Discussão relacionada aos vídeos Falando nisso 150 e 254

Michel Foucault em ‘As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas’ posiciona produções de pensamento baseadas na representação e desde fora dela de lados opostos com relação a uma descontinuidade epistemológica descrita por ele como tendo ocorrido entre os anos de 1775 e 1825 em nossa cultura. E identifica já no trabalho de David Ricardo, em 1817, exatamente movimento como esse percebido por Lacan, entre 1953 e 1960: abandono do primado concedido à representação e formulação a partir de uma região em que ela não tem mais domínio. Veja isso aqui.

Dado que a linguagem está presente tanto na psicanálise de Freud como na de Lacan, o movimento de pensamento de Lacan, para fazer sentido precisava formular sua psicanálise sobre uma linguagem transformada quanto às origens do valor carregado em suas proposições obtido agora desde fora da representação. 

Isso corresponde a uma alteração profunda na linguagem, que exige a instauração de uma nova forma de reflexão, e implica em uma grande extensão na visão que temos do que sejam operações no sentido amplo, e pode ser entendido como duas possibilidades de inserção do ponto de início da leitura do fenômeno operações em função da operação de troca

  • no instante da troca, no cruzamento entre o que é dado e o que é recebido; 
  • ou na prospecção da permutabilidade agora tendo como origem de valor
    • as designações primitivas 
    • e a linguagem de ação.

Quero insistir na conveniência de uma verificação da existência – entre essas teorias, modelos e sistemas relacionadas ao liberalismo e variantes -, de produções do pensamento: 

  • fundadas na representação, como o trabalho em Adam Smith, segundo Foucault e a psicanálise de Freud segundo Lacan, 
  • e também de outras fundadas fora da representação, como o trabalho em David Ricardo, segundo Foucault e a psicanálise na visão de Lacan, 

verificação esta feita em todo o extenso período de tempo abrangido pela discussão no vídeo 254. 

Como dito, ao fazer essa referência tenho em mente o livro ‘As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas’ de Michel Foucault, que também tenho estudado, e ainda um desenvolvimento com o título ‘Projeto Formulador’. Com esses elementos  e com esse escopo, faço um resumo do que poderia ser um cotejo  entre as ideias expostas nesses dois vídeos ‘Falando nisso’ 150 e 254 com esses critérios.  

Sumariamente, uma verificação como essa consistiria em fazer o seguinte:

  • partindo da arqueologia das ciências humanas feita por Foucault no ‘As palavras e as coisas’, e identificar as diferentes configurações do pensamento em nossa cultura descritas nesse livro, fazendo comparações e identificação de cada uma delas por meio de características de características (características de segunda ordem) explicitamente mencionadas no texto de Foucault.
  • tomar em seguida uma coleção de modelos práticos existentes, alguns antológicos e muito utilizados atualmente, outros nem tanto, no domínio da produção/economia principalmente, e também no campo econômico-financeiro; no Projeto Formulador procuro entender como esses modelos funcionam – do ponto de vista da origem condições de possibilidade e generalidade dentro de limites, do pensamento utilizado em cada um -, para a seguir relacioná-los a uma daquelas configurações de pensamento extraídas do texto de Foucault, e que integram a arqueologia feita por ele.

Trata-se de fazer algo bastante semelhante ao que Lacan certamente fez ao perceber problemas na psicanálise de Freud ao identificar que  esta estava baseada na representação; e seguir esse mesmo caminho só que para modelos no domínio da produção/economia ao longo do tempo .

Com esse trabalho ‘Projeto Formulador’, e o apoio de Michel Foucault com o ‘As palavras e as coisas’, encontro em nosso meio – muito claramente identificados -, 

Uns e outros com diferentes visões do que seja uma operação, mas tomados sem distinção e utilizados no mesmo ambiente e até simultaneamente embora fundados em bases tão distintas.

Noto, porém, que a utilização desses modelos tão diversos é feita sem discernimento, por parte de seus usuários, sobre qual seja a forma de reflexão filosófica com a qual foram feitos e a estrutura de conceitos que está em suas bases. 

Não é feito um alinhamento filosófico entre eles e como diz Foucault, seu uso se dá sem ‘consciência epistemológica do homem’ (o que fica evidenciado pelo uso de modelos em cuja estrutura essa entidade homem não tem lugar).

Teorias, modelos e sistemas econômicos, sociais, políticos são formidavelmente complexos, muito exigentes do analista e cada um deles admite, para uma mesma formulação mantendo determinada fundamentação, uma grande quantidade de configurações diferentes. O livro ‘As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas’ a meu ver funciona como uma cartilha de inestimável utilidade no entendimento deles. 

Pode ser que os questionamentos feitos no vídeo 254 sobre o liberalismo e neoliberalismo tomem como objeto instâncias prontas desses modelos, vistos formulados, já configurados e em efetiva utilização em determinadas épocas, sem entrar nas condições de possibilidade sobre as quais foram formulados.

Nesse vídeo no ponto 11:20 vejo a afirmativa de que a teoria liberal não é só uma teoria econômica: ela é o que a gente poderia chamar de uma psicologia. Um pouco adiante desse ponto, o áudio afirma que a alteração influi em nossas trocas.

Há hoje em dia, algumas unanimidades quanto aos conceitos utilizados:

O movimento do pensamento de Lacan com a mudança de base desde a representação para a linguagem usando conceitos atinentes à fala arrasta para o centro da cena, em vez de ‘Processo’, a ‘Forma de produção’ como elemento central de uma operação. Estamos na etapa da Construção de representação nova, parte da visão expandida que temos do que sejam operações, as de pensamento ou outras de qualquer tipo.

Agora a operação ‘na linguagem’, pensada com ideias atinentes à fala, abrange a construção de representações novas (David Ricardo foi o pioneiro em fazer isso, no que é consistente com Lacan); essas operações transcorrem no interior do espaço referido por Foucault como o ‘Lugar de nascimento do que é empírico’, surgido ao tempo da prospecção da permutabilidade possível, antes portanto da existência dos objetos envolvidos em uma operação de troca. (nunca vi ninguém falar nesse espaço ‘Lugar de nascimento do que é empírico’ o substituto de ‘Mercado’ em uma visão de Lacan generalizada, a menos de Foucault)

O Circuito onde ocorrem as trocas, ou ‘Mercado’, virá somente na etapa seguinte das operações, a do Instanciamento de representações já existentes.

Ressalto aqui a visão de subjetividade como instância capaz de representação das coisas; imagino que essa visão seja original de Lacan, acho que é.

Essa visão combina à perfeição com a visão de operações em qualquer campo, como um processamento de informação no qual Entradas são transformadas em Saídas e a estrutura do sistema é a Input-Output. Esse modelo é consistente com o pensamento clássico, está baseado na representação, e o abandono dele, indica o abandono do pensamento clássico por parte de Lacan.

De uma configuração de pensamento para outra as mudanças são muito grandes.  O caminho que o pensamento deve percorrer é mais extenso do que parece ser à primeira vista.

As mudanças podem ser avaliadas mais de perto vendo as ideias, ou elementos de imagem, colocados em figuras representativas das operações, de suas propriedades emergentes, etc. b)