II. As assinalações

Capítulo II. A prosa do mundo; tópico II. As assinalações

E, no entanto, o sistema não é fechado. Subsiste uma abertura: por ela, todo o jogo das semelhanças se arriscaria a escapar de si mesmo ou a permanecer na noite, se uma nova figura da similitude não viesse completar o círculo tomá-lo ao mesmo tempo perfeito e manifesto.

Convenientia, aemulatio, analogia e simpatia nos dizem de que modo o mundo deve se dobrar sobre si mesmo, se duplicar, se refletir ou se encadear para que as coisas possam assemelhar-se. Dizem-nos os caminhos da similitude e por onde eles passam;

  • não onde ela está
  • nem como a vemos,
  • nem com que marca a reconhecemos.

Ora, talvez nos ocorresse atravessar toda essa proliferação maravilhosa das semelhanças, sem mesmo suspeitarmos que ela está preparada, desde muito tempo, pela ordem do mundo e para nosso maior beneficio.

Para saber que o acônito cura nossas doenças de olhos ou que a noz esmagada com o álcool sana as dores de cabeça, é preciso uma marca que no-la advirta: sem o que este segredo permaneceria indefinidamente adormecido.

Saberíamos jamais que existe, de um homem com seu planeta, uma relação de geminidade ou de contenda, se não houvesse em seu corpo e entre as rugas de seu rosto, o sinal de que ele é rival de Marte ou aparentado a Saturno?

É preciso que as similitudes submersas estejam assinaladas na superfície das coisas; é necessária uma marca visível das analogias invisíveis.

Acaso não será toda semelhança a um tempo o que há de mais manifesto e o que está mais bem oculto?

Com efeito,

  • ela não é composta de porções justapostas – algumas idênticas, outras diferentes -;
  • ela é, por inteiro, uma similitude
    • que se vê
    • ou que não se vê.

Seria, pois, sem critério, se não houvesse nela – ou acima ou ao lado – um elemento de decisão que transformasse sua duvidosa cintilação em clara certeza.

Não há semelhança sem assinalação.

O mundo do similar só pode ser um mundo marcado.

“Não é vontade de Deus”, diz Paracelso, “que o que ele cria para o beneficio do homem e o que lhe deu permaneça escondido… E ainda que ele tenha escondido certas coisas, nada deixou sem sinais exteriores e visíveis com marcas especiais – assim como um homem que enterrou um tesouro marca a sua localização a fim de que possa reencontrá-lo.”(19)

O saber das similitudes funda-se

  • na súmula de suas assinalações
  • e na sua decifração.

Inútil deter-se na casca das plantas para conhecer sua natureza; é preciso ir diretamente às suas marcas –

“à sombra e imagem de Deus que elas trazem ou à virtude interna que lhes foi dada do céu como por dote natural,… virtude, digo eu, que se reconhece melhor pela assinalação”(20).

O sistema das assinalações inverte a relação do visível com o invisível.

A semelhança era

  • a forma invisível daquilo que, do fundo do mundo, tornava as coisas visíveis;
  • mas para que essa forma, por sua vez, venha até a luz, é necessária uma figura visível que a tire de sua profunda invisibilidade.

Eis por que a face do mundo é coberta de brasões, de caracteres, de cifras, de palavras obscuras – de “hieróglifos”, dizia Turner.

E o espaço das semelhanças imediatas torna-se como um grande livro aberto; é carregado de grafismos; ao longo da página, veem-se figuras estranhas que se entrecruzam e por vezes se repetem. Só se tem que decifrá-las:

“Não é verdade que todas as ervas, árvores e outros, provenientes das entranhas da terra, são outros tantos livros e sinais mágicos?”(21).

O grande espelho calmo, no fundo do qual as coisas se mirariam e remeteriam umas às outras suas imagens, é, na realidade, todo buliçoso de palavras.

Os reflexos mudos são duplicados por que os indicam. E, graças a uma última forma de semelhança que envolve todas as outras e as encerra em um único, mundo pode se comparar a um homem que fala;

“Assim como os secretos movimentos de seu entendimento são manifestados pela voz, assim não parece que as ervas falam ao médico curioso por sua assinalação, descobrindo-lhe… suas virtudes interiores ocultas sob o véu do silêncio da natureza?”(22)

Mas convém nos determos mais sobre essa própria linguagem.

  • Sobre os signos de que é formada.
  • Sobre a maneira como esses signos remetem ao que indicam.

Há simpatia entre o acônito e os olhos. Essa afinidade imprevista permaneceria na sombra se não houvesse sobre a planta uma assinalação, uma marca e como que uma palavra dizendo que ela é boa para as doenças dos olhos.

  • Esse signo perfeitamente legível em suas sementes: são pequenos globos escuros engastados em películas brancas, que figuram aproximadamente o que as pálpebras são para os olhos(23).
  • O mesmo se passa com a afinidade entre a noz e a cabeça; o que cura “as aflições do pericrânio” é a espessa casca verde que repousa sobre os ossos – sobre o invólucro – do fruto: mas os males interiores da cabeça são evitados pelo próprio núcleo “que indica totalmente o cérebro”(24).

O sinal da afinidade, e o que a torna visível, é simplesmente a analogia; a cifra da simpatia reside na proporção.

Mas que assinalação trará a própria proporção para que seja possível reconhecê-la?

Como se poderia saber que as pregas da mão ou as rugas da fronte desenham no corpo dos homens o que são as inclinações, os acidentes ou os reveses no grande tecido da vida?

Somente porque a simpatia faz comunicarem-se o corpo e o céu e transmite o movimento dos planetas às aventuras dos homens. Somente também porque a brevidade de uma linha reflete a imagem simples de uma vida curta, o cruzamento de duas pregas, o encontro de um obstáculo, o movimento ascendente de uma ruga, a escalada de um homem para o sucesso. A largura é sinal de riqueza e de importância; a continuidade marca a fortuna, a descontinuidade, o infortúnio(25).

A grande analogia do corpo e do destino é assinalada por todo o sistema dos espelhos e das atrações. São as simpatias e as emulações que assinalam as analogias.

Quanto à emulação,

  • podemos reconhecê-la na analogia:
    • os olhos são estrelas porque espalham a luz sobre os rostos como os astros na obscuridade,
    • e porque os cegos são no mundo como os que têm clarividência no mais soturno da noite.
  • Podemos reconhecê-la também na conveniência:
    • sabe-se, desde os gregos, que os animais fortes e corajosos têm a extremidade dos membros larga e bem desenvolvida como se seu vigor tivesse sido comunicado às partes mais distantes do seu corpo.
    • Do mesmo modo, o rosto e a mão do homem carregarão a semelhança com a alma à qual estão ligados.

O reconhecimento das mais visíveis similitudes apóia-se, pois, numa descoberta que é a da conveniência das coisas entre si.

E se lembrarmos agora que a conveniência não é sempre definida por uma localização atual, mas que muitos seres que se convêm estão separados

(como ocorre entre a doença e seu remédio, entre o homem e seus astros, entre a planta e o solo de que precisa)

tornar-se-á de novo necessário um sinal da conveniência.

Ora, que outra marca existe de que duas coisas estão encadeadas uma à outra senão que elas se atraem reciprocamente, como o sol e a flor do girassol, ou a água e o rebento do pepino(26), senão que entre elas há afinidade e como que simpatia?

Assim o círculo se fecha. Vê-se, porém, através de qual sistema de desdobramentos.

As semelhanças exigem uma assinalação, pois nenhuma dentre elas poderia ser notada se não fosse legivelmente marcada.

Mas que são esses sinais?

Como reconhecer, entre todos os aspectos do mundo e tantas figuras que se entrecruzam, que há aqui um caráter no qual convém se deter, porque ele indica uma secreta e essencial semelhança?

Que forma constitui o signo no seu singular valor de signo?- É a semelhança. Ele significa na medida em que tem semelhança com o que indica (isto é, com uma similitude).

Contudo, não é a homologia que ele assinala, pois seu ser distinto de assinalação se desvaneceria no semelhante de que é signo; trata-se de outra semelhança, uma similitude vizinha e de outro tipo que serve para reconhecer a primeira, mas que, por sua vez, é patenteada por uma terceira.

Toda semelhança recebe uma assinalação; essa assinalação, porém, é apenas uma forma intermediária da mesma semelhança.

De tal sorte que o conjunto das marcas faz deslizar, sobre o círculo das similitudes, um segundo círculo que duplicaria exatamente e, ponto por ponto, o primeiro,

  • se não fosse esse pequeno desnível que faz com que
    • o signo da simpatia resida na analogia,
    • o da analogia na emulação,
    • o da emulação na conveniência,
    • que, por sua vez, para ser reconhecida, requer a marca da simpatia…

A assinalação e o que ela designa

  • são exatamente da mesma natureza;
  • apenas a lei da distribuição a que obedecem é diferente; a repartição é a mesma.

Forma assinalante e forma assinalada são semelhanças, mas paralelas.

E é por isso, sem dúvida, que, no saber do século XVI,

  • a semelhança é o que há de mais universal;
  • ao mesmo tempo aquilo que há de mais visível,
  • mas que se deve, entretanto, buscar descobrir por ser o mais escondido;
  • o que determina a forma do conhecimento (pois só se conhece seguindo os caminhos da similitude)
  • e o que lhe garante a riqueza de seu conteúdo (pois, desde que soergamos os signos e olhemos o que eles indicam, deixamos vir às claras e cintilar na sua própria luz a própria Semelhança).

Chamemos hermenêutica ao conjunto de conhecimentos e de técnicas que permitem fazer falar os signos e descobrir seu sentido;

chamemos semiologia ao conjunto de conhecimentos e de técnicas que permitem distinguir onde estão os signos, definir o que os institui como signos, conhecer seus liames e as leis de seu encadeamento:

o século XVI superpôs

  • semiologia
  • e hermenêutica

na forma da similitude.

Buscar o sentido é trazer à luz o que se assemelha.

Buscar a lei dos signos é descobrir as coisas que são semelhantes.

A gramática dos seres é sua exegese.

E a linguagem que eles falam não narra outra coisa senão a sintaxe que os liga.

A natureza das coisas, sua coexistência, o encadeamento que as vincula e pelo que se comunicam não é diferente de sua semelhança. E esta só aparece na rede de signos que, de um extremo ao outro, percorre o mundo.

A “natureza” está inserida na fina espessura que mantém, uma acima da outra, semiologia e hermenêutica;

  • ela só é misteriosa e velada, só se oferece ao conhecimento por ela às vezes confundido,
  • na medida em que essa superposição não se faz sem um ligeiro desnível das semelhanças.

De imediato, o crivo não é claro; a transparência se acha turva desde o primeiro lance. Aparece um espaço sombrio que será necessário progressivamente aclarar.

É aí que está a “natureza” e é isso que é mister aplicar-se a conhecer.

Tudo seria imediato e evidente

  • se a hermenêutica da semelhança
  • e a semiologia das assinalações coincidissem sem a menor oscilação.

Mas, posto que há um “vão” entre

  • as similitudes que formam grafismo
  • e as que formam discurso,

o saber e seu labor infinito recebem aí o espaço que lhes é próprio: terão que sulcar essa distância indo, por um ziguezague indefinido, do semelhante ao que lhe é semelhante.