Capítulo V - Classificar; tópico VI. Monstros e fósseis
Objetar-se-á que houve, muito antes de Lamarck, todo um pensamento de tipo evolucionista. Que sua importância foi grande nos meados do século XVIII e até sua suspensão pelo golpe desferido por Cuvier. Que Bonnet, Maupertuis, Diderot, Robinet, Benoit de Maillet articularam muito claramente a ideia de que
- as formas vivas podem passar umas às outras,
- que as espécies atuais são sem dúvida o resultado de transformações antigas
- e que todo o mundo vivo se dirige talvez para um ponto futuro, de sorte que não se poderia assegurar, a propósito de qualquer forma viva, que está definitivamente adquirida e estabilizada para sempre.
Na realidade, tais análises são incompatíveis com o que hoje entendemos por pensamento da evolução.
Com efeito, elas têm como propósito o quadro das identidades e das diferenças na série dos acontecimentos sucessivos. E, para pensar a unidade desse quadro e dessa série, só têm à sua disposição dois meios.
- Um consiste em integrar na continuidade dos seres e na sua distribuição em quadro a série das sucessões.
Todos os seres que a taxinomia dispôs numa simultaneidade ininterrupta são então submetidos ao tempo. Não no sentido de que a série temporal faria nascer uma multiplicidade de espécies, que um olhar horizontal poderia em seguida dispor segundo um quadriculado classificador, mas no sentido de que todos os pontos da taxinomia são afetados por um índice temporal, de sorte que a “evolução” não é outra coisa senão o deslocamento solidário e geral da escala, desde o primeiro até o último de seus elementos. Esse sistema é o de Charles Bonnet. Ele implica, antes do mais, que a cadeia dos seres, dirigida por uma série inumerável de anéis para a perfeição absoluta de Deus, não a alcance atualmente(49); que a distância seja infinita entre Deus e a menos defeituosa das criaturas; e que, nessa distância talvez intransponível, toda a trama ininterrupta dos seres não cesse de avançar em direção a uma maior perfeição. Implica também que essa “evolução” mantenha intacta a relação que existe entre as diferentes espécies; se uma, em se aperfeiçoando, atinge o grau de complexidade que antes dela já possuía a do grau imediatamente superior, esta nem por isso é alcançada, pois, impelida pelo mesmo movimento, ela não pôde deixar de se aperfeiçoar numa proporção equivalente:
“Haverá um progresso contínuo e mais ou menos lento de todas as espécies em direção a uma perfeição superior, de sorte que todos os graus da escala serão continuamente variáveis numa relação determinada e constante… O homem, transportado para uma estância mais condizente com a eminência de suas faculdades, deixará ao macaco e ao elefante esse primeiro lugar que ocupava entre os animais de nosso planeta… Haverá Newtons entre os macacos e Vaubans entre os castores. As ostras e os pólipos serão, em relação às mais elevadas espécies, o que são os pássaros e os quadrúpedes em relação ao homem.”(50)
Esse “evolucionismo” não é uma forma de conceber o aparecimento dos seres uns a partir dos outros; é, na realidade, uma forma de generalizar o princípio de continuidade e a lei segundo a qual os seres formam uma superfície sem interrupção. Acrescenta, num estilo leibniziano(51), o contínuo do tempo ao contínuo do espaço e, à infinita multiplicidade dos seres, o infinito de seu aperfeiçoamento. Não se trata de uma hierarquização progressiva, mas do surto constante e global de uma hierarquia totalmente instaurada. O que supõe, finalmente, que o tempo, longe de ser um princípio da taxinomia, não seja mais que um de seus fatores. E que seja preestabelecido como todos os outros valores assumidos por todas as outras variáveis.
É necessário, pois, que Bonnet seja pré-formacionista e isso, muito longe do que entendemos, desde o século XIX, por “evolucionismo”; ele é obrigado a supor que as metamorfoses ou as catástrofes do globo foram dispostas de antemão como ocasiões para que a cadeia infinita dos seres se encaminhe no sentido de um infinito melhoramento:
“Essas evoluções foram previstas e inscritas nos germens dos animais desde o primeiro dia da criação. Pois essas evoluções estão ligadas a revoluções em todo o sistema solar, dispostas por Deus de antemão.” O mundo inteiro foi larva; ei-lo crisálida; um dia, sem dúvida, tomar-se-á borboleta(52) E todas as espécies serão arrastadas do mesmo modo por essa grande mutação.
Vê-se que semelhante sistema não é um evolucionismo que começasse a abalar o velho dogma da fixidez; é uma taxinomia que envolve, ademais, o tempo. Uma classificação generalizada.
- A outra forma de “evolucionismo” consiste em conferir ao tempo um papel totalmente oposto.
Ele não serve mais para deslocar, sobre a linha finita ou infinita do aperfeiçoamento, o conjunto do quadro classificador, mas para fazer aparecer, umas após as outras, todas as porções que, juntas, formarão a rede contínua das espécies. Ele faz com que as variáveis do ser vivo assumam sucessivamente todos os valores possíveis: ele é a instância de uma caracterização que se efetua pouco a pouco e como que elementos após elementos.
As semelhanças ou as identidades parciais que sustentam a possibilidade de uma taxinomia seriam então as marcas patenteadas no presente de um único e mesmo ser vivo, persistindo através das metamorfoses da natureza e preenchendo assim todas as possibilidades que o quadro taxinômico oferece no vazio.
Se as aves, observa Benoit de Maillet, têm asas como os peixes têm barbatanas, é porque, na época do grande refluxo das primeiras águas, elas foram douradas ressequidas ou golfinhos transportados para sempre a uma pátria aérea.
“O sêmen desses peixes, transportado para pântanos, pode ter dado lugar à primeira transmigração da espécie, do mar para a terra. De 100 milhões que pereceram sem ter logrado adaptar-se, bastou que dois o conseguissem para dar origem à espécie.”(53)
Aqui, como em certas formas de evolucionismo, as mudanças nas condições de vida dos seres vivos parecem acarretar o aparecimento de espécies novas. Mas o modo de ação do ar, da água, do clima, da terra sobre os animais não é o de um meio ambiente sobre uma função e sobre os órgãos nos quais ela se realiza; os elementos exteriores só intervêm ocasionalmente para fazer aparecer o caráter: E esse aparecimento, se é cronologicamente condicionado por determinado acontecimento do globo, é tornado a priori possível pelo quadro geral das variáveis que define todas as formas eventuais do ser vivo.
O quase-evolucionismo do século XVIII parece pressagiar
- tanto a variação espontânea do caráter, tal como se encontrará em Darwin,
- quanto a ação positiva do meio ambiente, tal como a descreverá Lamarck.
Trata-se, porém, de uma ilusão retrospectiva:
- com efeito, para essa forma de pensamento, a sequência do tempo jamais pode desenhar mais do que a linha ao longo da qual se sucedem todos os valores possíveis das variáveis preestabelecidas.
- E, por conseguinte, é preciso definir um princípio de modificação interior ao ser vivo capaz de permitir-lhe, por ocasião de uma peripécia natural, assumir um novo caráter.
Está-se então diante de um novo ponto de escolha:
- ou supor no ser vivo uma aptidão espontânea para mudar de forma (ou, pelo menos, para adquirir com as gerações um caráter ligeiramente diferente daquele que fora dado originalmente, de modo que pouco a pouco acabará por tornar-se irreconhecível),
- ou então atribuir-lhe a busca obscura de uma espécie terminal que possuiria os caracteres de todas as que a precederam, num grau porém mais alto de complexidade e de perfeição.
- Não é diferente o que ocorre com o sistema inverso do protótipo e da espécie terminal.
- entre um protótipo absolutamente arcaico, enterrado mais profundamente que toda a história,
- e a extrema complicação desse modelo, tal como se pode observar, ao menos no globo terrestre, na pessoa do ser humano(56).
- O contínuo não é o sulco visível de uma história fundamental em que um mesmo princípio vivo se debateria com um meio ambiental variável.
- Pois o contínuo precede o tempo. É sua condição.
- E, em relação a ele, a história só pode desempenhar um papel negativo:
- ela predispõe e faz subsistir
- ou ela negligencia e deixa desaparecer.
- Primeiro, a necessidade de fazer intervir os monstros – que são como que o ruído de fundo, o murmúrio ininterrupto da natureza.
- assim como a catástrofe geológica era necessária para que se pudesse ascender do quadro taxinômico ao contínuo, através de uma experiência confusa, caótica e retalhada,
- assim também a proliferação de monstros sem amanhã é necessária para que se possa tornar a descer do contínuo ao quadro através de uma série temporal.
Em outros termos,
- o que num sentido deve ser lido como drama da terra e das águas,
- deve ser lido, num outro sentido, como aberração aparente das formas.
- A outra consequência é que, ao longo de uma tal história, os signos da continuidade são apenas da ordem da semelhança.
- o monstro faz aparecer a diferença: esta é ainda sem lei e sem estrutura bem definida; o monstro é o fulcro da especificação, mas não é mais que uma subespécie na obstinação lenta da história.
- O fóssil é aquilo que deixa subsistir as semelhanças através de todos os desvios que a natureza percorreu; funciona como uma forma longínqua e aproximativa da identidade; marca um quase-caráter no mover-se do tempo.
É que o monstro e o fóssil nada mais são que a projeção em retrospectiva dessas diferenças e dessas identidades que definem, para a taxinomia, a estrutura e depois o caráter.
- o que a análise definirá como identidade não é ainda mais que muda analogia;
- e o que ela definirá como diferença assinalável e constante não é ainda mais que livre e casual variação.
Mas, na verdade,
- a história da natureza é tão impossível de ser pensada pela história natural,
- a disposição epistemológica desenhada pelo quadro e pelo contínuo é tão fundamental,
- que o devir só pode ter lugar intermediário e medido somente pelas exigências do conjunto.
- Quer como um conjunto de intempéries estranhas aos seres vivos e que lhes advêm unicamente do exterior.
- Quer como um movimento incessantemente delineado, mas estancado desde seu esboço, e perceptível somente nas bordas do quadro, nas suas margens descuidadas:
- o monstro narra, como em caricatura, a gênese das diferenças
- e o fóssil lembra, na incerteza de suas semelhanças, as primeiras obstinações da identidade.