A história do nascimento do livro ‘As palavras e as coisas’

A história do nascimento do livro 'As palavras e as coisas' de Michel Foucault, baseada no relato feito por ele mesmo no Prefácio, com imagens.

1 - A ideia que deu origem ao livro 'As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas'
2 - A imagem que Michel Foucault tinha na cabeça ao escrever
o livro 'As palavras e as coisas'
3 - dez (10) pontos selecionados no texto do livro e ilustrados, para contextualizar o Prefácio com o restante do livro 'As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas'
4 - Exemplos de modelos antológicos, de modelos muito usados
concebidos sob entendimentos (epistemes) muito diferentes
5 - As duas dificuldades enfrentadas por Michel Foucault
no desenvolvimento deste livro.
Comentários

    Metáforas adequadas para operações em cada segmento do espectro de modelos:
    transformação ou conversão; processo ou forma de produção

    Metáforas adequadas e propriedades emergentes dos modelos de operações
    em cada segmento do espectro de modelos

    Transformação (única) ou Processamento de informações:
    a estrutura Input-Output no pensamento clássico, de antes de 1775
    propriedade aparente - Fluxo; metáfora Transformação -unica

    Visão da operação clássica
    Transformação única de Entradas em Saídas,
    ou Processamento de informações

    Conversão ou um par de transformações de mesmo sinal
    no caminho da Construção da representação, pensamento moderno, depois de 1825
    propriedade aparente Permanência; metáfora: Conversão

    Visão da operação do pensamento moderno
    no caminho da Construção da representação
    A metáfora adequada às operações no caminho
    da Construção de representação
    para a empiricidade objeto

    Conversão ou um par de transformações de sinais trocados
    caminho do Instanciamento da representação, pensamento moderno, depois de 1825
    propriedade aparente: Fluxo; metáfora: Conversão

    Visão da operação do pensamento moderno
    no caminho do Instanciamento da representação
    A metáfora adequada às operações
    no caminho do Instanciamento da representação

    Os dois princípios filosóficos para o que seja ‘Trabalho’
    dando fundamento filosófico simultaneamente a modelos muito usados hoje em dia

    Os dois conceitos filosóficos para o que seja 'Trabalho':
    o de Adam Smith, de 1776, e o de David Ricardo, de 1817

    Veja abaixo as diferenças entre os dois princípios de trabalho, o de Adam Smith e o de David Ricardo, usando as palavras de Michel Foucault

    Aquém do objeto
    Adam Smith, 1776

    Princípio monolítico de trabalho de Adam Smith,
    publicado no Riqueza das Nações, de 1776

    Diante e  Além do objeto
    David Ricardo, 1817

    Princípio dual de trabalho de David Ricardo, publicado no Principle of Political Economy and Taxation, em 1817

    Na análise de Adam Smith, o trabalho devia seu privilégio ao poder que se lhe reconhecia de estabelecer entre os valores das coisas urna medida constante: 

    • permitia fazer equivaler na troca objetos de necessidade cujo aferimento de outro modo teria sido exposto à mudança ou submetido a uma essencial relatividade. 

    No entanto, só podia assumir tal papel à custa de uma condição: 

    era preciso supor 

    • que a quantidade de trabalho indispensável para produzir uma coisa 
    • fosse igual à quantidade de trabalho que essa coisa, em retorno, pudesse comprar no processo da troca. 

    Ora, como justificar essa identidade, em que fundá-Ia a não ser sobre uma certa assimilação, admitida na sombra mais que esclarecida, entre 

    • o trabalho como atividade de produção
    • e o trabalho como mercadoria que se pode comprar e vender? 

    Nesse segundo sentido, ele não pode ser utilizado como medida constante, pois “experimenta tantas variações quanto as mercadorias ou bens com os quais pode ser comparado”. 

    Essa confusão, em Adam Smith, tinha sua origem no primado concedido à representação: 

    • toda mercadoria representava certo trabalho,

    • e todo trabalho
      podia representar certa quantidade de mercadoria. 

    A atividade dos homens e o valor das coisas comunicavam-se no elemento transparente da representação.

    É aí que a análise de Ricardo encontra seu lugar e a razão de sua importância decisiva. 

    Ela não é a primeira a organizar um lugar importante para o trabalho no jogo da economia; mas faz explodir a unidade da noção, e distingue, pela primeira vez, de uma forma radical, 

    1. essa força, esse esforço, esse tempo do operário que se compram e se vendem,
    2. e essa atividade que está na origem do valor das coisas.

    Ter-se-á pois, por um lado,

    • o trabalho que os operários oferecem, que os empresários aceitam ou demandam e que é retribuído pelos salários;

    por outro, ter-se-á

    • o trabalho que extrai os metais, produz os bens, fabrica os objetos, transporta as mercadorias e forma assim valores permutáveis que antes dele não existiam e sem ele não teriam aparecido.

    “A partir de Ricardo,
    o trabalho,
    desnivelado em relação à representação,
    e instalando-se
    em uma região
    onde ela não tem mais domínio,
    organiza-se
    segundo uma causalidade
    que lhe é própria.”

    As palavras e as coisas:
    uma arqueologia das ciências humanas;
    Cap. VII – Trabalho, Vida e Linguagem
    tópico II – Ricardo

    Essa diferença
    quanto a bases fundamentais
    de produções do pensamento:
    na representação ou fora dela
    é exatamente a objeção
    de Lacan à psicanálise de Freud.

    Elementos integrantes dos modelos de operação de um e outro lado,
    vão refletir-se concretamente em diferenças estruturais
    de modelos práticos feitos com pensamento configurado de uma ou de outra forma.

    O elemento central no Princípio Monolítico de Trabalho de Adam Smith, de 1776, é Processo, um verbo, que ‘a única coisa que afirma é a anterioridade ou simultaneidade das coisas entre si’ Por isso, o tempo de ‘Processo’ não indica aquele tempo em que as coisas existiram no absoluto, mas antes indica um tempo relativo.

    O princípio monolítico de trabalho de Adam Smith analisa valor no ato mesmo da troca, no momento em que a permuta é possível. Deixa de fora, portanto, toda a operação de construção de representação para empiricidade objeto nova.

    Esse momento caracteriza-se pela existência simultânea dos objetos envolvidos na troca:

    • o que é dado;
    • e o que é recebido;

    Operação modelada sob esse princípio transcorre toda no interior do 

    • Lugar onde ocorrem as trocas,
      • o popularmente conhecido Mercado

    e no interior do 

    • domínio do Discurso e da Representação

    O elemento central no Princípio Dual de Trabalho de David Ricardo, de 1817, é a Forma de produção. A maneira escolhida para a produção do objeto a ser dado na operação de troca.

    O apontador de início da análise de valor está posicionado no início da produção, em um momento, portanto,em que 

    • a ‘coisa’ ainda não existe; 

    o apontador está posicionado em um ponto anterior à existência do objeto da troca e a operação procura as condições nas quais a permutabilidade pode acontecer.

    Operação modelada sob este princípio de David Ricardo transcorre toda no interior do

    • Lugar de nascimento do que é empírico
    • com seus sub-espaços
      • Lugar desde onde se fala
      • no domínio do Pensamento e da Língua, e
      • Lugar do falado
      • no domínio do Discurso e da Representação

    A construção da representação para essa ‘coisa’ – ou empiricidade objeto da operação de produção correspondente à Forma de produção – é feita desde fora da linguagem, por meio de:

    • designações primitivas;

    são as operações de busca por origem, condições de possibilidade e de generalidade dentro de limites, que resultam na identificação e ou desenvolvimento dos elementos de suporte na experiência à Forma de produção.

    • linguagem de ação ou de uso;

    é o conteúdo do Repositório de proposições explicativas formuladas de acordo com as regras da língua, uma coleção de representações relacionadas a empiricidades objeto anteriormente tratadas, que permanece disponível a qualquer tempo no domínio e ambiente em que a presente operação acontece.

    Veja

    O fenômeno da operação de troca:
    amplitudes da visão do fenômeno da troca em cada caso
    e as duas origens de valor para a proposição na linguagem,
    ou as linguagens de acordo com ascduas alternativas de fontes para de valor

    a descrição feita por Michel Foucault das duas possibilidades de leitura abertas para o pensamento, simultaneamente, para entender operações e valor a partir da linguagem. Um resumo vai abaixo:

    O pensamento de Foucault em resumo diz o seguinte:

    Podemos ver o que sejam operações, segundo duas possibilidades de inserção do ponto de início do fenômeno ‘operações’ e ‘operações de troca’, segundo a disponibilidade ou não dos dois objetos envolvidos em uma troca. A cada possibilidade de inserção do ponto de início do fenômeno corresponde uma diferente origem do valor carregado pela proposição para a representação.

    Ora, uma operação de troca envolve dois objetos e como fenômeno, portanto, guarda relação com as operações de obtenção de cada um desses dois objetos, e está sobreposta a estas.

    Assim, uma operação pode ser vista:

    • No exato momento do cruzamento (do andamento das respectivas operações) entre o que é dado e o que é recebido na troca; ou
    • Antes desse momento, quando pelo menos um dos objetos ainda não está disponível, e nesse momento inicia-se a prospecção da sua permutabilidade. Faz-se, então, uma aposta de que esse objeto poderá, no futuro, fazer par com um outro em uma operação em que um é dado e outro é recebido em uma dupla troca.

    As duas origens de valor carregado pela proposição para a representação são os seguintes:

    • no ponto de cruzamento entre o objeto que é dado e o objeto que é recebido, o valor é atribuído diretamente à proposição que o carrega para a representação;
    • no ponto de início da prospecção da permutabilidade do objeto ainda não disponível para troca, o valor é carregado para a proposição a partir de sua origem em:
      • designações primitivas;
      • linguagem de ação ou raiz (linguagem de uso).

    Veja nos modelos de operações desta página, que ‘designações primitivas e linguagem de ação ou raiz são ideias que admitem os respectivos elementos de imagem, e estão colocados nas figuras, em posições operacionais e integrantes da estrutura do modelo. 

    E veja que essas duas fontes originárias do valor associado à proposição só têm espaço no Princípio Dual de Trabalho de David Ricardo.

    A segunda possibilidade de leitura de ‘operações’ e ‘operações de troca’ não funciona sem as ideias de sujeito e de objeto da operação colocados em posições operacionais na estrutura da operação.

    1 Primeira possibilidade simultânea de leitura de operações e análise de valor

    No lado esquerdo o valor que chega à representação através da proposição é carregado nela diretamente, até porque não há intenção de formular operações levando em conta como elemento organizador o objeto tomado como descrito por suas propriedades originais e constitutivas, isto é, de modo relacionado com o objeto. 

    Na visão de ‘operações’ no pensamento clássico não há a ideia de objeto como constituído por suas propriedades sim-originais e sim-constitutivas, pelos pressupostos considerados.

    Refiro-me ao Princípio Monolítico de trabalho de Adam Smith. Na avaliação de Foucault, nesta alternativa de leitura do que seja trabalho a partir da linguagem toda a essência da linguagem está na proposição.

    Toda a essência da linguagem está no interior da proposição.

    A proposição já nasce emprenhada do valor que carrega.

    2 Segunda possibilidade simultânea de leitura de operações e análise de valor

    No princípio de trabalho de David Ricardo é visível a modelagem de uma proposição, usando ideias – ou elementos de imagem – todos eles em posições operacionais na estrutura do modelo.

    • o sujeito, o empresário;
    • e seu predicado
      • o atributo, representado na figura pela representação do objeto da operação; 
      • o verbo: representado na figura pela Forma de produção

    Essa mesma essência da linguagem encontra raízes fora dela mesma, do lado das

    • designações primitivas;
    • linguagem de ação ou raiz

    No lado direito, sim, existem, ideias – ou elementos de imagem, que modelam padronizada e genericamente o elemento construtivo padrão fundamental para construção de representações – a proposição – e o escopo da operação é justamente articular o impensado, pelo pensamento, no espaço da representação. Refiro-me agora ao Princípio Dual de trabalho de David Ricardo. 

    A proposição assim que formulada está vazia, inclusive do valor que pode carregar; consiste tão somente em uma arquitetura que é comum a toda e qualquer proposição no curso desse tipo de operação.

    Essa modelagem padronizada, genérica, organizadora de uma ordem única ao longo de toda a operação, descobre a essência da linguagem fora dela, nas operações de busca por origem, condições de possibilidade e de generalidade dentro de limites, às quais Foucault denomina “designações primitivas – linguagem de ação ou raiz”.

    Relacionamento entre

    • o Princípio Dual de Trabalho de David Ricardo e o modelo de operações proposto no LD da Figura 2, a nossa Plataforma para exposição;
    • as fontes externas á linguagem e ‘essa maneira moderna de conhecer empiricidades’ no LD da Figura 2, com:
      • designações primitivas e
      • linguagem de ação ou de uso, 
    Relação entre
    o texto do Princípio Dual de Trabalho de David Ricardo,
    de 1817, e as ideias - ou elementos de imagem -
    do modelo de operações no LD da figura
    Os elementos de imagem, as ideias,
    que permitem formular o modelo de operações
    desde fora da linguagem
    a partir das designações primitivas
    - e da linguagem de ação ou de raiz(*)

    Comparações entre os dois princípios de trabalho,
    e a importância do princípio de trabalho de David Ricardo segundo Michel Foucault

    Comparação, feita por Michel Foucault,
    entre os princípios de trabalho
    o de Adam Smith, de 1776 e o de David Ricardo, 1817

    comparações entre Adam Smith
    e David Ricardo,
    por Michel Foucault

    1 Primeira possibilidade simultânea de leitura de operações e análise de valor

    Inserção do ponto de leitura de operações e análise de valor no exato cruzamento entre o que é dado e o que é recebido na operação de troca.

    A importância de David Ricardo,
    segundo Michel Foucault

    2 Segunda possibilidade simultânea de leitura de operações e análise de valor

    Na animação acima vê-se nas palavras de Michel Foucault a inclusão daquela atividade que está na origem do valor das coisas como característica do Princípio Dual de trabalho de David Ricardo.

    Isso implica em que a inserção do ponto de leitura de operações e análise de valor está colocado antes da existência do que é dado e do que é recebido, e portanto antes do cruzamento entre os dois, na operação de troca.

    Isso coloca toda a operação no princípio de Ricardo fora do circuito das trocas e no espaço reservado ao ‘Lugar de nascimento do que é empírico’.

    Comentários

      Os dois obstáculos, as duas pedras de tropeço encontrados por Michel Foucault em seu trabalho
      no ‘As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas’

      Os dois obstáculos, as duas pedras de tropeço, encontrados por Michel Foucault em seu trabalho

      os dois obstáculos encontrados por Michel Foucault em seu trabalho
      no livro 'As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas'
      Michel Foucault 1926-1984
      Michel Foucault
      1926-1984

      “É que o pensamento
      que nos é contemporâneo

      e com o qual, queiramos ou não, pensamos,
      se acha ainda muito dominado

      1

      pela impossibilidade,

      trazida à luz
      por volta do fim do século XVIII,

      de fundar as sínteses

      [da empiricidade
      objeto da operação] 

      no espaço da representação

      2

      e pela obrigação

      correlativa, simultânea,
      mas logo dividida
      contra si mesma,

      de abrir o campo transcendental
      da subjetividade e
       

      de constituir
      inversamente,
      para além do objeto,

      esses “quase-transcendentais”
      que são para nós
      a Vida, o Trabalho, a Linguagem.”

      As palavras e as coisas:
      uma arqueologia das ciências humanas;

      Capítulo VIII – Trabalho, vida e linguagem;
      tópico I – As novas empiricidades

      O problema está na coexistência de configurações de pensamento:

      • com a possibilidade de fundar as sínteses [da empiricidade objeto da operação] no espaço da representação;
      • e simultaneamente, e no mesmo espaço,
        sem essa possibilidade, isto é, com a impossibilidade de fundar as sínteses [da empiricidade objeto da operação] no espaço da representação. 

      O pensamento que chamamos ‘nosso’, aquele que tem ‘a nossa idade e geografia’ e com o qual ‘queiramos ou não, pensamos’, sim, tem a possibilidade de fundar as sínteses da empiricidade objeto da operação, no espaço da representação. 

      Esse é o pensamento cuja configuração corresponde ao depois da descontinuidade epistemológica de 1775-1825. Trata-se da configuração de pensamento que se consolidou no início do século XIX.

      Em contrapartida, a configuração de pensamento comum até o final do século XVIII, chamado de pensamento clássico, não tem essa possibilidade, ou apresenta a impossibilidade de fundar as sínteses no espaço da representação.

      Temos modelos que atestam essa contaminação

      Esse “para além do objeto” autoriza a suposição de que a possibilidade de fundar as sínteses [da empiricidade objeto] no espaço da representação foi conseguida pelo pensamento; 

      • o que implica no posicionamento do apontador de início da visão que temos do que sejam operações antes da possibilidade da troca e portanto antes da disponibilidade dos objetos envolvidos nela.
      • implica ainda em que a fonte de valor na linguagem seja proveniente de fontes externas a ela, e tenham origem
        • nas designações primitivas;
        • na linguagem de uso.

      Isso se confirma quando vemos o modelo constituinte composto proposto por Foucault para ser o modelo constituinte comum a todas as ciências humanas.

      Ele é um modelo combinação dos pares constituintes das ciências da região epistemológica fundamental:

      Vida (Biologia) par [função-norma];

      Trabalho (Economia) par [conflito-regra];

      Linguagem (Filologia) par [significação-sistema]. 

      Prefácio

      Prefácio

      1 - A ideia que deu origem ao livro 'As palavras e as coisas:
      uma arqueologia das ciências humanas

      A figura ao lado dá acesso a uma animação cujo propósito é relacionar

      • a ideia que, segundo Foucault, teria dado origem ao ‘As palavras e as coisas’;
      • a imagens, figuras que relacionam diferentes conjuntos de ideias, ou elementos de imagem, especialmente reunidos em paletas para modelar operações em diferentes modos de ver as coisas que surgem à medida em que o texto se desenvolve.
      2 - A imagem que Michel Foucault tinha na cabeça
      ao escrever o livro 'As palavras e as coisas'
      3 - dez (10) pontos selecionados no texto do livro e ilustrados, para contextualizar o Prefácio com o restante do livro 'As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas'

      (o texto do Prefácio, formatado)

      Este livro nasceu de um texto de Borges. Do riso que, com sua leitura, perturba todas as familiaridades do pensamento

      – do nosso: daquele que tem nossa idade e nossa geografia,

      abalando todas as superfícies ordenadas, e todos os planos que tornam sensata para nós a profusão dos seres, fazendo vacilar e inquietando. por muito tempo, nossa prática milenar do Mesmo e do Outro.

      Esse texto cita “uma certa enciclopédia chinesa“ onde será escrito que “os animais se dividem em:

      • a) pertencentes ao imperador; 
      • b) embalsamados, 
      • c) domesticados, 
      • d) leitões, 
      • e) sereias, 
      • f) fabulosos, 
      • g) cães em liberdade, 
      • h) incluídos na presente classificação, 
      • i) que se agitam como loucos, 
      • j) inumeráveis, 
      • k) desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo, 
      • l) et cetera, 
      • m) que acabam de quebrar a bilha, 
      • n) que de longe parecem moscas”.

      No deslumbramento dessa taxinomia, o que de súbito atingimos, o que, graças ao apólogo, nos é indicado como o encanto exótico de um outro pensamento,
      é o limite do nosso: 

      • a impossibilidade patente de pensar isso. 

      Que coisa, pois, é impossível pensar; e de que impossibilidade se trata? 

      A cada uma destas singulares rubricas podemos dar um sentido preciso e um conteúdo determinável; 

      • algumas envolvem realmente seres fantásticos – animais fabulosos ou sereias; 
      • mas, justamente em lhes conferindo um lugar à parte, a enciclopédia chinesa localiza seus poderes de contágio; 
      • distingue com cuidado os animais bem reais (que se agitam como loucos ou que acabam de quebrar a bilha) 
      • e aqueles que só têm lugar no imaginário. 

      As perigosas misturas são conjuradas, 

      • insígnias e fábulas reencontram seu alto posto; 
      • nenhum anfíbio inconcebível, 
      • nenhuma asa arranhada, 
      • nenhuma pele escamosa, 
      • nada dessas faces polimorfas e demoníacas, 
      • nenhum hálito em chamas. 

      Ali, a monstruosidade não altera nenhum corpo real, em nada modifica o bestiário da imaginação; 

      • não se esconde na profundeza de algum poder estranho. 
      • Sequer estaria presente em alguma parte dessa classificação, 
      • se não se esgueirasse em todo o espaço vazio, 
      • em todo o branco intersticial que separa os seres uns dos outros. 

      Não são os animais “fabulosos” que são impossíveis,
      pois que são designados como tais, 

      mas a estreita distância segundo a qual são justapostos aos cães em liberdade ou àqueles que de longe parecem moscas. 

      O que transgride toda imaginação,
      todo pensamento possível,
      é simplesmente a série alfabética (a, b, c, d)
      que liga a todas as outras
      cada uma dessas categorias.
      Tampouco se trata da extravagância
      de encontros insólitos. 

      Sabe-se o que há de desconcertante na proximidade dos extremos ou, muito simplesmente, na vizinhança súbita das coisas sem relação; 

      a enumeração que as faz entrechocar-se possui, por si só, um poder de encantamento:

       “Já não estou em jejum, diz Eustenes. Por todo o dia de hoje estarão a salvo da minha saliva: Aspides, Anfisbenas, Anerudutos, Abedessimões, Alartas, Amóbatas, Apinaos, Alatrobãs, Aractes, Astérios, Alcarates, Arges, Aranhas, Ascálabos, Atélabos, Ascalabotas, Aemorróides…”. 

      Mas todos esses vermes e serpentes, todos esses seres de podridão e de viscosidade fervilham, como as sílabas que os nomeiam, na saliva de Eustenes: 

      é aí que todos têm seu lugar-comum, como, sobre a mesa de trabalho, o guarda-chuva e a máquina de costura; 

      se a estranheza de seu encontro é manifesta,
      ela o é na base 

        • deste e
        • deste em
        • deste sobre

      cuja solidez e evidência garantem a possibilidade de uma justaposição. 

      Era decerto improvável que as hemorroidas, as aranhas e as amóbatas viessem um dia se misturar sob os dentes de Eustenes: mas, afinal de contas, nessa boca acolhedora e voraz, tinham realmente como se alojar e encontrar o palácio  de sua coexistência.

       A monstruosidade que Borges faz circular na sua enumeração consiste, ao contrário,
      em que o próprio espaço comum dos encontros
      se acha arruinado. 

      O impossível não é a vizinhança das coisas,
      é o lugar mesmo onde elas poderiam avizinhar-se. 

      Os animais “i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo ” – onde poderiam eles jamais se encontrar; a não ser na voz imaterial que pronuncia sua enumeração, a não ser na página que a transcreve? 

      Onde poderiam eles se justapor; senão no não-lugar da linguagem? 

      Mas esta, ao desdobrá-los, não abre mais que um espaço impensável. 

      A categoria central dos animais “[h] incluídos na presente classificação” indica bem, pela explícita referência a paradoxos conhecidos, que jamais se chegará a definir; entre cada um desses conjuntos e aquele que os reúne a todos, uma relação estável de conteúdo e continente: 

      se todos os animais classificados se alojam, sem exceção, numa das casas da distribuição, todas as outras não estarão dentro desta? 

      E esta, por sua vez, em que espaço reside? 

      O absurdo arruína o e da enumeração, afetando de impossibilidade o em onde se repartiram as coisas enumeradas.

      • Borges não acrescenta nenhuma figura ao atlas do impossível; 
      • não faz brilhar em parte alguma o clarão do encontro poético; 
      • esquiva apenas a mais discreta, mas a mais insistente das necessidades; 
      • subtrai o chão, o solo mudo onde os seres podem justapor-se. 

      Desaparecimento mascarado, ou, antes, irrisoriamente indicado pela série abecedária de nosso alfabeto, que se supõe servir de fio condutor (o único visível) às enumerações de uma enciclopédia chinesa…

      Numa palavra, o que se retira é a célebre “tábua de trabalho”; e, restituindo a Roussel uma escassa parte do que lhe é sempre devido, emprego esta palavra “tábua” em dois sentidos superpostos: 

      • mesa niquelada, encerada, envolta em brancura, faiscante sob o sol de vidro que devora as sombras – lá onde, por um instante, para sempre talvez, o guarda-chuva encontra a máquina de costura; 
      • e quadro que permite ao pensamento operar com os seres uma ordenação, uma repartição em classes, um agrupamento nominal pelo que são designadas suas similitudes e suas diferenças – lá onde, desde o fundo dos tempos, a linguagem se entrecruza com o espaço. 

      Esse texto de Borges fez-me rir durante muito tempo, não sem um mal-estar evidente e difícil de vencer:

      • Talvez porque no seu rastro nascia a suspeita de que há desordem pior que aquela do incongruente e da aproximação do que não convém; 
      • seria a desordem que faz cintilar os fragmentos de um grande número de ordens possíveis na dimensão, sem lei nem geometria, do heteróclito

        e importa entender esta palavra [heteróclito] no sentido mais próximo de sua etimologia: as coisas aí são “deitadas “, “colocadas “, “dispostas” em lugares a tal ponto diferentes, que é impossível encontrar-lhes um espaço de acolhimento, definir por baixo de umas e outras um lugar comum. 

      As utopias consolam: é que, 

      • se elas não têm lugar real, 
      • desabrocham, contudo, num espaço maravilhoso e liso; 
      • abrem cidades com vastas avenidas, 
      • jardins bem plantados, 
      • regiões fáceis, 

      ainda que o acesso a elas seja quimérico. 

      As heterotopias inquietam, sem dúvida porque 

      • solapam secretamente a linguagem, 
      • porque impedem de nomear isto e aquilo, 
      • porque fracionam os nomes comuns ou os emaranham, 
      • porque arruínam de antemão a “sintaxe!’, 
        • e não somente aquela que constrói as frases 
        • – aquela, menos manifesta, que autoriza “manter juntos” (ao lado e em frente umas das outras) as palavras e as coisas. 

      Eis por que as utopias

      • permitem as fábulas e os discursos:
        • situam-se na linha reta da linguagem,
        • na dimensão fundamental da fábula; 

      as heterotopias (encontradas tão frequentemente em Borges) 

      • dessecam o propósito, 
      • estancam as palavras nelas próprias, 
      • contestam, desde a raiz, toda possibilidade de gramática; 
      • desfazem os mitos 
      • e imprimem esterilidade ao lirismo das frases. 

      Parece que certos afásicos não chegam a classificar de maneira coerente as meadas de lãs multicores que se lhes apresentam sobre a superfície de uma mesa;

      como se esse retângulo unificado não pudesse servir de espaço homogêneo e neutro onde as coisas viessem ao mesmo tempo 

          • manifestar a ordem contínua de suas identidades ou de suas diferenças 
          • e o campo semântico de sua denominação.

      Eles formam, nesse espaço unido, onde as coisas normalmente se distribuem e se nomeiam, uma multiplicidade de pequenos domínios granulosos e fragmentários onde semelhanças sem nome aglutinam as coisas em ilhotas descontínuas; 

      • num canto, colocam as meadas mais claras, 
      • noutro, as vermelhas, 
      • aqui, aquelas que têm uma consistência mais lanosa, 
      • ali, aquelas mais longas, ou as que tendem ao violeta, 
      • ou as que foram enroladas em novelo. 

      Mas, mal são esboçados, todos esses agrupamentos se desfazem, pois a orla de identidade que os sustenta, por mais estreita que seja, é ainda demasiado extensa para não ser instável; e, infinitamente, o doente 

      • reúne e separa, 
      • amontoa similitudes diversas, 
      • destrói as mais evidentes, 
      • dispersa as identidades, 
      • superpõe critérios diferentes, 
      • agita-se, 
      • recomeça, 
      • inquieta-se 
      • e chega finalmente à beira da angústia. 

      O embaraço que faz rir quando se lê Borges é por certo aparentado ao profundo mal-estar daqueles cuja linguagem está arruinada: 

      ter perdido o “comum” do lugar e do nome.
      Atopia, afasia.

      No entanto, o texto de Borges aponta para outra direção; a essa distorção da classificação que nos impede de pensá-Ia, a esse quadro sem espaço coerente Borges dá como pátria mítica uma região precisa, cujo simples nome constitui para o Ocidente uma grande reserva de utopias. 

      A China, em nosso sonho,
      não é justamente o lugar privilegiado do espaço? 

      Para nosso sistema imaginário, a cultura chinesa é a mais meticulosa, a mais hierarquizada, a mais surda aos acontecimentos do tempo, a mais vinculada ao puro desenrolar da extensão; pensamos nela como numa civilização de diques e de barragens sob a face eterna do céu; vemo-la estendida e imobilizada sobre toda a superfície de um continente cercado de muralhas. 

      Sua própria escrita não reproduz em linhas horizontais o voo fugidio da voz; ela ergue em colunas a imagem imóvel e ainda reconhecível das próprias coisas. 

      Assim é que a enciclopédia chinesa citada por Borges e a taxinomia que ela propõe 

      • conduzem a um pensamento sem espaço, a palavras e categorias mas que, em essência, repousam sobre um espaço solene, todo sobrecarregado de figuras complexas, de caminhos emaranhados, de locais estranhos, de secretas passagens e imprevistas comunicações; 
      • haveria assim, na outra extremidade da terra que habitamos, uma cultura votada inteiramente à ordenação da extensão, 
        • mas que não distribuiria a proliferação dos seres em nenhum dos espaços onde nos é possível nomear; falar; pensar: 

      Quando instauramos uma classificação refletida, quando dizemos que o gato e o cão se parecem menos que dois galgos, mesmo se ambos estão adestrados ou embalsamados, mesmo se os dois correm como loucos e mesmo se acabam de quebrar a bilha, qual é, pois, o solo a partir do qual podemos estabelecê-lo com inteira certeza? 

      Em que “tábua”, segundo qual espaço de identidades, de similitudes, de analogias, adquirimos o hábito de distribuir tantas coisas diferentes e parecidas sem tempo nem lugar ?  

      Que coerência é essa – que se vê logo não ser nem determinada por um encadeamento a priori e necessário, nem imposta por conteúdos imediatamente sensíveis? 

      Pois não se trata de ligar consequências, mas sim 

      • de aproximar e isolar; 
      • de analisar; 
      • ajustar e encaixar conteúdos concretos; 

      nada mais tateante, nada mais empírico (ao menos na aparência) que a instauração de uma ordem entre as coisas; 

      • nada que exija um olhar mais atento, uma linguagem mais fiel e mais bem modulada; 
      • nada que requeira com maior insistência que se deixe conduzir pela proliferação das qualidades e das formas. 

      E, contudo, um olhar desavisado bem poderia aproximar algumas figuras semelhantes e distinguir outras em razão de tal ou qual diferença: 

      de fato não há, mesmo para a mais ingênua experiência, nenhuma similitude, nenhuma distinção que não resulte de uma operação precisa e da aplicação de um critério prévio. 

      Um “sistema dos elementos ” – uma definição dos segmentos sobre os quais poderão aparecer as semelhanças e as diferenças, os tipos de variação de que esses segmentos poderão ser afetados, o limiar; enfim, acima do qual haverá diferença e abaixo do qual haverá similitude – é indispensável para o estabelecimento da mais simples ordem. 

      A ordem é ao mesmo tempo 

      • aquilo que se oferece nas coisas como sua lei interior; 
        • a rede secreta segundo a qual elas se olham de algum modo umas às outras 
      • e aquilo que só existe através do crivo de um olhar; 
        • de uma atenção, de uma linguagem; 

      e é somente nas casas brancas desse quadriculado que ela se manifesta em profundidade como já presente, esperando em silêncio o momento de ser enunciada. 

      Os códigos fundamentais de uma cultura  

      • – aqueles que regem sua linguagem, 
      • seus esquemas perceptivos, 
      • suas trocas, 
      • suas técnicas, 
      • seus valores, 
      • a hierarquia de suas práticas –

      fixam, logo de entrada, para cada homem, as ordens empíricas com as quais terá de lidar e nas quais se há de encontrar. 

      Na outra extremidade do pensamento, teorias científicas ou interpretações de filósofos explicam 

      • por que há em geral uma ordem, 
      • a que lei geral obedece, 
      • que princípio pode justificá-Ia, 
      • por que razão é esta a ordem estabelecida e não outra. 

      Mas, entre essas duas regiões tão distantes, reina um domínio que, apesar de ter sobretudo um papel intermediário, não é menos fundamental: é mais confuso, mais obscuro e, sem dúvida, menos fácil de analisar: 

      É aí que uma cultura, 

      • afastando-se insensivelmente das ordens empíricas que lhe são prescritas por seus códigos primários, 
      • instaurando uma primeira distância em relação a elas, 
      • fá-Ias perder sua transparência inicial, 
      • cessa de se deixar passivamente atravessar por elas, 
      • desprende-se de seus poderes imediatos e invisíveis, 
      • libera-se o bastante para constatar que essas ordens não são talvez as únicas possíveis nem as melhores: 

      de tal sorte que se encontre diante do fato bruto de que há, sob suas ordens espontâneas, coisas que são em si mesmas ordenáveis, que pertencem a uma certa ordem muda, em suma, que há ordem. 

      Como se, libertando-se por uma parte de seus grilhões linguísticos, perceptivos, práticos, a cultura aplicasse sobre estes um segundo grilhão que os neutralizasse, que, duplicando-os, os fizesse aparecer ao mesmo tempo que os excluísse e, no mesmo movimento, se achasse diante do ser bruto da ordem. 

      É em nome dessa ordem que os códigos da linguagem, da percepção, da prática são criticados e parcialmente invalidados. 

      É com base nessa ordem, assumida como solo positivo, que se construirão as teorias gerais da ordenação das coisas e as interpretações que esta requer: 

      Assim, entre o olhar já codificado e o conhecimento reflexivo, há uma região mediana que libera a ordem no seu ser mesmo: 

      • é aí que ela aparece, segundo as culturas e segundo as épocas, 
      • contínua e graduada ou fracionada e descontínua, 
      • ligada ao espaço ou constituída a cada instante pelo impulso do tempo, 
      • semelhante a um quadro de variáveis ou definida por sistemas separados de coerências, 
      • composta de semelhanças que se aproximam sucessivamente ou se espelham mutuamente, organizada em torno de diferenças crescentes etc. 

      De tal sorte que essa região “mediana “, na medida em que manifesta os modos de ser da ordem, pode apresentar-se como a mais fundamental: 

      • anterior às palavras, às percepções e aos gestos, incumbidos então de traduzi-Ia com maior ou menor exatidão ou sucesso (razão pela qual essa experiência da ordem, sem seu ser maciço e primeiro, desempenha sempre um papel crítico); 
      • mais sólida, mais arcaica, menos duvidosa, sempre mais “verdadeira” que as teorias que lhes tentam dar uma forma explícita, uma explicação exaustiva, ou um fundamento filosófico. 

      Assim, em toda cultura,
      entre  

      o uso do que se poderia chamar
      os códigos ordenadores

      e as reflexões sobre a ordem, 

      há a experiência nua da ordem e de seus modos de ser: 

      No presente estudo, é essa experiência que se pretende analisar:

      Trata-se de mostrar o que ela veio a se tornar; desde o século XVI, no meio de uma cultura como a nossa: de que maneira, refazendo, como que contra a corrente, 

      • o percurso da linguagem tal como foi falada, 
      • dos seres naturais, tais como foram percebidos e reunidos, 
      • das trocas, tais como foram praticadas,

      nossa cultura manifestou que havia ordem

      e que às modalidades dessa ordem deviam 

      • as permutas suas leis, 
      • os seres vivos sua regularidade, 
      • as palavras seu encadeamento e seu valor representativo; 

      que modalidades de ordem foram reconhecidas, colocadas, vinculadas ao espaço e ao tempo, para formar o suporte positivo de conhecimento tais que vão dar 

      • na gramática e na filologia, 
      • na história natural e na biologia, 
      • no estudo das riquezas e na economia política. 

      Tal análise, como se vê, não compete à história das idéias ou das ciências: é antes um estudo que se esforça por encontrar 

      • a partir de que foram possíveis conhecimentos e teorias; 
      • segundo qual espaço de ordem se constituiu o saber; 
      • na base de qual a priori histórico e no elemento de qual positividade puderam aparecer idéias, constituir-se ciências, refletir-se experiências em filosofias, formar-se racionalidades, 
      • para talvez se desarticularem e logo desvanecerem. 

      Não se tratará, portanto, de conhecimentos descritos no seu progresso em direção a uma objetividade na qual nossa ciência de hoje pudesse enfim se reconhecer; 

      • o que se quer trazer à luz é o campo epistemológico, a epistémê onde os conhecimentos, encarados fora de qualquer critério referente a seu valor racional ou a suas formas objetivas, enraízam sua positividade e manifestam assim uma história que não é a de sua perfeição crescente, mas, antes, a de suas condições de possibilidade; 
      • neste relato, o que deve aparecer são, no espaço do saber; as configurações que deram lugar às formas diversas do conhecimento empírico. 

      Mais que de uma história no sentido tradicional da palavra,
      trata-se de uma “arqueologia “(1). 

      Ora, esta investigação arqueológica mostrou duas grandes descontinuidades na epistémê da cultura ocidental: 

      aquela que inaugura a idade clássica
      (por volta dos meados do século XVII) 

      e aquela que, no início do século XIX,
      marca o limiar de nossa modernidade. 

      A ordem, sobre cujo fundamento pensamos, não tem o mesmo modo de ser que a dos clássicos. 

      • Por muito forte que seja a impressão que temos de um movimento quase ininterrupto da ratio européia desde o Renascimento até nossos dias, 
      • por mais que pensemos que a classificação de Lineu, mais ou menos adaptada, pode de modo geral continuar a ter uma espécie de validade, 
      • que a teoria do valor de Condillac se encontra em parte no marginalismo do século XIX,
      • que Keynes realmente sentiu a afinidade de suas próprias análises com as de Cantillon, 
      • que o propósito da Gramática geral
        (tal como o encontramos nos autores de Port-Royal ou em Bauzée) não está tão afastado de nossa atual linguística 

      – toda esta quase-continuidade ao nível das idéias e dos temas não passa, certamente, de um efeito de superfície; 

      • no nível arqueológico, vê-se que o sistema das positividades mudou de maneira maciça na curva dos séculos XVIII e XIX 

      Não que a razão tenha feito progressos; 

      • mas o modo de ser das coisas e da ordem que, distribuindo-as, oferece-as ao saber; é que foi profundamente alterado. 

      Se a história natural de Tournefort, de Lineu e de Buffon tem relação com alguma coisa que não ela mesma, não é com a biologia, a anatomia comparada de Cuvier ou o evolucionismo de Darwin, mas com a gramática geral de Bauzée, com a análise da moeda e da riqueza tal como a encontramos em Law, em Véron de Fortbonnais ou em Turgot. 

      Os conhecimentos chegam talvez a se engendrar; as ideias a se transformar e a agir umas sobre as outras (mas como? até o presente os historiadores não no-lo disseram); 

      uma coisa, em todo o caso, é certa: 

      • a arqueologia, dirigindo-se ao espaço geral do saber; 
      • a suas configurações e ao modo de ser das coisas que aí aparecem, 

      define sistemas de simultaneidade, assim como a série de mutações necessárias e suficientes para circunscrever o limiar de uma positividade nova. 

      Assim, a análise pôde mostrar a coerência que existiu,
      durante toda a idade clássica, entre 

      • a teoria da representação 
      • e as da linguagem, das ordens naturais, da riqueza e do valor: 

      É esta configuração que, a partir do século XIX, muda inteiramente; 

      • a teoria da representação desaparece como fundamento geral de todas as ordens possíveis; 
      • a linguagem, por sua vez, como quadro espontâneo e quadriculado primeiro das coisas, como suplemento indispensável entre a representação e os seres, desvanece-se; 
      • uma historicidade profunda penetra no coração das coisas, isola-às e as define na sua coerência própria. Impõe-lhes formas de ordem que são implicadas pela continuidade do tempo; 
      • a análise das trocas e da moeda cede lugar ao estudo da produção, 
      • a do organismo toma dianteira sobre a pesquisa dos caracteres taxinômicos; 
      • e, sobretudo, a linguagem perde seu lugar privilegiado e torna-se, por sua vez, uma figura da história coerente com a espessura de seu passado. 

      Na medida, porém,
      em que as coisas giram sobre si mesmas,
      reclamando para seu devir
      não mais que o princípio de sua inteligibilidade
      e abandonando o espaço da representação,
      o homem, por seu turno,
      entra, e pela primeira vez,
      no campo do saber ocidental. 

      Estranhamente, o homem – cujo conhecimento passa, a olhos ingênuos, como a mais velha busca desde Sócrates – não é, sem dúvida, nada mais que uma certa brecha na ordem das coisas, uma configuração, em todo o caso, desenhada pela disposição nova que ele assumiu recentemente no saber: 

      Daí nasceram todas as quimeras dos novos humanismos, todas as facilidades de uma “antropologia “, entendida como reflexão geral, meio positiva, meio filosófica, sobre o homem. 

      Contudo, é um reconforto e um profundo apaziguamento pensar que o homem não passa de uma invenção recente, uma figura que não tem dois séculos, uma simples dobra de nosso saber; e que desaparecerá desde que este houver encontrado uma forma nova. 

      Vê-se que esta investigação responde um pouco, como em eco, ao projeto de escrever uma história da loucura na idade clássica; 

      • ela tem, em relação ao tempo, as mesmas articulações, tomando como seu ponto de partida o fim do Renascimento 
      • e encontrando, também ela, na virada do século XIX; o limiar de uma modernidade de que ainda não saímos. 

      Enquanto, na história da loucura, se interrogava a maneira como uma cultura pode colocar sob uma forma maciça e geral a diferença que a limita, 

      trata-se aqui de observar a maneira como ela experimenta a proximidade das coisas, Como ela estabelece o quadro de seus parentescos e a ordem segundo a qual é preciso percorrê-los. 

      Trata-se, em suma, de uma história da semelhança: 

      sob que condições o pensamento clássico pôde refletir; entre as coisas, relações de similaridade ou de equivalência que fundam e justificam as palavras, as classificações, as trocas? 

      A partir de qual a priori histórico foi possível definir o grande tabuleiro das identidades distintas que se estabelece sobre o fundo confuso, indefinido, sem fisionomia e como que indiferente, das diferenças? 

      A história da loucura seria a história do Outro 

      – daquilo que, para uma cultura é ao mesmo tempo interior e estranho, a ser portanto excluído (para conjurar-lhe o perigo interior), encerrando-o porém (para reduzir-lhe a alteridade); 

      a história da ordem das coisas seria a história do Mesmo 

      – daquilo que, para uma cultura, é ao mesmo tempo disperso e aparentado, a ser portanto distinguido por marcas e recolhido em identidades. 

      E se se pensar que a doença é, ao mesmo tempo, 

      • a desordem, a perigosa alteridade no corpo humano e até o cerne da vida, 
      • mas também um fenômeno da natureza que tem suas regularidades, suas semelhanças e seus tipos 

      – vê-se que lugar poderia ter uma arqueologia do olhar médico. 

      • Da experiência-limite do Outro às formas constitutivas do saber médico 
      • e, destas, à ordem das coisas e ao pensamento do Mesmo, 
      • o que se oferece à análise arqueológica é todo o saber clássico, 
      • ou melhor; 
        • esse limiar que nos separa do pensamento clássico e constitui nossa modernidade. 

      Nesse limiar apareceu pela primeira vez esta estranha figura do saber que se chama homem e que abriu um espaço próprio às ciências humanas. 

      Tentando trazer à luz esse profundo desnível da cultura ocidental,
      é a nosso solo silencioso e ingenuamente imóvel
      que restituímos suas rupturas, sua instabilidade, suas falhas; 

      e é ele que se inquieta novamente sob nossos passos.