais precisão uma e outra dessas configurações.

(*) As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VIII- Trabalho, Vida e Linguagem; tópico I. As novas empiricidades

Panorama visto desde meu posto de observação

É real hoje, aqui, agora, e entre nós, a percepção – feita por Foucault – do domínio/contaminação do pensamento – ‘com o qual queiramos ou não pensamos‘ – pela impossibilidade de fundar as sínteses (do pensamento sobre a empiricidade objeto da operação) no espaço da representação(*).

Esse tipo de pensamento dominante, aquele com a impossibilidade de fundar as sínteses, é ao mesmo tempo o tipo de pensamento que não inclui a operação de construção de novas representações. E a estrutura das operações sem essa etapa reforça essa impossibilidade. Nesse contexto modelos com e modelos sem essa impossibilidade são tratados como se variações sobre o mesmo tema fossem, e não produções do pensamento completamente diferentes.

Estamos projetando e usando hoje, modelos para operações e organizações, de produção e outras, com o pensamento de exatos dois séculos atrás.

Para que isso possa ser percebido pelo projetista de modelos em diversas áreas é necessário o rompimento das condições em que se dá essa contaminação e esse domínio de uma das configurações de pensamento sobre a outra, obliterando justamente aquela que corresponde a uma conquista humana no pensamento. Para que isso aconteça é necessário que seja atendido um requisito: a construção de um critério para identificação e comparação de modelos, e sua aplicação no caso presente.

Daqui de onde vejo as coisas, é unânime a visão das coisas em termos de processo. Ninguém fala de nada além de processos: mapeia-se processos, otimiza-se processos, etc. etc. o que quer que seja, mas sempre processos. Sem que nos demos conta de como sejam as diferentes estruturas das operações em que tais ‘processos’ ocupam posição operacional. 

Michel Foucault pode fornecer os elementos necessários para a construção desse critério. Nossa intenção aqui é destacar em Foucault o que pode ser usado para o estabelecimento de uma relação pensamento – e sua aplicação na modelagem de operações em organizações. 

(*) As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VIII- Trabalho, Vida e Linguagem; tópico I. As novas empiricidades

Cronologia do evento fundador da nossa modernidade no pensamento;
linha de tempo com os períodos de contaminação do pensamento
por configurações diferentes.

uma cronologia da descontinuidade epistemológica de 1775-1825
o evento fundador da nossa modernidade no pensamento
Linha de tempo das conquistas humanas no pensamento e respectiva utilização prática

Acoplamentos estruturais do sistema descrito no LD - o Explicar com Reformular: os internos e aqueles com o ambiente externo

Diante e para Além do objeto

Acoplamento estrutural interno:
condições de possibilidade
Acoplamento estrutural interno:
pontos de acoplamento
Acoplamento estrutural externo:
parcial quando há diferenças nas estruturas
  • os domínios do Operar – retângulo vermelho; e do Suporte ao operar – domínio amarelo, que compõem o ‘Lugar de nascimento do que é empírico’ parte do ‘Explicar com ‘Reformular’ a empiricidade objeto, durante o caminho da Construção da representação, são exemplo do primeiro acoplamento interno. Acoplamento semelhante ocorre durante o caminho do Instanciamento da representação.(*)

     

  • há ainda acoplamentos externos ‘por cima’, lateralmente, e por baixo da estrutura no LD da figura nos dois caminhos o da Construção e o do Instanciamento. O acoplamento externo ‘por cima’ depende da estrutura com a qual se dará acopamento, e pode ser parcial.

Playground para projetistas de modelos: uma coleção de modelos de diversos tipos, para aplicação dos conceitos apresentados

Uma coleção com mais de duas dúzias de modelos, (*) para descobrir com que tipo de pensamento foram feitos:

  • se COM a possibilidade de fundar as sínteses do pensamento no espaço da representação; ou
  • ou se SEM a possibilidade de fundar as sínteses do pensamento no espaço da representação

(*) Proposta de metodologia para o planejamento e implantação de manufatura integrada por computador
de Bremer, C. F. USP SC fev 1995; entre outras fontes

Estruturas dos modelos, resultantes da utilização do referencial,dos princípios organizadores e dos métodos usados pelo pensamento, por segmento de modelos 

Aquém do objeto

Modelo de operações de Buffa e modelo de uma organização adaptado de Mauro Zilbovicius

Diante do objeto

Modelo de operações do Kanban e modelo de organização da Reengenharia

Além do objeto

Modelo de uma ciência humana Análise da produção como exemplo de qualquer outro modelo de ciência humana
Estrutura matricial – Quadro de categorias clássico. Utilização de várias ordens ligeiramente diferentes em um mesmo modelo de operações.
Estrutura hierárquica característica do objeto análogo composto substitutivo ao vislumbrado. Utilização de uma única ordem ao longo do modelo.
Mesmas características dos modelos para o segmento Diante do objeto, mas aqui, com um modelo constituinte combinação dos três pares constituintes das ciências da Vida, do Trabalho e da Linguagem.

O modelo 5W2H, de um lado, e de outro, o modelo de operações do Kanban
e o modelo proposto no LD da Figura 2: usos diferentes para as mesmas ideias
ou elementos de imagem envolvidos na formulação da proposição

Aquém do objeto

Diante e Além do objeto

Modelo Provision Workbench, da Proforma
Modelo de operações de produção do Kanban
Modelo proposto para 'uma certa maneira de conhecer empiricidades'

O exame dessas três figuras mostra que ideias, elementos de imagem, homônimos, podem ser usados de modo diferente em modelos feitos sob estruturas conceituais diferentes.

No modelo 5W e 2H no lado esquerdo acima, o destaque dado pelo losango em vermelho é nosso. Não estava na figura original. A figura é organizada por um sistema de categorias composto pelas 7 perguntas 5W2H. 

O modelo da produção do Kanban é sim-discriminativo com relação ao elemento componente do objeto da operação de produção, e é formulado como uma proposição instanciativa de um objeto previamente projetado, e portanto cuja representação foi anteriormente construída

O modelo de operações de construção de representação para empiricidade objeto (LD da figura) é feito calcado no Princípio Dual de Trabalho de David Ricardo; está evidenciada a formulação no formato de uma proposição. A origem de valor adotada está nas designações primitivas ( conjunto de operações de busca por origem, condições de possibilidade e de generalidade dentro de limites) e da linguagem de uso (o Repositório)

O pensamento de outros grandes pensadores:
John Dewey e seus dois modos de ver o mundo;
Ilya Prigogine e o conceito de caos para a ciência moderna

Diante do objeto

Ver [homem e experiência] e [natureza] vistos juntos
Os conceitos de caos, na ciência moderna;
e de Arte como a formulação com leis e eventos

As duas animações acima – a nosso ver – apenas mostram que tanto John Dewey na sua visão [homem] [experiência] e [natureza] juntos; quanto Ilya Prigogine  na sua visão do que seja caos na ciência moderna, estão pensando com uma configuração de pensamento COM a possibilidade de fundar as sínteses no espaço da representação, o que não era comum para a ciência clássica, toda reversível.

Sistema Formulador

Aquém do objeto

Modelo relacional de dados do Microsoft Project 4.0

Diante do objeto

Módulo central do Sistema Formulador

O Sistema Formulador:

É um ante-projeto de um sistema para gestão de projetos com estrutura conceitual consistente com o pensamento moderno. 
O módulo principal do sistema é uma unidade lógica que relaciona entidades envolvidas na proposição enunciadora de operações, mantidas em banco de dados, e gera sistematicamente o modelo de operações. O Microsoft Project, então, importa o modelo gerado como se fosse próprio, e a gestão continua, agora com um modelo gramaticalmente correto e criteriosamente estruturado.

Este é um ante-projeto de um sistema de gestão COM a possibilidade de fundar as sínteses do pensamento no espaço da representação; esse sistema pode evoluir para um sistema visual de gestão e outros aplicativos.

Destaque para dois modelos existentes:
1) LE, o SIPOC (FEPSC) do SixSigma; 2) LD e o Visão da PHD, da PHD Brasil
e no centro, as diferenças entre eles

Aquém do objeto

O diagrama FEPSC (SIPOC) mostrando a estrutura

diferenças

Comparação

Diante do objeto

A Visão da PHD

Comparação do modelo SIPOC ou FEPSC – SixSigma(*) com o modelo Visão da PHD(**) do ponto de vista das estruturas respectivas.
A animação central mostra o que falta – estruturalmente – ao SixSigma para ter a estrutura do modelo da direita.

(*) Gestão integrada de processos e da tecnologia da informação; capítulo Identificação, análise e melhoria de processos críticos Figura 3.1 Representação da FEPSC, de Roberto Gilioli Rotondaro
Coordenadores: Fernando José Barbin Laurindo e Roberto Gilioli Rotondaro, Editora Atlas, jan/2006
(**) A Visão da PHD, da empresa PHD Brasil

O mapa de operações de produção do Kanban;
e o mapa da organização segundo a Reengenharia

Diante do objeto

Modelo de operações
do Kanban

Modelo de operações do Kanban

Mapa da organização
segundo a Reengenharia

Mapa da Reengenharia (modificado) e comentado

Temos à esquerda, o modelo do Kanban com a referência (*) abaixo. e á direita, a Figura 7.1 do livro Reengenharia, referência (**) abaixo. São organizados sobre a proposição, e pertencem à configuração do pensamento moderno.  Você pode certificar-se  da veracidade dessas duas afirmativas neste ponto (17).

(*) Artigo ‘A comparison of Kanban and MRP concepts for the control of Repetitive Manufacturing Systems’ de:
James W. Rice da Western Kentucky University e Takeo Yoshikawa da Yolohama National University
(**) Reengenharia – revolucionando a empresa: em função dos clientes, da concorrência e das grandes mudanças da gerência 
de Michael Hammer e James Champy

Exemplos de modelos existentes, e muito usados,
nas diferentes estruturas conceituais

Aquém do objeto

Diante do objeto

Modelos de: operação de produção; e organização típica
Modelos de: operação contábil/financeira e modelo de organização
Modelos de: operação de produção do Kanban; e modelo de organização da Reengenharia

Exemplos de modelos muito conhecidos para operações e para as organizações

  • operação: Operações de produção, de Elwood S. Buffa;
  • organização: adaptação de Organização típica.
  • operação: operação contábil financeira débito e crédito;
  • organização: Ativo, Passivo e Resultados.
  • operação: modelo do Kanban;
  • organização: mapa da reengenharia.

A proposição como o bloco construtivo padrão  (Lego)
fundamental para a construção de representações

Aquém do objeto

Proposição ausente
do sistema Input-Output

Diante do objeto

A proposição no caminho
da Construção da representação

Além do objeto

A proposição no caminho
do Instanciamento da Representação

‘A proposição é, para a linguagem,
o que a representação é para o pensamento:
sua forma ao mesmo tempo mais geral e mais elementar porquanto, desde que a decomponhamos, não encontraremos mais o discurso, mas seus elementos como tantos materiais dispersos.’(*)

“A língua é
a mais complexa,
a mais milagrosa,
a mais estranha,
a mais gigantesca e variada
invenção humana.” (**)

(*) As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo IV – Falar; tópico III. Teoria do verbo

 


(**) Frases de Millor Fernandes

Os dois conceitos para o que seja um verbo:
verbo Processo, e verbo Forma de produção

Aquém do objeto
verbo ‘Processo

Verbo tratado como Processo

Diante e Além do objeto
verbo ‘Forma de produção’

Verbo tratado como Forma de produção

“A única coisa que o verbo afirma
é a coexistência de duas representações; 
por exemplo
a do verde e da árvore,
a do homem e da existência ou da morte. 

É por isso que o tempo dos verbos
não indica aquele em que
as coisas aconteceram no absoluto, 
mas um sistema relativo  
de anterioridade
ou simultaneidade 
das coisas entre si.”
(*)

“O limiar da linguagem
está onde surge o verbo.
É preciso portanto 
tratar esse verbo como um ser misto, 
ao mesmo tempo palavra entre palavras,
preso às mesmas regras 
de regência
e de concordância;
e depois, em recuo em relação a elas todas, 
numa região que não é aquela do falado 
mas aquela donde se fala.
Ele está na orla do discurso, na juntura entre 
aquilo que é dito e aquilo que se diz; 
exatamente lá onde os signos 
estão em via de se tornar linguagem.
(*)

(*) As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo IV – Falar; tópico III. Teoria do verbo

Os dois conceitos para o que seja 'Classificar'

Aquém do objeto

Classificar como uma referência
do visível a si mesmo

Diante e Além do objeto

Classificar como uma referência
do visível ao invisível

Classificar é referir
o visível a si mesmo,
encarregando um dos elementos
de representar os outros.(*)

Classificar é referir
o visível ao invisível
– como a sua razão profunda –
e depois, alçar de novo dessa secreta arquitetura, em direção aos seus sinais manifestos, que são dados
à superfície dos corpos.
(*)


(*) As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
cap. VII – Os limites da representação;
tópico III. A organização dos seres; sub-item 3

Os dois princípios filosóficos para o que seja de trabalho

Aquém do objeto
Adam Smith, de 1776(*)

Princípio monolítico de trabalho
de Adam Smith, de 1776

Diante e Além do objeto
David Ricardo, de 1817(**)

Princípio dual de trabalho
de David Ricardo, de 1817


As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas; 
(*) Capítulo VII – Os limites da representação;
tópico II. A medida do trabalho;


As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
(**) Capítulo VIII- Trabalho, Vida e Linguagem;
tópico II. Ricardo

Elementos centrais em cada formulação por segmento do espectro

Aquém do objeto
PROCESSO

Diante do objeto
Forma de produção

Além do objeto
NEXO DA PRODUÇÃO

Processo: elemento central
no modelo de operação clássico
Forma de produção: elemento central
no modelo de operações moderno
Nexo da produção: resultante da visão
SSS da organização

Em um pensamento mágico sobre a produção – nos moldes ‘varinha mágica de condão’ –  é possível desejar algo e, sem mais qualquer providência, vê-lo surgir à nossa frente depois do Plin!!! 

Num ambiente de produção real, porém, nada é produzido sem um instrumento (laboratório piloto, fábrica) com o qual instanciar esse objeto na realidade. A estrutura SSS é isso: a modelagem das operações de produção do objeto desejado juntamente com as operações de produção do objeto – distinto deste – laboratório piloto, ou fábrica, subindo um nível estrutural e impondo como elemento central o Nexo da produção

(*) As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo IV – Falar; tópico II. Gramática geral
Capítulo VIII – Trabalho, Vida e Linguagem; I. As novas empiricidades

Espaços Gerais do Saber
em cada segmento do espectro

Aquém do objeto

Diante do objeto

Além do objeto

Espaço Geral do Saber Clássico
Espaço Geral do Saber no pensamento Moderno
Espaço interior do Triedro do Saber

As mudanças nas configurações do pensamento promoveram reposicionamentos das positividades umas em relação às outras, resultando em três espaços gerais do saber.(*)

(*) As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo III – Representar; tópico VI. Mathésis e Taxinomia;
Capítulo X – As ciências humanas; tópico I – O triedro dos saberes; 
de Michel Foucault

O tempo em cada uma das faixas do espectro;
e para as diferentes etapas das operações indicadas

Aquém
do objeto
qualquer operação

Diante 
do objeto
caminho da Construção 

Diante 
do objeto
caminho da Instanciamento

Tempo no LE, em qualquer operação no sistema Input-Output, sob o deus Chronos
Tempo LD, operação no caminho da Construção da representação,
sob o deus Kairós
Tempo LD, operação no caminho do Instanciamento da representação,
novamente sob o deus Chronos

Tempo, em cada um dos segmentos do espectro, muda:

  • aquém do objeto, na estrutura input-output sob o pensamento clássico, temos um tempo relativo, ou um tempo calendário, cujo deus é Chronos;
  • diante do objeto mas no caminho da Construção da representação, sob o pensamento filosófico moderno, temos um tempo absoluto, um tempo não-calendário, cujo deus é Kairós;
  • e ainda diante, e também além do objeto, tempos um tempo que volta a ser relativo, calendário, e a soberania volta a ser a de Chronos.

O espaço dado ao homem - 'naquilo que ele tem de empírico' -
na estrutura dos modelos

Aquém do objeto

Diante e Além do objeto

Sistema clássico de pensamento:
sem espaço em sua estrutura
para os dois papéis do homem.
Os dois papéis do homem
presentes e operativos na estrutura
d'essa maneira moderna de conhecer empiricidades'

Antes do fim do século XVIII,
o homem não existia. (…)
Sem dúvida,
as ciências naturais trataram do homem
como de uma espécie ou de um gênero.”

As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas;
Cap. IX – O homem e seus duplos; tópico II. O lugar do rei

‘Na medida, porém, em que as coisas giram sobre si mesmas, reclamando para seu devir não mais que o princípio de sua inteligibilidade e abandonando o espaço da representação, o homem, por seu turno, entra e pela primeira vez,
no campo do saber ocidental’ (*)

“O modo de ser do homem, tal como se constituiu no pensamento moderno, permite-lhe desempenhar dois papéis: está, ao mesmo tempo, 

  • no fundamento de todas as positividades,
  • presente, de uma forma
    que não se pode sequer dizer privilegiada,
    no elemento das coisas empíricas.” (**)

 (*) As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas; 
Prefácio

(**) As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;  
Capítulo X – As ciências humanas;
I. O triedro dos saberes

Desenvolvimento das operações
por segmento do espectro de modelos

Aquém do objeto

Diante do objeto

Além do objeto

  • no sistema Input-Output; usando uma ordem arbitrariamente escolhida;
  • e com propriedades não-originais e não-constitutivas das coisas, as chamadas ‘aparências’;
  • No sistema correspondente ao que Foucault chama de ‘essa maneira moderna de conhecer empiricidades’, que tem como elemento construtivo padrão fundamental a proposição, da qual herda as categorias de ideias ou elementos de imagem de primeiro nível;
  • e com propriedades sim-originais e sim-constitutivas daquilo que se constitui na existência em decorrência das operações.
  • No sistema formulado no campo das ciências humanas, com modelos constituintes compostos por uma combinação dos modelos constituintes das ciências que integram a região epistemológica fundamental, as ciências da Vida, do Trabalho e da Linguagem.
  • Nexo da operação.

Veja mais detalhes nas animações que podem ser encontradas nas páginas de detalhe deste tópico.

Funcionamento do pensamento
em cada um dos segmentos desse espectro

Antes do objeto

Diante do objeto

Além do objeto

Operação no sistema Input-Output
sobre representações pré-existentes
Operação de construção de representação não existente no repositório
Operação de instanciamento de representação pré-existente no repositório

Paletas com o conjunto completo de ideias ou elementos de imagem necessários para a formulação das respectivas imagens das ocorrências no espaço-tempo x, y, z e t ; incluindo relacionamentos entre esses elementos de imagem.(*)

(*) As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VIII – Trabalho, Vida e Linguagem;
tópico I. As novas empiricidades, de Michel Foucault

Estruturas de conceitos em cada ambiente de formulação identificado pela possibilidade ou pela impossibilidade de fundar as sínteses no espaço da representação

Posição em relação ao par sujeito-objeto

Estrutura conceitual
para o pensamento clássico
Estrutura conceitual
para o pensamento moderno

Referencial:

  • Ordem pela ordem;

Princípios organizadores: 

  • Caráter e similitude;

Métodos:

  • Identidade e semelhança

Referencial:

  • Utopia;

Princípios organizadores: 

  • Analogia e Sucessão;

Métodos:

  • Análise e Síntese

‘Assim, estes três pares,
função-norma,
conflito-regra,
significação-sistema,

cobrem, por completo,
o domínio inteiro
do conhecimento do homem.'(*)

São essas as ferramentas de que se arma o pensamento – em cada segmento do espectro de modelos, para produzir as imagens que servem de mapas, para orientação na construção das representações.

(*) As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo X – As ciências humanas; tópico III. Os três modelos

Imaginação e Conceituação - funções humanas reversíveis:
Imagens tradicionais e Técnicas

Imagens tradicionais

Imagens técnicas

Classes de abstrações

As imagens tradicionais
Imagens técnicas, as imagens produzidas por aparelhos (computadores)
Classes de abstrações
  • Imaginação e Conceituação, funções humanas reversíveis que todos temos para codificar e decodificar imagens tradicionais e textos;
    • idolatria é o uso continuado de imagens que, quando decodificadas, não mais nos levam à visão da ocorrência no espaço-tempo x, y, z e t, isto é, imagens que não mais nos servem de guias para o mundo, mas de biombos;
    • textolatria é o uso continuado de textos que, quando decodificados, não mais nos levam às imagens que fizemos para as ocorrências no espaço-tempo x, y, z e t
  • e as Imagens técnicas, especiais, aquelas imagens produzidas por aparelhos (computadores em destaque); as Imagens técnicas exigem, para seu entendimento, uma Conceituação especial.(*)

(*) Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia;
Capítulos I – A imagem; e II – A imagem técnica,
de Vilém Flusser 

Modelos constituintes de modelos
em cada uma das faixas desse espectro

Posição relativa modelo de operações - sujeito-objeto

Aquém

não há modelos constituintes nesse segmento do espectro, já que, pelos pressupostos adotados (Universo, realidade única) nada é constituído na existência em decorrência das operações feitas

Diante

modelo constituinte composto pelo par constituinte correspondente ao campo em que o modelo é formulado, tomados isoladamente em cada área: 

  • Vida (Biologia) –
    [função-norma]; 
  • Trabalho (Economia) –
    [conflito-regra]; 
  • Linguagem (Filologia)- [significação-sistema]

para Além

campo das Ciências Humanas com modelos constituintes formados por uma combinação dos três pares constituintes das ciências da Vida, do Trabalho e da Linguagem, tomados todos em conjunto em cada modelo, dada ênfase a uma das áreas das ciências da região epistemológica fundamental

(*) As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo X – As ciências humanas; tópico III. Os três modelos

 

O espectro de modelos, segundo essa possibilidade de sim-fundar, ou não-fundar, as sínteses no espaço da representação: Aquém, Diante e para Além do objeto - os segmentos do espectro de modelos de visões de ocorrências no espaço-tempo x, y, z e t

O modo como Foucault descreve o problema que encontrou em seu trabalho pode ser mapeado em um espectro de modelos agrupados segundo os dois fatores por ele percebidos:  fator 1, com duas regiões quanto à fundação das sínteses na representação e com três regiões quanto à posição relativa ao objeto e ao sujeito: 
Aquém, Diante e para Além do objeto. 

Fundação das sínteses no espaço da representação

Impossibilidade

Possibilidade

Aquém

do objeto
(e do sujeito)

Diante

do objeto
(e do sujeito)

para Além

do objeto
(e do sujeito)

Fator 1 – o domínio/contaminação do pensamento com o uso simultâneo de configurações de pensamento 

  • com a  impossibilidade 
  • e também com a possibilidade,

de fundar as sínteses da representação da empiricidade objeto, no espaço da representação’; com duas regiões em um espectro de modelos:

Fator 2 – dar conta da obrigação correlativa (…) de abrir o campo transcendental da subjetividade constituindo, para além do objeto, os “quase-transcendentais”

com as seguintes regiões no espectro de modelos:

 1. região do espectro: ‘Aquém do objeto’ (na impossibilidade);

 2. região do espectro: ‘Diante do objeto’ (na possibilidade)

    • da Vida, (Biologia) par constituinte função-norma
    • do Trabalho, (Economia) par conflito-regra
    • e da Linguagem. (Filologia) par significação-sistema

 3. região do espectro: ‘para Além do objeto’, (na possibilidade) e no campo das ciências humanas, no espaço interior do triedro dos saberes.

outra região no espectro de modelos, com modelo constituinte único composto dos três pares constituintes das três regiões epistemológicas fundamentais

- A pedra de tropeço no caminho de Michel Foucault e
- Os caminhos (e alterações de rota) de Maturana

Michel Foucault
1926-1984

“É que o pensamento que nos é contemporâneo e com o qual, queiramos ou não, pensamos, se acha ainda muito dominado 

  • pela impossibilidade, trazida à luz por volta do fim do século XVIII, de fundar as sínteses [da empiricidade objeto do pensamento] no espaço da representação;
  • e pela obrigação correlativa, simultânea, mas logo dividida contra si mesma,
    de abrir o 
    campo transcendental da subjetividade e de constituir inversamente, para além do objeto, esses “quase-transcendentais” que são para nós a Vida, o Trabalho, e a Linguagem.”  (*)
Humberto Maturana
1928-

“Substituir 

  • a noção de input-output 
  • pela de acoplamento estrutural 

foi um passo importante na boa direção por evitar a armadilha da linguagem clássica de fazer do organismo um sistema de processamento de informação.
(…) Contudo é uma formulação fraca por não propor uma alternativa construtiva e deixar a interação na bruma de uma simples perturbação. (…) Frequentemente se tem feito a crítica de que a autopoiese leva a uma posição solipsista. (**)

(*) As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas; capítulo VIII – Trabalho, Vida e Linguagem; tópico: I. As novas empiricidades
(**) De máquinas e de seres vivos: autopoiese – a organização do vivo; Prefácio à segunda edição; tópico Além da autopoiese; sub-tópico: Enacção e cognição, de Francisco José Garcia Varela

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Modelo descritivo da produção clássico

Paleta de ideias ou elementos de imagem
presentes na configuração de pensamento clássico

Paleta de ideias ou elementos de imagem presentes na
configuração de pensamento moderno caminho Construção