V. A designação

Capítulo IV. Falar; tópico V. A designação

Os 4 momentos que fixam
as funções essenciais da linguagem
atribuição, articulação, designação e derivação.
nos Séculos XVII e XVIII
Os 4 momentos que fixam
as funções essenciais da linguagem
atribuição, articulação, designação e derivação.
no Século XIX

E, contudo, a teoria da “nomeação generalizada” descobre no extremo da linguagem uma certa relação com as coisas, que é de uma natureza totalmente diferente do que a forma proposicional.

Se, no fundo de si mesma, a linguagem tem por função nomear, isto é, suscitar uma representação ou como que mostrá-Ia com o dedo, ela é indicação e não juízo.

Liga-se às coisas

  • por uma marca,
  • uma nota,
  • uma figura associada,
  • um gesto que designa:

nada que seja redutível a uma relação de predicação.

O princípio da nomeação primeira e da origem das palavras contrabalança a primazia formal do juízo. Como se, de um lado e outro da linguagem, desdobrada em todas as suas articulações, houvesse

  • o ser em seu papel verbal de atribuição
  • e a origem no seu papel de designação primeira.

Esta [a origem] permite substituir por um signo aquilo que é indicado,

aquele, [o papel verbal da atribuição] ligar um conteúdo a outro.

Encontram-se assim,

  • em sua oposição,
  • mas também em sua mútua dependência,

as duas funções de liame e de substituição que foram dadas ao signo em geral com seu poder de analisar a representação.

Reconduzir à luz a origem da linguagem é reencontrar o momento primitivo em que ela era pura designação.

E com isso se deve, ao mesmo tempo,

  • explicar seu caráter arbitrário (porquanto o que designa pode ser tão diferente daquilo que mostra quanto um gesto do objeto para o qual tende)
  • e sua relação profunda com o que ela nomeia (pois tal sílaba ou tal palavra sempre foram escolhidas para designar tal coisa).

À primeira exigência responde a análise da linguagem de ação,

à segunda, o estudo das raízes.

Elas não se opõem, porém, como no Crátilo

  • a explicação pela “natureza”
  • e a explicação pela “lei”;

são, ao contrário, absolutamente indispensáveis uma à outra, pois que

  • a primeira explica a substituição do designado pelo signo
  • e a segunda justifica o poder permanente de designação desse signo.

A linguagem de ação, é o corpo que a fala; e contudo não é dada logo de início.

O que a natureza permite é apenas que, nas diversas situações em que se encontra, o homem faça gestos; seu rosto é agitado por movimentos; ele emite gritos inarticulados – isto é, que não são “desferidos nem com a língua nem com os lábios”(67).

Tudo isso não é ainda nem linguagem nem mesmo signo, mas efeito e sequência de nossa animalidade. Esta manifesta agitação tem a seu favor, entretanto, ser universal, visto só depender da conformação de nossos órgãos.

Daí a possibilidade que o homem tem de notar a identidade dela em si mesmo e em seus companheiros.

  • Pode, portanto, associar ao grito que ouve do outro, ao trejeito que percebe em seu rosto, as mesmas representações que, tantas vezes, duplicaram seus próprios gritos e seus próprios movimentos.
  • Pode receber essa mímica como a marca e o substituto do pensamento do outro. Como um signo.

Tem início a compreensão.

Ele pode, em troca, utilizar essa mímica tornada signo para suscitar em seus parceiros a ideia que ele próprio experimenta, as sensações, as necessidades, as dores que ordinariamente são associadas a tais gestos e a tais sons: grito lançado de propósito perante o outro e em direção a um objeto, pura interjeição(68).

Com esse uso combinado do signo (expressão já), algo como uma linguagem está em via de nascer.

Vê-se, por essas análises comuns a Condillac e a Destutt, que a linguagem de ação religa bem, mediante uma gênese, a linguagem à natureza. Mais, porém, para dela separá-Ia que para aí a enraizar. Para marcar sua diferença indelével para com o grito e fundar o que constitui seu artifício.

Enquanto for simples prolongamento do corpo, a ação não tem nenhum poder para falar: não é linguagem.

Torna-se linguagem; mas ao cabo de operações definidas e complexas:

  • notação de uma analogia de relações (o grito do outro é em relação àquilo que ele experimenta – a incógnita – o que o meu é em relação ao meu apetite ou ao meu susto);
  • inversão do tempo e uso voluntário do signo antes da representação que ele designa (antes de experimentar uma sensação de fome bastante forte para me fazer gritar, emito o grito que lhe é associado);
  • enfim, propósito de fazer nascer no outro a representação correspondente ao grito ou ao gesto (mas com a particularidade de que, emitindo um grito, não faço nascer nem pretendo fazer nascer a sensação da fome, mas a representação da relação entre esse signo e meu próprio desejo de comer).

A linguagem só é possível com base nessa imbricação. Não repousa sobre um movimento natural de compreensão ou de expressão, mas sobre as relações reversíveis e analisáveis dos signos e das representações..

Não há linguagem quando a representação se exterioriza, mas sim, quando de uma forma combinada, ela destaca de si um signo e se faz por ele representar.

Portanto,

  • não é a título de sujeito falante, nem do interior de uma linguagem já feita, que o homem descobre em torno de si signos, que seriam como outras tantas palavras mudas a serem decifradas e tornadas novamente audíveis;
  • é porque a representação se provê de signos que as palavras podem nascer e com elas toda uma linguagem que é tão-somente a organização ulterior de signos sonoros.

Apesar do seu nome, a “linguagem de ação” faz surgir a irredutível rede de signos que separa a linguagem da ação.

Com isso, ela funda na natureza o seu artifício. É que os elementos de que essa linguagem de ação é composta (sons, gestos, trejeitos) são propostos sucessivamente pela natureza e contudo não têm, na sua maioria,

  • nenhuma identidade de conteúdo com o que eles designam,
  • mas, sobretudo, relações de simultaneidade ou de sucessão.

O grito não se assemelha ao medo, nem a mão estendida à sensação de fome. Uma vez combinados, esses signos ficarão sem “fantasia e sem capricho”(69), pois que foram de uma vez por todas instaurados pela natureza; mas não exprimem a natureza daquilo que designam, pois não são à sua imagem.

E, a partir daí, os homens poderão estabelecer uma linguagem convencional:

  • dispõem agora de suficientes signos marcando as coisas para fixarem novos que analisam e combinam os primeiros.

No Discours sur I ‘origine de l’inégalité(70), Rousseau salientava que nenhuma língua pode repousar sobre um acordo entre os homens, pois que este já supõe uma linguagem estabelecida, reconhecida e praticada; é preciso, portanto, imaginá-Ia recebida e não construída pelos homens.

De fato, a linguagem de ação confirma essa necessidade e torna inútil essa hipótese. O homem recebe da natureza aquilo com que fazer signos e estes signos

  • lhe servem primeiramente para se entender com os outros homens a fim de escolher aqueles que serão retidos, os valores que se lhes reconhecerá, as regras de seu uso;
  • e servem, em seguida, para formar novos signos segundo o modelo dos primeiros.

A primeira forma de. acordo consiste em escolher os signos sonoros (mais fáceis de recolher a distância e os únicos utilizáveis de noite),

a segunda, em compor, para designar representações vizinhas.

Assim se constitui a linguagem propriamente dita, por uma série de analogias que prolongam lateralmente a linguagem de ação ou, pelo menos, sua parte sonora: assemelha-se a ela e

“é essa semelhança que facilitará sua inteligência.
Chama-se-Ihe analogia…
Vedes que a analogia que nos constitui a lei não nos permite escolher os signos ao acaso ou arbitrariamente”(71).

A gênese da linguagem a partir da linguagem de ação escapa inteiramente à alternativa entre a imitação natural e a convenção arbitrária.

  • Lá onde há natureza – nos signos que nascem espontaneamente através de nosso corpo – não há nenhuma semelhança;
  • e lá onde há utilização das semelhanças, já foi estabelecido o acordo voluntário entre os homens.

A natureza justapõe as diferenças e as liga à força; a reflexão descobre as semelhanças, as analisa e as desenvolve. O primeiro tempo permite o artifício, mas com um material imposto de maneira idêntica a todos os homens; o segundo exclui o arbitrário mas abre à análise vias que não serão exatamente passíveis de sobreposição para todos os homens e para todos os povos.

A lei de natureza é a diferença das palavras e das coisas – a divisão vertical entre a linguagem e aquilo que, por sob ela, lhe cumpre designar;

a regra das convenções é a semelhança das palavras entre si, a grande rede horizontal que forma as palavras umas a partir das outras e as propaga ao infinito.

Compreende-se então por que a teoria das raízes de modo algum contradiz a análise da linguagem de ação, mas nela vem muito exatamente alojar-se.

As raizes são palavras rudimentares que se encontram, idênticas, num grande número de línguas – em todas talvez; foram impostas pela natureza como gritos involuntários e utilizados espontaneamente pela linguagem de ação. É aí que os homens foram buscá-Ias para fazê-Ias figurar nas suas línguas convencionais. E se todos os povos, em todos os climas, escolheram, entre o material da linguagem de ação, essas sonoridades elementares, é porque nelas descobriram, de uma forma porém secundária e refletida, uma semelhança com o objeto que designavam, ou a possibilidade de aplicá-Ia a um objeto análogo.

A semelhança da raiz com o que ela nomeia só adquire seu valor de signo verbal mediante a convenção que uniu os homens e regulou numa língua sua linguagem de ação.

É assim que, do interior da representação, os signos se reúnem à natureza mesma daquilo que designam e que se impõe, de modo idêntico, a todas as línguas, tesouro primitivo dos vocábulos.

As raízes podem formar-se de várias maneiras.

  • Por onomatopéia certamente, que não é expressão espontânea, mas articulação voluntária de um signo semelhante: “Fazer com a voz o mesmo ruído que faz o objeto que se quer nomear.”(72)
  • Por utilização de uma semelhança experimentada nas sensações: “A impressão da cor vermelha, que é viva, rápida, dura à vista, será muito bem traduzida pelo som r, que causa uma impressão análoga no ouvido.”(73)
  • Impondo aos órgãos da voz movimentos análogos aos que se tem o propósito de significar: “de sorte que o som que resulta da forma e do movimento natural do órgão posto nesse estado torna-se o nome do objeto”: a garganta raspa para designar a fricção de um corpo contra outro, abre-se inteiramente para indicar uma superfície côncava(74).
  • Enfim, utilizando, para designar um órgão, os sons que ele produz naturalmente: a articulação ghen deu seu nome à garganta, donde ela provém, e usam-se dentais (d e t) para designar os dentes(75).
Com essas articulações convencionais da semelhança, cada língua pode se prover do seu jogo de raízes primitivas. Jogo restrito, pois que elas são quase todas monossilábicas e existem em muito pequeno número – 200 para a língua hebraica, segundo as estimativas de Bergier(76); ainda mais restrito se se lembrar que são (por causa dessas relações de semelhança que instituem) comuns à maioria das línguas: De Brosses pensa que, para todos os dialetos da Europa e do Oriente, elas não preenchem, todas juntas, “uma página de papel de cartas”. Mas é a partir delas que cada língua, em sua particularidade, vem a se formar: “Seu desenvolvimento é prodigioso. Tal como uma semente de olmo produz uma grande árvore que, lançando novos rebentos de cada raiz, produz, com o tempo, uma verdadeira floresta”(77).

A linguagem pode desenrolar-se agora na sua genealogia. É ela que De Brosses queria expor num espaço de filiações contínuas a que ele chamava “Arqueólogo universal”(78).

No alto desse espaço escrever-se-iam as raízes – bem pouco numerosas – que as línguas da Europa e do Oriente utilizam; sob cada uma, colocar-se-iam as palavras mais complicadas que delas derivam, cuidando, porém, de colocar primeiramente as mais próximas delas e de seguir uma ordem bastante cerrada, para que haja entre as palavras sucessivas a menor distância possível.

Constituir-se-iam assim séries perfeitas e exaustivas, cadeias absolutamente contínuas, em que as rupturas, se existissem, indicariam incidentalmente o lugar de uma palavra, de um dialeto ou de uma língua hoje desaparecidos(79).

Uma vez constituída essa grande superfície sem costura, ter-se-ia um espaço em duas dimensões que se poderia percorrer em abscissas ou em ordenadas:

  • na vertical, ter-se-ia a filiação completa de cada raiz,
  • na horizontal, as palavras que são utilizadas por determinada língua;

quanto mais nos afastássemos das raízes primitivas, mais complicadas e, sem dúvida, mais recentes, seriam as línguas definidas por uma linha transversal, mas, ao mesmo tempo, mais eficácia e finura teriam as palavras para a análise das representações.

Assim o espaço histórico e o quadriculado do pensamento estariam exatamente superpostos.

Essa procura das raízes pode afigurar-se um retorno à história e à teoria das línguas-mães que o classicismo, por um instante, parecera manter em suspenso.

Na realidade, a análise das raízes não recoloca a linguagem numa história que fosse como que seu meio de nascimento e de transformação. Antes, faz da história o percurso, por etapas sucessivas, do recorte simultâneo da representação e das palavras.

A linguagem, na época clássica, não é um fragmento de história que autoriza, em tal ou qual momento, um modo definido de pensamento e de reflexão; é um espaço de análise sobre o qual o tempo e o saber dos homens desenrolam seu percurso.

E encontrar-se-ia bem facilmente a prova de que a linguagem não se tornou – ou não voltou a tornar-se – pela teoria das raízes, um ser histórico, na maneira como, no século XVIII, se procuraram as etimologias.

Não se tomava como fio condutor o estudo das transformações materiais da palavra, mas a constância das significações.

Essa procura tinha dois aspectos: definição da raiz, isoladamente das desinências e dos prefixos. Definir a raiz é fazer uma etimologia. Arte que tem suas regras codificadas (80); é preciso despojar a palavra de todos os traços que nela depositaram as combinações e as flexões; chegar a um elemento monossilábico; seguir esse elemento em todo o passado da língua através das antigas “cartas e glossários”; remontar a outras línguas mais primitivas.

E, ao longo de todo esse veio, é preciso certamente admitir que o monossílabo se transforma: todas as vogais podem substituir-se umas às outras na história de uma raiz, pois as vogais são a própria voz que é sem descontinuidade e sem ruptura; as consoantes, em contrapartida, se modificam segundo vias privilegiadas: guturais, linguais, palatais, dentais, labiais, nasais formam famílias de consoantes homófonas, no interior das quais se fazem preferencialmente, mas sem nenhuma obrigação, as mudanças de pronúncia(81). A única constante indelével que assegura a continuidade da raiz ao longo de toda a sua história é a unidade de sentido: região representativa que persiste indefinidamente.

É que “nada talvez pode limitar as induções e tudo lhes pode servir de fundamento desde a semelhança total até as semelhanças mais leves”: o sentido das palavras é “a luz mais segura que se possa consultar”