Carta aos Professores Christian Dunker e Vladimir Safatle

coordenadores do Latesfip – Laboratório de Teorias sociais, Filosofia e Psicanálise da USP

Prezados Professores 

Com a intenção de contribuir para o debate da forma o mais fundamentada que posso, coloco em foco dois pontos tomados em dois vídeos do canal Falando nisso:

  • no vídeo Falando nisso – 150: Signo, significante e significado de 08/10/2017, vejo em destaque um movimento no pensamento de Lacan:
    • que parte do incômodo dele com a base fundamental da psicanálise de Freud, que ele via sediada na representação
    • e vai até a decisão por ele tomada de criar uma nova psicanálise, no campo da linguagem usando conceitos atinentes à fala, e agora desde fora da representação
  • no vídeo Falando nisso – 254: Neoliberalismo e sofrimento de 31/08/2019, noto que não são feitos questionamentos desse mesmo teor do movimento de pensamento feito por Lacan, porque faltam verificações sobre quais sejam as bases em que se sustentam cada uma das teorias, modelos e sistemas relacionados ao liberalismo e neoliberalismo (com variantes), em todo o período abrangido na discussão, quanto a estarem na representação ou fora dela. 

Usando um critério muito amplo para identificação e comparação de modelos inclusive quanto às suas bases, definido com a ajuda de Michel Foucault no livro ‘As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas’, é possível afirmar que sim, existem, no período histórico coberto pelo vídeo 254, teorias, modelos e sistemas construídos sobre essas duas opções de embasamento – na e desde fora da representação; e há ocorrências de modelos assim em todas as áreas do conhecimento atingindo todo o espaço do saber em nossa cultura.

Os links abaixo mostram exemplos de teorias, modelos e sistemas – na chamada área técnica e na filosofia – e em cada uma, modelos com esses dois embasamentos: base na representação e base fora da representação, cujas ocorrências estão nesse período histórico de tempo, 

“Assim esses três pares, função e norma,, conflito e regra, significação e sistema, cobrem, por completo, o domínio inteiro do conhecimento do homem.” As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas; Cap. X – As ciências humanas; tópico III. Os três modelos 

No vídeo 150 estão em destaque os dois conceitos para inconsciente, nas psicanálises de Freud e de Lacan.

  • para a psicanálise de Freud o inconsciente é uma instância capaz de representação das coisas; (veja exemplos desse tipo de modelo nos itens 1.a e 2.a )
    • essa visão do que seja o inconsciente em Freud combina perfeitamente bem com a visão de operações metaforicamente imaginadas como um processamento de informações, construídas sobre a estrutura input-output com elemento central Processo – um verbo, ladeado por Entradas que se transformam em Saídas.  Sobre esse tipo de verbo Foucault diz o seguinte:

“A única coisa que o verbo [esse tipo de verbo] afirma é a coexistência de duas representações: por exemplo, a do verde e da árvore, a do homem e da existência ou da morte; é por isso que o tempo dos verbos não indica aquele em que as coisas existiram no absoluto, mas um sistema relativo de anterioridade ou de simultaneidade das coisas entre si. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas; Cap. IV – Falar; tópico III. A teoria do verbo  

  • em Lacan o inconsciente é estruturado como uma linguagem e é uma forma social, o efeito das trocas sociais, estas, simbólicas. (veja exemplos desse tipo de modelo nos itens 1.b e 2.b)
    • essa visão do inconsciente em Lacan combina perfeitamente bem com a nova forma de reflexão assinalada por Foucault como tendo surgido na virada dos séculos XVIII para o XIX:

“Instaura-se uma forma de reflexão bastante afastada do cartesianismo e da análise kantiana, em que está em questão, pela primeira vez, o ser do homem, nessa dimensão segundo a qual o pensamento se dirige ao impensado e com ele se articula.” As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas; Cap. IX – O homem e seus duplos; tópico V. O “cogito” e o impensado.

Esta forma de reflexão tem como elemento central também um verbo, mas de um novo tipo, que figura como elemento central do princípio dual de trabalho de David ricardo  chamado por ele de Forma de produção. 

“É preciso, portanto, tratar esse verbo como um ser misto, [Forma de produção, este, um tipo de verbo mais ao agrado de Lacan] ao mesmo tempo palavra entre as palavras, preso às mesmas regras, obedecendo como elas às leis de regência e de concordância; e depois, em recuo em relação a elas todas, numa região que não é aquela do falado mas aquela donde se fala. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas; Cap. IV – Falar; tópico III. A teoria do verbo

A propósito da grande importância das ‘operações de troca’ e da própria ‘troca’ como conceito, há no texto de Foucault, (veja ‘As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Cap. VI – Trocar; tópico V. A formação de valor), esclarecimento importante sobre a operação de troca em sua complexidade bem como sua relação com a linguagem em duas diferentes configurações:

Dependendo da visão que temos do fenômeno como um todo, podemos posicionar o início da operação de troca:

  1. no ato mesmo da troca, isto é, ‘no ponto de cruzamento entre o que é dado e o que é recebido, no exato momento da disponibilidade simultânea dos dois objetos da troca;
    • neste caso a operação transcorre no Circuito das trocas’, ou ‘Mercado‘ contido no domínio do Discurso e da Representação
    • toda a essência da linguagem está colocada e encerrada na proposição;
  2. ou em um ponto anterior ao momento da troca, numa prospecção da possibilidade futura dessa operação, investigando não propriamente a troca, mas a permutabilidade, ou a ocorrência de uma condição primeira para que a troca, possa vir a ocorrer;
    •  neste caso a operação transcorre no ‘Lugar de nascimento do que é empírico’ espaço integrado por dois sub-espaços, cada um deles em um domínio distinto:
      • o ‘Lugar desde onde se fala’, no interior do domínio do Pensamento e da língua;
      • e o ‘Lugar do falado’, no interior do domínio do ‘Discurso e da Representação’.
    • e a essência da linguagem, o valor carregado na proposição, terá origem desde fora da linguagem:
      • a) através das designações primitivas; 
      • b) e da linguagem de ação ou raiz
    • e toda a etapa de Construção da representação sob o pensamento moderno, está incluída na visão de operações ampliando sobremaneira o seu escopo.

Para um paralelo rápido entre esse movimento do pensamento feito por Lacan e a filosofia de Foucault:

em As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas; 
Cap. 8 – Trabalho, Vida e Linguagem; tópico II – Ricardo

“A atividade dos homens
e o valor das coisas 
comunicavam-se
no elemento transparente
da representação. 

este, o espaço onde Lacan via a psicanálise de Freud: ponto de início de operações no cruzamento entre o que é dado e o que é recebido em uma operação de troca

É aí que a análise de Ricardo
encontra seu lugar
e a razão de sua importância decisiva. 
Ela não é a primeira
a organizar um lugar importante
para o trabalho no jogo da economia;
mas faz explodir a unidade da noção,
e distingue, pela primeira vez,
de uma forma radical,

a disposição de Lacan com relação à psicanálise de Freud prognosticando uma outra psicanálise modelada em outras bases que não a representação pode ser comparada à disposição pioneira de David Ricardo, em 1817, que segundo Michel Foucault deu origem à economia política

  • essa força, esse esforço, esse tempo do operário que se compram e se vendem, 

homem no papel de
elemento do que é empírico
viabilizando a Forma de produção como mão de obra nos elementos de suporte na experiência, nas atividades;

  • e essa atividade que está
    na origem do valor das coisas.

homem no papel de
raiz e fundamento de toda positividade
como sujeito de operações de construção de representações novas para empiricidades objeto.

Ter-se-á pois, 

  • (1) por um lado,
    o trabalho que os operários oferecem,
    que os empresários aceitam ou demandam e que é retribuído pelos salários; 
  • (2) por outro, ter-se-á
    o trabalho que extrai os metais,
    produz os bens, fabrica os objetos,
    transporta as mercadorias
    e forma assim valores permutáveis
    que antes dele não existiam
    e sem ele não teriam aparecido. 

A visão completa expandida de operações agora preparadas para abranger:

  • (1) a etapa do Instanciamento de representações anteriormente construídas;
  • (2) a etapa de Construção da representação;

“A partir de Ricardo,
o trabalho, 

desnivelado em relação à representação, 
e instalando-se em uma região
onde ela não tem mais domínio, 
organiza-se
segundo uma causalidade que lhe é própria.”

Parafraseando Foucault

A partir de Lacan,
a psicanálise,
desnivelada em relação à representação,
e instalando-se em uma região
onde ela não tem mais domínio,
organiza-se segundo uma causalidade
que lhe é própria.

A percepção de Lacan, em 1953-1960 sobre a psicanálise de Freud, que ele via baseada na representação, consistente com a visão de David Ricardo, de 1817, este em alteração do modo como Adam Smith, de 1776, via trabalho, vislumbrando esse conceito também desde fora da representação.

As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas; 
Cap. 8 – Trabalho, Vida e Linguagem;
tópico II – Ricardo

Veja também os seguintes links: