VII. O discurso da natureza

Capítulo V - Classificar; tópico VII. O discurso da natureza

A teoria da história natural não é dissociável da teoria da linguagem.

E contudo, de uma a outra, não se trata

  • de uma transferência de método.
  • Nem de uma comunicação de conceitos,
  • ou dos prestígios de um modelo que, por ter tido “sucesso” de um lado, seria tentado no domínio vizinho.

Também não se trata

  • de uma racionalidade mais geral que imporia formas idênticas
    • à reflexão sobre a gramática
    • e à taxinomia.

Mas sim

  • de uma disposição fundamental do saber que ordena o conhecimento dos seres segundo a possibilidade de representá-los num sistema de nomes.

Houve, sem dúvida, nessa região a que hoje chamamos a vida, muitas outras pesquisas além dos esforços de classificação, muitas outras análises além daquelas das identidades e das diferenças.

Todas, porém, repousavam numa espécie de a priori histórico que as autorizava em sua dispersão, em seus projetos singulares e divergentes, que tornava igualmente possíveis todos os debates de opiniões de que eles eram o lugar.

Esse a priori não é

  • constituído por um equipamento de problemas constantes que os fenômenos concretos não cessariam de apresentar como enigmas à curiosidade dos homens;
  • tampouco é formado por um certo estado de conhecimentos, sedimentado no curso das idades precedentes e servindo de solo aos progressos mais ou menos desiguais ou rápidos da racionalidade;
  • nem mesmo é determinado, sem dúvida, pelo que se denomina a mentalidade ou os “quadros de pensamento” de uma dada época, se com isso se entender o perfil histórico dos interesses especulativos, das credulidades ou das grandes opções teóricas.

Esse a priori é

  • aquilo que, numa dada época, recorta na experiência um campo de saber possível,
  • define o modo de ser dos objetos que aí aparecem,
  • arma o olhar cotidiano de poderes teóricos
  • e define as condições em que se pode sustentar sobre as coisas um discurso reconhecido como verdadeiro.

O a priori histórico 

  • que, no século XVIII, fundou as pesquisas ou os debates sobre a existência dos gêneros,
  • a estabilidade das espécies,
  • a transmissão dos caracteres através das gerações,

é a existência de uma história natural:

  • organização de um determinado visível como domínio do saber,
  • definição das quatro variáveis da descrição,
  • constituição de um espaço de vizinhanças onde todo indivíduo, qualquer que seja, pode vir localizar-se.

A história natural, na idade clássica, não corresponde à pura e simples descoberta de um novo objeto de curiosidade; recobre uma série de operações complexas que introduzem, num conjunto de representações, a possibilidade de uma ordem constante. Constitui como descritível e ordenável ao mesmo tempo todo um domínio de empiricidade.

O que a aparenta às teorias da linguagem a distingue do que nós entendemos, desde o século XIX, por biologia e a faz desempenhar no pensamento clássico um certo papel crítico.

A historia natural é contemporânea da linguagem:

  • está no mesmo nível do jogo espontâneo que analisa as representações na lembrança,
  • fixa seus elementos comuns
  • estabelece signos a partir deles
  • e, finalmente, impõe nomes.

Classificar e falar encontram seu lugar de origem nesse mesmo espaço que a representação abre no interior de si, porque ela é votada ao tempo, à memória, à reflexão, à continuidade.

Mas a história natural só pode e só deve existir como língua independente de todas as outras, se ela for língua bem-feita. E universalmente válida.

Na linguagem espontânea e “malfeita”, os quatro elementos (proposição, articulação, designação, derivação) deixam entre si interstícios abertos: as experiências de cada um, as necessidades ou as paixões, os hábitos, os preconceitos, uma atenção mais ou menos despertada constituíram centenas de línguas diferentes e que se distinguem somente pela forma das palavras mas, antes de tudo, pela maneira como essas palavras cortam a representação.

A história natural só será uma língua bem-feita se o jogo for fechado:

  • se a exatidão descritiva fizer de toda proposição um recorte constante do real (se se puder sempre
    • atribuir à representação
    • o que aí se articula)
  • e se a designação de cada ser indicar, de pleno direito, o lugar que ele ocupa na disposição geral do conjunto.

Na linguagem,

  • a função do verbo é universal e vazia;
    • prescreve somente a forma mais geral da proposição;
    • e é no interior desta que os nomes fazem atuar seu sistema de articulação;
  • a história natural reagrupa essas duas funções na unidade da estrutura, que articula umas às outras todas as variáveis que podem ser atribuídas a um ser.

E, enquanto

  • na linguagem
    • a designação, em seu funcionamento individual, está exposta ao acaso das derivações que dão sua amplitude e sua extensão aos nomes comuns,
  • o caráter, tal como o estabelece a história natural, permite a um tempo
    • marcar o indivíduo
    • e situá-lo num espaço de generalidades que se encaixam umas nas outras.

De sorte que, por sobre as palavras de todos os dias (e através delas, pois que realmente cumpre utilizá-las para as descrições primeiras), constrói-se o edifício de uma linguagem de segundo grau, em que reinam enfim os Nomes exatos das coisas:

“O método, alma da ciência, designa à primeira vista qualquer corpo da natureza, de tal sorte que esse corpo enuncia o nome que lhe é próprio, e que esse nome evoca todos os conhecimentos que puderam ser adquiridos no curso do tempo acerca do corpo assim nomeado: de modo que na extrema confusão se descobre a ordem soberana da natureza.”(60)

Mas essa nomeação essencial – essa passagem da estrutura visível ao caráter taxinômico – remete a uma exigência onerosa.

  • A linguagem espontânea, para realizar e cerrar a figura que vai
    • da função monótona do verbo ser
    • à derivação e ao percurso do espaço retórico,
  • só precisava do jogo da imaginação: isto é, das semelhanças imediatas.
  • Em contrapartida, para que a taxinomia seja possível, é necessário que a natureza seja realmente contínua e na sua plenitude mesma.

Lá onde a linguagem requeria a similitude das impressões, a classificação requer o princípio da menor diferença possível entre as coisas.

Ora, esse continuum que aparece assim no fundo da nomeação, na abertura deixada entre a descrição e a disposição, está suposto bem antes da linguagem e como sua condição.

E não somente porque ele pode fundar uma linguagem bem-feita, mas porque dá conta de toda linguagem em geral.

É a continuidade da natureza, sem dúvida, que dá à memória a ocasião de se exercer quando uma representação, por alguma identidade confusa e mal percebida, evoca uma outra e permite aplicar a ambas o signo arbitrário de um nome comum.

O que na imaginação se oferecia como uma similitude cega não era senão o vestígio irrefletido e confuso da grande trama ininterrupta das identidades e das diferenças.

A imaginação (aquela que, permitindo comparar, autoriza a linguagem) formava, sem que então se soubesse, o lugar ambíguo onde a continuidade da natureza, arruinada mas insistente, se reunia à continuidade vazia, mas atenta, da consciência.

De sorte que não teria sido possível falar, não teria havido lugar para o menor nome, se no fundo das coisas, antes de toda representação, a natureza não tivesse sido continua.

Para estabelecer o grande quadro sem falhas das espécies, dos gêneros e das classes, foi necessário que a história natural utilizasse, criticasse, classificasse e finalmente reconstituísse por sua conta uma linguagem, cuja condição de possibilidade residia justamente nesse contínuo.

As coisas e as palavras estão muito rigorosamente entrecruzadas: a natureza só se dá através do crivo das denominações e ela que, sem tais nomes, permaneceria muda e invisível, cintila ao longe, por trás deles, continuamente presente para além desse quadriculado que, no entanto, a oferece ao saber e só a toma visível quando inteiramente atravessada pela linguagem.

É por isso, sem dúvida, que a história natural, na época clássica, não se pode constituir como biologia.

Com efeito, até o fim do século XVIII, a vida não existe. Apenas existem seres vivos.

Estes formam uma, ou antes, várias classes na série de todas as coisas do mundo:

  • e se se pode falar da vida,
  • é somente como de um caráter – no sentido taxinômico da palavra – na universal distribuição dos seres.

Tem-se o hábito de repartir as coisas da natureza em três classes:

  • os minerais, aos quais se reconhece o crescimento, mas sem movimento nem sensibilidade;
  • os vegetais, que podem crescer e que são suscetíveis de sensação;
  • os animais, que se deslocam espontaneamente(61).

Quanto à vida e ao limiar que ela instaura, pode-se, segundo os critérios que se adotarem, fazê-los deslizar ao longo de toda essa escala.

  • Se, com Maupertuis, a definirmos pela mobilidade e pelas relações de afinidade que atraem os elementos uns para os outros e os mantêm ligados, temos de alojar a vida nas mais simples partículas da matéria. Estaremos obrigados a situá-la muito mais alto na série,
  • se a definirmos por um caráter carregado e complexo, como o fazia Lineu quando lhe fixava como critérios o nascimento (por semente ou rebento), a nutrição (por intussuscepção), o envelhecimento, o movimento exterior, a propulsão interna dos humores, as doenças, a morte, a presença de vasos, de glândulas, de epidermes e de utrículos(62). A vida não constitui um limiar manifesto a partir do qual formas inteiramente novas do saber são requeridas.

Ela é uma categoria de classificação, relativa, como todas as outras, aos critérios que se fixarem. E, como todas as outras, submetida a certas imprecisões desde que se trate de fixar-lhe as fronteiras.

Assim como o zoófito está na orla ambígua dos animais e das plantas, assim os fósseis, assim os metais se alojam nesse limite incerto em que não se sabe se se deve ou não falar de vida. Mas o corte entre o vivo e o não-vivo jamais é um problema decisivo(63). Como diz Lineu, o naturalista – aquele a quem ele chama Historiens naturalis –

“distingue pela vista as partes dos corpos naturais, descreve-as convenientemente segundo o número, a figura, a posição e a proporção e as nomeia”(64).

O naturalista é o homem do visível estruturado e da denominação característica.

Não da vida.

Não se deve, pois, vincular a história natural, tal como se desenrolou durante a época clássica, a uma filosofia, mesmo obscura, mesmo ainda balbuciante, da vida.

Ela está, na realidade, entrecruzada com uma teoria das palavras. A história natural está situada ao mesmo tempo antes e depois da linguagem; desfaz a de todos os dias, mas para refazê-la e descobrir o que a tomou possível através das semelhanças cegas da imaginação; critica-a, mas para descobrir-lhe o fundamento.

Se a retoma e a quer realizar na sua perfeição, é porque também retorna à sua origem. Passa por sobre esse vocabulário cotidiano que lhe serve de solo imediato e, aquém dele, vai buscar o que pôde constituir sua razão de ser; mas, inversamente, aloja-se por inteiro no espaço da linguagem, pois que ela é essencialmente um uso regulado dos nomes e tem por fim último dar às coisas sua verdadeira denominação.

Entre a linguagem e a teoria da natureza, existe portanto uma relação que é de tipo crítico;

  • conhecer a natureza é, com efeito, construir, a partir da linguagem, uma linguagem verdadeira
  • que descobrirá, porém, sob que condições toda linguagem é possível e dentro de que limites pode ter ela um domínio de validade.

A questão crítica certamente existiu no século XVIII, mas ligada à forma de um saber determinado. Por essa razão não poderia adquirir autonomia e valor de interrogação radical: não cessou de vagar numa região onde se tratava da semelhança, da força da imaginação, da natureza e da natureza humana, do valor das ideias gerais e abstratas, em suma, das relações entre a percepção da similitude e a validade do conceito.

Na idade clássica – Locke e Lineu, Buffon e Hume o testemunham – a questão crítica é a do fundamento da semelhança e da existência do gênero.

No fim do século XVIII, uma nova configuração aparecerá, emaranhando definitivamente para olhos modernos o velho espaço da história natural. De um lado, a crítica se oca e se destaca do solo onde nascera.

  • Enquanto Hume fazia do problema da causalidade um caso de interrogação geral sobre as semelhanças(65),
  • Kant, isolando a causalidade, inverte a questão;
    • lá onde se tratava de estabelecer as relações de identidade e de distinção sobre o fundo contínuo das similitudes,
    • ele faz surgir o problema inverso da síntese do diverso.

No mesmo movimento, a questão crítica se acha reportada

  • do conceito ao juízo,
  • da existência do gênero (obtida pela análise das representações) à possibilidade de ligar representações entre si,
  • do direito de nomear ao fundamento da atribuição,
  • da articulação nominal à proposição mesma e ao verbo ser que a estabelece.

Ela se acha então absolutamente generalizada.

Em vez de valer somente a propósito das relações entre a natureza e a natureza humana, ela interroga a possibilidade mesma de todo conhecimento.

Mas, por outro lado, na mesma época a vida assume sua autonomia em relação aos conceitos da classificação. Ela escapa a essa relação crítica que, no século XVIII, era constituída do saber da natureza. Escapa, e isso quer dizer duas coisas:

  • a vida torna-se objeto de conhecimento em meio aos outros e, a esse título, está sob a alçada de toda crítica em geral;
  • mas resiste também a essa jurisdição crítica que ela retoma por sua conta e que reporta, em seu próprio nome, a todo conhecimento possível.

De sorte que, ao longo de todo século XIX, de Kant a Dilthey e a Bergson, os pensamentos críticos e as filosofias da vida se encontrarão numa posição de retomada e de contestação recíprocas.

VI. Monstros e fósseis

Capítulo V - Classificar; tópico VI. Monstros e fósseis

Objetar-se-á que houve, muito antes de Lamarck, todo um pensamento de tipo evolucionista. Que sua importância foi grande nos meados do século XVIII e até sua suspensão pelo golpe desferido por Cuvier. Que Bonnet, Maupertuis, Diderot, Robinet, Benoit de Maillet articularam muito claramente a ideia de que

  • as formas vivas podem passar umas às outras,
  • que as espécies atuais são sem dúvida o resultado de transformações antigas
  • e que todo o mundo vivo se dirige talvez para um ponto futuro, de sorte que não se poderia assegurar, a propósito de qualquer forma viva, que está definitivamente adquirida e estabilizada para sempre.

Na realidade, tais análises são incompatíveis com o que hoje entendemos por pensamento da evolução.

Com efeito, elas têm como propósito o quadro das identidades e das diferenças na série dos acontecimentos sucessivos. E, para pensar a unidade desse quadro e dessa série, só têm à sua disposição dois meios.

  • Um consiste em integrar na continuidade dos seres e na sua distribuição em quadro a série das sucessões.

Todos os seres que a taxinomia dispôs numa simultaneidade ininterrupta são então submetidos ao tempo. Não no sentido de que a série temporal faria nascer uma multiplicidade de espécies, que um olhar horizontal poderia em seguida dispor segundo um quadriculado classificador, mas no sentido de que todos os pontos da taxinomia são afetados por um índice temporal, de sorte que a “evolução” não é outra coisa senão o deslocamento solidário e geral da escala, desde o primeiro até o último de seus elementos. Esse sistema é o de Charles Bonnet. Ele implica, antes do mais, que a cadeia dos seres, dirigida por uma série inumerável de anéis para a perfeição absoluta de Deus, não a alcance atualmente(49); que a distância seja infinita entre Deus e a menos defeituosa das criaturas; e que, nessa distância talvez intransponível, toda a trama ininterrupta dos seres não cesse de avançar em direção a uma maior perfeição. Implica também que essa “evolução” mantenha intacta a relação que existe entre as diferentes espécies; se uma, em se aperfeiçoando, atinge o grau de complexidade que antes dela já possuía a do grau imediatamente superior, esta nem por isso é alcançada, pois, impelida pelo mesmo movimento, ela não pôde deixar de se aperfeiçoar numa proporção equivalente:

“Haverá um progresso contínuo e mais ou menos lento de todas as espécies em direção a uma perfeição superior, de sorte que todos os graus da escala serão continuamente variáveis numa relação determinada e constante… O homem, transportado para uma estância mais condizente com a eminência de suas faculdades, deixará ao macaco e ao elefante esse primeiro lugar que ocupava entre os animais de nosso planeta… Haverá Newtons entre os macacos e Vaubans entre os castores. As ostras e os pólipos serão, em relação às mais elevadas espécies, o que são os pássaros e os quadrúpedes em relação ao homem.”(50)

Esse “evolucionismo” não é uma forma de conceber o aparecimento dos seres uns a partir dos outros; é, na realidade, uma forma de generalizar o princípio de continuidade e a lei segundo a qual os seres formam uma superfície sem interrupção. Acrescenta, num estilo leibniziano(51), o contínuo do tempo ao contínuo do espaço e, à infinita multiplicidade dos seres, o infinito de seu aperfeiçoamento. Não se trata de uma hierarquização progressiva, mas do surto constante e global de uma hierarquia totalmente instaurada. O que supõe, finalmente, que o tempo, longe de ser um princípio da taxinomia, não seja mais que um de seus fatores. E que seja preestabelecido como todos os outros valores assumidos por todas as outras variáveis.

É necessário, pois, que Bonnet seja pré-formacionista e isso, muito longe do que entendemos, desde o século XIX, por “evolucionismo”; ele é obrigado a supor que as metamorfoses ou as catástrofes do globo foram dispostas de antemão como ocasiões para que a cadeia infinita dos seres se encaminhe no sentido de um infinito melhoramento:

“Essas evoluções foram previstas e inscritas nos germens dos animais desde o primeiro dia da criação. Pois essas evoluções estão ligadas a revoluções em todo o sistema solar, dispostas por Deus de antemão.” O mundo inteiro foi larva; ei-lo crisálida; um dia, sem dúvida, tomar-se-á borboleta(52) E todas as espécies serão arrastadas do mesmo modo por essa grande mutação.

Vê-se que semelhante sistema não é um evolucionismo que começasse a abalar o velho dogma da fixidez; é uma taxinomia que envolve, ademais, o tempo. Uma classificação generalizada.

  • A outra forma de “evolucionismo” consiste em conferir ao tempo um papel totalmente oposto.

Ele não serve mais para deslocar, sobre a linha finita ou infinita do aperfeiçoamento, o conjunto do quadro classificador, mas para fazer aparecer, umas após as outras, todas as porções que, juntas, formarão a rede contínua das espécies. Ele faz com que as variáveis do ser vivo assumam sucessivamente todos os valores possíveis: ele é a instância de uma caracterização que se efetua pouco a pouco e como que elementos após elementos.

As semelhanças ou as identidades parciais que sustentam a possibilidade de uma taxinomia seriam então as marcas patenteadas no presente de um único e mesmo ser vivo, persistindo através das metamorfoses da natureza e preenchendo assim todas as possibilidades que o quadro taxinômico oferece no vazio.

Se as aves, observa Benoit de Maillet, têm asas como os peixes têm barbatanas, é porque, na época do grande refluxo das primeiras águas, elas foram douradas ressequidas ou golfinhos transportados para sempre a uma pátria aérea.

“O sêmen desses peixes, transportado para pântanos, pode ter dado lugar à primeira transmigração da espécie, do mar para a terra. De 100 milhões que pereceram sem ter logrado adaptar-se, bastou que dois o conseguissem para dar origem à espécie.”(53)

Aqui, como em certas formas de evolucionismo, as mudanças nas condições de vida dos seres vivos parecem acarretar o aparecimento de espécies novas. Mas o modo de ação do ar, da água, do clima, da terra sobre os animais não é o de um meio ambiente sobre uma função e sobre os órgãos nos quais ela se realiza; os elementos exteriores só intervêm ocasionalmente para fazer aparecer o caráter: E esse aparecimento, se é cronologicamente condicionado por determinado acontecimento do globo, é tornado a priori possível pelo quadro geral das variáveis que define todas as formas eventuais do ser vivo.

O quase-evolucionismo do século XVIII parece pressagiar

  • tanto a variação espontânea do caráter, tal como se encontrará em Darwin,
  • quanto a ação positiva do meio ambiente, tal como a descreverá Lamarck.

Trata-se, porém, de uma ilusão retrospectiva:

  • com efeito, para essa forma de pensamento, a sequência do tempo jamais pode desenhar mais do que a linha ao longo da qual se sucedem todos os valores possíveis das variáveis preestabelecidas.
  • E, por conseguinte, é preciso definir um princípio de modificação interior ao ser vivo capaz de permitir-lhe, por ocasião de uma peripécia natural, assumir um novo caráter.

Está-se então diante de um novo ponto de escolha:

  • ou supor no ser vivo uma aptidão espontânea para mudar de forma (ou, pelo menos, para adquirir com as gerações um caráter ligeiramente diferente daquele que fora dado originalmente, de modo que pouco a pouco acabará por tornar-se irreconhecível),
  • ou então atribuir-lhe a busca obscura de uma espécie terminal que possuiria os caracteres de todas as que a precederam, num grau porém mais alto de complexidade e de perfeição.
O primeiro sistema é o dos erros ao infinito – tal como se encontra em Maupertuis.

O quadro das espécies que a história natural pode estabelecer teria sido adquirido, peça por peça, pelo equilíbrio, constante na natureza, entre uma memória que garante o continuo (manutenção das espécies no tempo e semelhança de uma com outra) e um pendor para o desvio que assegura, ao mesmo tempo, a história, as diferenças e a dispersão. Maupertuis supõe que as partículas da matéria são dotadas de atividade e de memória. Atraídas umas pelas outras, as menos ativas formam as substâncias minerais; as mais
ativas delineiam o corpo mais complexo dos animais. Essas formas, que são devidas à atração e ao acaso, desaparecem quando não podem subsistir. Aquelas que se mantêm dão nascimento a novos indivíduos, cuja memória conserva os caracteres do casal progenitor. E isso até que um desvio de partículas – um acaso – faça nascer uma nova espécie que, por sua vez, é mantida pela força obstinada da lembrança:
 
“A força de digressões repetidas, teria surgido a diversidade infinita dos animais.”(54)
 
Assim, cada vez mais os seres vivos adquirem, por variações sucessivas, todos os caracteres que lhes reconhecemos e, se os olharmos na dimensão do tempo, a superfície coerente e sólida que constituem não é mais que o resultado fragmentário de um continuo muito mais cerrado, muito mais fino: um contínuo que foi tecido com um número incalculável de pequenas diferenças esquecidas ou abortadas.
 
As espécies visíveis que se oferecem à nossa análise foram talhadas sobre o fundo incessante de monstruosidades que aparecem, cintilam, caem em ruína e por vezes se mantêm.
 
E aí está o ponto fundamental: a natureza só tem uma história na medida em que é – suscetível do contínuo.
 
É porque ela assume, um a um, todos os caracteres possíveis (cada valor de todas as variáveis) que se apresenta sob a forma da sucessão.
 
  • Não é diferente o que ocorre com o sistema inverso do protótipo e da espécie terminal.
Nesse caso, temos de supor, com J.-B. Robinet, que a continuidade não é garantida pela memória, mas por um projeto. Projeto de um ser complexo em direção ao qual a natureza se encaminha, partindo de elementos simples que ela compõe e organiza pouco a pouco:
 
“Primeiro, os elementos se combinam. Um pequeno número de princípios simples serve de base para todos os corpos”;
 
são eles que presidem exclusivamente à organização dos minerais; depois,
 
“a magnificência da natureza” não cessa de aumentar “até os seres que vagueiam sobre a superfície do globo”; “a variação dos órgãos em número, em grandeza, em finura, em textura interna, em figura externa ocasiona espécies que se dividem e se subdividem ao infinito mediante novas combinações”55.

E assim por diante, até a combinação mais complexa que conhecemos. De sorte que a continuidade inteira da natureza se aloja
 
  • entre um protótipo absolutamente arcaico, enterrado mais profundamente que toda a história,
  • e a extrema complicação desse modelo, tal como se pode observar, ao menos no globo terrestre, na pessoa do ser humano(56).
Entre esses dois extremos, há todos os graus possíveis de complexidade e de combinação: como uma imensa série de tentativas, das quais algumas persistiram sob a forma de espécies constantes e outras foram dissipadas.
 
Os monstros não são de uma “natureza” distinta da das próprias espécies:
 
“Creiamos que as mais estranhas formas na aparência… pertencem necessária e essencialmente ao plano universal do ser; que são metamorfoses do protótipo tão naturais quanto as outras, embora nos ofereçam fenômenos diferentes e sirvam de passagem às formas vizinhas: que elas preparam e dispõem as combinações que as seguem, assim como são dispostas por aquelas que as precedem; que contribuem para a ordem das coisas, longe de perturbá-la. É talvez somente por abundância de seres que a natureza chega a produzir seres mais regulares e com uma organização mais simétrica.”(57)
 
Em Robinet como em Maupertuis, a sucessão e a história são para a natureza apenas meios de percorrer a trama das variações infinitas de que ela é suscetível. Não é, pois, o tempo nem a duração que, através da diversidade dos meios ambientes, assegura a continuidade e a especificação dos seres vivos, mas sobre o fundo contínuo de todas as variações possíveis, o tempo desenha um percurso em que os climas e a geografia predispõem somente regiões privilegiadas e destinadas a se manterem.
 
  • O contínuo não é o sulco visível de uma história fundamental em que um mesmo princípio vivo se debateria com um meio ambiental variável.
    • Pois o contínuo precede o tempo. É sua condição.
  • E, em relação a ele, a história só pode desempenhar um papel negativo:
    • ela predispõe e faz subsistir
    • ou ela negligencia e deixa desaparecer.
Disso, duas consequências.

  • Primeiro, a necessidade de fazer intervir os monstros – que são como que o ruído de fundo, o murmúrio ininterrupto da natureza.
Se, com efeito é necessário que o tempo, que é limitado, percorra – já tenha talvez percorrido – todo o contínuo da natureza, deve-se admitir que um número considerável de variações possíveis tenham sido atravessadas e depois suprimidas;

  • assim como a catástrofe geológica era necessária para que se pudesse ascender do quadro taxinômico ao contínuo, através de uma experiência confusa, caótica e retalhada,
  • assim também a proliferação de monstros sem amanhã é necessária para que se possa tornar a descer do contínuo ao quadro através de uma série temporal.

Em outros termos,

  • o que num sentido deve ser lido como drama da terra e das águas,
  • deve ser lido, num outro sentido, como aberração aparente das formas.
O monstro garante no tempo e para nosso saber teórico uma continuidade que os dilúvios, os vulcões e os continentes desmoronados confundem no espaço para nossa experiência cotidiana.

  • A outra consequência é que, ao longo de uma tal história, os signos da continuidade são apenas da ordem da semelhança.
Como nenhuma relação do meio ambiente com o organismo(58) define essa história, as formas vivas nela sofrerão todas as metamorfoses possíveis e só deixarão atrás de si, como marca do trajeto percorrido, os indícios das similitudes.

Como se pode reconhecer, por exemplo, que a natureza não cessou de esboçar, a partir do protótipo primitivo, a figura, provisoriamente terminal, do homem? No fato de ter ela abandonado em seu percurso mil formas que dele desenham o modelo rudimentar.

Quantos fósseis não são, em relação à orelha, ao crânio ou às partes sexuais do homem, como que estátuas de gesso moldadas um dia e abandonadas por uma forma mais aperfeiçoada?

“A espécie que se assemelha ao coração humano e que se denomina, por causa disso, Antropocardite… merece uma atenção particular. Sua substância é uma rocha por dentro. A forma de um coração é tão bem imitada quanto possível. Nela se distingue o tronco da veia cava com uma porção de seus dois ramos. Vê-se também sair do ventrículo esquerdo o tronco da grande artéria com sua parte inferior descendente.”(59)

O fóssil, com sua natureza mista de animal e de mineral, é o lugar privilegiado de uma semelhança que o historiador do contínuo exige, ao passo que o espaço da taxinomia a decompunha rigorosamente.

O monstro e o fóssil desempenham ambos um papel muito preciso nessa configuração. A partir do poder do contínuo que a natureza detém,

  • o monstro faz aparecer a diferença: esta é ainda sem lei e sem estrutura bem definida; o monstro é o fulcro da especificação, mas não é mais que uma subespécie na obstinação lenta da história.
  • O fóssil é aquilo que deixa subsistir as semelhanças através de todos os desvios que a natureza percorreu; funciona como uma forma longínqua e aproximativa da identidade; marca um quase-caráter no mover-se do tempo.

É que o monstro e o fóssil nada mais são que a projeção em retrospectiva dessas diferenças e dessas identidades que definem, para a taxinomia, a estrutura e depois o caráter.


Eles formam, entre o quadro e o contínuo, a região sombria, móvel, trêmula, onde

  • o que a análise definirá como identidade não é ainda mais que muda analogia;
  • e o que ela definirá como diferença assinalável e constante não é ainda mais que livre e casual variação.

Mas, na verdade,


  • a história da natureza é tão impossível de ser pensada pela história natural,
  • a disposição epistemológica desenhada pelo quadro e pelo contínuo é tão fundamental,
  • que o devir só pode ter lugar intermediário e medido somente pelas exigências do conjunto.
É por isso que ele só intervém para a passagem necessária de um ao outro.

  • Quer como um conjunto de intempéries estranhas aos seres vivos e que lhes advêm unicamente do exterior.
  • Quer como um movimento incessantemente delineado, mas estancado desde seu esboço, e perceptível somente nas bordas do quadro, nas suas margens descuidadas:
e assim, sobre o fundo do contínuo,

  • o monstro narra, como em caricatura, a gênese das diferenças
  • e o fóssil lembra, na incerteza de suas semelhanças, as primeiras obstinações da identidade.

V. O contínuo e a catástrofe

Capítulo V - Classificar; tópico V. O contínuo e a catástrofe

No coração dessa língua bem-feita em que se tornou a história natural, persiste um problema.

Poderia ocorrer que, no final das contas, a transformação da estrutura em caráter nunca fosse possível e que o nome comum jamais pudesse nascer do nome próprio.

Quem pode garantir que as descrições não vão patentear elementos tão diversos de um indivíduo para outro e de uma espécie para outra, que toda tentativa para fundar um nome comum não seria de antemão arruinada?

Quem pode assegurar que cada estrutura não seja rigorosamente isolada de toda outra e que não funcione como marca individual?

Para que o mais simples caráter possa aparecer, é preciso que ao menos um elemento da estrutura primeiramente considerada se repita em outra.

Pois a ordem geral das diferenças que permite estabelecer a disposição das espécies implica um certo jogo de similitudes.

Esse problema é isomorfo daquele que já se encontrou a propósito da linguagem(36): para que um nome comum fosse possível, era preciso que houvesse entre as coisas esta semelhança imediata que permitisse aos elementos significantes

  • circularem ao longo das representações,
  • deslizarem à sua superfície,
  • prenderem-se às suas similitudes,
para formarem, finalmente, designações coletivas.
 

Mas para desenhar esse espaço retórico onde os nomes pouco a pouco assumiam seu valor geral, não era necessário determinar o estatuto dessa semelhança, nem se ela estava fundada em verdade; bastava que ela emprestasse bastante força à imaginação.

Entretanto, para a história natural, língua bem-feita, essas analogias da imaginação não podem valer como garantias; e é preciso que a história natural encontre o meio de contornar a dúvida radical que a ameaça assim como a qualquer linguagem, dúvida essa que Hume fazia incidir sobre a necessidade da repetição na experiência.

Deve haver continuidade na natureza. Essa exigência de uma natureza contínua não tem inteiramente a mesma forma nos sistemas e nos métodos.

Para os partidários do sistema, a continuidade é feita apenas pela justaposição sem falha das diferentes regiões que os caracteres permitem distinguir com clareza; basta uma gradação ininterrupta dos valores que, no domínio inteiro das espécies, a estrutura escolhida como caráter pode assumir; a partir desse princípio, evidenciar-se-á que todos esses valores serão ocupados por seres reais, mesmo que ainda desconhecidos.

“O sistema indica as plantas, até aquelas que não mencionou; coisa que jamais pode fazer a enumeração de um catálogo.”(37)

E sobre essa continuidade de justaposição, as categorias não serão simplesmente convenções arbitrárias; poderão corresponder (se não forem estabelecidas corretamente) a regiões que existem distintamente sobre essa superfície ininterrupta da natureza; serão regiões mais vastas, mas tão reais quanto os indivíduos.

É assim que o sistema sexual permitiu, segundo Lineu, descobrir gêneros indubitavelmente fundados:

“Saiba que não é o caráter que constituiu o gênero, mas o gênero que constituiu o caráter, que o caráter decorre do gênero, não o gênero do caráter.”(38)

Em contrapartida, nos métodos para os quais as semelhanças, sob sua forma maciça e evidente, são dadas de início, a continuidade da natureza

  • não será este postulado puramente negativo (ausência de espaço branco entre as categorias distintas,
  • mas uma exigência positiva: toda a natureza forma uma grande trama onde os seres se assemelham gradualmente, onde os indivíduos vizinhos são infinitamente semelhantes entre si; de sorte que todo corte que não indique a ínfima diferença do indivíduo, mas categorias mais amplas, é sempre irreal.

Continuidade de fusão em que toda generalidade é nominal. Nossas idéias gerais, diz Buffon, “são relativas a uma escala contínua de objetos, da qual só percebemos nitidamente os núcleos e cujas extremidades fogem e escapam sempre e cada vez mais às nossas considerações… Quanto mais aumentarmos o número de divisões das produções naturais, mais nos aproximaremos da verdade, visto que não existe realmente na natureza senão indivíduos e que os gêneros, as ordens, as classes só existem na nossa imaginação”(39).

E Bonnet dizia, no mesmo sentido, que

“não há saltos na natureza; nela tudo é graduado, matizado. Se, entre dois seres quaisquer, existisse um vazio, qual seria a razão da passagem de um ao outro? Portanto não há ser acima e abaixo do qual não haja outros que se lhe aproximem por alguns caracteres e que dele se afastem por outros”.

Podemos, pois, sempre descobrir “produções medianas”,

  • como o pólipo entre o vegetal e o animal,
  • o esquilo voador entre a ave e o quadrúpede,
  • o macaco entre o quadrúpede e o homem.

Por conseguinte, nossas distribuições em espécies e em classes “são puramente nominais”; elas não representam nada mais que “meios relativos às nossas necessidades e aos limites de nossos conhecimentos”(40).

No século XVIII, a continuidade da natureza é exigida por toda história natural, isto é, por todo esforço para instaurar na natureza uma ordem e nela descobrir categorias gerais, quer sejam elas reais e prescritas por distinções manifestas, quer cômoda e simplesmente demarcadas por nossa imaginação.

Só o contínuo pode garantir que a natureza se repita e que a estrutura, por consequência, possa tornar-se caráter.

Mas essa exigência logo se desdobra. Pois, se fosse dado à experiência, no seu movimento ininterrupto, percorrer exatamente, passo por passo,

  • o contínuo dos indivíduos,
  • das variedades,
  • das espécies,
  • dos gêneros,
  • das classes,
não haveria necessidade de constituir uma ciência; as designações descritivas se generalizariam de pleno direito e a linguagem das coisas, por um movimento espontâneo, se constituiria em discurso científico.
 

As identidades da natureza se ofereceriam como que letra por letra à imaginação e o deslizar espontâneo das palavras para dentro desse espaço retórico reproduziria em linhas cheias a identidade dos seres na sua generalidade crescente.

A história natural tomar-se-ia inútil, ou melhor, já estaria feita pela linguagem cotidiana dos homens; a gramática geral seria ao mesmo tempo a taxinomia universal dos seres.

Mas, se uma história natural perfeitamente distinta da análise das palavras é indispensável, é porque a experiência não nos libera o contínuo da natureza tal como ele é. Oferece-o ao mesmo tempo retalhado –

  • pois que há muitas lacunas na série dos valores efetivamente ocupados pelas variáveis (existem seres possíveis cujo valor se constata mas que jamais se teve ocasião de observar) –
  • e confuso, porque o espaço real, geográfico e terrestre onde nos encontramos nos mostra os seres imbricados uns com os outros numa ordem que, em relação à grande superfície das taxinomias, não passa de acaso, desordem ou perturbação.

Lineu observava que, ao associar nos mesmos lugares

  • o lernea (que é um animal)
  • e a conferva (que é uma alga),
  • ou ainda a esponja e o coral,

a natureza não reúne, como o desejaria a ordem das classificações,

“as mais perfeitas plantas com os animais chamados muito imperfeitos, mas combina os animais imperfeitos com as plantas imperfeitas”(41).

E Adanson constatava que a natureza

“é uma mistura confusa de seres que o acaso parece ter aproximado: aqui, o ouro está mesclado com outro metal, com uma pedra, com uma terra; ali, a violeta cresce ao lado do carvalho. Entre essas plantas vagueiam igualmente o quadrúpede, o réptil e o inseto; os peixes se confundem, por assim dizer, com o elemento aquoso onde nadam e com as plantas que crescem no fundo das águas… Essa mistura é tão geral até e tão multiplicada que parece ser uma das leis da natureza “(42).

Ora, essa imbricação é o resultado de uma série cronológica de acontecimentos. Estes têm seu ponto de origem e seu primeiro lugar de aplicação

  • não nas próprias espécies vivas,
  • mas no espaço onde elas se alojam.

Produzem-se na relação entre a Terra e o Sol, no regime dos climas, nas metamorfoses da crosta terrestre; o que eles atingem primeiramente são os mares e os continentes, é a superfície do globo; os seres vivos só são afetados por contragolpe e de maneira secundária: o calor os atrai ou os repele, os vulcões os destroem; desaparecem com as terras que desmoronam.

É possível, por exemplo, como supunha Buffon(43), que a terra tenha sido incandescente na origem, antes de arrefecer pouco a pouco; os animais, habituados a viver nas mais elevadas temperaturas, reagruparam-se na única região atualmente tórrida, enquanto as terras temperadas ou frias se povoavam de espécies que até então não tinham tido ocasião de aparecer.

Com as revoluções na história da Terra, o espaço taxinômico (onde as vizinhanças são da ordem do Caráter e não do modo de vida) veio a ser repartido num espaço concreto que o transmutava.

Bem mais: ele foi, sem dúvida, despedaçado, e muitas espécies, vizinhas daquelas que conhecemos ou intermediárias entre regiões taxinômicas que nos são familiares, devem ter-se extinguido, só deixando atrás de si vestígios difíceis de decifrar.

Em todo o caso, essa série histórica de acontecimentos se ajunta à superfície dos seres: não lhe pertence propriamente; desenrola-se no espaço real do mundo, não naquele, analítico, das classificações; o que ela põe em questão é o mundo como lugar dos seres e não os seres enquanto têm a propriedade de serem vivos.

Uma historicidade simbolizada pelas narrativas bíblicas afeta diretamente nosso sistema astronômico, indiretamente a rede taxinômica das espécies; e, além da Gênese e do Dilúvio, é bem possível que “nosso globo tenha sofrido outras revoluções que não nos foram reveladas. Ele depende de todo o sistema astronômico, e as ligações que unem este globo aos outros corpos celestes e, em particular, ao Sol e aos cometas podem ter sido a fonte de muitas revoluções, de que para nós não resta nenhum traço sensível e das quais talvez os habitantes de mundos vizinhos tenham tido algum conhecimento”(44).

A história natural supõe, pois, para poder existir como ciência, dois conjuntos:

  • um deles é constituído pela rede contínua dos seres; essa continuidade pode tomar diversas formas espaciais; Charles Bonnet concebe-a ora sob a forma de uma grande escala linear cujas extremidades são uma muito simples, outra muito complicada, tendo ao centro uma estreita região mediana, a única a nos ser desvelada, ora sob a forma de um tronco central do qual partiriam, de um lado, um ramo (o das conchas com os caranguejos e os lagostins como ramificações suplementares)
  • e, do outro, a série dos insetos na qual entroncam insetos e rãs(45);

Buffon define essa mesma continuidade “como uma vasta trama ou, antes, um feixe que, de intervalo em intervalo, lança ramos para o lado, a fim de se reunir a feixes de uma outra ordem”(46); Palias pensa numa figura poliédrica(47); J. Hennann queria constituir um modelo de três dimensões, composto de fios que, partindo todos de um ponto comum, se separam uns dos outros, “se expandem por um número muito grande de ramos laterais” e depois se reúnem de novo(48).

Dessas configurações espaciais que descrevem, cada qual à sua maneira, a continuidade taxinômica,

  • se distingue a série dos acontecimentos;
    • esta é descontínua e diferente em cada um de seus episódios, mas seu conjunto só pode desenhar uma linha simples, que é a do tempo (e que não se pode conceber como reta, quebrada ou circular).

Sob sua forma concreta e na espessura que lhe é própria, a natureza se aloja inteira

  • entre a superfície da taxinomia
  • e a linha das revoluções.

Os “quadros” que ela forma sob os olhos dos homens e que o discurso da ciência é encarregado de percorrer são os fragmentos da grande superficie das espécies vivas, de acordo com o que foi repartido, transmutado, imobilizado, entre duas revoluções do tempo.

Vê-se quanto é superficial opor, como duas opiniões diferentes e que se defrontassem em suas opções fundamentais

  • um “fixismo” que se contentasse em classificar os seres da natureza num quadro permanente
  • e uma espécie de “evolucionismo” que acreditasse numa história imemorial da natureza e num profundo impulso dos seres através da sua continuidade.

A solidez sem lacunas de uma rede de espécies e de gêneros e a série dos acontecimentos que a confundiram fazem parte, e num mesmo nível, do suporte epistemológico a partir do qual um saber como a história natural foi possível na idade clássica.

  • Não se trata de duas maneiras de perceber a natureza, radicalmente opostas porque comprometidas com opções filosóficas mais antigas e mais fundamentais que qualquer ciência;
  • trata-se de duas exigências simultâneas na rede arqueológica que define, na idade clássica, o saber da natureza.

Essas duas exigências, porém, são complementares. Portanto, irredutíveis. A série temporal não pode integrar-se na gradação dos seres. As épocas da natureza não prescrevem o tempo interior dos seres e de sua continuidade; elas ditam as intempéries que não cessaram de os dispersar, de os destruir, de os misturar, de os separar, de os entrelaçar.

Não há nem pode haver sequer a suspeita de um evolucionismo ou de um transformismo no pensamento clássico;

  • pois o tempo jamais é concebido como princípio de desenvolvimento para os seres vivos na sua organização interna;
  • só é percebido a título de revolução possível no espaço exterior onde eles vivem.

IV. O caráter

Capítulo V - Classificar; tópico IV. O caráter

A estrutura é essa designação do visível que, por uma espécie de triagem pré-Iínguística, permite a ele transcrever-se na linguagem.

Mas a descrição assim obtida não é mais que um modo de nome próprio:

  • deixa a cada ser sua individualidade estrita
  • e não enuncia
    • nem o quadro a que ele pertence,
    • nem a vizinhança que o cerca,
    • nem o lugar que ocupa.

Ela é pura e simples designação.

E, para que a história natural se torne linguagem, é preciso que a descrição se torne “nome comum”.

Viu-se como, na linguagem espontânea, as primeiras designações que concerniam a representações singulares, após terem assumido sua origem na linguagem de ação e nas raízes primitivas, adquiriram, pouco a pouco, por força da derivação, valores mais gerais.

A história natural, porém, é uma língua bem-feita:

  • não deve aceitar a imposição da derivação e de sua figura;
  • não deve dar crédito a nenhuma etimologia(15).

É preciso que ela reúna em uma única e mesma operação o que a linguagem de todos os dias mantém separado: deve, a um tempo,

  • designar muito precisamente todos os seres naturais
  • e situá-los ao mesmo tempo num sistema de identidades e de diferenças que os aproxima e os distingue dos outros.

A história natural deve assegurar, num só movimento, uma designação certa e uma derivação controlada.

E, como a teoria da estrutura superpunha uma à outra a articulação e a proposição,

do mesmo modo a teoria do caráter deve identificar os valores designativos e o espaço onde ocorre a sua derivação.

“Conhecer as plantas”, diz Tournefort, “é saber precisamente os nomes que se lhes deu em relação à estrutura de algumas de suas partes… A idéia do caráter, que distingue essencialmente as plantas umas das outras, deve ser invariavelmente unida ao nome de cada planta.”(16)

O estabelecimento do caráter é ao mesmo tempo fácil e difícil.

  • Fácil, porque a história natural não tem de estabelecer um sistema de nomes a partir de representações difíceis de analisar, mas sim de fundá-Io sobre uma linguagem que já se desenrolou na descrição. Nomear-se-á não a partir do que se vê mas a partir dos elementos que a estrutura já fez passar para o interior do discurso. Trata-se de construir uma linguagem segunda a partir dessa linguagem primeira, mas certa e universal.
  • Logo, porém, aparece uma dificuldade maior. Para estabelecer as identidades e as diferenças entre todos os seres naturais, seria preciso ter em conta cada traço que pôde ser mencionado numa descrição. Tarefa infinita que recuaria o advento da história natural para um longínquo inacessível, se não existissem técnicas para contornar a dificuldade e limitar o trabalho de comparação.

Pode-se, a priori, constatar que essas técnicas são de dois tipos.

  • Ou se fazem comparações totais, mas no interior de grupos empiricamente constituídos, onde o número de semelhanças é manifestamente tão elevado que a enumeração das diferenças não demorará a perfazer-se e assim, pouco a pouco, o estabelecimento das identidades e das distinções poderá ser assegurado.
  • Ou então se escolhe um conjunto finito e relativamente limitado de traços, dos quais se estudarão, em todos os indivíduos que se apresentarem, as constâncias e as variações.

Este último procedimento é o que se denominou Sistema.

O outro, Método.

Eles se opõem como se opõe Lineu a Buffon, a Adanson, a Antoine-Laurent de Jussieu. Como se opõe uma concepção rígida e clara da natureza à percepção fina e imediata de seus parentescos. Como se opõe a ideia de uma natureza imóvel à de uma continuidade fervilhante dos seres que se comunicam entre si, se confundem e talvez se transformem uns nos outros…

Contudo, o essencial não está nesse conflito das grandes intuições da natureza. Está antes na rede de necessidade que nesse ponto tornou possível e indispensável a escolha entre duas maneiras de constituir a história natural como uma língua. Todo o resto não passa de consequência lógica e inevitável.

O Sistema delimita, entre os elementos que sua descrição justapõe com minúcia, tais ou quais dentre eles. Eles definem a estrutura privilegiada e na verdade exclusiva, a propósito da qual se estudará o conjunto das identidades e das diferenças. Toda diferença que não recair sobre um desses elementos será reputada indiferente. Se, como o faz Lineu, se escolhem por nota característica “todas as partes diferentes da frutificação”(17), uma diferença de folha, ou de caule, ou de raiz, ou de pecíolo deverá ser sistematicamente negligenciada. Do mesmo modo, toda identidade que não for aquela de um desses elementos não terá valor para a definição do caráter.

Em contrapartida, quando, em dois indivíduos, esses elementos são semelhantes, eles recebem uma denominação comum.

A estrutura escolhida para ser o lugar das identidades e das diferenças pertinentes é o que se denomina caráter(7):

Segundo Lineu, o caráter se comporá da “mais cuidadosa descrição da frutificação da primeira espécie. Todas as outras espécies do gênero são comparadas à primeira, banindo-se todas as notas discordantes; enfim, após esse trabalho, o caráter se produz”(18).

O sistema é arbitrário em seu ponto de partida, pois que negligencia, de maneira regulada, toda diferença e toda identidade que não recai sobre a estrutura privilegiada.

Mas nada impede, de direito, que se possa um dia descobrir, através dessa técnica, um sistema que seria natural;

  • a todas as diferenças no caráter corresponderiam as diferenças de mesmo valor na estrutura geral da planta;
  • e, inversamente, todos os indivíduos ou todas as espécies reunidas sob um caráter comum teriam realmente, em cada uma de suas partes, a mesma relação de semelhança.

Mas só se pode aceder ao sistema natural, após se ter estabelecido com certeza um sistema artificial, ao menos em certos domínios do mundo vegetal ou animal.

Eis por que Lineu não busca estabelecer de imediato um sistema natural “antes de ser perfeitamente conhecido tudo o que é pertinente”(19) para seu sistema.

Por certo, o método natural constitui “o primeiro e último desejo dos botânicos” e todos os seus “fragmentos devem ser buscados com o maior cuidado”(20), como fez o próprio Lineu nas suas Classes Plantarum; mas, na falta desse método natural ainda por vir em sua forma certa e acabada “os sistemas artificiais são absolutamente necessários”(21). 

Ademais, o sistema é relativo: pode funcionar com a precisão que se deseje.

  • Se o caráter escolhido é formado de uma estrutura ampla, com um número elevado de variáveis, as diferenças aparecerão muito breve, desde que se passe de um indivíduo a outro, mesmo quando lhe for totalmente vizinho: o caráter está então muito próximo da pura e simples descrição(22).
  • Se, ao contrário, a estrutura privilegiada é estreita e comporta poucas variáveis, as diferenças serão raras e os indivíduos serão agrupados em massas compactas.

Escolher-se-á o caráter em função da finura da classificação que se quer obter.

Para fundar os gêneros, Tournefort escolheu como caráter a combinação entre a flor e o fruto. Não como Césalpin, por serem as partes mais úteis da planta, mas porque permitiam uma combinatória que era numericamente satisfatória: os elementos tomados de empréstimo às três outras partes (raízes, caules e folhas) eram, com efeito, ou demasiado numerosos, se tratados em conjunto, ou demasiado pouco numerosos, se considerados separadamente(23).

Lineu calculou que os 38 órgãos da geração, comportando cada qual as quatro variáveis do número, da figura, da situação e da proposição, autorizavam 5.576 configurações suficientes para definir os gêneros(24).

Se se quer obter grupos mais numerosos que os gêneros, é preciso apelar para caracteres mais restritos (“caracteres factícios convencionados entre os botânicos”) como, por exemplo, só os estames ou só o pistilo: poder-se-ão assim distinguir as classes ou as ordens(25).

Assim, o domínio inteiro do reino vegetal ou animal poderá ser quadriculado. Cada grupo poderá receber um nome. De sorte que uma espécie, sem precisar ser descrita, poderá ser designada com a maior precisão pelos nomes dos diferentes conjuntos nos quais se encaixa. Seu nome completo atravessa toda a rede dos caracteres, que se estabelece até as classes mais elevadas.

Porém, como observa Lineu, esse nome, por comodidade, deve ficar em parte “silencioso” (não se nomeiam a classe e a ordem), mas a outra parte deve ser “sonora”: é preciso nomear o gênero, a espécie e a variedade(26). A planta, assim reconhecida no seu caráter essencial e designada a partir dele, enunciará, ao mesmo tempo que aquilo que a designa com precisão, o parentesco que a liga às que se lhe assemelham e pertencem ao mesmo gênero (portanto, à mesma família e à mesma ordem). Ela terá recebido, a um só tempo, seu nome próprio e toda a série (manifesta ou oculta) dos nomes comuns nos quais se aloja.

“O nome genérico é, por assim dizer, a moeda de bom quilate de nossa república botânica.”(27) A história natural terá cumprido a sua tarefa fundamental que é “a disposição e a denominação”(28).

O Método é uma outra técnica para resolver o mesmo problema. Em vez de recortar na totalidade descrita os elementos – raros ou numerosos – que servirão de caracteres o método consiste em deduzi-Ios progressivamente. Deduzir deve ser aqui tomado no sentido de subtrair.

  • Parte-se – é o que faz Adanson no exame das plantas do Senegal(29) – de uma espécie arbitrariamente escolhida ou dada de início num encontro casual.
  • Faz-se a sua descrição completa, parte por parte e fixando todos os valores que nela tomaram as variáveis.
  • Recomeça-se esse trabalho para a espécie seguinte, dada ela também pelo arbitrário da representação; a descrição deve ser tão completa quanto a primeira, apenas com a diferença de ‘ que nada do que tenha sido mencionado na descrição primeira deve ser repetido na segunda. Só são mencionadas as diferenças.
  • Assim para a terceira em relação às duas outras, e isso indefinidamente.

De sorte que, no fim das contas, todos os traços diferentes de todos os vegetais terão sido mencionados uma vez, mas nunca mais do que uma vez. E, agrupando em torno das primeiras descrições as que foram feitas em seguida e que se rarefazem na medida em que se progride, vê-se delinear, através do caos primitivo, o quadro geral dos parentescos.

O caráter que distingue cada espécie ou cada gênero é o único traço mencionado sobre o fundo das identidades silenciosas. De fato, semelhante técnica seria sem dúvida a mais segura, mas o número de espécies existentes é tal que não seria possível chegar ao termo.

Entretanto, o exame das espécies encontradas revela a existência de grandes “famílias”, isto é, de amplos grupos nos quais as espécies e os gêneros têm um número considerável de identidades. E tão considerável que eles se assinalam por traços muito numerosos, mesmo para o olhar menos analítico; a semelhança entre todas as espécies de Ranúnculos, ou entre as espécies de Acônitos, aparece imediatamente aos sentidos.

Neste ponto, para que a tarefa não seja infinita, é preciso inverter o processo. Admitem-se as grandes famílias que são evidentemente reconhecidas e cujas primeiras descrições definiram, como que às cegas, os traços gerais. São esses traços comuns que se estabelecem agora de maneira positiva; depois, cada vez que se encontrar um gênero ou uma espécie que manifestamente os apresenta, bastará indicar por qual diferença eles se distinguem dos outros que lhes servem como que de circuito natural.

O conhecimento de cada espécie poderá ser facilmente adquirido a partir desta caracterização geral:

“Dividiremos cada um dos três reinos em várias famílias que reunirão todos os seres que têm entre si relações evidentes, passaremos em revista todos os caracteres gerais e particulares dos seres contidos nessas famílias”;

dessa maneira,

“poderemos estar seguros de reportar todos esses seres às suas famílias naturais; é assim que, começando pela fuinha e pelo lobo, pelo cão e pelo urso, conheceremos suficientemente o leão, o tigre, a hiena, que são animais da mesma família “(30).

Vê-se de imediato o que opõe método e sistema.

  • Só pode haver um método;
  • pode-se inventar e aplicar um número considerável de sistemas:
    • Adanson definiu 6531.

O sistema é arbitrário em todo o seu desenrolar, mas uma vez que o sistema de variáveis – o caráter – foi definido de início, não é mais possível modificá-lo, acrescentar-lhe ou retirar-lhe ainda que um só elemento.

  • O método é imposto de fora, pelas semelhanças globais que aproximam as coisas;
  • transcreve imediatamente a percepção no discurso;
  • permanece, em seu ponto de partida, o mais perto possível da descrição;
    • mas lhe é sempre possível trazer ao caráter geral que definiu empiricamente as modificações que se impõem: um traço que se acreditava essencial para um grupo de plantas ou de animais pode muito bem não ser mais que uma particularidade de alguns, desde que se descubram outros que, sem o possuírem, pertencem de maneira evidente à mesma família;
  • o metodo deve estar sempre pronto a retificar-se a si mesmo.

Como diz Adanson,

  • o sistema é como que “a regra da falsa posição no cálculo”: resulta de uma decisão, mas deve ser absolutamente coerente;
  • o método, ao contrário, é “um arranjo qualquer de objetos ou de fatos aproximados por conveniências ou semelhanças quaisquer, que se exprime por uma noção geral e aplicável a todos esses objetos, sem contudo considerar essa noção fundamental ou esse princípio como absoluto nem invariável, nem tão geral que não possa sofrer exceção… O método só difere do sistema pela ideia que o autor vincula a seus princípios, encarando-os como variáveis no método e como absolutos no sistema”(32).
Ademais,
  • o sistema só pode reconhecer, entre as estruturas do animal ou do vegetal, relações de coordenação: porque o caráter é escolhido, não em razão de sua importância funcional, mas em razão de sua eficácia combinatória; nada prova que, na hierarquia interior do indivíduo, tal forma de pistilo, tal disposição dos estames acarrete tal estrutura; se o germe da Adoxa está entre o cálice e a corola, se no arão os estames estão dispostos entre os pistilos, tudo isso não são nem mais nem menos que “estruturas singulares”(33): sua pouca importância só vem de sua raridade, ao passo que a igual divisão do cálíce e da corola não tem outro valor senão sua frequência(34).
  • O método, em contrapartida, porque vaí das identidades e das diferenças mais gerais às que o são menos, é suscetível de fazer aparecer relações verticais de subordinação. Com efeito, permite ver quais são os caracteres suficientemente importantes para não serem jamais desmentidos numa dada família.
Em relação ao sistema, a inversão é muito importante: os caracteres mais essenciais permitem distinguir as famílias mais amplas e mais visivelmente distintas, enquanto para Tournefort ou Lineu o caráter essencial definia o gênero; e bastava à “convenção” dos naturalistas escolher um caráter fictício para distinguir as classes ou as ordens.
 
No método, a organização geral e suas dependências internas dão-lhe primazia sobre a translação lateral de um equipamento constante de variáveis.
 
Apesar dessas diferenças, sistema e método repousam no mesmo suporte epistemológico.
 
É possível defini-lo numa palavra, dizendo que
 

no saber clássico o conhecimento dos indivíduos empíricos só pode ser adquirido sobre o quadro contínuo, ordenado e universal de todas as diferenças possíveis.

 
Todo ser trazia uma marca, e a espécie se media pela extensão de um brasão comum. De sorte que
 
  • cada espécie se assinalava por si mesma,
  • enunciava sua individualidade, independentemente de todas as outras:
  • ainda que estas não existissem, os critérios de definição para as únicas que permanecessem visíveis não seriam por isso modificados.
Mas, a partir do século XVII, não pode mais haver signos senão na análise das representações segundo as identidades e as diferenças.
 
Isso quer dizer que toda designação se deve fazer por certa relação com todas as outras designações possíveis. Conhecer aquilo que pertence propriamente a um indivíduo é ter diante de si a classificação ou a possibilidade de classificar o conjunto dos outros. A identidade e aquilo que a marca se definem pelo resíduo das diferenças.
 
Um animal ou uma planta
 
  • não é aquilo que é indicado – ou traído – pelo estigma que se descobre impresso nele;
  • é aquilo que os outros não são;
  • só existe em si mesmo no limite daquilo que dele se distingue.
Método e sistema são apenas as duas maneiras de definir as identidades pela rede geral das diferenças.
 
Mais tarde, a partir de Cuvier,
 
  • a identidade das espécies se fixará também por um jogo de diferenças, mas que aparecerão sobre o fundo das grandes unidades orgânicas com seus sistemas internos de dependência (esqueleto, respiração, circulação):
  • os invertebrados não serão definidos somente pela ausência de vértebras, mas
    • por um certo modo de respiração,
    • pela existência de um tipo de circulação
    • e por toda uma coesão orgânica que desenha uma unidade positiva.
 As leis internas do organismo tornar-se-ão, no lugar dos caracteres diferenciais, o objeto das ciências da natureza.

A classificação, como problema fundamental e constitutivo da história natural, alojou-se, historicamente e de modo necessário, entre uma teoria da marca e uma teoria do organismo.

III. A estrutura

Capítulo V - Classificar; tópico III. A estrutura

Assim disposta e entendida,

  • a história natural tem por condição de possibilidade o pertencer comum das coisas e da linguagem à representação;
  • mas só existe como tarefa, na medida em que coisas e linguagem se acham separadas.

Deverá, pois, reduzir essa distância,

  • para conduzir a linguagem o mais próximo possível do olhar
  • e, as coisas olhadas, o mais próximo possível das palavras.

A história natural não é nada mais que a nomeação do visível.

Daí sua aparente simplicidade e esse modo de proceder que, de longe, parece ingênuo, por ser tão simples e imposto pela evidência das coisas.

Tem-se a impressão de que, com Tournefort, com Lineu ou Buffon, se começou enfim a dizer o que desde sempre fora visível mas permanecera mudo ante uma espécie de distração invencível dos olhares.

De fato, não foi uma desatenção milenar que subitamente se dissipou, mas um campo novo de visibilidade que se constituiu em toda a sua espessura.

A história natural não se tornou possível porque se olhou melhor e mais de perto.

Em sentido estrito, pode-se dizer que a idade clássica se esforçou, se não por ver o menos possível, pelo menos por restringir voluntariamente o campo de sua experiência.

A observação, a partir do século XVII, é um conhecimento sensível combinado com condições sistematicamente negativas.

  • Exclusão, sem dúvida, de ouvir-dizer;
  • mas exclusão também do gosto e do sabor, porque com sua incerteza, com sua variabilidade, não permitem uma análise em elementos distintos que seja universalmente aceitável.
  • Limitação muito estreita do tato na designação de algumas oposições bastante evidentes (como as do liso e do rugoso);
  • privilégio quase exclusivo da vista, que é o sentido da evidência e da extensão, e, por consequência, de uma análise partes extra partes admitida por todo o mundo:
    • o cego do século XVIII pode perfeitamente ser geômetra, não será naturalista(3).

E, ainda, nem tudo o que se oferece ao olhar é utilizável:

  • as cores, em particular, quase não podem fundar comparações úteis.

O campo de visibilidade onde a observação vai assumir seus poderes não passa do resíduo dessas exclusões:

  • uma visibilidade que, além de liberada de qualquer outra carga sensível, é parda.

Esse campo, muito mais que o acolhimento enfim atento às próprias coisas, define a condição de possibilidade da história natural e do aparecimento de seus objetos filtrados:

  • linhas,
  • superfícies,
  • formas,
  • relevos.

Dir-se-á talvez que o uso do microscópio compensa essas restrições; e que, se a experiência sensível se estreitava do lado de suas mais duvidosas margens, estendia-se em direção aos objetivos novos de uma observação tecnicamente controlada.

De fato, é o mesmo conjunto de condições negativas que limitou o domínio da experiência e tornou possível a utilização de instrumentos de óptica.

  • Para tentar melhor observar através de uma lente, é preciso renunciar a conhecer pelos outros sentidos ou pelo “ouvir-dizer”.
  • Uma mudança de escala ao nível do olhar deve ter mais valor que as correlações entre os diversos testemunhos que podem trazer as impressões, as leituras ou as lições.
Se o encaixe indefinido do visível em sua própria extensão se oferece melhor ao olhar pelo microscópio, não é por isso superado. E a melhor prova está, sem dúvida, em que os instrumentos de óptica foram utilizados sobretudo para resolver os problemas da geração: isto é, para descobrir de que modo as formas, as disposições, as proporções características dos indivíduos adultos e de sua espécie podem transmitir-se através das idades, conservando sua rigorosa identidade.
 
O microscópio não foi requerido para ultrapassar os limites do domínio fundamental da visibilidade, mas para resolver um dos problemas que ele levantava – a manutenção, no curso das gerações, das formas visíveis. O uso do microscópio fundou-se numa relação não-instrumental entre as coisas e os olhos. Relação que define a história natural.
 
Não dizia Lineu que os Naturalia, em oposição aos Coelestia e aos Elementa, eram destinados a se oferecer diretamente aos sentidos?(4)
 
E Tournefort pensava que, para conhecer as plantas, “antes que escrutar cada uma de suas variações com um escrúpulo religioso”, valia mais analisá-Ias “tais como caem sob os oIhos”(5).
 
Observar é, pois, contentar-se com ver. Ver sistematicamente pouca coisa. Ver aquilo que, na riqueza um pouco confusa da representação, pode ser analisado, reconhecido por todos e receber, assim, um nome que cada qual poderá entender:
 
“Todas as similitudes obscuras”, diz Lineu, “só são introduzidas para desprestígio da arte”(6).
 
Desenvolvidas elas próprias, esvaziadas de todas as semelhanças, depuradas até mesmo de suas cores, as representações visuais vão enfim oferecer à história natural o que constitui seu objeto próprio: aquilo mesmo que ela fará passar para essa língua bem-feita que ela pretende construir.
 
Esse objeto é a extensão de que são constituídos os seres da natureza – extensão que pode ser afetada por quatro variáveis. E somente por quatro variáveis:
 
  • forma dos elementos,
  • quantidade desses elementos,
  • maneira como eles se distribuem no espaço uns em relação aos outros,
  • grandeza relativa de cada um.

Como dizia Lineu, num texto capital,

“toda nota deve ser tirada do número, da figura, da proporção, da situação”(7).

Por exemplo, quando se estudarem os órgãos sexuais da planta, será suficiente, mas indispensável,

  • enumerar estames e pistilo (ou eventualmente constatar sua ausência),
  • definir a forma que eles mostram,
  • segundo qual figura geométrica são distribuídos na flor (círculo, hexágono, triângulo),
  • qual o seu tamanho em relação aos outros órgãos.

Essas quatro variáveis, que se podem aplicar da mesma forma às cinco partes da planta – raízes, caules, folhas, flores, frutos – especificam a extensão que se oferece à representação, o bastante para que seja possível articulá-Ia numa descrição aceitável por todos:

  • perante o mesmo indivíduo, cada qual poderá fazer a mesma descrição;
  • e, inversamente, a partir de tal descrição, cada um poderá reconhecer os indivíduos que a ela correspondem.

Nessa articulação fundamental do visível, o primeiro afrontamento entre a linguagem e as coisas poderá estabelecer-se de uma forma que exclui toda incerteza. Cada parte visivelmente distinta de uma planta ou de um animal é, portanto, descritível na medida em que pode tomar quatro séries de valores.

Esses quatro valores, que afetam um órgão ou elemento qualquer e o determinam, é o que os botânicos denominam sua estrutura.

“Por estruturas das partes das plantas entende-se a composição e a reunião das peças que formam seu corpo.”(8)

Ela permite descrever logo o que se vê e de duas maneiras que não são nem contraditórias nem exclusivas.

  • O número e a grandeza podem sempre ser assinalados por um cálculo ou por uma medida; podemos, pois, exprimi-los em termos quantitativos.
  • Em contrapartida, as formas e as disposições devem ser descritas por outros procedimentos: quer pela identificação a formas geométricas, quer por analogias que devem ser, todas elas, “da maior evidência”(9).

É assim que se podem descrever certas formas bastante complexas a partir de sua semelhança muito visível com o corpo humano, que serve como que de reserva aos modelos da visibilidade e constituiu espontaneamente juntura entre o que se pode ver e o que se pode dizer(10).

Limitando e filtrando o visível, a estrutura lhe permite transcrever-se na linguagem. Por ela, a visibilidade do animal ou da planta passa por inteiro para o discurso que a recolhe.

E, no final, talvez lhe ocorra restituir-se ela própria ao olhar, através das palavras, como nesses caligramas botânicos com que sonhava Lineu(11).

Ele queria que a ordem da descrição, sua repartição em parágrafos e até seus módulos tipográficos reproduzissem a figura da própria planta. Que o texto, nas suas variáveis de forma, de disposição e de quantidade, tivesse uma estrutura vegetal.

“É belo seguir a natureza: passar da Raiz aos Caules, aos Pecíolos, às Folhas, aos Pedúnculos, às Flores.”

  • Era preciso que se separasse a descrição em tantas alíneas quantas são as partes da planta,
  • que. se imprimisse em caracteres maiúsculos o que concerne às partes principais,
  • em minúsculos, a análise das “partes das partes”.

Acrescentar-se-ia o que se conhece ainda da planta à maneira de um desenhista que complete seu esboço por jogos de sombra e de luz:

“O bosquejo conterá exatamente toda a história da planta, assim como seus nomes, sua estrutura, seu conjunto exterior, sua natureza, seu uso.”

Transposta na linguagem, a planta vem nela gravar-se e, sob os olhos do leitor, recompõe sua pura forma.

O livro torna-se o herbário das estruturas. E não se diga tratar-se de devaneio de um partidário do sistema que não representa a história natural em toda a sua extensão.

Em Buffon, que foi adversário constante de Lineu, a mesma estrutura existe e desempenha o mesmo papel:

“O método de investigação se exercerá sobre a forma, sobre a grandeza, sobre as diferentes partes, sobre seu número, sobre sua posição, sobre a substância mesma da coisa.”(12)

Buffon e Lineu estabelecem o mesmo crivo;

  • seu olhar ocupa sobre as coisas a mesma superfície de contato;
  • os mesmos vãos negros configuram o invisível;
  • as mesmas plagas, claras e distintas, oferecem-se às palavras.
  • Pela estrutura, aquilo que a representação fornece confusamente e na forma da simultaneidade acha-se assim analisado e oferecido ao desdobramento linear da linguagem.

Com efeito,

  • a descrição está para o objeto que se olha
  • como a proposição está para a representação que ela exprime:
    • constitui sua colocação em série, elementos após elementos.

Recorde-se, porém, que a linguagem sob sua forma empírica implicava

  • uma teoria da proposição
  • e outra da articulação.

Em si mesma, a proposição permanecia vazia; quanto à articulação, só constituía verdadeiramente discurso sob a condição de ser ligada pela função aparente ou secreta do verbo ser:

A história natural é uma ciência, isto é, uma língua, mas fundada e bem-feita:

  • seu desdobramento proposicional é, de pleno direito, uma articulação;
  • a colocação em série linear dos elementos recorta a representação segundo um modo que é evidente e universal.

Enquanto uma mesma representação pode dar lugar a um número considerável de proposições, pois os nomes que a preenchem a articulam segundo modos diferentes, um único e mesmo animal, uma única e mesma planta serão descritos da mesma forma, na medida em que da representação à linguagem reina a estrutura.

A teoria da estrutura, que percorre, em toda a sua extensão, a história natural na idade clássica superpõe, numa única e mesma função, os papéis que, na linguagem, desempenham a proposição e a articulação.

E é por aí que ela liga a possibilidade de uma história natural à máthêsis.

Com efeito, ela remete todo o campo do visível a um sistema de variáveis, cujos valores podem todos ser assinalados, se não por uma quantidade, ao menos por uma descrição perfeitamente clara e sempre finita.

Pode-se, por conseguinte, estabelecer entre os seres naturais

  • o sistema das identidades
  • e a ordem das diferenças.

Adanson estimava que um dia se poderia tratar a Botânica como uma ciência rigorosamente matemática e que seria lícito formular-lhe problemas como se faz em álgebra ou em geometria:

“encontrar o ponto mais sensível que estabelece a linha de separação ou de discussão entre a família das escabiosas e a das madressilvas”;

ou, ainda,

encontrar um gênero de plantas conhecido (natural ou artificial, não importa) que está justamente no meio-termo entre a família das Apocináceas e a das Boragináceas(13).

A grande proliferação dos seres na superfície do globo pode entrar, graças à estrutura, ao mesmo tempo

  • na sucessão de uma linguagem descritiva
  • e no campo de uma máthêsis que seria ciência geral da ordem.

E essa relação constitutiva, tão complexa, instaura-se na simplicidade aparente de um visível descrito.

Tudo isso é de grande importância para a definição da história natural quanto ao seu objeto.

Este é dado

  • por superfícies e linhas,
  • não por funcionamentos ou invisíveis tecidos.

Vêem-se menos a planta e o animal

  • em sua unidade orgânica
  • que pelo recorte visível de seus órgãos.

Eles são

  • patas e cascos, flores e frutos,
  • antes de serem respiração ou líquidos internos.

A história natural percorre um espaço de variáveis visíveis, simultâneas, concomitantes, sem relação interna de subordinação ou de organização.

Nos séculos XVII e XVIII, a anatomia perdeu o papel diretivo que tinha no Renascimento e que reencontrará na época de Cuvier; não que nesse ínterim a curiosidade tenha diminuído, nem o saber regredido, mas sim que a disposição fundamental do visível e do enunciável não passa mais pela espessura do corpo.

Daí o primado epistemológico da botânica:

  • é que o espaço comum às palavras e às coisas constituía para as plantas uma grade muito mais acolhedora, muito menos “negra” que para os animais;
  • na medida em que muitos órgãos constitutivos são visíveis na planta e não o são nos animais, o conhecimento taxinômico a partir de variáveis imediatamente perceptíveis foi mais rico e mais coerente na ordem botânica que na ordem zoológica.

É preciso, pois, inverter o que se diz ordinariamente:

  • não porque nos séculos XVII e XVIII houve interesse pela botânica que se conduziu o exame para os métodos de classificação.
  • Mas porque não se podia saber e dizer senão num espaço taxinômico de visibilidade é que o conhecimento das plantas devia realmente ter primazia sobre o dos animais.

Jardins botânicos e gabinetes de história natural eram, ao nível das instituições, os correlatos necessários desse recorte.

E sua importância para a cultura clássica não lhes vem essencialmente do que eles permitem ver, mas do que escondem e do que, por essa obliteração, eles deixam surgir:

  • disfarçam a anatomia e o funcionamento, ocultam o organismo,
  • para suscitar, ante os olhos que esperam sua verdade, o visível relevo das formas, com seus elementos, seu modo de dispersão e suas medidas.

São o livro ordenado das estruturas, o espaço onde se combinam os caracteres e onde se desdobram as classificações.

Um dia, no final do século XVIII, Cuvier saqueará os frascos do Museu, quebrá-Ios-á e dissecará toda a grande conserva clássica da visibilidade animal. Esse gesto iconoclasta, ao qual Lamarck jamais se decidirá, não traduz uma curiosidade nova por um segredo a cujo propósito não se teria tido nem a preocupação, nem a coragem, nem a possibilidade de conhecer.

Trata-se, muito mais seriamente, de uma mutação no espaço natural da cultura ocidental:

  • o fim da história, no sentido de Tournefort, de Lineu, de Buffon, de Adanson, no sentido igualmente em que Boissier de Sauvages a entendia quando opunha o conhecimento histórico do visível ao filosófico do invisível, do oculto e das causas14;
  • e será também o começo do que,
    • substituindo a anatomia à classificação,
    • o organismo à estrutura,
    • a subordinação interna ao caráter visível,
    • a série ao quadro,
  • permite precipitar no velho mundo plano e gravado em branco e preto, de animais e de plantas, toda uma massa profunda de tempo à qual se dará o nome renovado de história.

II. A história natural

Capítulo V - Classificar; tópico II. A história natural

Como pôde a idade clássica definir esse domínio da “história natural”, cuja evidência hoje e cuja unidade mesma nos parecem tão longínquas e como que já confusas?

Que campo é esse em que a natureza apareceu

  • próxima de si mesma o bastante para que os indivíduos que ela envolve pudessem ser classificados,
  • e suficientemente afastada de si, para que o devessem ser
    • pela análise
    • e pela reflexão?

Tem-se a impressão – e diz-se com muita frequência – que a história da natureza deve seu aparecimento ao malogro do mecanicismo cartesiano.

Quando finalmente se revelou impossível fazer entrar o mundo inteiro nas leis do movimento retilíneo, quando a complexidade do vegetal e do animal resistiu suficientemente às formas simples da substância extensa, então foi necessário que a natureza se manifestasse em sua estranha riqueza; e a minuciosa observação dos seres vivos teria nascido nessas plagas, de onde o cartesianismo acabava de se retirar.

Infelizmente as coisas não se passam com essa simplicidade. Pode ser – e isto ainda estaria por examinar – que uma ciência nasça de outra; jamais, porém, uma ciência pode nascer da ausência de outra, nem do fracasso, nem mesmo do obstáculo encontrado por outra.

De fato, a possibilidade da história natural, com Ray, Jonston, Christophe Knaut, é contemporânea do cartesianismo e não do seu fracasso. A mesma epistémê autorizou tanto a mecânica, desde Descartes até D’ Alembert quanto a história natural de Tournefort a Daubenton.

Para que a história natural aparecesse,

  • não foi preciso que a natureza se adensasse, se obscurecesse e multiplicasse seus mecanismos, até adquirir o peso opaco de uma história que apenas se pode delinear e descrever, sem se poder medir, calcular nem explicar:
  • foi preciso – e muito ao contrário – que a História se tornasse Natural.

O que existia no século XVI e até meados do século XVII eram histórias: Belon escrevera uma História da natureza das aves; Duret, uma História admirável das plantas; Aldrovandi, uma História das serpentes e dos dragões.

Em 1657, Jonston publica uma História natural dos quadrúpedes. Certamente essa data de nascimento não é rigorosa (1); está aqui somente para simbolizar uma referência e assinalar de longe o enigma aparente de um acontecimento.

Esse acontecimento é a súbita decantação, no domínio da História, de duas ordens, doravante diferentes, de conhecimento. Até Aldrovandi, a História era o tecido inextrincável e perfeitamente unitário daquilo que se vê das coisas e de todos os signos que foram nelas descobertos ou nelas depositados: fazer a história de uma planta ou de um animal era tanto dizer quais são seus elementos ou seus órgãos, quanto as semelhanças que se lhe podem encontrar, as virtudes que se lhe atribuem, as lendas e as histórias com que se misturou, os brasões onde figura, os medicamentos que se fabricam com sua substância, os alimentos que ele fornece, o que os antigos relatam dele, o que os viajantes dele podem dizer. A história de um ser vivo era esse ser mesmo, no interior de toda a rede semântica que o ligava ao mundo.

A divisão, para nós evidente, entre o que vemos, o que os outros observaram e transmitiram, o que os outros enfim imaginam ou em que crêem ingenuamente, a grande tripartição, aparentemente tão simples e tão imediata, entre

  • a Observação,
  • o Documento
  • e a Fábula

não existia.

E não porque a ciência hesitasse entre uma vocação racional e todo um peso de tradição ingênua, mas por uma razão bem mais precisa e bem mais constringente

  • é que os signos faziam parte das coisas,
  • ao passo que no século XVII eles se tornam modos da representação.

Quando Jonston escreveu sua História natural dos quadrúpedes, saberia ele a respeito mais que Aldrovandi, meio século antes?

Não muito, afirmam os historiadores.

Mas a questão não está aí ou, se se quiser colocá-la nesses termos, é preciso responder que Jonston sabe a respeito muito menos que Aldrovandi. Este, a propósito de todo animal estudado, desenvolvia, e no mesmo nível,

  • a descrição de sua anatomia e as maneiras de capturá-lo;
  • sua utilização alegórica e seu modo de geração;
  • seu habitat e os templos de suas lendas;
  • sua nutrição e a melhor maneira de torná-lo saboroso.

Jonston subdivide seu capítulo sobre o cavalo em 12 rubricas:

  • nome, partes anatômicas, habitação, idades, geração, vozes, movimentos, simpatia e antipatia, utilizações, usos medicinais(2).

Nada disso faltava em Aldrovandi, mas havia muito mais. E a diferença essencial reside nessa falta. Toda a semântica animal ruiu como uma parte morta e inútil.

As palavras que eram entrelaçadas ao animal foram desligadas e subtraídas: e o ser vivo, em sua anatomia, em sua forma, em seus costumes, em seu nascimento e em sua morte, aparece como que nu.

A história natural encontra seu lugar nessa distância agora aberta entre as coisas e as palavras – distância silenciosa, isenta de toda sedimentação verbal e, contudo, articulada segundo os elementos da representação, aqueles mesmos que, de pleno direito, poderão ser nomeados. As coisas beiram as margens do discurso, porque aparecem no âmago da representação.

Portanto, não é no momento em que se renuncia a calcular que se começa enfim a observar.

Na constituição da história natural, com o clima empírico em que se desenvolve,

  • não se deve ver a experiência forçando, bem ou mal, o acesso de um conhecimento que espreitava alhures a verdade da natureza;
  • a história natural eis por que ela apareceu precisamente nesse momento – é o espaço aberto na representação por uma análise que se antecipa à possibilidade de nomear;
  • é a possibilidade de ver o que se poderá dizer, mas que não se poderia dizer depois, nem ver, a distância, se as coisas e as palavras, distintas umas das outras, não se comunicassem, desde o início, numa representação.

A ordem descritiva que Lineu, bem após Jonston, proporá à história natural é muito característica. Segundo ele, todo capítulo concernente a um animal qualquer deve ter os seguintes passos:

  • nome,
  • teoria,
  • gênero,
  • espécie,
  • atributos,
  • uso e, para terminar,
  • Litteraria.

Toda a linguagem depositada pelo tempo sobre as coisas é repelida ao último limite, como um suplemento em que o discurso se relatasse a si mesmo e relatasse as descobertas, as tradições, as crenças, as figuras poéticas. Antes dessa linguagem da linguagem, é a própria coisa que aparece nos seus caracteres próprios, mas no interior dessa realidade que, desde o início, foi recortada pelo nome.

A instauração, na idade clássica, de uma ciência natural

  • não é o efeito direto ou indireto da transferência de uma racionalidade formada alhures (a propósito da geometria ou da mecânica).
  • É uma formação distinta, tendo sua arqueologia própria, ainda que ligada (mas segundo o modo da correlação e da simultaneidade) à teoria geral dos signos e ao projeto de máthêsis universal.

A velha palavra história muda então de valor e reencontra talvez uma de suas significações arcaicas. Em todo o caso, se é verdade que o historiador, no pensamento grego, foi realmente aquele que vê e que narra a partir de seu olhar, nem sempre foi assim em nossa cultura. Foi, aliás, bem tarde, no limiar da idade clássica, que ele tomou ou retomou esse papel.

  • Até meados do século XVII, o historiador tinha por tarefa estabelecer a grande compilação dos documentos e dos signos – de tudo o que, através do mundo, podia constituir como que uma marca.
  • Era ele o encarregado de restituir linguagem a todas as palavras encobertas.
  • Sua existência se definia menos pelo olhar que pela repetição, por uma palavra segunda que pronunciava de novo tantas palavras ensurdecidas.

A idade clássica confere à história um sentido totalmente diferente:

  • o de pousar pela primeira vez um olhar minucioso sobre as coisas
  • e de transcrever, em seguida, o que ele recolhe em palavras lisas, neutralizadas e fiéis.

Compreende-se que, nessa “purificação”, a primeira forma de história que se constituiu tenha sido a história da natureza. Pois, para construir-se, ela tem necessidade apenas de palavras aplicadas sem intermediário às coisas mesmas. Os documentos dessa história nova não são outras palavras, textos ou arquivos, mas espaços claros onde as coisas se justapõem:

  • herbários, coleções, jardins;
  • o lugar dessa história é um retângulo intemporal, onde, despojados de todo comentário, de toda linguagem circundante, os seres se apresentam uns ao lado dos outros, com suas superfícies visíveis, aproximados segundo seus traços comuns e, com isso, já virtualmente analisados e portadores apenas de seu nome.

Diz-se frequentemente que a constituição dos jardins botânicos e das coleções zoológicas traduzia uma nova curiosidade para com as plantas e os animais exóticos. De fato, já desde muito eles haviam suscitado interesse.

O que mudou foi o espaço em que podem ser vistos e donde podem ser descritos.

No Renascimento, a estranheza animal era um espetáculo; figurava nas festas, nos torneios, nos combates fictícios ou reais, nas reconstituições lendárias, onde quer que o bestiário desdobrasse suas fábulas sem idade.

O gabinete de história natural e o jardim, tal como são organizados na idade clássica, substituem o desfile circular do “mostruário” pela exposição das coisas em “quadro”.

O que se esgueirou entre esses teatros e esse catálogo não foi o desejo de saber, mas um novo modo de vincular as coisas ao mesmo tempo ao olhar e ao discurso.

Uma nova maneira de fazer história.

Sabe-se da importância metodológica que assumiram esses espaços e essas distribuições “naturais” para a classificação, nos fins do século XVIII, das palavras, das línguas, das raízes, dos documentos, dos arquivos, em suma, para a constituição de todo um ambiente de história (no sentido agora familiar da palavra), em que o século XIX reencontrará, após esse puro quadro das coisas, a possibilidade renovada de falar sobre palavras.

E de falar sobre elas não mais no estilo do comentário, mas segundo um modo que se considerará tão positivo, tão objetivo quanto o da história natural.

A conservação cada vez mais completa do escrito, a instauração de arquivos, sua classificação, a reorganização das bibliotecas, o estabelecimento de catálogos, de repertórios, de inventários representam, no fim da idade clássica, mais que uma sensibilidade nova ao tempo, ao seu passado, à espessura da história, uma forma de introduzir na linguagem já depositada e nos vestígios por ela deixados uma ordem que é do mesmo tipo da que se estabelece entre os seres vivos.

E é nesse tempo classificado, nesse devir quadriculado e espacializado que os historiadores do século XIX se empenharão em escrever uma história enfim “verdadeira” – isto é, liberada da racionalidade clássica, de sua ordenação e de sua teodicéia, uma história restituída à violência irruptiva do tempo.

I. O que dizem os historiadores

Capítulo V - Classificar; tópico I. O que dizem os historiadores

As histórias das ideias ou das ciências – aqui designadas somente pelo seu perfil médio – imputam ao século XVII, e sobretudo ao século XVIII, uma curiosidade nova:

  • aquela que os fez, se não descobrir, pelo menos dar uma amplitude e uma precisão até então insuspeitadas às ciências da vida,

A esse fenômeno atribuem-se tradicionalmente um certo número de causas e várias manifestações essenciais.

Do lado das origens ou dos motivos, colocam-se os privilégios novos da observação:

  • poderes que lhe seriam atribuídos desde Bacon
  • e os aperfeiçoamentos técnicos que lhe teria ocasionado a invenção do microscópio.

Arrola-se aí igualmente o prestígio então recente das ciências físicas, que forneciam um modelo de racionalidade;

  • desde que foi possível, pela experimentação ou pela teoria, analisar as leis do movimento ou do reflexo do raio luminoso,
  • não seria normal buscar, por experiências, observações ou cálculos, as leis que poderiam organizar o domínio mais complexo, mas vizinho, dos seres vivos?

O mecanismo cartesiano, que constituiu mais tarde um obstáculo, teria sido primeiro como que o instrumento de uma transferência, e teria conduzido, um pouco à sua revelia,

  • da racionalidade mecânica
  • à descoberta desta outra racionalidade que é a do ser vivo.

Os historiadores das ideias colocam um tanto confusamente, ainda do lado das causas, preocupações diversas:

  • o interesse econômico pela agricultura, de que a Fisiocracia foi um testemunho,
  • mas também os primeiros esforços de uma agronomia;
    • a meio caminho entre a economia e a teoria, a curiosidade pelas plantas e pelos animais exóticos que se tenta aclimatar e dos quais as grandes viagens de pesquisa ou de exploração – a de Tournefort ao Oriente Médio, a de Adanson ao Senegal – trazem descrições, gravuras e espécimes:
  • e sobretudo ainda, a valorização ética da natureza, com todo esse movimento a princípio ambíguo, pelo qual se “investem” – quer se seja aristocrata ou burguês – dinheiro e sentimento numa terra que, por longo tempo, as épocas precedentes haviam abandonado.

No coração do século XVIII, Rousseau herboriza. No registro das manifestações, os historiadores assinalam, em seguida, as formas variadas que assumiram essas ciências novas da vida e o “espírito”, por assim dizer, que as dirigiu.

Elas teriam sido

  • mecanicistas, de início, sob a influência de Descartes, e até o fim do século XVII;
  • os primeiros esforços de uma química apenas esboçada as teriam então marcado,
  • mas, durante todo o século XVIII, os temas vitalistas teriam assumido ou reassumido seu privilégio, para se formularem, enfim, numa teoria unitária – esse vitalismo que, sob formas um pouco diferentes, Bordeu e Barthez professam em Montpellier, Blumenbach, na Alemanha, Diderot e depois Bichat, em Paris.

Sob esses diferentes regimes teóricos, questões quase sempre as mesmas teriam sido colocadas, recebendo a cada vez soluções diferentes:

  • possibilidade de classificar os seres vivos –
    • só uns, como Lineu, sustentando que toda a natureza pode entrar numa taxinomia;
    • outros, como Buffon, que ela é demasiado diversa e demasiado rica para ajustar-se a um quadro tão rígido;
  • processo da geração
    • para aqueles, mais mecanicistas, que são partidários da pré-formação,
    • e outros que crêem num desenvolvimento específico dos germens;
  • análise dos funcionamentos (a circulação, após Harvey, a sensação, a motricidade e, no final do século, a respiração).

Através desses problemas e das discussões que eles suscitam, torna-se um jogo para os historiadores reconstituir os grandes debates que, como se diz, dividiram a opinião e as paixões dos homens, assim como seu raciocínio.

Crê-se assim reencontrar vestígios de um conflito maior entre

  • uma teologia que aloja, sob cada forma e em todos os movimentos, a providência de Deus, a simplicidade, o mistério e a solicitude de suas vias
  • e uma ciência que já busca definir a autonomia da natureza.

Depara-se também com a contradição entre

  • uma ciência demasiado arraigada ao velho primado da astronomia, da mecânica e da óptica
  • e uma outra que já suspeita sobre o que pode haver de irredutível e de específico nos domínios da vida.

Enfim, os historiadores veem delinear-se, como que sob seus olhos, a oposição entre

  • os que creem na imobilidade da natureza – à maneira de Tournefort e sobretudo Lineu –
  • e os que como Bonnet Benoit de Maillet e Diderot, já pressentem
    • a grande potência criadora da vida,
    • seu inesgotável poder de transformação,
    • sua plasticidade
    • e esse fluxo no qual ela envolve todas as produções, inclusive nós mesmos, num tempo de que ninguém é senhor.

Bem antes de Darwin e bem antes de Lamarck, o grande debate do evolucionismo teria sido aberto pelo Telliamed, a Palingénesie e o Rêve de D‘Alembert.

O mecanicismo e a teologia, apoiados um no outro ou contestando-se incessantemente,

  • manteriam a idade clássica o mais próximo possível de sua origem – do lado de Descartes e de Malebranche;

do outro lado, a irreligião e toda uma intuição confusa da vida, por sua vez em conflito (como em Bonnet) ou em cumplicidade (como em Diderot),

  • a atrairiam em direção ao seu mais próximo futuro: em direção ao século XIX, que se supõe ter fornecido às tentativas ainda obscuras e amarradas do século XVIII sua realização positiva e racional numa ciência da vida, que não teve necessidade de sacrificar a racionalidade para manter, no mais vivo de sua consciência, a especificidade do ser vivo e esse calor um pouco subterrâneo que circula entre
    • ele – objeto de nosso conhecimento –
    • e nós, que estamos aí para conhecê-lo.

Inútil voltar aos pressupostos de tal método. Basta mostrar aqui suas consequências:

  • a dificuldade de apreender a rede capaz de ligar, umas às outras, pesquisas tão diversas como as tentativas de taxinomia e as observações microscópicas;
  • a necessidade de registrar como fatos de observação os conflitos entre os fixistas e os que não o são, ou entre os partidários do método e os partidários do sistema;
  • a obrigação de dividir o saber em duas tramas que se imbricam, embora estranhas uma à outra:
    • a primeira, definida pelo saber já acumulado (a herança aristotélica ou escolástica, o peso do cartesianismo, o prestígio de Newton),
    • a segunda, pelo que ainda se ignorava (a evolução, a especificidade da vida, a noção de organismo);
  • e, sobretudo, a aplicação de categorias que são rigorosamente anacrônicas em relação a esse saber.

De todas, a mais importante é evidentemente a de vida.

Pretende-se fazer histórias da biologia no século XVIII;

  • mas não se tem em conta que a biologia não existia
  • e que a repartição do saber que nos é familiar há mais de 150 anos não pode valer para um período anterior.

E que, se a biologia era desconhecida, o era por uma razão bem simples:

  • é que a própria vida não existia.

Existiam apenas seres vivos e que apareciam através de um crivo do saber constituído pela história natural.