Psicanálise, etnologia
Como ciências humanas,
a psicanálise e a etnologia
não poderiam ter existido
antes do final do século XVIII em nossa cultura
e portanto não estariam
no pensamento de autores desse período clássico, anterior à descontinuidade epistemológica de 1775-1825.
“A psicanálise e a etnologia ocupam, no nosso saber, um lugar privilegiado.
Não certamente
- porque teriam, melhor que qualquer outra ciência humana, embasado sua positividade e realizado enfim o velho projeto de serem verdadeiramente científicas;
antes porque,
- nos confins de todos os conhecimentos sobre o homem, elas formam seguramente um tesouro inesgotável de experiências e de conceitos, mas, sobretudo, um perpétuo princípio de inquietude, de questionamento, de crítica e de contestação daquilo que, por outro lado, pôde parecer adquirido.
Ora, há para isto uma razão que tem a ver com o objeto que respectivamente cada uma se atribui, mas tem mais ainda a ver com a posição que ocupam e com a função que exercem no espaço geral da epistémê.
A psicanálise, com efeito, mantém-se o mais próximo possível desta função crítica acerca da qual se viu que era interior a todas as ciências humanas.
Dando-se por tarefa fazer falar através da consciência o discurso do inconsciente,
a psicanálise avança na direção desta região fundamental onde se travam as relações entre a representação e a finitude.
Enquanto todas as ciências humanas
- só se dirigem ao inconsciente virando-lhe as costas, esperando que ele se desvele à medida que se faz, como que por recuos, a análise da consciência,
já a psicanálise
- aponta diretamente para ele, de propósito deliberado –
- não em direção ao que deve explicitar-se pouco a pouco na iluminação progressiva do implícito,
- mas em direção ao que está aí e se furta, que existe com a solidez muda de uma coisa, de um texto fechado sobre si mesmo, ou de uma lacuna branca num texto visível e que assim se defende.
Não há que supor que o empenho freudiano seja o componente de uma interpretação do sentido e de uma dinâmica da resistência ou da barreira;
- seguindo o mesmo caminho que as ciências humanas,
mas com o olhar voltado em sentido contrário,
- a psicanálise se encaminha
em direção ao momento –inacessível, por definição, a todo conhecimento teórico do homem, a toda apreensão contínua em termos
- de significação,
- de conflito
- ou de função
– em que os conteúdos da consciência se articulam com,
ou antes, ficam abertos para a finitude do homem.
Isto quer dizer que,
- ao contrário das ciências humanas que,
- retrocedendo embora em direção ao inconsciente,
- permanecem sempre no espaço do representável,
- retrocedendo embora em direção ao inconsciente,
- a psicanálise
- avança para transpor a representação, extravasá-la do lado da finitude
- e fazer assim surgir, lá onde se esperavam
- as funções portadoras de suas normas,
- os conflitos carregados de regras
- e as significações formando sistema,
- o fato nu de que pode haver
- sistema (portanto, significação),
- regra (portanto, oposição),
- norma (portanto, função).
E, nessa região onde a representação fica em suspenso, à margem dela mesma, aberta, de certo modo ao fechamento da finitude, desenham-se as três figuras pelas quais
- a vida, com suas funções e suas normas, vem fundar-se na repetição muda da Morte,
- os conflitos e as regras, na abertura desnudada do Desejo,
- as significações e os sistemas, numa linguagem que é ao mesmo tempo Lei. “
As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Cap. X – As ciências humanas;
tópico V – Psicanálise, etnologia
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