I. A idade da história

Capítulo VII - Os limites da representação; tópico I. A idade da história

Os últimos anos do século XVIII são rompidos por uma descontinuidade simétrica àquela que, no começo do século XVII, cindira o pensamento do Renascimento;  

então, as grandes figuras circulares em que se encerrava a similitude tinham-se deslocado e aberto para que o quadro das identidades pudesse desdobrar-se; 

e esse quadro agora vai por sua vez desfazer-se,
alojando-se o saber num espaço novo. 

Descontinuidade tão enigmática
em seu princípio, em seu primitivo despedaçamento,
quanto a que separa os círculos de Paracelso
da ordem cartesiana. 

Donde vem bruscamente essa mobilidade inesperada das disposições epistemológicas, o desvio das positividades umas em relação às outras,
mais profundamente ainda
a alteração de seu modo de ser? 

Como ocorre que o pensamento se desprenda daquelas plagas que habitava outrora –
gramática geral, história natural, riquezas
– e deixe oscilar no erro, na quimera, no não-saber aquilo mesmo que, menos de 20 anos antes, estava estabelecido e afirmado no espaço luminoso do conhecimento? 

A que acontecimento ou a que lei obedecem essas mutações que fazem com que de súbito as coisas não sejam mais percebidas, descritas, enunciadas, caracterizadas, classificadas e’ sabidas do mesmo modo e que, no interstício das palavras ou sob sua transparência, não sejam mais as riquezas, os seres vivos, o discurso que se oferecem ao saber, mas seres radicalmente diferentes? 

Se, para uma arqueologia do saber, essa abertura profunda na camada das continuidades deve ser analisada, e minuciosamente, não pode ser ela “explicada”, nem mesmo recolhida numa palavra única. 

É um acontecimento radical que se reparte por toda a superfície visível do saber e cujos signos, abalos, efeitos, podem-se seguir passo a passo. 

Somente o pensamento, assenhoreando-se de si mesmo na raiz de sua história, poderia fundar, sem nenhuma dúvida, o que foi, em si mesma, a verdade solitária desse acontecimento. 

A arqueologia, essa, deve percorrer o acontecimento segundo sua disposição manifesta; 

  • ela dirá como as configurações próprias a cada positividade se modificaram 
  • (ela analisa por exemplo,
    • para a gramática, o desaparecimento do papel maior atribuído ao nome e a importância nova dos sistemas de flexão;
    • ou ainda, a subordinação, no ser vivo, do caráter à função); 
  • ela analisará a alteração dos seres empíricos que povoam as positividades
    • (a substituição do discurso pelas línguas, 
    • das riquezas pela produção); 
  • estudará o deslocamento das positividades umas em relação às outras 
  • (por exemplo,
    • a relação nova entre a biologia, as ciências da linguagem e a economia); 
  • enfim e sobretudo, mostrará que o espaço geral do saber não é mais
    •  o das identidades e  das diferenças, 
    • o das ordens não-quantitativas, 
    • o de uma caracterização universal, 
    • de uma taxinomia geral, 
    • de uma máthêsis do não-mensurável, 
  • mas
    • um espaço feito de organizações, isto é, de relações internas entre elementos, cujo conjunto assegura uma função; 
    • mostrará que essas organizações são descontínuas, 
    • que não formam, pois, um quadro de simultaneidades sem rupturas, 
    • mas que algumas são do mesmo nível 
    • enquanto outras traçam séries ou sequências lineares. 

De sorte que se vêem surgir,
como princípios organizadores
desse espaço de empiricidades,
a Analogia e a Sucessão:
de uma organização a outra, o liame, com efeito,
não pode mais ser 

a identidade de um ou vários elementos,

mas 

a identidade da relação entre os elementos
(onde a visibilidade não tem mais papel)
e da função que asseguram; 

ademais, se porventura essas organizações se avizinham por efeito de uma densidade singularmente grande de analogias, 

não é porque

ocupem localizações próximas num espaço de classificação, 

mas sim porque 

foram formadas uma ao mesmo tempo que a outra
e uma logo após a outra

no devir das sucessões.

 Enquanto, no pensamento clássico,

  • a seqüência das cronologias não fazia mais que percorrer o espaço prévio e mais fundamental de um quadro que de antemão apresentava todas as suas possibilidades,

doravante

  • as semelhanças contemporâneas e observáveis simultaneamente no espaço não serão mais que as formas depositadas e fixadas de uma sucessão que procede de analogia em analogia. 

A ordem clássica 

distribuía num espaço permanente as identidades e as diferenças não-quantitativas que separavam e uniam as coisas: 

era essa a ordem que reinava soberanamente, mas a cada vez segundo formas e leis ligeiramente diferentes, sobre o discurso dos homens, o quadro dos seres naturais e a troca das riquezas. 

A partir do século XIX, 

a História vai desenrolar numa série temporal as analogias que aproximam umas das outras as organizações distintas. 

É essa História que, progressivamente, imporá suas leis à análise da produção, à dos seres organizados, enfim, à dos grupos linguísticos. 

  • A História dá lugar às organizações analógicas, 
  • assim como a Ordem abria o caminho das identidades e das diferenças sucessivas. 

Mas vê-se bem que 

a História não deve ser aqui entendida como a coleta das sucessões de fatos, tais como se constituíram; 

ela é o modo de ser fundamental das empiricidades, aquilo a partir de que elas são afirmadas, postas, dispostas e repartidas no espaço do saber para eventuais conhecimentos e para ciências possíveis. 

Assim como a Ordem no pensamento clássico 

  • não era a harmonia visível das coisas, seu ajustamento, sua regularidade ou sua simetria constatados, 
  • mas o espaço próprio de seu ser e aquilo que, antes de todo conhecimento efetivo, as estabelecia no saber, 

assim também a História, a partir do século XIX, 

  • define o lugar de nascimento do que é empírico, lugar onde, aquém de toda cronologia estabelecida, ele assume o ser que lhe é próprio. 

É por isso certamente que tão cedo a História se dividiu, segundo um equívoco que sem dúvida não é possível vencer, entre 

  • uma ciência empírica dos acontecimentos 
  • e esse modo de ser radical que prescreve seu destino a todos os seres empíricos e a estes seres singulares que somos nós. 

A História, como se sabe, é efetivamente a região mais erudita, mais informada, mais desperta, mais atravancada talvez de nossa memória; mas é igualmente a base a partir da qual todos os seres ganham existência e chegam à sua cintilação precária. 

Modo de ser de tudo o que nos é dado na experiência, a História tornou-se assim o incontornável de nosso pensamento: no que, sem dúvida, não é tão diferente da Ordem clássica. 

  • Essa também podia ser estabelecida num saber organizado mas era mais fundamentalmente o espaço onde todo ser vinha ao conhecimento; 
  • e a metafisica clássica alojava-se precisamente nessa distância
    • da Ordem à ordem, 
    • das classificações à Identidade, 
    • dos seres naturais à Natureza:
    • em suma,
      • da percepção (ou da imaginação) dos homens 
      • para com o entendimento e a vontade de Deus. 

A filosofia do século XIX se alojará na distância 

  • da história à História, 
  • dos acontecimentos à Origem, 
  • da evolução ao primeiro dilaceramento da fonte, 
  • do esquecimento ao Retorno. 

Portanto, 

  • ela só não será mais Metafisica na medida em que será Memória 
  • e, necessariamente, reconduzirá o pensamento à questão de saber o que é, para o pensamento, ter uma história. 

Essa questão infatigavelmente acossará a filosofia, de Hegel a Nietzsche, e para além desses. 

Não vejamos nisso o fim de uma reflexão filosófica autônoma, demasiado matinal e demasiado orgulhosa para se inclinar exclusivamente sobre o que foi dito antes dela e por outros; não tomemos isso como um pretexto para denunciar um pensamento impotente para manter-se de pé sozinho e sempre constrangido a enrolar-se a um pensamento já realizado. 

Basta reconhecer aí uma filosofia 

  • já desprendida de certa metafisica, porque desligada do espaço da ordem, 
  • mas votada ao Tempo, ao seu fluxo, a seus retornos, porque presa ao modo de ser da História. 

É preciso, porém, retomar, com um pouco mais de detalhe, ao que se passou na curva dos séculos XVIII e XIX: 

  • a essa mutação demasiado rapidamente desenhada da Ordem à História 
  • e à alteração fundamental dessas positividades que, durante quase um século e meio, deram lugar a tantos saberes vizinhos –
    • análise das representações, 
    • gramática geral, 
    • história natural, 
    • reflexões sobre as riquezas 
    • e o comércio. 

Como essas maneiras de ordenar a empiricidade que foram o discurso, o quadro, as trocas, se desvaneceram? 

Em que outro espaço e segundo quais figuras as palavras, os seres, os objetos da necessidade tomaram lugar e se distribuíram uns em relação aos outros? 

Que novo modo de ser devem ter recebido para que todas essas mudanças fossem possíveis e para que aparecessem, ao cabo de alguns anos apenas, esses saberes agora familiares a que chamamos, desde o século XIX, filologia, biologia, economia política? 

Imaginamos facilmente que, se esses novos domínios foram definidos no século passado, é porque um pouco mais de objetividade no conhecimento, de exatidão na observação, de rigor no raciocínio, de organização na pesquisa e na informação cientifica – tudo isso ajudado, com um pouco de sorte ou de gênio, por algumas descobertas felizes, nos fez sair de uma idade pré-histórica em que o saber balbuciava ainda com a Gramática de Port-Royal, as classificações de Lineu e as teorias do comércio ou da agricultura. 

Mas 

  • se, do ponto de vista da racionalidade dos conhecimentos, podemos realmente falar em pré-história, 
  • para as positividades só podemos falar em história. 

E foi realmente necessário
um acontecimento fundamental
– um dos mais radicais, sem dúvida, que ocorreram na cultura ocidental,
para que se desfizesse
a positividade do saber clássico
e se constituísse uma positividade
de que, por certo, não saímos inteiramente. 

Esse acontecimento, sem dúvida porque estamos ainda presos na sua abertura, nos escapa em grande parte. 

Sua amplitude, as camadas profundas que atingiu, todas as positividades que ele pode subverter e recompor, a potência soberana que lhe permitiu atravessar, em alguns anos apenas, o espaço inteiro de nossa cultura, tudo isso só poderia ser estimado e medido ao termo de uma inquirição quase infinita que só concerniria, nem mais nem menos, ao ser mesmo de nossa modernidade. 

  • A constituição de tantas ciências positivas, 
  • o aparecimento da literatura, 
  • a volta da filosofia sobre seu próprio devir, 
  • a emergência da história
    • ao mesmo tempo como saber 
    • e como modo de ser da empiricidade, 
  • não são mais que sinais de uma ruptura profunda. 

Sinais dispersos no espaço do saber, pois que se deixam perceber na formação, 

  • aqui de uma filologia, 
  • ali de uma economia política, 
  • ali ainda de uma biologia. 

Dispersão também na cronologia: certamente, o conjunto do fenômeno se situa entre datas facilmente assinaláveis

  • (os pontos extremos são os anos 1775 e 1825); 
  • podem-se porém reconhecer, em cada um dos domínios estudados, duas fases sucessivas que se articulam uma à outra, mais ou menos por volta dos anos 1795-1800. 

Na primeira dessas fases, 

  • o modo de ser fundamental das positividades não muda; 
  • as riquezas dos homens, 
  • as espécies da natureza, 
  • as palavras de que as línguas são povoadas

 permanecem ainda o que eram na idade clássica:

  • representações duplicadas – representações cujo papel consiste em designar representações, analisá Ias, decompô-Ias e compô-Ias, para fazer nelas surgir, com o sistema de suas identidades e de suas diferenças, o princípio geral de uma ordem. 

É somente na segunda fase que as palavras, as classes e as riquezas adquirirão um modo de ser que não é mais compatível com o da representação. 

Em contra partida, o que se modifica muito cedo, desde as análises de Adam Smith, de A.-L. de Jussieu ou de Viq d’Azyr, na época de Jones ou de Anquetil- Duperron, é a configuração das positividades: 

a maneira como, no interior de cada uma, os elementos representativos funcionam uns em relação aos outros, a maneira como asseguram seu duplo papel de designação e de articulação, como chegam, pelo jogo das comparações, a estabelecer uma ordem. 

É essa primeira fase que será estudada no presente capítulo.

4.0 Os dois tipos de reflexão assumidos pelo pensamento e os respectivos perfis
que permitem identificar cada um deles

Os perfis das duas configurações do pensamento, segundo o pensamento de Foucault:
os pensamentos clássico (de antes de 1775); e moderno( de depois de 1825)

e veja mais abaixo:

Os dois tipos de reflexão assumidos pelo pensamento
vistos pelos perfis (estruturas conceituais) que permitem identificar cada um deles

pensamento clássico,
antes de 1775

perfil do pensamento clássico,
o de antes de 1775

pensamento moderno,
depois de 1775

perfil do pensamento moderno,
o de depois de 1825

“Assim o círculo se fecha.

Vê-se, porém, através de qual sistema de desdobramentos. 

As semelhanças exigem uma assinalação, pois nenhuma dentre elas poderia ser notada se não fosse legivelmente marcada. 

Mas que são esses sinais? 

Como reconhecer, entre todos os aspectos do mundo e tantas figuras que se entrecruzam,

que há aqui um
caráter

no qual convém se deter,
porque ele indica uma secreta
e essencial semelhança? 

Que forma constitui o signo
no seu singular valor de signo? 

– É a semelhança.
Ele significa na medida
em que tem semelhança com o que indica (isto é, com uma similitude). 

Contudo, 

  • não é a homologia que ele assinala, 

pois seu ser distinto de assinalação se desvaneceria no semelhante de que é signo; 

  • trata-se de outra semelhança, 

uma similitude vizinha e de outro tipo que serve para reconhecer a primeira, mas que, por sua vez, é patenteada por uma terceira. 

Toda semelhança recebe uma assinalação; essa assinalação, porém, é apenas uma forma intermediária da mesma semelhança. 

De tal sorte que o conjunto das marcas faz deslizar, sobre o círculo das similitudes, um segundo círculo que duplicaria exatamente e, ponto por ponto, o primeiro, se não fosse esse pequeno desnível que faz com que 

  • o signo da simpatia resida na analogia, 
  • o da analogia na emulação, 
  • o da emulação na conveniência, 

que, por sua vez, para ser reconhecida, requer 

  • a marca da simpatia… 

A assinalação e o que ela designa são exatamente da mesma natureza; apenas a lei da distribuição a que obedecem é diferente; a repartição é a mesma.”

“A arqueologia, essa, deve percorrer o acontecimento segundo sua disposição manifesta; ela dirá como as configurações próprias a cada positividade se modificaram 

  • (ela analisa por exemplo, para a gramática, o desaparecimento do papel maior atribuído ao nome e a importância nova dos sistemas de flexão; ou ainda, a subordinação, no ser vivo, do caráter à função); 

ela analisará a alteração dos seres empíricos que povoam as positividades 

  • (a substituição do discurso pelas línguas, das riquezas pela produção); 

estudará o deslocamento das positividades umas em relação às outras 

  • (por exemplo, a relação nova entre a biologia, as ciências da linguagem e a economia); 

enfim e sobretudo, mostrará que o espaço geral do saber não é mais o das identidades e das diferenças, o das ordens não-quantitativas, o de uma caracterização universal, de uma taxinomia geral, de uma máthêsis do não-mensurável, 

  • mas um espaço feito de organizações, isto é, de relações internas entre elementos, cujo conjunto assegura uma função; 
  • mostrará que essas organizações são descontínuas, que não formam, pois, um quadro de simultaneidades sem rupturas, mas que algumas são do mesmo nível enquanto outras traçam séries ou sequências lineares. 

 De sorte que se vêem surgir, 

como princípios organizadores
desse espaço de empiricidades, 

a Analogia
e a Sucessão:

de uma organização a outra, o liame, com efeito, 

  • não pode mais ser a identidade de um ou vários elementos,
  • mas a identidade da relação entre os elementos (onde a visibilidade não tem mais papel) 
  • e da função que asseguram; 

ademais, se porventura essas organizações se avizinham por efeito de uma densidade singularmente grande de analogias,

  • não é porque ocupem localizações próximas num espaço de classificação,
  • mas sim porque foram formadas uma ao mesmo tempo que a outra e uma logo após a outra no devir das sucessões. 

Enquanto, no pensamento clássico,

a seqüência das cronologias não fazia mais que percorrer o espaço prévio e mais fundamental de um quadro que de antemão apresentava todas as suas possibilidades,

doravante

as semelhanças contemporâneas e observáveis simultaneamente no espaço não serão mais que as formas depositadas e fixadas de uma sucessão que procede de analogia em analogia.  (*)

 

 

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas
Cap. – II. A prosa do mundo;
tópico II. As assinalações
de Michel Foucault

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas
Cap. – VII. Os limites da representação;
tópico I. A idade da história
de Michel Foucault

Operações possíveis sob as condições de pensamento dadas pelos respectivos perfís do pensamento filosófico clássico, o de antes de 1775 e pelo moderno, de depois de 1825.

Operação de pensamento no período clássico, antes de 1775
operação de instanciamento de representação formulada
modo de ser fundamental não muda
Ordem arbitrária ou Quadro de simultaneidades
Operação de pensamento no período moderno, depois de 1825,
no caminho da Construção da representação:
'modo de ser fundamental' sim, muda.
Ordem dada pela gramática da língua

(*) A ordem clássica

distribuía num espaço permanente as identidades e as diferenças não-quantitativas que separavam e uniam as coisas:

era essa a ordem que reinava soberanamente,

mas a cada vez segundo formas e leis
ligeiramente diferentes,

  • sobre o discurso dos homens, [gramática geral]
  • o quadro dos seres naturais [história natural]
  • e a troca das riquezas. [análise das riquezas] (**)

(**) A partir do século XIX, a História 
vai desenrolar numa série temporal 
as analogias que aproximam umas das outras as organizações distintas. 
É essa História que, 
progressivamente, imporá suas leis 

  • à análise da produção, [análise da produção]
  • à dos seres organizados,  [biologia] enfim, 
  • à dos grupos linguísticos [filologia]. 

A História 
dá lugar às organizações analógicas, 

assim como a Ordem 
abria o caminho 
das identidades e das diferenças sucessivas.

A forma de reflexão que se instaura depois de 1825 no pensamento moderno,
 e o perfil dado por essa condição de possibilidade do pensamento:
referencial, princípios organizadores e métodos; com as duas sintaxes envolvidas

A forma de reflexão que se instaura
com esse perfil de conceitos do pensamento moderno, o de depois de 1825
Princípios organizadores do pensamento
de depois da descontinuidade epistemológica
de 1775-1825

“Instaura-se
uma forma de reflexão,
bastante afastada
do cartesianismo
e da análise kantiana,
em que está em questão,
pela primeira vez,
o ser do homem,
nessa dimensão segundo a qual
o pensamento
se dirige ao impensado
e com ele se articula. Isso tem duas conseqüências.”

 (…) “A outra consequência é positiva.
Concerne à relação
do homem
com o impensado,
ou mais exatamente,
ao seu aparecimento gêmeo
na cultura ocidental.”

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas
Cap. – IX. O homem e seus duplos;
tópico V. O “cogito” e o impensado
de Michel Foucault

A partir de Ricardo,
o trabalho, desnivelado em relação à representação,
e instalando-se em uma região
em que ela não tem mais domínio,
organiza-se segundo uma causalidade
que lhe é própria

 (…)

A quantidade de trabalho
necessária para a fabricação de uma coisa
(ou para sua colheita, ou para seu transporte)
e que determina seu valor
depende das formas de produção:
segundo o grau de divisão no trabalho,
a quantidade e a natureza dos instrumentos,
o volume de capital de que dispõe o empresário
e o que ele investiu nas instalações de sua fábrica,
a produção será modificada;
em certos casos será dispendiosa;
em outros, o será menos.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas
Cap. – VIII. Trabalho, Vida e Linguagem;
tópico II. Ricardo
de Michel Foucault

A Utopia – tomada como referencial – é o impensado a que Foucault se refere na animação acima referindo-se àquilo em direção ao qual o pensamento (do homem) se dirige; essa ideia – ou elemento de imagem – pode ser chamado de

  • visão,
  • limite da estratégia,
  • direção na qual se expande o pensamento,

e outros modos de denominar a mesma coisa.

O homem – aquele cujo pensamento se dirige ao impensado com a intenção de articular-se com este – é o sujeito da operação de articulação cujo resultado é a representação para o que antes era inarticulado.

O predicado do sujeito é composto por:

  • um verbo – a Forma de produção encontrada para proceder a articulação;
  • um atributo – o objeto da articulação, a representação possível para o pensamento antes não-articulado.

Vê-se com bastante clareza que a articulação feita pelo pensamento com o impensado tem a forma de uma proposição em uma linguagem natural falada.

8. O princípio dual de trabalho
de David Ricardo, de 1817

“A quantidade de trabalho
necessária para a fabricação
de uma coisa [atributo do predicado]
(ou para sua colheita,
ou para seu transporte)
e que determina seu valor depende
das  formas de produção:
[verbo do predicado do sujeito]
segundo o grau de divisão no trabalho,
a quantidade e
a natureza dos instrumentos,
o volume de capital de que dispõe
o empresário
[sujeito da operação de produção]
e o que ele investiu nas instalações
de sua fábrica, a produção será modificada; em certos casos será dispendiosa;
em outros, o será menos.”

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas
Cap.  8 – Trabalho, vida e linguagem;
tópico II. Ricardo
de Michel Foucault
(citando Obras completas de David Ricardo)

Comentários

    O salto do pensamento para fora do espaço da representação

    O salto do pensamento para fora do espaço da representação

    A partir de Ricardo,
    o trabalho,
    desnivelado em relação à representação,
    e instalando-se em uma região
    onde ela não tem mais domínio,
    organiza-se segundo uma causalidade
    que lhe é própria.

    As palavras e as coisas:
    uma arqueologia das ciências humanas;
    Cap. VIII – Trabalho, Vida e Linguagem;
    tópico II. Ricardo

    Uma evidência ilustrativa do salto dado pelo pensmaento para fora do domínio da representação ao modelar a operação de construção de uma representação nova.

    A partir do período após a descontinuidade epistemológica de 1775-1825 cessa o primado da representação. 

    Isso não quer dizer que o pensamento doravante prescinda da representação.

    Ela continua lá, necessária, imprescindível, apenas que a operação de construção de representações transcorre em espaços que estão fora do seu domínio, como a figura mostra.

    Comentários

      O ‘Lugar desde onde se fala’ e o ‘Lugar do falado’

      O 'Lugar desde onde se fala' e o 'Lugar do falado'

      Esses dois lugares - o 'lugar desde onde se fala' e o 'lugar do falado' -
      juntos delimitam o 'Lugar do nascimento do que é empírico', espaço onde se dá a articulação do pensamento do homem com o impensado feita no domínio do Pensamento e da Língua e sua ligação com o domínio do Discurso e da Representação

      O 'Lugar desde onde se fala' e o 'Lugar do falado' e seu continente, o 'Lugar do nascimento do que é empírico'

      Lugar deste onde se fala: ideias que formulam a proposição (sujeito e predicado;
      Lugar desde onde se fala: ideias que dão suporte na experiência ao instanciamento da representação no ambiente

      Lugar desde onde se fala

      Lugar do falado

      são sub-espaços do ‘Lugar de nascimento do que é empírico’ o que implica que o pensamento está funcionando com o entendimento do pensamento moderno, o de depois de 1825 e portanto, de modo consistente com o Princípio dual de trabalho de David Ricardo, de 1817.

      Dada a paleta de ideias - ou elementos de imagem - requeridos na composição do Lugar desde onde se fala e do Lugar do falado, não há como defini-los sob o pensamento clássico.

      Lugar de nascimento do que é empírico:
      espaço ocupado pelo
      . 'Lugar desde onde se fala'
      . e pelo 'Lugar do falado'.

      Lugar desde onde se fala

      As ideias ou elementos de imagem que estão envolvidas na formulação da proposição estão contidas no espaço chamado de Lugar desde onde se fala:

      • sujeito: o homem na posição de raiz de toda positividade
      • predicado do sujeito
        • verbo: Forma de produção, o elemento central da operação de construção da representação;
        • atributo: a representação em construção, nas posições extremas da operação de construção.

      Esse espaço coincide com o espaço chamado por Humberto Maturana de ‘operar’, o retângulo vermelho na figura ao lado, parte do Lugar de nascimento do que é empírico, mas no interior do domínio do Pensamento e da Língua.

      Lugar do falado

      As ideias ou elementos de imagem que estão envolvidos na sustentação da Forma de produção na experiência estão no lugar do falado:

      • processos, atividades, tasks

      A operação de construção da representação escolhe os elementos de suporte na experiência à Forma de produção, que deve ser capaz de produzir quando implementada, uma instância da representação com o operar vislumbrado – ou o mais próximo disso possível. Humberto Maturana chama esse espaço de ‘suporte ao operar’, o retângulo amarelo na figura ao lado. 

      O Lugar do falado é parte do Lugar de nascimento do que é empírico, mas suas ideias – ou elementos de imagem – fazem parte do domínio do Discurso e da Representação.

      Comentários

        Anatomia ou cartografia dos modelos: os diferentes lugares onde o pensamento acontece,
        em função do perfil de pensamento e do caminho no qual seguem as operações

        Anatomia ou cartografia dos modelos: os diferentes lugares onde o pensamento acontece,
        em função do perfil de pensamento e do caminho no qual seguem as operações.
        Os lugares onde o pensamento acontece - e as operações também

        Lugar do nascimento do que é empírico: pensamento moderno - caminho da Construção da representação
        Circuito das trocas, ou Mercado: pensamento clássico, ou pensamento moderno no caminho do Instanciamento da representação objeto

        Mercado, ou Circuito das trocas: lugar onde ocorrem operações nas quais o ‘modo de ser fundamental’ das empiricidades não muda.

        Encontra-se sob o pensamento clássico, o de ante de 1775, e também pode ocorrer no caminho do Instanciamento da representação, sob o pensamento moderno.

        Lugar do nascimento do que é empírico: lugar onde ocorrem operações nas quais o ‘modo de ser fundamental das empiricidade sim, muda.

        Encontra-se somente sob o pensamento moderno, o de depois de 1825, no caminho da Construção da representação

        No pensamento moderno
        o conceito 'modo de se fundamental das empiricidades' é o elemento ordenador da História.
        As setas amarelas dirigidas para baixo indicam mudança nesse conceito,
        e que história foi feita em decorrência do sucesso desta operação.
        A ênfase que em geral é dada ao Mercado
        pode ser um indicador da falta de percepção conceitual
        do pensamento filosófico moderno

        o Lugar de nascimento do que é empírico e o Circuito das trocas

        No pensamento clássico, o de antes de 1775
        toda a operação transcorre no interior do Circuito das trocas

        O 'Circuito das trocas', ou 'Mercado'
        lugar onde transcorre uma operação sob o pensamento clássico

        Na palheta de ideias do pensamento clássico não há o conceito de objeto definido por propriedades originais e constitutivas; as coisas são vistas a partir de “aparências” ou propriedades não-originais e não-constitutivas.

        A partir do pressuposto que caracteriza o lado esquerdo da figura, 

        “A existência precede a distinção” 

        tudo é considerado pré-existente e integrante do Universo.

        Assim, na operação clássica sobre o sistema Input-Output, não há como definir o conceito ‘modo de ser fundamental’ de empiricidade objeto já que as coisas não são pensadas desse modo, usando propriedades sim-originais e sim-constitutivas.

        No pensamento clássico as operações são formuladas e desencadeadas a partir de propriedades não-originais e não-constitutivas, ou as “aparências”.
         

        O que há são 

        • Entradas (caracterizadas por uma propriedade não-original e não-constitutiva) 

        • e Saídas (idem idem)

        E toda a operação transcorre no interior do Circuito das trocas, ou  o Mercado.

        No pensamento moderno, o de depois de 1825

        no caminho da Construção da representação nova,
        a operação transcorre no interior do Lugar de nascimento do que é empírico

        Lugar do nascimento do que é empírico
        é o lugar onde o pensamento altera
        o ‘modo de ser fundamental’
        da empiricidade objeto da operação.

        O que acontece no ‘Lugar de nascimento do que é empírico’ está antes de toda a possibilidade de cronologia, e aquém de qualquer operação no âmbito do Mercado 

        O Lugar de nascimento do que é empírico
        lugar onde transcorre a operação de construção de representação nova
        e onde se dá a articulação do pensamento do homem, com o impensado

        A palheta de ideias – ou elementos de imagem – do pensamento moderno, é construída a partir do tipo de reflexão que se instaura em nossa cultura:

        “Instaura-se uma forma de reflexão,
        bastante afastada do cartesianismo
        e da análise kantiana,
        em que está em questão,
        pela primeira vez,
        o ser do homem,
        nessa dimensão segundo a qual
        o pensamento
        se dirige ao impensado
        e com ele se articula.”

        As palavras e as coisas:
        uma arqueologia das ciências humanas;
        Cap. IX – O homem e seus duplos;
        tópico V – O “cogito” e o impensado

        “Assim como a Ordem
        no pensamento clássico

        não era a harmonia visível das coisas,
        seu ajustamento,
        sua regularidade ou sua simetria constatados,
        mas o espaço próprio de seu ser
         e aquilo que,
        antes de todo conhecimento efetivo,

        as estabelecia no saber,

        assim também a História,
        a partir do século XIX,
        define
        o lugar de nascimento do que é empírico,

        lugar onde,
        aquém de toda cronologia estabelecida,
        ele assume o ser que lhe é próprio.”

        As palavras e as coisas:
        uma arqueologia das ciências humanas;
        Cap. VII – Os limites da representação;
        tópico I – A idade da história

        O Lugar de nascimento do que é empírico, na figura e animação ao lado –  é o espaço demarcado pelas chaves verticais composto de duas áreas em domínios diferentes:

        • o retângulo vermelho, parte do domínio do Pensamento e da Língua, abriga a parte da operação de construção de representação nova que define a dinâmica consistente cm o ‘operar’ vislumbrado para a empiricidade objeto;

        • o retângulo amarelo, parte do domínio do Discurso e da Representação, abriga a parte da operação de construção da nova representação com o suporte na experiência ao operar vislumbrado para a empiricidade objeto.

        Alteração no 'modo de ser fundamental' da empiricidade objeto implica em fazer História

        O ‘modo de ser fundamental’ das empiricidades é o elemento ordenador dessa História que define o lugar de nascimento do que é empírico, entendendo esse conceito como sendo “aquilo a partir do que elas podem ser afirmadas, postas, dispostas e repartidas no espaço do saber para eventuais conhecimentos e para ciências possíveis.”  

        Assim, o evento de objeto (f) – a seta amarela vertical para baixo que marca o fim da operação de construção da representação – marca também que história foi feita. 

        Esse é um tempo absoluto, um tempo aquém de toda cronologia estabelecida. Essa percepção contrapõe-se ao tempo relativo, tempo calendário, que caracteriza as operações sob o pensamento clássico, e de maneira semelhante, as operações de instanciamento de operações recuperadas do Repositório.

        Isso determina distinção fundamental entre eventos (i) e (f) de objeto no caminho da construção da representação, e eventos (i) e (f) de inicio e fim de processos suporte da Forma de produção, estes, não relacionados a objeto.

        O escopo da operação de construção de representação nova é poder descrever uma representação para a empiricidade objeto por meio de propriedades originais e constitutivas.

        Antes da operação de construção da representação nova, as propriedades da representação em construção não existem. No ponto de início da operação existe somente a arquitetura comum a todas as representações, na qual tais propriedades descrevem representações. Ao final da operação essas propriedades sim-originais e sim-constitutivas passam a existir.

        no caminho do Instanciamento de representação pré-existente no Repositório
        a operação de Instanciamento transcorre novamente no Circuito das trocas

        O Circuito das trocas
        as chaves horizontais amarelas
        onde ocorrem operações durante as quais o 'modo de ser fundamental' não se altera

        Vislumbrado um ‘operar’ atribuído a uma empiricidade objeto, sempre, a primeira providência é uma consulta ao repositório de proposições explicativas formuladas de acordo com as regras da linguagem sobre a existência de representação capaz de resolver esse ‘operar’.

        • no caso negativo (inexistência de representação que sirva a esse ‘operar’, é desencadeada a operação de Construção da representação;
        • no caso positivo, sim, já existe representação para o ‘operar’ atribuído à empiricidade objeto, então, mantida a decisão de continuidade da operação, essa representação existente no Repositório é recuperada, e a operação de Instanciamento pode ser desencadeada.

        A representação recuperada para instanciamento tem todas as suas propriedades, sejam as originais e constitutivas, sejam as não-originais e não-constitutivas, ou as “aparências” existentes. 

        Desse modo, durante a operação de Instanciamento o ‘modo de ser fundamental’ dessa empiricidade objeto em instanciamento não são alteradas e permanece o mesmo que ela tinha ao ser recuperada do Repositório. 

        Assim, toda a operação de Instanciamento passa a ocorrer no interior do Circuito das trocas, ou Mercado, tal como acontecia sob o pensamento clássico.

        Comentários

          A descontinuidade epistemológica de 1775-1825:
          conceitos homônimos com significados diferentes para o antes e o depois desse evento fundador da nossa modernidade no pensamento

          Conceitos homônimos mas com significados diferentes para o pensamento nos períodos de antes e de depois da descontinuidade epistemológica de 1775-1825; as duas sintaxes envolvidas na construção de representação nova, sob o pensamento moderno, o sedimentado após 1825

          slider-04 Visão SSS – Simétrica, Simbiótica e Sinérgica; aplicação da modelagem de operações organizada pelo par sujeito-objeto

          sldr Visão SSS - Simétrica, Simbiótica e Sinérgica;
          uma aplicação da modelagem de operações organizada pelo par sujeito-objeto

          A organização SSS composta simultaneamente por:

          a) operações que resultam no objeto esperado pelo grupo de interessados na produção 'Clientes', e

          b) operações que resultam no instrumento - laboratório, projeto piloto, fábrica - capaz de obter o objeto esperado pelos interessados na produção 'Acionistas'

          na realidade do ambiente em que essas operações ocorrem.

          Argumento: a modelagem de operações
          organizada pelo par sujeito-objeto

          argumento visão SSS

          Construção da estrutura de operações na disposição SSS - Simétrica, Simbiótica e Sinérgica

          Mapa geral das operações na disposição SSS

          Posicionamento do acima descrito no espectro de modelos descrito por Michel Foucault
          no livro As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas

          Todos esses modelos de operações estão no segmento “diante do objeto”.

          Cumpre, então, desenvolver os modelos para o próximo segmento, descrito por Michel Foucault, em que habitam os modelos para além do objeto, para os quais Foucault delineia o modelo constituinte.

          Veja isso em outra animação neste trabalho.

          Mapa da atividade semicondutores da Texas Instruments: o mapa da reengenharia; exemplo de modelo existente, e bastante referido na década de 90, em que essa disposição SSS está mencionada, embora não desenvolvida.

          Os dois objetos diferentes, presentes no Mapa da Reengenharia de Michael Hammer
          A simetrização do Mapa da Reengenharia, apenas detalhando elementos já existentes no mapa original de Michael Hammer

          O modelo de operações, ou modelo descritivo da produção do Kanban

          Modelo descritivo da produção do Kanban, mostrando a Proposição formulada
          com ideias ou elementos de imagem integrantes da estrutura do modelo

          slider-03 dez (10) pontos de contextualização entre textos do Prefácio e do restante do ‘As palavras e as coisas’

          dez (10) pontos para contextualização entre Prefácio e texto do livro
          'As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas', de Michel Foucault

          1. A Forma de Reflexão que se instaura em nossa cultura
          2. Proposição: o bloco padrão genérico e fundamental
          para construção de representações
          3. Princípios organizadores do pensamento de depois da descontinuidade epistemológica de 1775-1825
          4. O Conceito de verbo no pensamento clássico,
          o de antes da descontinuidade epistemológica de 1775-1825
          5. O conceito de verbo no pensamento moderno, o de depois da descontinuidade epistemológica de 1775-1825
          6. As duas sintaxes mencionadas por Foucault no Prefácio
          6.1 A sintaxe que autoriza a construção das frases
          6.2 A sintaxe que autoriza manter juntas
          as palavras e as coisas
          7. O princípio monolítico de trabalho de Adam Smith,
          de 1776
          8. O princípio dual de trabalho de David Ricardo,
          de 1817
          8.1 A importância de David Ricardo,