Psicanálise e etnologia – APC

V. Psicanálise, etnologia

[da psicanálise]

“A psicanálise e a etnologia ocupam, no nosso saber, um lugar privilegiado. 

Não certamente 

  • porque teriam, melhor que qualquer outra ciência humana, embasado sua positividade e realizado enfim o velho projeto de serem verdadeiramente científicas; 

antes porque, 

  • nos confins de todos os conhecimentos sobre o homem, elas formam seguramente um tesouro inesgotável de experiências e de conceitos, mas, sobretudo, um perpétuo princípio de inquietude, de questionamento, de crítica e de contestação daquilo que, por outro lado, pôde parecer adquirido. 

Ora, há para isto uma razão que tem a ver com o objeto que respectivamente cada uma se atribui, mas tem mais ainda a ver com a posição que ocupam e com a função que exercem no espaço geral da epistémê. 

A psicanálise, com efeito, mantém-se o mais próximo possível desta função crítica acerca da qual se viu que era interior a todas as ciências humanas.

Dando-se por tarefa fazer falar através da consciência o discurso do inconsciente, 

a psicanálise avança na direção desta região fundamental onde se travam as relações entre a representação e a finitude. 

Enquanto todas as ciências humanas

  •  só se dirigem ao inconsciente virando-lhe as costas, esperando que ele se desvele à medida que se faz, como que por recuos, a análise da consciência, 

já a psicanálise 

  • aponta diretamente para ele, de propósito deliberado – 
    • não em direção ao que deve explicitar-se pouco a pouco na iluminação progressiva do implícito, 
    • mas em direção ao que está aí e se furta, que existe com a solidez muda de uma coisa, de um texto fechado sobre si mesmo, ou de uma lacuna branca num texto visível e que assim se defende. 

Não há que supor que o empenho freudiano seja o componente de uma interpretação do sentido e de uma dinâmica da resistência ou da barreira; 

  • seguindo o mesmo caminho que as ciências humanas, 

mas com o olhar voltado em sentido contrário, 

  • a psicanálise se encaminha 

em direção ao momento –inacessível, por definição, a todo conhecimento teórico do homem, a toda apreensão contínua em termos 

        • de significação
        • de conflito 
        • ou de função

– em que os conteúdos da consciência se articulam com,
ou antes, ficam abertos para a finitude do homem. 

Isto quer dizer que, 

  • ao contrário das ciências humanas que, 
    • retrocedendo embora em direção ao inconsciente, 
      • permanecem sempre no espaço do representável, 
  • a psicanálise 
    • avança para transpor a representação, extravasá-la do lado da finitude
    • e fazer assim surgir, lá onde se esperavam 
      • as funções portadoras de suas normas
      • os conflitos carregados de regras 
      • e as significações formando sistema
    • o fato nu de que pode haver 
      • sistema (portanto, significação), 
      • regra (portanto, oposição), 
      • norma (portanto, função). 

E, nessa região onde a representação fica em suspenso, à margem dela mesma, aberta, de certo modo ao fechamento da finitude, desenham-se as três figuras pelas quais 

  • a vida, com suas funções e suas normas, vem fundar-se na repetição muda da Morte, 
  • os conflitos e as regras, na abertura desnudada do Desejo, 
  • as significações e os sistemas, numa linguagem que é ao mesmo tempo Lei. “

[a etnologia)]

Sabe-se como psicólogos e filósofos denominaram tudo isso: mitologia freudiana. 

Era realmente necessário que este empenho de Freud assim lhes parecesse; 

  • para um saber que se aloja no representável, 
  • aquilo que margeia e define, em direção ao exterior, a possibilidade mesma da representação 
  • não pode ser senão mitologia. 

Mas, quando se segue, no seu curso, o movimento da psicanálise, ou quando se percorre o espaço epistemológico em seu conjunto, vê-se bem que estas figuras – imaginárias, sem dúvida, para um olhar míope – são as próprias formas da finitude, tal como é analisada no pensamento moderno: 

não é a morte aquilo a partir de que o saber em geral é possível de sorte tal que ela seria, do lado da psicanálise, a figura desta reduplicação empírico-transcendental que caracteriza na finitude o modo de ser do homem? 

Não é o desejo o que permanece sempre impensado no coração do pensamento? 

E esta Lei-Linguagem (ao mesmo tempo fala e sistema da fala) que a psicanálise se esforça por fazer falar, não é aquilo em que toda significação assume uma origem mais longínqua que ela mesma, mas também aquilo cujo retorno é prometido no ato mesmo da análise? 

É bem verdade que nem esta Morte, nem este Desejo, nem esta Lei podem jamais encontrar-se no interior do saber que percorre em sua positividade o domínio empírico do homem; mas a razão disto é que designam as condições de possibilidade de todo saber sobre o homem. 

E precisamente 

  • quando esta linguagem se mostra em estado nu, 
    • mas se furta ao mesmo tempo para fora de toda significação como se fosse um grande sistema despótico e vazio, 
  • quando o Desejo reina em estado selvagem, 
    • como se o rigor de sua regra tivesse nivelado toda oposição, 
  • quando a Morte domina toda função psicológica e se mantém acima dela 
    • como sua norma única e devastadora 

então reconhecemos a loucura em sua forma presente, a loucura tal como se dá à experiência moderna, como sua verdade e sua alteridade. 

Nessa figura empírica, e contudo estranha a (e em) tudo o que podemos experimentar, nossa consciência 

  • não encontra mais, como no século XVI, o vestígio de um outro mundo; 
  • ela não constata mais o vaguear da razão extraviada; 
  • ela vê surgir o que nos é perigosamente o mais próximo – como se subitamente se perfilasse, em relevo, o recôncavo mesmo de nossa existência; 

a finitude, a partir da qual nós somos, pensamos e sabemos, está subitamente diante de nós, existência a um tempo real e impossível, pensamento que não podemos pensar, objeto para nosso saber mas que a ele se furta sempre. 

É por isso que a psicanálise encontra nesta loucura por excelência – a que os psiquiatras chamam esquizofrenia – o seu íntimo, o seu mais invencível tormento: pois nesta loucura se dão, sob uma forma absolutamente manifesta e absolutamente retraída, as formas da finitude em direção à qual, de ordinário, ela avança indefinidamente (e no interminável), a partir do que lhe é voluntária-involuntariamente oferecido na linguagem do paciente. 

De sorte que a psicanálise “reconhece-se aí”, quando é colocada diante destas mesmas psicoses às quais, no entanto (ou antes, por essa mesma razão) ela quase não tem acesso: como se a psicose expusesse numa iluminação cruel e oferecesse de um modo demasiado longínquo, mas justamente demasiado próximo, aquilo em cuja direção a análise deve lentamente caminhar. 

Mas esta relação da psicanálise com o que torna possível todo saber em geral na ordem das ciências humanas tem ainda uma outra consequência. 

É que ela não pode desenvolver-se como puro conhecimento especulativo ou teoria geral do homem. Não pode atravessar o campo inteiro da representação, tentar contornar suas fronteiras, apontar para o mais fundamental, na forma de uma ciência empírica construída a partir de observações cuidadosas; 

essa travessia só pode ser feita no interior de uma prática em que não é apenas o conhecimento que se tem do homem que está empenhado, mas o próprio homem – 

  • o homem com essa Morte que age no seu sofrimento, 
  • esse Desejo que perdeu seu objeto 
  • e essa linguagem pela qual, através da qual se articula silenciosamente sua Lei. 

Todo saber analítico é, pois, invencivelmente ligado a uma prática, a este estrangulamento da relação entre dois indivíduos, em que um escuta a linguagem do outro, libertando assim seu desejo do objeto que ele perdeu (fazendo-o entender que o perdeu) e libertando-o da vizinhança sempre repetida da morte (fazendo-o entender que um dia morrerá). 

É por isso que nada é mais estranho à psicanálise que alguma coisa como uma teoria geral do homem ou uma antropologia. 

Assim como 

  • a psicanálise se coloca na dimensão do inconsciente 
    (dessa animação crítica que inquieta interiormente todo o domínio das ciências humanas), 
  • a etnologia se coloca na da historicidade 
    (desta perpétua oscilação que faz com que as ciências humanas sejam sempre contestadas, do exterior, por sua própria história). 

É sem dúvida difícil sustentar que a etnologia tem uma relação fundamental com a historicidade, já que ela é tradicionalmente o conhecimento dos povos sem história; em todo o caso, ela estuda nas culturas (ao mesmo tempo por escolha sistemática e por falta de documentos) antes as invariantes de estrutura que a sucessão dos acontecimentos. 

Suspende o longo discurso “cronológico” pelo qual tentamos refletir nossa própria cultura no interior dela mesma, para fazer surgir correlações sincrônicas em outras formas culturais. E, contudo, a própria etnologia só é possível a partir de uma certa situação, de um acontecimento absolutamente singular, em que se acham empenhadas a um tempo a nossa historicidade e a de todos os homens que podem constituir o objeto de uma etnologia (ficando entendido que podemos perfeitamente fazer a etnologia de nossa própria sociedade): a etnologia se enraíza, com efeito, numa possibilidade que pertence propriamente à história de nossa cultura, mais ainda, à sua relação fundamental com toda história, e que lhe permite ligar-se às outras culturas à maneira da pura teoria. 

Há uma certa posição da ratio ocidental que se constituiu na sua história e que funda a relação que ela pode ter com todas as outras sociedades, mesmo com aquela sociedade em que ela historicamente apareceu. Isto não quer dizer, evidentemente, que a situação colonizadora seja indispensável à etnologia: nem a hipnose, nem a alienação do doente na personagem fantasmática do médico são constitutivos da psicanálise; mas, assim como esta só pode desenvolver-se na violência calma de uma relação singular e da transferência que ela requer, do mesmo modo a etnologia só assume suas dimensões próprias na soberania histórica – sempre retida, mas sempre atual – do pensamento europeu e da relação que o pode confrontar com todas as outras culturas e com ele próprio. 

Mas essa relação (na medida em que a etnologia não busca apagá- Ia, mas, ao contrário, escava-a, instalando-se definitivamente nela) não a encerra nos jogos circulares do historicismo; coloca-a, antes, em posição de contornar seu perigo, invertendo o movimento que os faz nascer: com efeito, em vez de reportar os conteúdos empíricos, tais como psicologia, a sociologia ou a análise das literaturas e dos mitos podem fazê-los aparecer, à positividade histórica do sujeito que os percebe, a etnologia coloca as formas singulares de cada cultura, as diferenças que as opõem às outras, os limites pelos quais se define e se fecha sobre sua própria coerência na dimensão em que se estabelecem suas relações com cada uma das três grandes positividades (a vida, a necessidade e o trabalho, a linguagem); 

assim, a etnologia mostra como se faz numa cultura 

  • a normalização das grandes funções biológicas, 
  • as regras que tornam possíveis ou obrigatórias todas as formas de troca, de produção e de consumo, 
  • o sistemas que se organizam em torno ou sobre o modelo das estruturas linguísticas. 

A etnologia avança, pois, em direção à região onde as ciências humanas se articulam com aquela biologia, com aquela economia, com aquela filologia e aquela linguística acerca das quais se viu de que altura as dominavam: é por isto que o problema geral de toda etnologia é exatamente aquele das relações (de continuidade ou de descontinuidade) entre a natureza e a cultura. 

Mas, neste tipo de interrogação, o problema da história se acha invertido: pois trata-se então de determinar, 

  • segundo os sistemas simbólicos utilizados, 
  • segundo as regras prescritas, 
  • segundo as normas funcionais escolhidas e estabelecidas, 

de que espécie de devir histórico cada cultura é suscetível; ela busca retomar, desde raiz, o modo de historicidade que aí pode aparecer, as razões pelas quais a história aí será necessariamente cumulativa ou circular, progressiva ou submetida a oscilações reguladoras, capaz de ajustamentos espontâneos ou submetida a crises. 

E assim se acha esclarecido o fundamento deste fluir histórico em cujo interior as diferentes ciências humanas assumem sua validade e podem ser aplicadas a uma dada cultura e numa dada região sincrônica. 

A etnologia, como a psicanálise, interroga 

  • não o próprio homem tal como pode aparecer nas ciências humanas, 
  • mas a região que torna possível, em geral, um saber sobre o homem; 

como a psicanálise, ela atravessa todo o campo desse saber num movimento que tende a atingir seus limites. 

Mas a psicanálise 

  • se serve da relação singular da transferência para descobrir, nos confins exteriores da representação, o Desejo, a Lei, a Morte que desenham, no extremo da linguagem e da prática analíticas, as figuras concretas da finitude; 

já a etnologia 

  • aloja-se no interior da relação singular que a ratio ocidental estabelece com todas as outras culturas; e, a partir daí, ela traça o contorno das representações que os homens, numa civilização, se podem dar de si mesmos, de sua vida, de suas necessidades, das significações depositadas em sua linguagem; e ela vê surgir, por trás destas representações, 
    • as normas a partir das quais os homens cumprem as funções da vida, mas repelindo sua pressão imediata, 
    • as regras através das quais experimentam e mantêm suas necessidades, 
    • os sistemas sobre cujo fundo toda significação lhes é dada. 

O privilégio da etnologia e da psicanálise, a razão de seu profundo parentesco e de sua simetria – não devem, pois, ser buscados numa certa preocupação que uma e outra teriam em penetrar o profundo enigma, a parte mais secreta da natureza humana; de fato, o que se espelha no espaço de seu discurso é muito mais o a priori histórico de todas as ciências humanas – as grandes cesuras, os sulcos, as partilhas que, na epistémê ocidental, desenharam o perfil do homem e o dispuseram para um saber possível. 

Era, portanto, muito necessário que ambas fossem ciências do inconsciente: 

  • não porque atingem no homem o que está por sob a sua consciência, 
  • mas porque se dirigem ao que, fora do homem, permite que se saiba, com um saber positivo, o que se dá ou escapa à sua consciência. 

Pode-se compreender, a partir daí, um certo número de fatos decisivos. 

E, no primeiro plano, o seguinte: 

que a psicanálise e a etnologia não são tanto ciências humanas ao lado das outras, 

mas percorrem o domínio inteiro destas, o animam em toda a sua superfície, expandem por toda a parte seus conceitos, podem propor em todos os lugares seus métodos de decifração e suas interpretações. 

Nenhuma ciência humana pode assegurar-se de nada lhes dever, nem de ser totalmente independente do que elas puderam descobrir, nem estar certa de não depender delas de uma forma ou de outra. 

Porém seu desenvolvimento tem a particularidade de que 

  • por mais que pretendam ter um “alcance” quase universal, 
  • nem por isso se aproximam de um conceito geral do homem: 
    • em nenhum momento elas tendem a delimitar o que nele poderia haver de específico, 
    • de irredutível, 
    • de uniformemente válido em toda a parte onde ele é dado à experiência. 

A ideia de uma “antropologia psicanalítica”, a ideia de uma “natureza humana” restituída pela etnologia não passam de pretensões piegas. Não apenas elas podem dispensar o conceito de homem, como ainda não podem passar por ele, pois se dirigem sempre ao que constitui seus limites exteriores. 

Em relação às “ciências humanas”, a psicanálise e a etnologia são antes “contraciências”; 

  • o que não quer dizer que sejam menos “racionais” ou “objetivas” que as outras, 
  • mas que elas as assumem no contra-fluxo, 
  • reconduzem-nas a seu suporte epistemológico 
  • e não cessam de “desfazer” esse homem que, nas ciências humanas, faz e refaz sua positividade. 

Compreende-se, enfim, que psicanálise e etnologia sejam estabelecidas uma em face da outra, numa correlação fundamental: desde Totem e tabu, a instauração de um campo que lhes seria comum, a possibilidade de um discurso que poderia ir de uma à outra sem descontinuidade, a dupla articulação 

  • da história dos indivíduos com o inconsciente das culturas 
  • e da historicidade destas com o inconsciente dos indivíduos 

abrem, sem dúvida, os problemas mais gerais que se podem levantar a propósito do homem. 

Adivinha-se o prestígio e a importância de uma etnologia que, 

  • em vez de se definir primeiramente, como o fez até então, pelo estudo das sociedades sem história, 
  • buscasse deliberadamente seu objeto do lado dos processos inconscientes que caracterizam o sistema de uma dada cultura;

ela poria em jogo, assim, 

  • a relação da historicidade, relação essa constitutiva de toda etnologia em geral, 
  • no interior da dimensão em que sempre se desenrolou a psicanálise. 

Assim fazendo, ela não assimilaria os mecanismos e as formas de uma sociedade à pressão e à repressão de fantasmas coletivos, reencontrando deste modo, mas a uma escala mais larga, o que a análise pode descobrir ao nível dos indivíduos; 

  • definiria como sistema dos inconscientes culturais o conjunto das estruturas formais que tornam significantes os discursos míticos, 
  • dão às regras que regem as necessidades sua coerência e sua imprescindibilidade, 
  • fundam, não na natureza, não nas puras funções biológicas, as normas de vida. 

Adivinha-se a importância simétrica de uma psicanálise que, por seu lado, encontrasse a dimensão de uma etnologia, não pela instauração de uma “psicologia cultural”, não pela explicação sociológica de fenômenos manifestados ao nível dos indivíduos, mas pela descoberta de que também o inconsciente possui – ou, antes de que ele próprio é uma certa estrutura formal. 

Por aí etnologia e psicanálise viriam, não a se superpor nem mesmo talvez a se reunir, mas a se cruzar como duas linhas diferentemente orientadas: 

  • uma, indo da elisão aparente do significado na neurose à lacuna no sistema significante por onde esta vem a manifestar-se; 
  • a outra, indo da analogia dos significados múltiplos (nas mitologias, por exemplo) à unidade de uma estrutura, cujas transformações formais liberariam a diversidade de narrativas. 

Não seria, portanto, ao nível das relações entre indivíduos e sociedade, como frequentemente se acreditou, que a psicanálise e a etnologia poderiam articular-se uma com a outra; 

  • não é porque o indivíduo faz parte de seu grupo, 
  • não é porque uma cultura se reflete e se exprime de um modo mais ou menos refratado no indivíduo, 

que essas duas formas de saber são vizinhas. 

Na verdade, elas têm somente um ponto comum, porém essencial e inevitável: é aquele em que elas se cortam em ângulo reto; pois a cadeia significante pela qual se constitui a experiência única do indivíduo é perpendicular ao sistema formal a partir do qual se constituem as significações de uma cultura; 

  • a cada instante a estrutura própria da experiência individual encontra nos sistemas da sociedade certo número de escolhas possíveis (e de possibilidades excluídas); 

inversamente,

  • as estruturas sociais encontram, em cada um de seus pontos de escolha, certo número de indivíduos possíveis (e outros que não o são) – 
  • assim como na linguagem a estrutura linear torna sempre possível, em dado momento, a escolha entre várias palavras ou vários fonemas (mas exclui todos os outros). 

Forma-se, então, o tema de uma teoria pura da linguagem, que daria à etnologia e à psicanálise assim concebidas seu modelo formal. Haveria assim uma disciplina que poderia cobrir, no seu único percurso, 

  • tanto esta dimensão da etnologia que refere as ciências humanas às positividades que as margeiam, 
  • quanto esta dimensão da psicanálise que refere o saber do homem à finitude que o funda. 

Com a linguística, 

ter-se-ia uma ciência perfeitamente fundada na ordem das positividades exteriores ao homem (pois que se trata de linguagem pura) e que, atravessando todo o espaço das ciências humanas, atingiria a questão da finitude (pois que é através da linguagem e nela que o pensamento pode pensar: de sorte que ela é, em si mesma, uma positividade que vale como o fundamental). 

Acima da etnologia e da psicanálise, mais exatamente intrincada com elas, uma terceira “contraciência” viria percorrer, animar, inquietar todo o campo constituído das ciências humanas e, extravasando-o, tanto do lado das positividades quanto do lado da finitude, formaria sua contestação mais geral. Como as duas outras contraciências, ela faria aparecer, num modo discursivo, as formas-limites das ciências humanas; como elas, alojaria sua experiência nestas regiões iluminadas e perigosas onde o saber do homem trava, sob as espécies do inconsciente e da historicidade, sua relação com o que as torna possíveis. 

Todas as três põem em risco, “expondo-o”, aquilo mesmo que permitiu ao homem ser conhecido. 

Assim se tece sob nossos olhos o destino do homem, mas tece-se às avessas; nestes estranhos fusos, é ele reconduzido às formas de seu nascimento, à pátria que o tornou possível. 

Mas não é essa uma forma de conduzi-Io ao seu fim? 

Pois a linguística, tanto quanto a psicanálise ou a etnologia, não fala do próprio homem. 

Dir-se-á talvez que, desempenhando este papel, a linguística não faz mais que retomar as funções que foram outrora as da biologia ou da economia quando, no século XIX e no começo do século XX, se pretendeu unificar as ciências humanas sob conceitos tomados à biologia ou à economia.

Mas a linguística arrisca-se a ter um papel muito mais fundamental. E por várias razões. 

Primeiro porque ela permite – esforça-se, ao menos, por tornar possível – a estruturação dos próprios conteúdos; 

  • não é, pois, uma retomada teórica dos conhecimentos adquiridos alhures, interpretação de uma leitura já feita dos fenômenos; 
  • não propõe uma “versão linguística” de fatos observados nas ciências humanas, é o princípio de uma decifração primeira; 
  • sob um olhar armado por ela, as coisas só acedem à existência na medida em que podem formar os elementos de um sistema significante. 

A análise linguística é mais uma percepção que uma explicação: isso quer dizer que é constitutiva de seu objeto mesmo. 

Ademais, eis que, por esta emergência da estrutura (como relação invariante num conjunto de elementos), a relação das ciências humanas com as matemáticas acha-se novamente aberta e segundo uma dimensão totalmente nova; 

  • não se trata mais de saber se se podem quantificar resultados, ou se os comportamentos humanos são suscetíveis de entrar no campo de uma probabilidade mensurável; 
  • a questão que se coloca é a de saber se se pode utilizar sem jogo de palavras a noção de estrutura, 
  • ou, ao menos, se é da mesma estrutura que se fala em matemáticas e nas ciências humanas; 

questão que é central, se se quiser conhecer as possibilidades e os direitos, as condições e os limites de uma formalização justificada; vê-se que a relação das ciências humanas com o eixo das disciplinas formais e a priori – relação que não fora essencial até então e se torna fundamental agora que, no espaço das ciências humanas, surge igualmente sua relação com a positividade empírica da linguagem e com a analítica da finitude; os três eixos que definem o volume próprio às ciências do homem tornam-se assim visíveis, e quase simultaneamente, nas questões que elas colocam. 

Enfim, a importância da linguística e de sua aplicação ao conhecimento do homem faz reaparecer, em sua insistência enigmática, a questão do ser da linguagem acerca da qual se viu quanto estava ligada aos problemas fundamentais de nossa cultura. 

Questão que a utilização cada vez mais ampliada das categorias linguísticas avoluma ainda mais, uma vez que é necessário doravante indagar o que deve ser a linguagem, para assim estruturar o que não é, todavia, por si mesmo, nem palavra nem discurso, e para articular-se com as formas puras do conhecimento. 

Por um caminho muito mais longo e muito mais imprevisto, somos reconduzidos a esse lugar que Nietzsche e Mallarmé haviam indicado quando um deles perguntara: Quem fala? e o outro vira cintilar a resposta na própria Palavra. A interrogação sobre o que é a linguagem em seu ser reassume, ainda uma vez, seu tom imperativo. 

Neste ponto em que a questão da linguagem ressurge com uma tão forte superdeterminação e em que ela parece investir, por todas as partes, a figura do homem 

(esta figura que justamente tomara outrora
o lugar do Discurso clássico),

 a cultura contemporânea está se fazendo numa parte importante de seu presente e talvez de seu porvir. 

De um lado aparecem, como que subitamente, muito próximas de todos estes domínios empíricos, questões que pareciam, até então, bastante afastadas deles: estas questões são aquelas de uma formalização geral do pensamento e do conhecimento; e no momento em que se julgava que elas ainda estavam votadas tão somente à relação entre a lógica e as matemáticas, eis que elas se abrem à possibilidade e também à tarefa de purificar a velha razão empírica, pela constituição de linguagens formais, e de exercer uma segunda crítica da razão pura, a partir de formas novas do a priori matemático. 

Entrementes, na outra extremidade de nossa cultura, a questão da linguagem se acha confiada àquela forma de palavra que, sem dúvida, não cessou de colocá-Ia, mas que, pela primeira vez, coloca-a a si mesma. 

Que a literatura de nossos dias seja fascinada pelo ser da linguagem – isso não é nem o sinal de um fim nem a prova de uma radicalização: é um fenômeno que enraíza sua necessidade numa bem vasta configuração em que se desenha toda a nervura de nosso pensamento e de nosso saber. 

Mas se a questão das linguagens formais faz valer a possibilidade ou a impossibilidade de estruturar os conteúdos positivos, uma literatura votada à linguagem faz valer, em sua vivacidade empírica, as formas fundamentais da finitude. 

Do interior da linguagem experimentada e percorrida como linguagem, no jogo de suas possibilidades estiradas até seu ponto extremo, 

  • o que se anuncia é que o homem é “finito” e que, 
  • alcançando o ápice de toda palavra possível, não é ao coração de si mesmo que ele chega, 
  • mas às margens do que o limita: 
    • nesta região onde ronda a morte, 
    • onde o pensamento se extingue, 
    • onde a promessa da origem recua indefinidamente. 

Era imprescindível que esse novo modo de ser da literatura fosse desvelado em obras como as de Artaud ou de Roussel – e por homens como eles; 

  • em Artaud, a linguagem, recusada como discurso e retomada na violência plástica do choque, e remetida ao grito, ao corpo torturado, à materialidade do pensamento, à carne; 
  • em Roussel, a linguagem, pulverizada por um acaso sistematicamente manejado, conta indefinidamente a repetição da morte e o enigma das origens desdobradas. 

E, como se essa prova das formas da finitude na linguagem não pudesse ser suportada, ou como se ela fosse insuficiente (talvez sua insuficiência mesma fosse insuportável), foi no interior da loucura que ela se manifestou – oferecendo-se assim a figura da finitude na linguagem (como o que nela se desvela), mas também antes dela, aquém dela, como esta região informe, muda, não-significante onde a linguagem pode liberar-se. 

E é realmente neste espaço assim posto a descoberto que a literatura, com o surrealismo primeiramente (mas sob uma forma ainda bem travestida), depois, cada vez mais puramente, com Kafka, com Bataille, com Blanchot, se deu como experiência: como experiência da morte (e no elemento da morte), do pensamento impensável (e na sua presença inacessível), da repetição (da inocência originária, sempre lá, no extremo mais próximo da linguagem e sempre o mais afastado); como experiência da finitude (apreendida na abertura e na coerção dessa finitude). 

Vê-se que este “retorno” da linguagem não tem em nossa cultura valor de interrupção súbita; não é a descoberta irruptiva de uma evidência há muito escondida; não é a marca de uma dobra do pensamento sobre si mesmo, no movimento pelo qual ele se liberta de todo conteúdo, nem de um narcisismo da literatura, liberando-se enfim do que ela teria a dizer para não mais falar senão do fato de que ela é linguagem posta a nu. 

De fato, trata-se aí do desdobramento rigoroso da cultura ocidental, segundo a necessidade que ela atribuiu a si própria no início do século XIX. 

Seria falso ver, neste índice geral de nossa experiência a que se pode chamar o “formalismo”, o sinal de uma petrificação, de uma rarefação do pensamento incapaz de reassumir a plenitude dos conteúdos; não seria menos falso colocá-lo de imediato no horizonte de um novo pensamento e de um novo saber. 

Foi no interior do desenho muito cerrado, muito coerente da epistémê moderna que essa experiência contemporânea encontrou sua possibilidade; foi mesmo ele que, por sua lógica, suscitou-a, constituiu-a de parte a parte e tornou impossível que ela não existisse. 

O que se passou na época de Ricardo, de Cuvier e de Bopp, esta forma de saber que se instaurou com a economia, a biologia e a filologia, o pensamento da finitude que a critica kantiana prescreveu como tarefa para a filosofia, tudo isto forma ainda o espaço imediato de nossa reflexão. 

É neste lugar que nós pensamos. 

E, contudo, a impressão de acabamento e de fim, o sentimento surdo que sustenta, anima nosso pensamento, acalenta-o talvez assim com a facilidade de suas promessas, e que nos faz crer que alguma coisa de novo está em vias de começar, de que apenas se suspeita um leve traço de luz na orla do horizonte – este sentimento e esta impressão talvez não sejam infundados. 

Dir-se-á que existem, que não cessaram de se formular sempre de novo desde o começo do século XIX; dir-se-á que Hôlderlin, que Hegel, que Feuerbach e Marx já tinham, todos eles, esta certeza de que neles um pensamento e talvez uma cultura findavam, e que, do fundo de uma distância que talvez não fosse invencível, uma outra se aproximava – no recato da aurora, no fulgor do meio-dia, ou no contraste do dia que acaba. 

Mas esta próxima, esta perigosa iminência cuja promessa hoje tememos, cujo perigo acolhemos, não é, sem dúvida, da mesma ordem. O que este anúncio prescrevia então ao pensamento era estabelecer para o homem uma morada estável nesta terra, donde os deuses se tinham evadido ou desaparecido. 

Em nossos dias, e ainda aí Nietzsche indica de longe o ponto de inflexão, 

  • não é tanto a ausência ou a morte de Deus que é afirmada, mas sim o fim do homem (este tênue, este imperceptível desnível este recuo na forma da identidade que fazem com que a finitude do homem se tenha tornado o seu fim); 
  • descobre-se então que a morte de Deus e o último homem estão vinculados: não é acaso o último homem que anuncia ter matado Deus, colocando assim sua linguagem, seu pensamento, seu riso no espaço do Deus já morto, mas também se apresentando como aquele que matou Deus e cuja existência envolve a liberdade e a decisão deste assassínio? 

Assim, o último homem é ao mesmo tempo mais velho e mais novo que a morte de Deus; uma vez que matou Deus, é ele mesmo que deve responder por sua própria finitude; mas, uma vez que é na morte de Deus que ele fala, que ele pensa e existe, seu próprio assassinato está condenado a morrer; deuses novos, os mesmos, já avolumam o Oceano futuro; o homem vai desaparecer. 

Mais que a morte de Deus – ou antes, no rastro desta morte e segundo uma correlação profunda com ela, o que anuncia o pensamento de Nietzsche é o fim de seu assassino; é o esfacelamento do rosto do homem no riso e o retorno das máscaras; é a dispersão do profundo escoar do tempo, pelo qual ele se sentia transportado e cuja pressão ele suspeitava no ser mesmo das coisas; é a identidade do Retomo do Mesmo e da absoluta dispersão do homem. 

Durante todo o século XIX, o fim da filosofia e a promessa de uma cultura próxima constituíam, sem dúvida, uma única e mesma coisa, juntamente com o pensamento da finitude e o aparecimento do homem no saber; hoje, o fato de que a filosofia esteja sempre e ainda em via de acabar e o fato de que nela talvez, porém mais ainda fora dela e contra ela, na literatura como na reflexão formal, a questão da linguagem se coloque, provam sem dúvida que o homem está em via de desaparecer. 

É que toda a epistémê moderna – aquela que se formou por volta do fim do século XVIII e serve ainda de solo positivo ao nosso saber, aquela que constituiu o modo de ser singular do homem e a possibilidade de conhecê-lo empiricamente – toda essa epistémê estava ligada ao desaparecimento do Discurso e de seu reino monótono, ao deslizar da linguagem para o lado da objetividade e ao seu reaparecimento múltiplo. 

Se essa mesma linguagem surge agora com insistência cada vez maior numa unidade que devemos mas não podemos ainda pensar, não será isto o sinal de que toda essa configuração vai agora deslocar-se, e que o homem está em via de perecer, na medida em que brilha mais forte em nosso horizonte o ser da linguagem? 

Tendo o homem se constituído quando a linguagem estava votada à dispersão, não vai ele ser disperso quando a linguagem se congrega? 

E se isto fosse verdade, não seria um erro – um erro profundo, pois que nos esconderia o que cumpre pensar agora – interpretar a experiência atual como uma aplicação das formas da linguagem à ordem do humano? 

Não seria antes preciso renunciar a pensar o homem, ou, para ser mais rigoroso, pensar mais de perto este desaparecimento do homem – e o solo de possibilidade de todas as ciências do homem – na sua correlação com nossa preocupação com a linguagem? 

Não se deve admitir que, estando a linguagem novamente aí, o homem retomará àquela existência serena em que outrora o mantivera a unidade Imperiosa do Discurso? 

O homem fora uma figura entre dois modos de ser da linguagem; ou antes, ele não se constituiu senão no tempo em que a linguagem, após ter sido alojada no interior da representação e como que dissolvida nela, dela só se liberou despedaçando-se: o homem compôs sua própria figura nos interstícios de uma linguagem em fragmentos. 

Certamente, não se trata aí de afirmações quando muito e questões às quais não é possível responder; é preciso deixá-Ias em suspenso Iá onde elas se colocam, sabendo apenas que a possibilidade de as colocar abre sem dúvida, para um pensamento futuro.

Comentários

    IV. Bopp

    Capítulo VIII - Trabalho, vida e linguagem; tópico IV - Bopp

    Franz Bopp, 1791-1867

    Franz Bopp (Mogúncia1791 — Berlim1867) foi um linguista alemão e professor de filologia e sânscrito na Universidade de Berlim.

    Foi um dos principais criadores da gramática comparada, em Sobre o sistema de conjugação do sânscrito comparado aos das línguas grega, latina, persa e germânica (1816) demonstrou a afinidade genética que existe entre essas línguas, deduzindo os princípios gerais de sua formação. 

    Sua monumental Gramática comparada das línguas indo-europeias (18331852), traduzida para o francês por Michel Bréal, exerceu uma influência profunda.

    “Mas o ponto decisivo que tudo aclarará
    é a estrutura interna das línguas
    ou a gramática comparada, 

    a qual nos dará soluções totalmente novas
    sobre a genealogia das línguas, 

    da mesma forma como
    a anatomia comparada 

    espargiu uma grande luz
    sobre a história natural.”(30) 

    Schlegel bem o sabia: a constituição da historicidade na ordem da gramática fez-se segundo o mesmo modelo que na ciência dos seres vivos.

     E, na verdade, nada há nisso de surpreendente, pois que, ao longo de toda a idade clássica, as palavras com que se pensava que as línguas eram compostas e os caracteres pelos quais se tentava constituir uma ordem natural, haviam recebido, identicamente, o mesmo estatuto: 

    • só existiam pelo valor representativo que detinham, 
    • bem como pelo poder de análise, de reduplicação, de composição e de ordenação 

    que se lhes reconhecia em relação às coisas representadas. 

    Com Jussieu e Lamarck primeiramente, com Cuvier em seguida, o caráter perdera sua função representativa, ou antes, se ele podia ainda “representar” e permitir o estabelecimento de relações de vizinhança ou de parentesco, 

    • não era pela virtude própria de sua estrutura visível 
    • nem dos elementos descritíveis de que era composto, 

    mas porque fora primeiro reportado a uma organização de conjunto e a uma função que ele assegura de maneira direta ou indireta, principal ou colateral, “primária” ou “secundária”. 

    No domínio da linguagem, a palavra sofre, mais ou menos na mesma época, uma transformação análoga: 

    • certamente, ela não deixa de ter um sentido e de poder “representar” alguma coisa no espírito de quem a utiliza ou a escuta; 
    • esse papel, porém, não é mais constitutivo da palavra no seu ser mesmo, na sua arquitetura essencial, no que lhe permite tomar lugar no interior de uma frase e aí ligar-se a outras palavras mais ou menos diferentes. 

    Se a palavra pode figurar num discurso em que ela quer dizer alguma coisa, 

    • não será por virtude de uma discursividade imediata que ela deteria propriamente e por direito de nascimento, 
    • mas porque na sua forma mesma, nas sonoridades que a compõem, nas mudanças que sofre segundo a função gramatical que ocupa, nas modificações enfim a que se acha sujeita através do tempo, obedece a certo número de leis estritas que regem de maneira semelhante todos os outros elementos da mesma língua; 
    • de sorte que a palavra só está vinculada a uma representação, na medida em que primeiramente faz parte da organização gramatical pela qual a língua define e assegura sua coerência própria. 

    Para que a palavra possa dizer o que ela diz, é preciso que pertença a uma totalidade gramatical que, em relação a ela, é primeira, fundamental e determinante. 

    Esse desnível da palavra, essa espécie de salto para trás, para fora das funções representativas, foi, certamente, por volta do fim do século XVIII, um dos acontecimentos importantes da cultura ocidental. 

    E um daqueles também que mais passaram despercebidos. 

    Facilmente se dirige a atenção para os primeiros momentos da economia política, para a análise de Ricardo sobre a renda fundiária e o custo da produção: 

    reconhece-se aqui que o acontecimento teve grandes dimensões, pois, pouco a pouco, ele não somente permitiu o desenvolvimento de uma ciência, como também acarretou certo número de mutações econômicas e políticas. 

    Tampouco se descuida demasiado das formas novas assumidas pelas ciências da natureza; 

    • e se é verdade que, por uma ilusão retrospectiva, valoriza-se Lamarck em detrimento de Cuvier, 
    • se é verdade que se percebe mal que a “vida” atinge pela primeira vez, com as Leçons d’anatomie comparée, seu limiar de positividade, 
    • tem-se, contudo, a consciência ao menos difusa de que a cultura ocidental começou a dirigir, desde aquele momento, um olhar novo sobre o mundo dos seres vivos.

     Em contrapartida, 

    • o isolamento das línguas indo-européias, 
    • a constituição de uma gramática comparada, 
    • o estudo das flexões, 
    • a formação das leis de alternância vocálica e de mutação consonântica  
    • – em suma, toda a obra filológica de Grimm, de Schlegel, de Rask e de Bopp 

    permanece às margens de nossa consciência histórica, como se ela tivesse tão-somente fundado uma disciplina um pouco lateral e esotérica – como se, de fato, não fosse todo o modo de ser da linguagem (e da nossa) que se modificara através deles. 

    Sem dúvida, não se deve buscar justificar um tal esquecimento a despeito da importância da mudança, mas, ao contrário, a partir dela e da cega proximidade que esse acontecimento conserva sempre para nossos olhos mal desprendidos ainda de suas luzes costumeiras. 

    É que, na época mesma em que se produziu, já estava envolto, se não em segredo, ao menos numa certa discrição.

    Talvez as mudanças no modo de ser da linguagem sejam como as alterações que afetam a pronúncia, a gramática ou a semântica: 

    • por mais rápidas que sejam, jamais são claramente apreendidas por aqueles que falam e cuja linguagem, no entanto, já veicula essas mutações; 
    • só se toma consciência delas de viés, por momentos; 
    • e, ademais, a decisão só é finalmente indicada de modo negativo:
      • pelo desuso radical e imediatamente perceptível da linguagem que se empregava. 

    Sem dúvida, não é possível a uma cultura tomar consciência, de modo temático e positivo, de que sua linguagem cessa de ser transparente às suas representações para espessar-se e receber um peso próprio. 

    Quando se continua a discorrer, de que modo se saberia – senão através de alguns indícios obscuros que se interpretam com dificuldade e mal – que a linguagem (aquela mesma de que se serve) está em via de adquirir uma dimensão irredutível à pura discursividade? 

    Por todas essas razões, certamente, o nascimento da filologia permaneceu, na consciência ocidental, muito mais discreto que o da biologia e da economia política. 

    Contudo, fazia parte da mesma transmutação arqueológica. 

    Contudo, suas consequências talvez se tenham estendido muito mais longe ainda em nossa cultura, pelo menos nas camadas subterrâneas que a percorrem e a sustentam. 

    Como se formou essa positividade filológica?

    Quatro segmentos teóricos nos assinalam sua constituição no começo do século XIX 

    – na época do Ensaio sobre a língua e a filosofia dos indianos de Schlegel (1808), da Deutsche Grammatik de Grimm (1818) e do livro de Bopp sobre o Sistema de conjugação do sânscrito (1816). 

    1. O primeiro desses segmentos concerne à maneira como uma língua pode caracterizar-se internamente
    e distinguir-se das outras. 

    Na época clássica, podia-se definir a individualidade de uma língua a partir de vários critérios: 

    • proporção entre os diferentes sons utilizados para formar palavras (há línguas de predominância vocálica e outras de predominância consonântica), 
    • privilégio concedido a certas categorias de palavras (línguas de substantivos concretos, línguas de substantivos abstratos etc.), 
    • maneira de representar as relações (por preposições ou por declinações), 
    • disposição escolhida para colocar as palavras em ordem (quer se coloque de início, como os franceses, o sujeito lógico, quer se dê a primazia às palavras mais importantes, como em latim); 

    assim se distinguiam 

    • as línguas do Norte e as do Sul, 
    • as do sentimento e as da necessidade, 
    • as da liberdade e as da escravatura, 
    • as da barbárie e as da civilização, 
    • as do raciocínio lógico e as da argumentação retórica: 

    todas essas distinções entre as línguas nunca concerniam mais que à maneira como elas podiam analisar a representação e, em seguida, compor seus elementos. 

    Mas, a partir de Schlegel, as línguas, ao menos na sua tipologia mais geral, se definem pela maneira como ligam uns aos outros os elementos propriamente verbais que a compõem; 

    • entre esses elementos, alguns certamente são representativos;
      • possuem, em todo o caso, um valor de representação que é visível; 
    • mas outros não detêm nenhum sentido e servem somente, por uma certa composição, para determinar o sentido de um outro elemento na unidade do discurso. 

    É esse material feito de nomes, de verbos, de palavras em geral, mas também de sílabas, de sons – que as línguas reúnem para formar proposições e frases. 

    Mas a unidade material constituída pela disposição dos sons, das sílabas e das palavras não é regida pela pura e simples combinatória dos elementos da representação. 

    Ela tem seus princípios próprios e que diferem nas diversas línguas: a composição gramatical tem regularidades que não são transparentes à significação do discurso. 

    Ora, como a significação pode passar, quase integralmente, de uma língua para outra, são essas regularidades que vão permitir definir a individualidade de uma língua. 

    Cada uma tem um espaço gramatical autônomo; podem-se comparar esses espaços lateralmente, isto é, de uma língua para outra, sem ter de passar por um “meio” comum que seria o campo da representação com todas as suas subdivisões possíveis. 

    É fácil distinguir, de imediato, dois grandes modos de combinação entre os elementos gramaticais. 

    Um consiste em justapô-los de maneira que eles se determinem uns aos outros; 

    nesse caso, a língua é feita de uma poeira de elementos – em geral muito sucintos – que podem combinar-se de diferentes maneiras, cada uma dessas unidades guardando, porém, sua autonomia, a possibilidade, portanto, de romper o liame transitório que, no interior de uma frase ou de uma proposição, ela acaba de instaurar com uma outra. 

    A língua se define então pelo número de suas unidades e por todas as combinações possíveis que podem, no discurso, estabelecer-se entre elas; trata-se então de uma “reunião de átomos”, de uma “agregação mecânica operada por uma aproximação exterior”(31). 

    Existe outro modo de ligação entre os elementos de uma língua: é o sistema de flexões que altera internamente as sílabas ou as palavras essenciais – as formas radicais. 

    Cada uma dessas formas carrega consigo certo número de variações possíveis, determinadas de antemão; e, conforme as outras palavras da frase, conforme as relações de dependência ou de correlação entre essas palavras, conforme as vizinhanças e as associações, será utilizada esta ou aquela variável. 

    Aparentemente, esse modo de ligação é menos rico que o primeiro, pois que o número das possibilidades combinatórias é muito mais restrito; 

    • na realidade, porém, o sistema da flexão jamais existe sob sua forma pura e mais descarnada; 
    • a modificação interna do radical lhe permite receber por adição elementos que são, eles próprios, modificáveis interiormente, de sorte que, “cada raiz é verdadeiramente uma espécie de gérmen vivo; 
    • pois as relações sendo indicadas por uma modificação interior e sendo dado um livre campo ao desenvolvimento da palavra, esta palavra pode estender-se de maneira ilimitada”(32).

    A esses dois grandes tipos de organização linguística correspondem, 

    • por um lado, o chinês, em que “as partículas que designam as idéias sucessivas são monossílabos, tendo sua existência à parte” 
    • e, de outro, o sânscrito, cuja “estrutura é completamente orgânica, ramificando-se, por assim dizer, com a ajuda de flexões, de modificações interiores e de entrelaçamentos variados do radical”(33). 

    Entre esses modelos maiores e extremos, podem se repartir todas as outras línguas, quaisquer que sejam; cada uma terá necessariamente uma organização que a aproximará de um dos dois, ou que a manterá a igual distância, no meio do campo assim definido. 

    • Mais próximas do chinês, encontram-se o basco, o copta, as línguas americanas; elas ligam, uns aos outros, elementos separáveis; mas estes, em vez de permanecerem sempre em estado livre e como átomos verbais irredutíveis, “começam já a fundir-se na palavra”; 
    • o árabe se define por uma mistura entre o sistema das afixações e o das flexões; 
    • o celta é quase exclusivamente uma língua de flexão, mas nele se encontram ainda “vestígios de línguas afixas”. 

    Dir-se-á talvez que essa oposição já era conhecida no século XVIII e que se sabia desde muito tempo distinguir a combinatória das palavras chinesas nas declinações e conjugações de línguas como o latim e o grego.

    Objetar-se-á também que a oposição absoluta estabelecida por Schlegel não tardou a ser criticada por Bopp: 

    • lá onde Schlegel via dois tipos de línguas radicalmente inassimiláveis uma à outra, 
    • Bopp buscou uma origem comum; tenta estabelecer(34) que as flexões não são uma espécie de desenvolvimento interior e espontâneo do elemento primitivo, mas partículas que se aglomeraram à sílaba radical: o m da primeira pessoa em sânscrito (bhavâmi) ou o t da terceira (bhavâti) são efeito da adjunção do radical do verbo do pronome mâm (eu) e tâm (ele). 

    Mas o importante para a constituição da filologia não está tanto em saber se os elementos da conjugação puderam beneficiar-se, num passado mais ou menos longínquo, de uma existência isolada com um valor autônomo. 

    O essencial, e o que distingue as análises de Schlegel e de Bopp daquelas que, no século XVIII, podem aparentemente antecipar-se a elas(35) é que as sílabas primitivas não crescem (por adjunção ou proliferação internas) sem um certo número de modificações reguladas no radical. 

    • Numa língua como o chinês, há apenas leis de justaposição; 
    • mas em línguas em que os radicais estão sujeitos ao crescimento (quer sejam monossilábicos como no sânscrito ou polissilábicos como no hebraico),
      • encontram-se sempre formas regulares de variações internas. 

    Compreende-se que a nova filologia, tendo agora para caracterizar as línguas esses critérios de organização interior, haja abandonado as classificações hierárquicas que o século XVIII praticava: 

    • admitia-se então que havia línguas mais importantes que outras porque nelas a análise das representações era mais precisa ou mais fina. 

    Doravante todas as línguas se equivalem: elas têm somente organizações internas que são diferentes. Daí essa curiosidade por línguas raras, pouco faladas, mal “civilizadas”, de que Rask deu o testemunho na sua grande investigação através da Escandinávia, da Rússia, do Cáucaso, da Pérsia e da Índia.  

    2. O estudo dessas variações internas constitui o segundo segmento teórico importante. 

    Nas suas pesquisas etimológicas, a gramática geral estudava, é certo, as transformações das palavras e das sílabas através do tempo. 

    Mas esse estudo era limitado por três razões. 

    • lncidia mais sobre a metamorfose das letras do alfabeto do que sobre a maneira como os sons efetivamente pronunciados podiam ser modificados. Ademais, essas transformações eram consideradas como o efeito sempre possível, em qualquer tempo e sob todas as condições, de uma certa afinidade das letras entre si; 
    • admitia-se que o p e o b, o m e o n eram bastante vizinhos para que um pudesse substituir o outro; tais mudanças eram provocadas ou determinadas somente por essa duvidosa proximidade e pela confusão que podia seguir-se na pronúncia ou na audição. 
    • Enfim, as vogais eram tratadas como o elemento mais fluido e mais instável da linguagem, ao passo que as consoantes passavam por formar sua arquitetura sólida (o hebraico, por exemplo, não dispensa a escrita das vogais?). 

    Pela primeira vez, com Rask, Grimm e Bopp, a linguagem (embora não se busque reconduzi-Ia aos seus gritos originários) é tratada como um conjunto de elementos fonéticos. 

    Enquanto, para a gramática geral, a linguagem nascia quando o ruído da boca ou dos lábios se tornava letra, 

    doravante admite-se que há linguagem quando esses ruídos são articulados e divididos numa série de sons distintos.

    Todo o ser da linguagem é agora sonoro. 

    O que explica o interesse novo, manifestado pelos irmãos Grimm e por Raynouard, pela literatura não-escrita, as narrativas populares e os dialetos falados. Procura-se a linguagem o mais perto possível do que ela é: na fala – essa fala que a escrita desseca e imobiliza num lugar. 

    Toda uma mística está em via de nascer: a do verbo, do puro fulgor poético que passa sem rastro, deixando atrás de si apenas uma vibração suspensa por um instante. Na sua sonoridade passageira e profunda, a fala se torna soberana. E seus secretos poderes, reanimados pelo sopro dos profetas, opõem-se fundamentalmente (ainda que tolerem alguns entrecruzamentos) ao esoterismo da escrita que, por seu lado, supõe a permanência ressequida de um segredo no centro de labirintos visíveis. 

    A linguagem já não é propriamente esse signo – mais ou menos longínquo, semelhante e arbitrário – ao qual a Lógica de Port-Royal propunha, como modelo imediato e evidente, o retrato de um homem ou um mapa geográfico. 

    Adquiriu uma natureza vibratória que a destaca do signo visível para aproximá-Ia da nota musical. 

    E foi preciso justamente que Saussure contornasse esse momento da fala, que foi capital para toda a filologia do século XIX, para restaurar, para além das formas históricas, a dimensão da língua em geral e reabrir, acima de tanto esquecimento, o velho problema do signo que animara, sem interrupção, todo o pensamento desde Port-Royal até os últimos ideólogos. 

    No século XIX começa, pois, uma análise da linguagem tratada como um conjunto de sons liberados das letras que os podem transcrever(36). 

    Ela foi feita em três direções. 

    [i] Primeiro a tipologia das diversas sonoridades que são utilizadas numa língua: 

    para as vogais, por exemplo, oposição entre as simples e as duplas (alongadas como em â, ô; ou ditongadas como em ae, ai); entre as vogais simples, oposição entre as puras (a, i, o, u) e as flexionadas (e, õ, ü); entre as puras, há as que podem ter várias pronúncias (como o o) e as que só têm uma (a, i, u); enfim, entre estas últimas, umas estão sujeitas à mudança e podem receber o Um/ Qui (a eu); quanto ao i, permanece sempre fixo(37). 

    [ii] A segunda forma de análise incide sobre as condições que podem determinar uma mudança numa sonoridade; 

    • seu lugar no vocábulo é, em si mesmo, um fator importante: uma sílaba, se for terminal, protege menos facilmente sua permanência do que se constituir a raiz; 
    • as letras do radical, diz Grimm, têm vida longa; as sonoridades da desinência têm uma vida mais curta. 

    Mas, além disso, há determinações positivas, pois “a manutenção ou a mudança” de uma sonoridade qualquer “não é jamais arbitrária”(38). Essa ausência de arbitrário era para Grimm a determinação de um sentido (no radical de um grande número de verbos alemães o a se opõe ao i como o pretérito ao presente). 

    Para Bopp, ela é o efeito de um certo número de leis. Umas definem as regras de mudança quando duas consoantes se acham em contato: 

    “Assim, quando se diz em sânscrito ai-ti (ele come) no lugar de ad-ti (da raiz ad, comer), a mudança d e t tem por causa uma lei física.” 

    Outras definem o modo de ação de uma terminação sobre as sonoridades do radical: 

    “Por leis mecânicas, entendo principalmente as leis do peso e, em particular, a influência que o peso das desinências pessoais exerce sobre a sílaba precedente.”(39) 

    [iii] Finalmente, a última forma de análise incide sobre a constância das transformações através da História. 

    Grimm estabeleceu assim uma tabela de correspondência para as labiais, as dentais e as guturais entre o grego, o “gótico” e o alto-alemão: o p, o b, o f dos gregos tornam-se respectivamente f,p, b em gótico e b ou v, f e p em alto-alemão; t, d, th, em grego, tomam-se, em gótico, th, t, d, e, em alto-alemão, d, z, t. 

    Por esse conjunto de relações, os caminhos da história se acham prescritos; e, em vez de as línguas serem submetidas a essa medida exterior, a essas coisas da história humana que deviam, para o pensamento clássico, explicar suas mudanças, detêm elas próprias um princípio de evolução. 

    Aí, como alhures, é a “anatomia”(40) que fixa o destino. 

    3. Essa definição de uma lei das modificações consonânticas ou vocálicas permite estabelecer uma teoria nova do radical. 

    Na época clássica, as raízes eram assinaladas por um duplo sistema de constantes: 

    • as constantes alfabéticas que incidiam sobre um número arbitrário de letras (em certos casos, só havia uma) 
    • e as constantes significativas, que reagrupavam sob um tema geral uma quantidade indefinidamente extensível de sentidos vizinhos; 

    no cruzamento dessas duas constantes, lá onde um mesmo sentido vinha à luz por uma mesma letra ou uma mesma sílaba, individualizava-se uma raiz. 

    A raiz era um núcleo expressivo transformável ao infinito a partir de uma sonoridade primeira. 

    Mas se vogais e consoantes só se transformam segundo certas leis e sob certas condições, então o radical deve ser uma individualidade linguística estável (dentro de certos limites), que se pode isolar com suas variações eventuais e que constitui com suas diferentes formas possíveis um elemento de linguagem. 

    Para determinar os elementos primeiros e absolutamente simples de uma língua, a gramática geral devia ascender até o ponto de contato imaginário onde o som, não ainda verbal, tocava de certo modo na vivacidade mesma da representação. 

    Doravante, os elementos de uma língua lhe são interiores (mesmo se pertencem também às outras): existem meios puramente linguísticos para estabelecer sua composição constante e a tabela de suas modificações possíveis. 

    A etimologia, portanto, vai deixar de ser um procedimento indefinidamente regressivo em direção a uma língua primitiva, toda povoada pelos primeiros gritos da natureza; torna-se um método de análise preciso e limitado para reencontrar numa palavra o radical a partir do qual ela foi formada: 

    “As raízes das palavras só foram postas em evidência após o sucesso da análise das flexões e das derivações.”(41) 

    • Pode-se assim estabelecer que, em certas línguas como as semíticas, as raízes são bissilábicas (em geral de três letras); 
    • que noutras (as indo-germânicas) são regularmente monossilábicas; 
    • algumas são constituídas por uma só e única vogal (i é o radical dos verbos que querem dizer ir, u dos que significam repercutir); 
    • mas, a maior parte do tempo, a raiz nessas línguas comporta ao menos uma consoante e uma vogal – a consoante podendo ser terminal ou inicial;
      • no primeiro caso, a vogal é necessariamente inicial; 
      • no outro caso, ocorre ser ela seguida por uma segunda consoante que lhe serve de apoio (como na raiz ma, mad, que dá em latim metiri, em alemão messen(42). 
    • Também ocorre que essas raízes monossilábicas sejam redobradas, como do se redobra no sânscrito dadami, e o grego didômi, ou sta em tishtami e istémi(43). 

    Finalmente e sobretudo, a natureza da raiz e seu papel constituinte na linguagem são concebidos de um modo absolutamente novo: 

    no século XVIII, a raiz era um nome rudimentar que designava, em sua origem, uma coisa concreta, uma representação imediata, um objeto que se oferecia ao olhar ou a qualquer um dos sentidos. 

    • A linguagem se construía a partir do jogo de suas caracterizações nominais; 
    • a derivação estendia seu alcance; 
    • a abstração fazia nascer os adjetivos; 
    • e bastava então acrescentar a estes o outro elemento irredutível, a grande função monótona do verbo ser, para que se constituísse a categoria das palavras conjugáveis – espécie de condensação numa forma verbal do ser e do epíteto. 

    Também Bopp admite que os verbos são mistos, obtidos pela coagulação do verbo com uma raiz. 

    Mas sua análise difere, em vários pontos essenciais, do esquema clássico:

    • não se trata da adição virtual, subjacente e invisível da função atributiva e do sentido proposicional que se empresta ao verbo ser; 
    • trata-se primeiramente de uma junção material entre um radical e as formas do verbo ser:
      • o as sânscrito se reencontra no sigma do aoristo grego, no er, do mais-que-perfeito ou do futuro anterior latino; 
      • o bhu sânscrito se encontra no b do futuro e do imperfeito latinos. 

    Ademais, essa adjunção do verbo ser permite essencialmente atribuir ao radical um tempo e uma pessoa (a desinência constituída pelo radical do verbo ser comportando, além disso, aquele do pronome pessoal, como em script-s-i(44)) 

    Por conseguinte, não é a adjunção de ser que transforma um epíteto em verbo; o próprio radical detém uma significação verbal, à qual as desinências derivadas da conjugação de ser acrescentam somente modificações de pessoas de tempo. 

    Portanto, as raízes dos verbos não designam na origem “coisas”, mas ações, processos, desejos, vontades; e são elas que, recebendo certas desinências provindas do verbo ser e dos pronomes pessoais, tornam-se suscetíveis de conjugação, ao passo que, recebendo outros sufixos, eles próprios modificáveis, elas se tornarão nomes suscetíveis de declinação. 

    À bipolaridade nomes-verbo ser, que caracterizava a análise clássica, é preciso, pois, substituir uma disposição mais complexa: 

    raízes de significação verbal, que podem receber desinências de tipos diferentes e assim dar nascimento a verbos conjugáveis ou a substantivos. 

    Os verbos (e os pronomes pessoais) tornam-se assim o elemento primordial da linguagem – aquele a partir do qual ela pode desenvolver-se. 

    “O verbo e os pronomes pessoais parecem ser as verdadeiras alavancas da linguagem.”(45) 

    As análises de Bopp deviam ter uma importância capital não somente para a decomposição interna de uma língua, mas ainda para definir o que pode ser a linguagem em sua essência. 

    • Ela não é mais um sistema de representações que tem poder de recortar e de recompor outras representações; 
    • designa, em suas raízes mais constantes, ações, estados, vontades; 
    • mais do que o que se vê, pretende dizer originariamente o que se faz ou o que se sofre; 
    • e, se acaba por mostrar as coisas como que as apontando com o dedo, é na medida em que elas são o resultado, ou o objeto, ou o instrumento dessa ação; 
    • os nomes não recortam tanto o quadro complexo de uma representação; 
    • recortam, detêm e imobilizam o processo de uma ação. 

    A linguagem “enraíza-se” 

    • não do lado das coisas percebidas, 
    • mas do lado do sujeito em sua atividade. 

    E talvez seja ela então proveniente do querer e da força, mais do que dessa memória que reduplica a representação. Fala-se porque se age e não porque, reconhecendo, se conhece. Como a ação, a linguagem exprime uma vontade profunda. 

    O que tem duas conseqüências. 

    A primeira é paradoxal para um olhar apressado: 

    é que, no momento em que a filologia se constitui pela descoberta de uma dimensão da gramática pura, volta-se a atribuir à linguagem profundos poderes de expressão (Humboldt não é apenas contemporâneo de Bopp; conhecia sua obra e detalhadamente): 

    • enquanto na época clássica a função expressiva da linguagem só era requerida no ponto de origem e apenas para explicar que um som pudesse representar uma coisa, 
    • no século XIX, a linguagem vai ter, ao longo de todo o seu percurso e nas suas formas mais complexas, um valor expressivo que é irredutível; 
    • nada de arbitrário, nenhuma convenção gramatical podem obliterá-la, pois, se a linguagem exprime,
      • não o faz na medida em que imite e reduplique as coisas, 
      • mas na medida em que manifesta e traduz o querer fundamental daqueles que falam. 

    A segunda conseqüência consiste em que 

    • a linguagem não está mais ligada às civilizações pelo nível de conhecimentos que elas atingiram (a finura da rede representativa, a multiplicidade dos liames que se podem estabelecer entre os elementos), 
    • mas pelo espírito do povo que as fez nascer, as anima e se pode reconhecer nelas. 

    Assim como o organismo vivo manifesta, por sua coerência, as funções que o mantêm em vida, a linguagem, e isso em toda a arquitetura de sua gramática, torna visível a vontade fundamental que mantém um povo em vida e lhe dá o poder de falar uma linguagem que só a ele pertence. 

    Desde logo, as condições de historicidade da linguagem são modificadas; 

    • as mutações não vêm mais do alto (da elite dos sábios, do pequeno grupo de mercadores e viajantes, dos exércitos vitoriosos, da aristocracia de invasão), 
    • mas nascem obscuramente de baixo, pois a linguagem não é um instrumento, ou um produto – um ergon, como dizia Humboldt – mas uma incessante atividade – uma energeia. 

    Numa língua, quem fala e não cessa de falar, num murmúrio que não se ouve mas de onde vem, no entanto, todo o esplendor, é o povo. 

    Grimm pensava surpreender esse murmúrio escutando o altdeutsche Meistergesang, e Raynouard, transcrevendo as Poésies originales des troubadours. 

    A linguagem está ligada 

    • não mais ao conhecimento das coisas, 
    • mas à liberdade dos homens: 

    “A linguagem é humana: à nossa plena liberdade deve sua origem e seus progressos; ela é nossa história, nossa herança.”(46) 

    No momento em que se definem as leis internas da gramática, estabelece-se um profundo parentesco entre a linguagem e o livre destino dos homens. 

    Ao longo de todo o século XIX, a filologia terá profundas ressonâncias políticas. 

    4. A análise das raízes tornou possível uma nova definição dos sistemas de parentesco entre as línguas. 

    E é este o quarto grande segmento teórico que caracteriza o aparecimento da filologia. 

    Essa definição supõe, primeiramente, que as línguas se agrupem em conjuntos descontínuos uns em relação aos outros. 

    A gramática geral excluía a comparação na medida em que admitia em todas as línguas, quaisquer que fossem, duas ordens de continuidade; 

    • uma, vertical, permitia-lhes, a todas, dispor do acervo das raízes mais primitivas que, através de algumas transformações, religava cada linguagem às articulações iniciais; 
    • outra, horizontal, fazia as línguas se comunicarem na universalidade da representação: 

    todas elas tinham de analisar, decompor e recompor representações que, em limites bastante amplos, eram as mesmas para o gênero humano inteiro. 

    De sorte que não era possível comparar as línguas, salvo de um modo indireto, e como que por um trajeto triangular; 

    • podia-se analisar a maneira como esta e aquela língua haviam tratado e modificado o equipamento comum das raízes primitivas; 
    • podia-se também comparar como duas línguas recortavam e religavam as mesmas representações. 

    Ora, o que se tornou possível, a partir de Grimm e de Bopp, foi a comparação 

    • direta 
    • e lateral 

    de duas ou várias línguas. 

    • Comparação direta 

    por não ser mais necessário passar pelas representações puras ou pela raiz absolutamente primitiva: 

      • basta estudar as modificações do radical, 
      • o sistema das flexões, 
      • a série das desinências. 
    • Mas comparação lateral, 

    que não ascende aos elementos comuns a todas as línguas, nem ao fundo representativo no qual se nutrem: 

      • não é portanto possível reportar uma língua à forma ou aos princípios que tornam todas as outras possíveis; 
      • é preciso agrupá-Ias segundo sua proximidade formal: 

    “A semelhança se acha não somente no grande número de raízes comuns, mas se estende ainda até a estrutura interior das línguas e até a gramática.”(47) 

    Ora, essas estruturas gramaticais, que podem ser comparadas diretamente entre si, oferecem dois caracteres particulares. 

    Primeiro, o de só existirem em sistemas: 

    • com radicais monossilábicos,
      • um certo número de flexões é possível; 
      • o peso das desinências pode ter efeitos cujo número e natureza são determináveis; 
      • os modos de afixação correspondem a alguns modelos perfeitamente fixos; 
    • já nas línguas de radicais polissilábicos,
      • todas as modificações e composições obedecerão a outras leis. 

    Entre dois sistemas como esses (um, característico das línguas indo-europeias, outro, das línguas semíticas), não se encontra tipo intermediário nem formas de transição. 

    De uma família a outra há descontinuidade. 

    Por outro lado, porém, os sistemas gramaticais, já que prescrevem certo número de leis de evolução e de mutação, permitem fixar até certo ponto o índice de envelhecimento de uma língua; para que tal forma aparecesse a partir de certo radical, foi necessária tal ou qual transformação. 

    Na idade clássica, quando duas línguas se assemelhavam, era preciso 

    • ou vincular ambas à língua absolutamente primitiva, 
    • ou então admitir que uma provinha da outra (mas o critério era externo, a língua mais derivada sendo muito simplesmente a que tivesse aparecido na história em data mais recente), 
    • ou ainda admitir permutas (devidas a acontecimentos extralinguísticos: invasão, comércio, migração). 

    Agora, quando duas línguas apresentam sistemas análogos, deve-se poder decidir 

    • ou que uma é derivada da outra, 
    • ou ainda que são ambas provenientes de uma terceira, a partir da qual cada uma delas desenvolveu sistemas
      • diferentes por um lado, 
      • mas também análogos por outro. 

    Foi assim que, a propósito do sânscrito e do grego, abandonou-se sucessivamente 

    • a hipótese de Coeurdoux, que acreditava em vestígios da língua primitiva, 
    • e a de Anquetil, que supunha uma mistura na época do reino de Bactriana; 
    • e Bopp pôde também refutar Schlegel, para quem “a língua indiana era a mais antiga, e as outras (latim, grego, línguas germânicas e persas) eram mais modernas e derivadas da primeira(48). 

    Mostrou ele que, entre o sânscrito, o latim e o grego, as línguas germânicas, havia uma relação de “fraternidade”, sendo o sânscrito não a língua mãe das outras, mas antes a irmã primogênita, a mais próxima de uma língua que teria estado na origem de toda essa família. 

    Vê-se que a historicidade introduziu-se no domínio das línguas como no dos seres vivos. 

    Para que uma evolução – que não fosse somente percurso de continuidades ontológicas – pudesse ser pensada, foi necessário 

    • que o plano ininterrupto e liso da história natural fosse quebrado, 
    • que a descontinuidade das ramificações fizesse aparecer os planos de organização na sua diversidade sem intermediário, 
    • que os organismos se ordenassem às disposições funcionais que eles devem assegurar 
    • e que se estabelecessem assim as relações do ser vivo com o que lhe permite existir. 

    Da mesma forma, foi preciso, para que a história das línguas pudesse ser pensada, 

    • que elas fossem destacadas dessa grande continuidade cronológica que as religava sem ruptura até a origem; 
    • foi preciso também liberá-Ias da superfície comum das representações onde estavam presas; 
    • graças a essa dupla ruptura, a heterogeneidade dos sistemas gramaticais apareceu com seus recortes próprios, as leis que em cada um prescrevem a mudança e os caminhos que fixam as possibilidades da evolução. 

    Uma vez suspensa a história das espécies como sequência cronológica de todas as formas possíveis, então, e somente então, o ser vivo pôde receber uma historicidade; 

    do mesmo modo, se não se tivesse suspendido, na ordem da linguagem, a análise dessas derivações indefinidas e dessas misturas sem limites que a gramática geral supunha sempre, a linguagem jamais teria sido afetada por uma historicidade interna. 

    Foi preciso tratar o sânscrito, o grego, o latim, o alemão numa simultaneidade sistemática; rompendo com toda cronologia, foi mister instalá-los num tempo fraternal, para que suas estruturas se tornassem transparentes e para que aí se pudesse ler uma história das línguas. 

    Aqui como alhures, as colocações em série cronológica tiveram de ser apagadas, seus elementos redistribuídos, e constituiu-se então uma história nova, que enuncia não somente o modo de sucessão dos seres e seu encadeamento no tempo, mas as modalidades de sua formação. 

    A empiricidade – 

    • trata-se tanto dos indivíduos naturais 
    • quanto das palavras com que podem ser nomeados 

    – está doravante atravessada pela História e em toda a espessura de seu ser. 

    A ordem do tempo começa. 

    Há, entretanto, uma diferença capital entre as línguas e os seres vivos. 

    Estes só têm história verdadeira por uma certa relação entre suas funções e suas condições de existência. E se é verdade que é sua composição interna de indivíduos organizados que torna possível sua historicidade, esta só se torna história real em virtude desse mundo exterior em que eles vivem. Foi necessário portanto, para que essa história aparecesse em plena luz e fosse descrita num discurso, que à anatomia comparada de Cuvier se acrescentasse a análise do meio ambiente e das condições que agem sobre o ser vivo. 

    A “anatomia” da linguagem, para retomar a expressão de Grimm, funciona, em contrapartida, no elemento da História: pois é uma anatomia das mudanças possíveis que anuncia, não a coexistência real dos órgãos ou sua mútua exclusão, mas o sentido no qual as mutações poderão ou não se dar. 

    A nova gramática é imediatamente diacrônica. Como poderia ser de outro modo, já que sua positividade não podia ser instaurada senão por uma ruptura entre a linguagem e a representação? 

    A organização interior das línguas, o que elas autorizam e o que elas excluem para poder funcionar, isso não podia mais ser apreendido senão na forma das palavras; mas, em si mesma, essa forma só pode enunciar sua própria lei quando reportada a seus estados anteriores, às mudanças de que é suscetível, às modificações que jamais se produzem. 

    Ao ser separada daquilo que ela representa, a linguagem certamente aparecia, pela primeira vez, na sua legalidade própria, e, no mesmo movimento, ficava-se votado a só poder apreendê-Ia na história. 

    Sabe-se bem que Saussure só pôde escapar a essa vocação diacrônica da filologia, restaurando a relação da linguagem com a representação, disposto a reconstituir uma “semiologia” que, à maneira da gramática geral, define o signo pela ligação entre duas idéias. 

    O mesmo acontecimento arqueológico manifestou-se, pois, de modo parcialmente diferente para a história natural e para a linguagem. 

    Destacando-se 

    • os caracteres do ser vivo 
    • ou as regras da gramática 

    das leis de uma representação que se analisa, tornou-se possível a historicidade da vida e da linguagem. 

    Mas essa historicidade, na ordem da biologia, teve necessidade de uma história suplementar que devia enunciar as relações entre o indivíduo e o meio ambiente; 

    • em certo sentido, a história da vida 
    • é exterior à historicidade do ser vivo; 

    é por isso que o evolucionismo constitui uma teoria biológica cuja condição de possibilidade foi uma biologia sem evolução – a de Cuvier. 

    A historicidade da linguagem, ao contrário, descobre, desde logo e sem intermediário, sua história; comunicam-se interiormente uma com a outra. 

    • Enquanto a biologia do século XIX avançará cada vez mais em direção ao exterior do ser vivo, ao seu outro lado, tornando sempre mais permeável essa superfície do corpo em que o olhar do naturalista outrora se detinha, 
    • a filologia desfará as relações que o gramático estabelecera entre a linguagem e a história externa para definir uma história interior. 

    E esta, uma vez assegurada na sua objetividade, poderá servir de fio condutor para reconstituir, em proveito da História propriamente dita, acontecimentos afastados de toda memória.

    V. A linguagem tornada objeto

    Capítulo VIII - Trabalho, vida e linguagem; tópico V - A linguagem tornada objeto

    Pode-se observar que os quatro segmentos teóricos que acabam de ser analisados, por constituírem sem dúvida o solo arqueológico da filologia, correspondem, termo a termo, e opõem-se aos que permitiam definir a gramática geral(49). 

    Remontando do último ao primeiro desses quatro segmentos, vê-se que 

    • a teoria do parentesco entre as línguas (descontinuidade entre as grandes famílias e analogias internas no regime das mudanças) faz face à teoria da derivação, que supunha incessantes fatores de desgaste e de mistura, agindo do mesmo modo sobre todas as línguas, quaisquer que fossem, a partir de um princípio externo e com efeitos ilimitados. 
    • A teoria do radical opõe-se à da designação: pois o radical é uma individualidade linguística isolável, interior a um grupo de línguas e que serve, antes de tudo, de núcleo para formas verbais, ao passo que a raiz, transpondo a linguagem para o lado da natureza e do grito, exauria-se até não ser mais que uma sonoridade indefinidamente transformável, que tinha por função um primeiro recorte nominal das coisas. 
    • O estudo das variações interiores da língua opõe-se igualmente à teoria da articulação representativa: esta definia as palavras e as individualizava umas em face das outras, reportando-as ao conteúdo que podiam significar; a articulação da linguagem era a análise visível da representação; agora as palavras se caracterizam primeiramente por sua morfologia e pelo conjunto das mutações que cada uma de suas sonoridades pode eventualmente sofrer. 
    • Enfim e sobretudo, a análise interior da língua faz face ao primado que o pensamento clássico atribuía ao verbo ser: este reinava nos limites da linguagem, ao mesmo tempo porque era o liame primeiro das palavras e porque detinha o poder fundamental da afirmação; marcava o limiar da linguagem, indicava sua especificidade e a vinculava, de um modo que não podia ser apagado, às formas do pensamento. 

    A análise independente das estruturas gramaticais, tal como praticada a partir do século XIX, isola ao contrário a linguagem, trata-a como uma organização autônoma, rompe seus liames com os juízos, a atribuição e a afirmação. A passagem ontológica que o verbo ser assegurava entre falar e pensar acha-se rompida; a linguagem, desde logo, adquire um ser próprio. E é esse ser que detém as leis que o regem. 

    A ordem clássica da linguagem encerrou-se agora sobre si mesma. 

    Perdeu sua transparência e sua função principal no domínio do saber. 

    Nos séculos XVII e XVIII, ela era o desenrolar imediato e espontâneo das representações; 

    • era nela primeiramente que estas recebiam seus primeiros signos, 
    • recortavam e reagrupavam seus traços comuns, 
    • instauravam relações de identidade ou de atribuição; 

    a linguagem era um conhecimento, e o conhecimento era, de pleno direito, um discurso. 

    Em relação a todo conhecimento, encontrava-se ela, pois, numa situação fundamental: 

    • só se podiam conhecer as coisas do mundo passando por ela. 
    • Não porque fizesse parte do mundo numa imbricação ontológica (como no Renascimento), 
    • mas porque era o primeiro esboço de uma ordem nas representações do mundo; 
    • porque era a maneira inicial, inevitável, de representar as representações. 

    Era nela que toda generalidade se formava. 

    O conhecimento clássico era profundamente nominalista. 

    A partir do século XIX, a linguagem se dobra sobre si mesma, adquire sua espessura própria, desenvolve uma história, leis e uma objetividade que só a ela pertencem.

    Tornou-se um objeto do conhecimento entre tantos outros: 

    • ao lado dos seres vivos, 
    • ao lado das riquezas e do valor, 
    • ao lado da história dos acontecimentos e dos homens. 

    Comporta, talvez, conceitos próprios, mas as análises que incidem sobre ela são enraizadas no mesmo nível que todas as que concernem aos conhecimentos empíricos. 

    • Aquela relevância que permitia à gramática geral ser ao mesmo tempo Lógica e com ela entrecruzar-se, está, doravante, reduzida. 
    • Conhecer a linguagem
      • não é mais aproximar-se o mais perto possível do próprio conhecimento, 
      • é tão somente aplicar os métodos do saber em geral a um domínio singular da objetividade. 

    Esse nivelamento da linguagem que a reduz ao puro estatuto de objeto acha-se, entretanto, compensado de três maneiras. 

    Primeiro, pelo fato de ser ela uma mediação necessária para todo conhecimento científico que pretende manifestar-se como discurso. 

    Ainda que seja ela própria disposta, desdobrada e analisada sob o olhar de uma ciência, ressurge sempre do lado do sujeito que conhece – desde que se trate, para ele, de enunciar o que sabe. 

    Daí duas preocupações que foram constantes no século XIX. 

    Uma consiste em querer neutralizar e como que polir a linguagem científica, 

    a tal ponto que, desarmada de toda singularidade própria, purificada de seus acidentes e de suas impropriedades – como se não pertencessem à sua essência -, pudesse tornar-se o reflexo exato, o duplo meticuloso, o espelho sem nebulosidade de um conhecimento que, esse, não é verbal. 

    É o sonho positivista de uma linguagem que se mantivesse ao nível do que se sabe: 

    • uma linguagem-quadro, como aquela, certamente, com que sonhava Cuvier, quando atribuía à ciência o projeto de ser uma “cópia” da natureza; 
    • em face das coisas, o discurso científico seria seu “quadro”; 
    • mas quadro tem aqui um sentido fundamentalmente diferente daquele que tinha no século XVIII;
      • tratava-se então de repartir a natureza por uma tabela constante de identidades e de diferenças, para a qual a linguagem oferecia um crivo primeiro, aproximativo e retificável; 
    • agora a linguagem é quadro, mas no sentido de que, desprendida dessa trama que lhe dá um papel imediatamente classificador, mantém-se a certa distância da natureza, para cativá-Ia por sua própria docilidade e recolher finalmente seu retrato fiel (50). 

    A outra preocupação – inteiramente distinta da primeira, ainda que lhe seja correlativa – consistiu em buscar uma lógica independente das gramáticas, dos vocabulários, das formas sintéticas, das palavras: 

    uma lógica que pudesse trazer à luz e utilizar as implicações universais do pensamento, mantendo-as ao abrigo das singularidades de uma linguagem constituída, em que poderiam ser mascaradas. 

    Era necessário que uma lógica simbólica nascesse, com Boole, na mesma época em que as linguagens se tornavam objetos para a filologia: 

    • é que, malgrado as semelhanças de superfície e algumas analogias técnicas, não se tratava de constituir uma linguagem universal como na época clássica; 
    • mas sim de representar as formas e os encadeamentos do pensamento fora de qualquer linguagem; 
    • visto que esta se tornava objeto de ciências, era preciso inventar uma língua que fosse antes simbolismo que linguagem e que, por esse motivo, fosse transparente ao pensamento, no movimento mesmo que lhe permite conhecer. 

    Poder-se-ia dizer, em certo sentido, que a álgebra lógica e as línguas indo-europeias são dois produtos de dissociação da gramática geral: 

    • estas, mostrando o deslizar da linguagem para o lado do objeto conhecido, 
    • aquela, o movimento que a faz oscilar para o lado do ato de conhecer, despojando-a então de toda forma já constituída. 

    Mas seria insuficiente enunciar o fato sob essa forma puramente negativa: 

    ao nível arqueológico, as condições de possibilidade 

    • de uma lógica não-verbal 
    • e as de uma gramática histórica 

    são as mesmas. Seu solo de positividade é idêntico. 

    A segunda compensação ao nivelamento da linguagem está no valor crítico que se emprestou ao seu estudo. Tornada realidade histórica espessa e consistente, a linguagem constitui o lugar das tradições, dos hábitos mudos do pensamento, do espírito obscuro dos povos; acumula uma memória fatal que não se conhece nem mesmo como memória. 

    Exprimindo seus pensamentos em palavras de que não são senhores, alojando-as em formas verbais cujas dimensões históricas lhes escapam, os homens, crendo que seus propósitos lhes obedecem, não sabem que são eles que se submetem às suas exigências. 

    As disposições gramaticais de uma língua são o a priori do que aí se pode enunciar. A verdade do discurso é burlada pela filologia. 

    Daí esta necessidade de remontar das opiniões, das filosofias e talvez mesmo das ciências até as palavras que as tornaram possíveis e, mais além, até um pensamento cuja vivacidade não estaria ainda presa na rede das gramáticas. 

    Compreende-se, assim, o reflorescimento muito acentuado, no século XIX, de todas as técnicas da exegese. Esse reaparecimento deve-se ao fato de que a linguagem retomou a densidade enigmática que tinha no Renascimento. 

    Mas não se tratará agora de reencontrar uma fala primeira que aí estivesse enterrada, 

    • mas de inquietar as palavras que falamos, 
    • de denunciar o vinco gramatical de nossas idéias, 
    • de dissipar os mitos que animam nossas palavras, 
    • de tornar de novo ruidosa e audível a parte de silêncio que todo discurso arrasta consigo quando se enuncia. 

    O primeiro livro do Capital é uma exegese do “valor”;
    Nietzsche inteiro, uma exegese de alguns vocábulos gregos;
    Freud, a exegese de todas essas frases mudas que sustentam e escavam ao mesmo tempo nossos discursos aparentes, nossos fantasmas, nossos sonhos, nosso corpo. 

    A filologia, como análise do que se diz na profundidade do discurso, tornou-se a forma moderna da crítica. Lá onde se tratava, no fim do século XVIII, de fixar os limites do conhecimento, buscar-se-á desarticular as sintaxes, romper as maneiras constringentes de falar, voltar as palavras para o lado de tudo o que se diz através delas e malgrado elas. 

    Deus é talvez menos um além do saber que um certo aquém de nossas frases; e se o homem ocidental é inseparável dele, não é por uma propensão invencível a transpor as fronteiras da experiência, mas porque sua linguagem o fomenta sem cessar na sombra de suas leis: 

    “Temo que jamais nos desembaracemos de Deus porque cremos ainda na gramática.”(51) 

    A interpretação, 

    no século XVI, 

    • ia do mundo (coisas e textos ao mesmo tempo) 
    • à Palavra divina que nele se decifrava; 

    a nossa, pelo menos a que se formou no século XIX, 

    • vai dos homens, de Deus, dos conhecimentos ou das quimeras 
    • às palavras que os tomam possíveis; 
    • e o que ela descobre não é a soberania de um discurso primeiro, é o fato de que nós somos, antes da mais intima de nossas palavras, já dominados e perpassados pela linguagem. 

    Estranho comentário a que se entrega a crítica moderna: 

    • pois que ele não vai da constatação de que há linguagem à descoberta daquilo que ela quer dizer, 
    • mas do desdobramento no discurso manifesto ao desvendamento da linguagem em seu ser bruto. 

    Os métodos de interpretação fazem face, pois, no pensamento moderno, às técnicas de formalização: 

    • aqueles, com a pretensão de fazer falar a linguagem por sob ela própria e o mais perto possível do que, sem ela, nela se diz; 
    • estas, com a pretensão de controlar toda linguagem eventual e de a vergar pela lei do que é possível dizer.

    Interpretar e formalizar tornaram-se as duas grandes formas de análise de nossa época: na verdade, não conhecemos outras. 

    Mas conhecemos as relações entre a exegese e a formalização, somos capazes de as controlar e de as dominar? 

    Pois, se a exegese nos conduz menos a um discurso primeiro que à existência nua de algo como uma linguagem, não será ela constrangida a dizer somente as formas puras da linguagem, antes mesmo que esta tenha tomado um sentido? 

    Mas para formalizar aquilo que se supõe ser uma linguagem, não é preciso ter praticado um mínimo de exegese e interpretado ao menos todas essas figuras mudas como querendo dizer alguma coisa? 

    Quanto à divisão entre a interpretação e a formalização, é verdade que ela hoje nos pressiona e nos domina. Mas não é bastante rigorosa, a bifurcação que ela delineia não se entranha suficientemente longe em nossa cultura, seus dois ramos são demasiado contemporâneos para que possamos dizer sequer que ela prescreve uma simples escolha ou que nos convida a optar entre o passado que acreditava no sentido e o presente (o futuro) que descobriu o significante. 

    Trata-se, de fato, de duas técnicas correlativas, cujo solo comum de possibilidade é formado pelo ser da linguagem, tal como se constitui no limiar da idade moderna. 

    A relevância critica da linguagem, que compensava seu nivelamento ao objeto, implicava que ela fosse reaproximada, ao mesmo tempo, de um ato de conhecer isento de toda fala, e daquilo que não se conhece em cada um de nossos discursos. 

    Era necessário, 

    • ou torná-Ia transparente às formas do conhecimento, 
    • ou entranhá-Ia nos conteúdos do inconsciente. 

    Isso explica bem a dupla marcha do século XIX em direção ao formalismo do pensamento e à descoberta do inconsciente – em direção a Roussel e a Freud. 

    E explica também as tentações para inclinar uma para a outra e entrecruzar essas duas direções: 

    • tentativa por trazer à luz, por exemplo, as formas puras que, antes de qualquer conteúdo, se impõem ao nosso inconsciente; 
    • ou ainda esforço para fazer chegar até nosso discurso o solo de experiência, o sentido de ser, o horizonte vivido de todos os nossos conhecimentos. 

    O estruturalismo e a fenomenologia encontram aqui, com sua disposição própria, o espaço geral que define seu lugar-comum. 

    Finalmente, a última das compensações ao nivelamento da linguagem, a mais importante, a mais inesperada também, é o aparecimento da literatura. 

    Da literatura como tal, pois, desde Dante, desde Homero, existiu realmente, no mundo ocidental, uma forma de linguagem que nós, agora, denominamos “literatura”. 

    Mas a palavra é de recente data, como recente é também em nossa cultura o isolamento de uma linguagem singular, cuja modalidade própria é ser “literária”. 

    É que, no início do século XIX, na época em que a linguagem se entranhava na sua espessura de objeto e se deixava, de parte a parte, atravessar por um saber, ela se reconstituía alhures, sob uma forma independente, de difícil acesso, dobrada sobre o enigma de seu nascimento e inteiramente referida ao ato puro de escrever. 

    A literatura é a contestação da filologia (de que é, no entanto, a figura gêmea): 

    • ela reconduz a linguagem da gramática ao desnudado poder de falar, 
    • e lá encontra o ser selvagem e imperioso das palavras. 

    Da revolta romântica contra um discurso imobilizado na sua cerimônia até a descoberta, por Mallarmé, da palavra em seu poder impotente, vê-se bem qual foi, no século XIX, a função da literatura em relação ao modo de ser moderno da linguagem. 

    Com base nesse jogo essencial, o restante é efeito: 

    • a literatura se distingue cada vez mais no discurso de idéias e se encerra numa intransitividade radical; 
    • destaca-se de todos os valores que podiam, na idade clássica, fazê-Ia circular (o gosto, o prazer, o natural, o verdadeiro) e faz nascer, no seu próprio espaço, tudo o que pode assegurar-lhe a denegação lúdica (o escandaloso, o feio, o impossível); 
    • rompe com toda definição de “gêneros” como formas ajustadas a uma ordem de representações e torna-se pura e simples manifestação de uma linguagem que só tem por lei afirmar – contra todos os outros discursos – sua existência abrupta;
    • nessas condições, não lhe resta senão recurvar-se num perpétuo retorno sobre si, como se seu discurso não pudesse ter por conteúdo senão dizer sua própria forma:
      • endereça-se a si como subjetividade escriturante, 
      • ou busca capturar, no movimento que a faz nascer, a essência de toda literatura; 
    • e assim todos os seus fios convergem para a mais fina ponta – singular, instantânea, e contudo absolutamente universal -, para o simples ato de escrever. 

    No momento em que a linguagem, como palavra disseminada, se torna objeto de conhecimento, eis que reaparece sob uma modalidade estritamente oposta: silenciosa, cautelosa deposição da palavra sobre a brancura de um papel, onde ela não pode ter nem sonoridade, nem interlocutor, onde nada mais tem a dizer senão a si própria, nada mais a fazer senão cintilar no esplendor do seu ser.

    III. Cuvier

    Capítulo VIII - Trabalho, vida e linguagem; tópico III - Cuvier

    Georges Cuvier, 1769-1832

    Georges Cuvier foi um naturalista e zoologista francês da primeira metade do século XIX, é por vezes chamado de “Pai da Paleontologia”. Foi uma figura central na investigação em história natural na sua época, comparou fósseis com animais vivos criando assim a Anatomia Comparada. Wikipédia

    No seu projeto de estabelecer uma classificação tão fiel quanto um método e tão rigorosa quanto um sistema, Jussieu descobrira a regra de subordinação dos caracteres, assim como Smith utilizara o valor constante do trabalho para estabelecer o preço natural das coisas no jogo das equivalências. 

    E assim como Ricardo libertou o trabalho de seu papel de medida para fazê-lo entrar, aquém de toda troca, nas formas gerais da produção, 

    assim Cuvier(6) libertou de sua função taxinômica a subordinação dos caracteres para fazê-Ia entrar, aquém de toda classificação eventual, nos diversos planos de organização dos seres vivos. 

    O liame interno que faz as estruturas dependerem umas das outras não está mais situado no nível apenas das frequências, torna-se o fundamento mesmo das correlações.

    É esse desnível e essa inversão que Geoffroy Saint-Hilaire devia um dia traduzir, dizendo: 

    “A organização torna-se um ser abstrato… suscetível de formas numerosas.”(7) 

    O espaço dos seres vivos gira em torno dessa noção e tudo o que até então pudera aparecer através do quadriculado da história natural (gêneros, espécies, indivíduos, estruturas, órgãos), tudo o que era dado ao olhar, assume doravante um modo novo de ser. 

    E, em primeiro lugar, esses elementos ou esses grupos de elementos distintos que o olhar pode articular quando percorre o corpo dos indivíduos e a que se chama os órgãos. 

    Na análise dos clássicos, o órgão se definia, a um tempo, por sua estrutura e por sua função; era como um sistema de dupla entrada que se podia ler exaustivamente, 

    • quer a partir do papel que desempenhava
      (por exemplo, a reprodução), 
    • quer a partir de suas variáveis morfológicas
      (forma, grandeza, disposição e número): 

    os dois modos de decifração recobriam-se ajustadamente mas eram independentes um do outro – 

    • o primeiro enunciando o utilizável, 
    • o segundo, o identificável. 

    É essa disposição que Cuvier altera;
    revogando

    tanto o postulado do ajustamento
    quanto o da independência,

    faz extravasar – e largamente – a função em relação ao órgão e submete a disposição do órgão à soberania da função. 

    Dissolve, se não a individualidade, pelo menos a independência do órgão: 

    • é erro crer que “tudo é importante num órgão importante”; 
    • é preciso dirigir a atenção “mais para as próprias funções que para os órgãos”(8); 
    • antes de definir estes últimos pelas suas variáveis, é necessário reportá-los à função que asseguram. 

    Ora, essas funções são em número relativamente pouco elevado: respiração, digestão, circulação, locomoção… De sorte que a diversidade visível das estruturas não mais emerge do fundo de um quadro de variáveis, mas do fundo de grandes unidades funcionais suscetíveis de se realizarem e de cumprir seu fim de maneiras diversas: 

    “O que é comum a cada gênero de órgãos considerado, em todos os animais se reduz a muito pouca coisa e, frequentemente, eles só se assemelham pelo efeito que produzem. Isso deve ter impressionado sobretudo no tocante à respiração que se opera nas diferentes classes por órgãos tão variados, que sua estrutura não apresenta nenhum ponto comum.”(9)

    Considerando o órgão na sua relação com a função, vê-se, pois, aparecerem “semelhanças” onde não há nenhum elemento “idêntico”; semelhança que se constitui pela passagem à evidente invisibilidade da função. 

    Pouco importa afinal que as brânquias e os pulmões tenham em comum algumas variáveis de forma, de grandeza, de número: assemelham-se por serem duas variedades desse órgão inexistente, abstrato, irreal, indeterminável, ausente de toda espécie descritível, presente contudo no reino animal inteiro e que serve para respirar em geral. 

    Restauram-se assim, na análise do ser vivo, as analogias de tipo aristotélico: 

    • as brânquias são para a respiração na água 
    • o que são os pulmões para a respiração no ar. 

    Certamente, semelhantes relações eram perfeitamente conhecidas na idade clássica; mas serviam apenas para determinar funções; não eram utilizadas para estabelecer a ordem das coisas no espaço da natureza. 

    A partir de Cuvier, a função, definida sob a forma não perceptível do efeito a atingir, vai servir de meio-termo constante e permitir relacionar um a outro conjuntos desprovidas da menor identidade visível. 

    • Aquilo que, para o olhar clássico, não passava de puras e simples diferenças justapostas a identidades, 
    • deve agora ser ordenado e pensado a partir de uma homogeneidade funcional que o suporta em segredo. 

    Há história natural
    quando o Mesmo e o Outro
    pertencem a um único espaço; 

    alguma coisa como a biologia torna-se possível
    quando essa unidade de plano começa a desfazer-se
    e as diferenças surgem
    do fundo de uma identidade mais profunda
    e como que mais séria do que ela. 

    Essa referência à função, essa disjunção entre o plano das identidades e o das diferenças fazem surgir relações novas: 

    • as de coexistência, 
    • de hierarquia interna, 
    • de dependência com respeito ao plano de organização. 

    A coexistência designa o fato de que um órgão ou um sistema de órgãos não podem estar presentes num ser vivo sem que outro órgão ou outro sistema, de uma natureza e uma forma determinadas, o estejam igualmente: 

    “Todos os órgãos de um mesmo animal formam um sistema único, cujas partes todas se sustentam, agem e reagem umas sobre as outras; não pode haver modificações numa delas que não acarretem modificações análogas em todas.”(10)

    No interior do sistema da digestão, a forma dos dentes (o fato de serem cortantes ou mastigadores) varia ao mesmo tempo que “o comprimento, as curvas, as dilatações do sistema alimentar”; ou ainda, para dar um exemplo de coexistência entre sistemas diferentes, os órgãos da digestão não podem variar independentemente da morfologia dos membros (e, em particular, da forma das unhas): conforme houver garras ou cascos – portanto, conforme o animal possa ou não agarrar e despedaçar seu alimento – o canal alimentar, os “sucos dissolventes”, a forma dos dentes não serão os mesmos(11). 

    Trata-se aí de correlações laterais que estabelecem entre elementos do mesmo nível relações de concomitância fundadas por necessidades funcionais: por ser preciso que o animal se alimente, a natureza da presa e seu modo de captura não podem ficar estranhos aos aparelhos de mastigação e de digestão (e reciprocamente). 

    Há, todavia, escalonamentos hierárquicos. Sabe-se como a análise clássica fora levada a suspender o privilégio dos órgãos mais importantes para só considerar sua eficácia taxinômica. 

    Agora que não se trata mais de variáveis independentes, mas de sistemas comandados uns pelos outros, o problema da importância recíproca se acha novamente colocado. 

    Assim, o canal alimentar dos mamíferos não está simplesmente numa relação de covariação eventual com os órgãos da locomoção e da preensão; é, ao menos em parte, prescrito pelo modo de reprodução. Esta, com efeito, sob sua forma vivípara, não implica simplesmente a presença de órgãos que lhe estão imediatamente ligados; exige também a existência de órgãos de lactação, a presença de lábios, a de uma língua carnuda igualmente; prescreve, por outro lado, a circulação de um sangue quente e bifocularidade do coração(12). 

    A análise dos organismos e a possibilidade de estabelecer entre eles semelhanças e distinções supõem, portanto, que se tenha fixado a tabela, não dos elementos que podem variar de espécie para espécie, mas das funções que, nos seres vivos em geral, se comandam, se ajustam, se ordenam umas às outras: 

    • não mais o polígono das modificações possíveis, 
    • mas a pirâmide hierárquica das importâncias. 

    Cuvier pensou primeiro que as funções de existência se antepunham às de relações (“pois o animal primeiramente é, depois sente e age”): supunha portanto que a geração e a circulação deviam determinar, de início, certo número de órgãos aos quais a disposição dos outros se acharia submetida; aqueles formariam os caracteres primários, estes os caracteres secundários(13). 

    Depois, subordinou a circulação à digestão, pois esta existe em todos os animais (o corpo do pólipo é por inteiro apenas uma espécie de aparelho digestivo), ao passo que o sangue e os vasos se encontram “apenas nos animais superiores e desaparecem sucessivamente nos das últimas classes”(14). 

    Mais tarde, foi o sistema nervoso (com a existência ou a inexistência de um cordão espinhal) que lhe apareceu como determinante de todas as disposições orgânicas: 

    “Ele é, em essência, todo o animal:
    os outros sistemas só estão lá para servi-lo e mantê-lo.”(15) 

    Essa preeminência de uma função sobre as outras implica que o organismo nas suas disposições visíveis obedeça a um plano. Tal plano garante o reino das funções essenciais e a elas vincula, mas com um grau maior de liberdade, os órgãos que asseguram funcionamentos menos capitais. 

    Como princípio hierárquico, esse plano define as funções preeminentes, distribui os elementos anatômicos que lhe permitem efetuar-se e os instala nas localizações privilegiadas do corpo: assim, no vasto grupo dos articulados, a classe dos insetos deixa aparecer a importância primordial das funções locomotoras e dos órgãos do movimento; nos três outros, são as funções vitais, em contrapartida, que têm primazia(16). 

    No controle regional que exerce sobre os órgãos menos fundamentais, o plano de organização não desempenha um papel tão determinante; liberaliza-se, de certo modo, na medida em que há um afastamento do centro, autorizando modificações, alterações, mudanças na forma ou a utilização possível. 

    Reencontramo-lo, tornado porém mais flexível e mais permeável a outras formas de determinação. Isso é fácil de constatar nos mamíferos a propósito do sistema de locomoção. 

    Os quatro membros motores fazem parte do plano de organização, mas a título somente do caráter secundário; não estão pois jamais suprimidos, nem ausentes nem substituídos, porém “disfarçados algumas vezes como nas asas dos morcegos e nas barbatanas posteriores das focas”; ocorre mesmo terem “degenerado pelo uso como nas barbatanas peitorais dos cetáceos… A natureza fez com um braço uma barbatana. Vedes que há sempre uma espécie de constância nos caracteres secundários conforme seu disfarce”(17). 

    Compreende-se como podem as espécies ao mesmo tempo 

    • assemelhar-se (para formar grupos como os gêneros, as classes e o que Cuvier chama as ramificações) 
    • e distinguir-se umas das outras. 

    O que as aproxima não é certa quantidade de elementos superponíveis, mas uma espécie de foco de identidade que não se pode analisar em regiões visíveis, porque define a importância recíproca das funções; a partir desse cerne imperceptível das identidades, os órgãos se dispõem e, à medida que dele se afastam, ganham em flexibilidade, em possibilidades de variações, em caracteres distintivos. 

    • As espécies animais diferem pela periferia, assemelham-se pelo centro;
      • o inacessível as religa, o manifesto as dispersa. 
    • Generalizam-se do lado do que é essencial à sua vida;
      • singularizam-se do lado do que é mais acessório. 
    • Quanto mais se quiser atingir grupos extensos, mais é preciso entranhar-se na obscuridade do organismo, em direção ao pouco visível, nessa dimensão que escapa ao percebido; 
    • quanto mais se quiser cingir a individualidade, mais necessário é ascender à superfície e deixar cintilar, em sua visibilidade, as formas que a luz toca;
      • pois a multiplicidade se vê e a unidade se esconde. 

    Em suma, as espécies vivas “escapam” ao pulular dos indivíduos e das espécies, só podendo ser classificadas porque vivem e a partir do que ocultam. 

    Avalia-se a imensa reviravolta que tudo isso supõe em relação à taxinomia clássica. 

    • Edificava-se esta inteiramente a partir das quatro variáveis de descrição
      • (formas, 
      • número, 
      • disposição, 
      • grandeza) 
    • que eram percorridas, como num só movimento, pela linguagem e pelo olhar; 
    • e, nessa exposição do visível, a vida aparecia como o efeito de um recorte – simples fronteira classificatória. 

    A partir de Cuvier, 

    • é a vida, no que tem de não-perceptível, de puramente funcional, que funda a possibilidade exterior de uma classificação. 
    • Não há mais, sobre a grande superfície da ordem, a classe daquilo que pode viver; 
    • mas sim, vindo da profundidade da vida, do que há de mais longínquo para o olhar, a possibilidade de classificar. 
    • O ser vivo era uma localidade da classificação natural; 
    • o fato de ser classificável é agora uma propriedade do ser vivo. 

    Assim desaparece o projeto de uma taxinomia geral; 

    • assim desaparece a possibilidade de desenrolar uma grande ordem natural, que iria sem descontinuidade do mais simples e do mais inerte ao mais vivo e ao mais complexo; 
    • assim desaparece a procura da ordem como solo e fundamento de uma ciência geral da natureza. 

    Assim desaparece a “natureza”
    – entendendo-se que, ao longo de toda a idade clássica, ela não existiu primeiramente como “tema”, como “ideia”, como fonte indefinida do saber, 

    mas como espaço homogêneo das identidades e das diferenças ordenáveis. 

    Esse espaço está agora dissociado e como que aberto em sua espessura. 

    • No lugar de um campo unitário de visibilidade e de ordem cujos elementos têm valor distintivo uns em relação aos outros, 
    • tem-se uma série de oposições cujos dois termos não são do mesmo nível:
      • de um lado há os órgãos secundários, que são visíveis à superfície do corpo e se oferecem sem intervenção à imediata percepção, 
      • e os órgãos primários, que são essenciais, centrais, ocultos, e que só se podem atingir pela dissecção, isto é, destruindo materialmente o invólucro colorido dos órgãos secundários. 

    Há também, mais profundamente, a oposição entre 

    • os órgãos em geral, que são espaciais, sólidos, direta ou indiretamente visíveis, 
    • e as funções, que não se dão à percepção, mas prescrevem, como que por debaixo, a disposição daquilo que se percebe. 

    Há enfim, em última análise, a oposição entre identidades e diferenças: 

    • não são mais do mesmo veio, não mais se estabelecem em relação umas às outras sobre um plano homogêneo; 
    • mas as diferenças proliferam na superfície, 
    • enquanto em profundidade elas se desvanecem, se confundem, se tramam umas nas outras e se aproximam da grande, misteriosa, invisível unidade focal de que o múltiplo parece derivar como que por uma dispersão incessante. 

    A vida não é mais o que se pode distinguir, de maneira mais ou menos certa, do mecânico; 

    é aquilo em que se fundam todas as distinções possíveis entre os seres vivos. 

    É essa passagem
    da noção taxinômica
    à noção sintética de vida
    que é assinalada,
    na cronologia das idéias e das ciências,
    pela recrudescência, no começo do século XIX,
    dos temas vitalistas. 

    Do ponto de vista da arqueologia, o que naquele momento se instaura são as condições de possibilidade de uma biologia. 

    Em todo o caso, essa série de oposições, dissociando o espaço da história natural, teve conseqüências de grande peso. Na prática, é o aparecimento de duas técnicas correlativas que se apoiam e se revezam mutuamente. 

    A primeira dessas técnicas é constituída pela anatomia comparada: 

    esta faz surgir um espaço interior, limitado, 

    • de um lado, pela camada superficial dos tegumentos e das cascas, 
    • e, de outro, pela quase-invisibilidade do que é infinitamente pequeno. 

    Pois a anatomia comparada não é o puro e simples aprofundamento das técnicas descritivas que se utilizavam na idade clássica; 

    • não se contenta em procurar ver mais fundo, melhor e mais de perto; 
    • instaura um espaço que não é nem o dos caracteres visíveis nem o dos elementos microscópicos(18). 

    Ela faz aí aparecer a disposição recíproca dos órgãos, sua correlação, a maneira como se decompõem, como se especializam, como se ordenam uns aos outros os principais momentos de uma função. E assim, por oposição ao olhar simples que, percorrendo os organismos íntegros, vê desdobrar-se diante de si a profusão das diferenças, a anatomia, recortando realmente os corpos, fracionando-os em parcelas distintas, retalhando-os no espaço, faz surgir as grandes semelhanças que teriam permanecido invisíveis; ela reconstitui as unidades subjacentes às grandes dispersões visíveis. 

    A formação das vastas unidades taxinômicas (classes e ordens) 

    • era, nos séculos XVII e XVIII, um problema de recorte linguístico:
      • era preciso encontrar um nome que fosse geral e fundado; 
    • agora, ela diz respeito a uma desarticulação anatômica;
      • é preciso isolar o sistema funcional principal;
      • são as divisões reais da anatomia que permitirão articular as grandes famílias do ser vivo. 

    A segunda técnica repousa sobre a anatomia (pois que é seu resultado) mas a ela se opõe (porque permite dispensá-la); 

    consiste em estabelecer relações de indicação entre 

    • elementos superficiais, portanto visíveis, 
    • e outros que estão encobertos na profundidade do corpo. 

    É que, pela lei de solidariedade do organismo, pode-se saber que tal órgão periférico e acessório implica tal estrutura num órgão mais essencial; assim, é permitido “estabelecer a correspondência das formas exteriores e interiores que, umas e outras, fazem parte integrante da essência do animal”(19). 

    Nos insetos, por exemplo, 

    • a disposição das antenas só tem valor distintivo porque não está em correlação com nenhuma das grandes organizações internas; 
    • em contrapartida, a forma do maxilar inferior pode desempenhar um papel capital para distribuí-los segundo suas semelhanças e suas diferenças; pois está ligada à alimentação, à digestão e, por conseguinte, às funções essenciais do animal: 

    “Os órgãos da mastigação deverão estar relacionados com os da nutrição, consequentemente com todo o gênero de vida e, consequentemente, com toda a organização.”(20) 

    Na verdade, essa técnica dos indícios não vai forçosamente da periferia visível às formas obscuras da interioridade orgânica: 

    • ela pode estabelecer redes de necessidade indo de um ponto qualquer do corpo a qualquer outro; 
    • de sorte que um único elemento pode bastar, em certos casos, para sugerir a arquitetura geral de um organismo; 
    • poder-se-á reconhecer um animal inteiro “por um só osso, por uma só faceta de osso: método que deu tão curiosos resultados acerca dos animais fósseis”(21). 

    Enquanto, para o pensamento do século XVIII, o fóssil era uma prefiguração das formas atuais e indicava assim a grande continuidade do tempo, 

    será doravante a indicação da figura à qual realmente pertencia. 

    A anatomia não somente quebrou o espaço tabular e homogêneo das identidades; rompeu a suposta continuidade do tempo. 

    É que, do ponto de vista teórico, as análises de Cuvier recompõem inteiramente o regime das continuidades e das descontinuidades naturais. Com efeito, a anatomia comparada permite estabelecer, no mundo vivo, duas formas de continuidade perfeitamente distintas. 

    A primeira concerne às grandes funções que se encontram na maioria das espécies (a respiração, a digestão, a circulação, a reprodução, o movimento…); 

    estabelece em todo o mundo vivo uma vasta semelhança que se pode distribuir segundo uma escala de complexidade decrescente, indo do homem até o zoófito; nas espécies superiores estão presentes todas as funções, vemo-las desaparecer depois umas após outras e, no zoófito, finalmente, já “não há centro de circulação, não há nervos, não há centro de sensação; cada ponto parece nutrir-se por sucção”(22). 

    Todavia, essa continuidade é fraca, relativamente frouxa, formando, pelo número restrito das funções essenciais, um simples quadro de presenças e de ausências. 

    A outra continuidade é muito mais cerrada:
    concerne à maior ou menor perfeição dos órgãos. 

    Mas, a partir daí, só se podem estabelecer séries limitadas, continuidades regionais logo interrompidas, e que, ademais, se imbricam umas nas outras em direções diferentes; é que, nas diversas espécies, “os órgãos não seguem todos a mesma ordem de gradação: um atinge seu mais alto grau de perfeição na sua espécie; outro o atinge numa espécie diferente”23. 

    • Tem-se pois, o que se poderia chamar de “microsséries” limitadas e parciais que dizem respeito menos às espécies que a tal ou tal órgão; 
    • e, na outra extremidade, uma “macrossérie”, descontínua, afrouxada e que diz respeito menos aos próprios organismos que ao grande registro fundamental das funções. 

    Entre essas duas continuidades que não se superpõem nem se ajustam, vê-se a divisão de grandes massas descontínuas. Elas obedecem a planos de organização diferentes, encontrando-se as mesmas funções ordenadas segundo hierarquias variadas e realizadas por órgãos de tipo diverso. 

    Por exemplo, é fácil encontrar no polvo “todas as funções que se exercem nos peixes e, no entanto, não há entre eles nenhuma semelhança, nenhuma analogia de disposição”(24). 

    É preciso, portanto, analisar cada um desses grupos em si mesmo, considerar não o fio estreito das semelhanças que podem vinculá-Io a outro, mas a forte coesão que o cerra em si mesmo; 

    • não se buscará saber se os animais de sangue vermelho estão na mesma linha que os animais de sangue branco, tendo apenas perfeições suplementares; 
    • estabelecer-se-á que todo animal de sangue vermelho – e é nisso que depende de um plano autônomo – possui sempre uma cabeça óssea, uma coluna vertebral, membros (com exceção das serpentes), artérias e veias, um fígado, um pâncreas, um baço, rins(25). 

    Vertebrados e invertebrados formam regiões perfeitamente isoladas, entre as quais não se podem encontrar formas intermediárias assegurando a passagem num sentido ou noutro: 

    “Qualquer que seja a organização que se dê aos animais com vértebras e aos que não as têm, não se chegará jamais a encontrar no final de uma dessas grandes classes, nem encabeçando a outra, dois animais que se assemelhem o bastante para servirem de elo entre elas.”(26) 

    Vê-se, pois, que a teoria das ramificações não ajunta um quadro taxinômico suplementar às classificações tradicionais; ela está ligada à constituição de um espaço novo das identidades e das diferenças. Espaço sem continuidade essencial. Espaço que logo de início se dá na forma da fragmentação. Espaço atravessado por linhas que às vezes divergem e às vezes se recortam. 

    Para designar-lhe a forma geral, é preciso, pois, substituir 

    • a imagem da escala continua que fora tradicional no século XVIII, de Bonnet a Lamarck, 
    • pela de uma irradiação, ou, antes, de um conjunto de centros a partir dos quais se desdobra uma multiplicidade de raios; 

    poder-se- ia assim recolocar cada ser “nessa imensa rede que constitui a natureza organizada mas dez ou vinte raios não bastariam para exprimir essas inumeráveis relações”(27). 

    É toda a experiência clássica da diferença que então se abala e, com ela, a relação entre o ser e a natureza. 

    Nos séculos XVII e XVIII, a diferença tinha por função religar as espécies umas às outras e preencher assim a distância entre as extremidades do ser; desempenhava um papel de “catenária”: 

    • era tão limitada, tão tênue quanto possível; 
    • alojava-se no quadriculado mais estreito; 
    • era sempre divisível e podia cair mesmo abaixo do limiar da percepção. 

    A partir de Cuvier, ao contrário, 

    • ela própria se multiplica, adiciona formas diversas, difunde-se e se repercute através do organismo, isolando-o de todos os outros de diversas maneiras simultâneas; 
    • é que ela não se aloja no interstício dos seres para religá-los entre si; 
    • funciona em relação ao organismo, para que ele possa “fazer corpo” consigo mesmo e manter-se em vida; 
    • não preenche o entremeio dos seres por tenuidades sucessivas; 
    • escava-o, aprofundando-se a si mesma, para definir em seu isolamento os grandes tipos de compatibilidade. 

    A natureza do século XIX é descontínua na medida mesma em que é viva. 

    Avalia-se a importância da reviravolta; 

    na época clássica, 

    • os seres naturais formavam um conjunto contínuo porque eram seres e não havia razão para a interrupção de seu desdobramento. 
    • Não era possível representar o que separava o ser de si mesmo.
      • O contínuo da representação (signos e caracteres) 
      • e o contínuo dos seres (a extrema proximidade das estruturas) 
    • eram, pois, correlativos. 

    É essa trama, a um tempo ontológica e representativa, que se despedaça definitivamente com Cuvier: 

    • os seres vivos, porque vivem, não podem mais formar um tecido de diferenças progressivas e graduadas; 
    • devem concentrar-se em tomo de núcleos de coerência perfeitamente distintos uns dos outros e que constituem diferentes planos para manter a vida. 
    • O ser clássico era sem lacuna;
      • já a vida é sem margem nem gradação.
    • O ser se derramava num imenso quadro;
      • a vida isola formas que se articulam consigo mesmas.  
    • O ser se dava no espaço sempre analisável da representação;
      • a vida se recolhe no enigma de uma força inacessível em sua essência, captável apenas nos esforços que faz, aqui e ali, para manifestar-se e manter-se. 

    Em suma, ao longo de toda a idade clássica, 

    • a vida estava sob a alçada de uma ontologia que concernia do mesmo modo a todos os seres materiais, submetidos à extensão, ao peso, ao movimento; 
    • e era nesse sentido que todas as ciências da natureza e singularmente do ser vivo tinham uma profunda vocação mecanicista; 

    a partir de Cuvier, 

    • o ser vivo escapa, ao menos em primeira instância, às leis gerais do ser extenso; 
    • o ser biológico regionaliza-se e autonomiza-se; 
    • a vida é, nos confins do ser, o que lhe é exterior e que, contudo, se manifesta nele. 

    E se se coloca a questão de suas relações com o não-vivo, ou a de suas determinações físico-químicas, 

    • não é, de modo algum, na linha de um “mecanicismo” que se obstinasse em suas modalidades clássicas, 
    • mas sim, de maneira totalmente nova, para articular uma à outra duas naturezas. 

    Mas, como as descontinuidades devem ser explicadas pela manutenção da vida e por suas condições, vê-se esboçar uma continuidade imprevista – ou, ao menos, um jogo de interações não ainda analisadas – entre o organismo e o que lhe permite viver. 

    Se os ruminantes se distinguem dos roedores, e por todo um sistema de diferenças maciças que não se trata de atenuar, é porque têm outra dentição, outro aparelho digestivo, outra disposição dos dedos e das unhas; é porque não podem capturar o mesmo alimento, porque não podem tratá-Io do mesmo modo; é porque não têm de digerir a mesma natureza de alimentos. 

    Portanto, o ser vivo não deve mais ser compreendido apenas como uma certa combinação de moléculas portadoras de caracteres definidos; ele delineia uma organização que se sustém em relações ininterruptas com elementos exteriores que ela utiliza (pela respiração, pela alimentação), a fim de manter ou desenvolver sua própria estrutura. 

    Em torno do ser vivo, ou, antes, através dele e pelo filtro de sua superfície, efetua-se “uma circulação continua de fora para dentro e de dentro para fora, constantemente mantida e contudo fixada entre certos limites. Assim, os corpos vivos devem ser considerados como espécies de focos nos quais as substâncias mortas são sucessivamente conduzidas, para ali se combinarem entre si de diversas maneiras”(28). 

    O ser vivo, pelo jogo e pela soberania dessa mesma força que o mantém em descontinuidade consigo mesmo, acha-se submetido a uma relação contínua com o que o cerca. 

    Para que o ser vivo possa viver, é preciso que haja várias organizações irredutíveis umas às outras, como também um movimento ininterrupto entre cada uma e o ar que ela respira, a água que bebe, o alimento que absorve. 

    Rompendo a antiga continuidade clássica entre o ser e a natureza, a força dividida da vida fará aparecer formas dispersas, ligadas todas, porém, a condições de existência. 

    Em alguns anos, na curva dos séculos XVIII e XIX, a cultura européia modificou inteiramente a espacialização fundamental do ser vivo: 

    para a experiência clássica, 

    • o ser vivo era um compartimento ou uma série de compartimentos na taxinomia universal do ser; 
    • se sua localização geográfica tinha um papel (como em Buffon), era para fazer aparecer variações que já eram possíveis. 

    A partir de Cuvier, 

    • o ser vivo se envolve sobre si mesmo, rompe suas vizinhanças taxinômicas, se arranca ao vasto plano constringente das continuidades e se constitui um novo espaço: espaço duplo, na verdade – pois que
      • é aquele, interior, das coerências anatômicas e das compatibilidades fisiológicas, 
      • e aquele, exterior, dos elementos onde ele reside para deles fazer seu corpo próprio. 

    Todavia, esses dois espaços têm um comando unitário: 

    • não mais o das possibilidades do ser, 
    • mas o das condições de vida. 

    Todo o a priori histórico de uma ciência dos seres vivos acha-se assim abalado e renovado. 

    Considerada na sua profundidade arqueológica e não ao nível mais aparente das descobertas, das discussões, teorias, ou das opções filosóficas, a obra de Cuvier tende de longe para o que viria a ser o futuro da biologia. 

    Freqüentemente, opõem-se 

    • as intuições “transformistas” de Lamarck, que parecem “prefigurar” o que será o evolucionismo, 
    • e o velho fixismo, todo impregnado de preconceitos tradicionais e de postulados teológicos, no qual se obstinava Cuvier. 

    E por todo um jogo de amálgamas, de metáforas, de analogias mal controladas, desenha-se o perfil de um pensamento “reacionário” que se empenha apaixonadamente na imobilidade das coisas para garantir a ordem precária dos homens; 

    tal seria a filosofia de Cuvier, homem de todos os poderes; 

    de outro lado, 

    descreve-se o destino difícil de um pensamento progressista, que crê na força do movimento, na incessante novidade, na vivacidade das adaptações: 

    Lamarck, o revolucionário, estaria aí. 

    Fornece-se assim, sob o pretexto de fazer história das idéias num sentido rigorosamente histórico, um belo exemplo de ingenuidade. 

    Pois, na historicidade do saber, o que conta não são as opiniões, nem as semelhanças que, através das idades, se podem estabelecer entre elas (há, com efeito, uma “semelhança” entre Lamarck e um certo evolucionismo, assim como entre este e as idéias de Diderot, de Robinet ou de Benoit de Maillet); 

    o que é importante, o que permite articular em si mesma a história do pensamento, são suas condições internas de possibilidade. 

    Ora, basta tentar sua análise para logo se perceber que Lamarck só pensava as transformações das espécies a partir da continuidade ontológica que era a da história natural dos clássicos. Ele supunha uma gradação progressiva, um aperfeiçoamento ininterrupto, uma grande superfície dos seres que podiam formar-se uns a partir dos outros. O que torna possível o pensamento de Lamarck não é a apreensão longínqua de um evolucionismo por vir, é a continuidade dos seres, tal como a descobriam e a supunham os “métodos” naturais. 

    Lamarck é contemporâneo de A.-L. de Jussieu. Não de Cuvier. 

    Este introduziu na escala clássica dos seres uma descontinuidade radical; e, por isso mesmo, fez surgir noções como 

    • as de incompatibilidade biológica, de relações com os elementos exteriores, de condições de existência; 
    • fez surgir também uma certa força que deve manter a vida e uma certa ameaça que a pune com a morte; 

    aí se acham reunidas várias das condições que tornam possível alguma coisa como o pensamento da evolução. 

    A descontinuidade das formas vivas permitiu conceber um grande fluxo temporal, que não autorizava, apesar das analogias de superfície, a continuidade das estruturas e dos caracteres. 

    Pôde-se substituir 

    • a história natural 
    • por “história” da natureza, 

    graças ao descontínuo espacial, 

    graças à ruptura do quadro, 

    graças ao fracionamento dessa superfície onde todos os seres naturais vinham, em ordem, achar seu lugar. 

    Certamente, o espaço clássico, como se viu, não excluía a possibilidade de um devir, mas esse devir nada mais fazia que assegurar um percurso sobre o tablado discretamente prévio das variações possíveis. 

    A ruptura desse espaço permitiu descobrir uma historicidade própria à vida: aquela de sua manutenção em suas condições de existência. 

    O “fixismo” de Cuvier, como análise de tal manutenção, foi a maneira inicial de refletir essa historicidade no momento em que ela aflorava, pela primeira vez, no saber ocidental. 

    A historicidade, pois, introduziu-se agora na natureza – ou, antes, no ser vivo; mas ela aí é bem mais do que uma forma provável de sucessão; constitui como que um modo de ser fundamental. 

    Sem dúvida, na época de Cuvier não existe ainda história do ser vivo, como a que descreverá o evolucionismo; mas o ser vivo é pensado, logo de início, com as condições que lhe permitem ter uma história. 

    É do mesmo modo que as riquezas receberam, na época de Ricardo, um estatuto de historicidade que ele tampouco formulara ainda como história econômica. 

    A estabilidade próxima dos rendimentos industriais, da população e da renda tal como a previra Ricardo, a fixidez das espécies afirmada por Cuvier podem passar, após um exame superficial, por uma recusa da história; 

    de fato, Ricardo e Cuvier só recusavam as modalidades da sucessão cronológica tais como foram pensadas no século XVIII; eles desfaziam a dependência do tempo em relação à ordem hierárquica ou classificatória das representações. 

    Em contrapartida, essa imobilidade atual ou futura que descreviam ou anunciavam, só podiam concebê-Ia a partir da possibilidade de uma história; e esta lhes era dada 

    • quer pelas condições de existência do ser vivo, 
    • quer pelas condições de produção do valor. 

    Paradoxalmente, o pessimismo de Ricardo, o fixismo de Cuvier só aparecem sobre um fundo histórico: 

    • eles definem a estabilidade dos seres que, doravante, têm direito, ao nível de sua modalidade profunda, a ter uma história; 
    • a ideia clássica de que as riquezas podiam crescer segundo um progresso contínuo, ou de que as espécies pudessem com o tempo transformar-se umas nas outras, definia, ao contrário, a mobilidade de seres que, antes mesmo de toda história, já obedeciam a um sistema de variáveis de identidades ou de equivalências. 

    Foi necessária a suspensão e como que a colocação entre parênteses daquela história, para que os seres da natureza e os produtos do trabalho recebessem uma historicidade que permitisse ao pensamento moderno apreendê-los e desenvolver, em seguida, a ciência discursiva de sua sucessão. 

    Para o pensamento do século XVIII, as sequências cronológicas não passam de uma propriedade e de uma manifestação mais ou menos confusa da ordem dos seres; 

    a partir do século XIX, elas exprimem, de um modo mais ou menos direto e até na sua interrupção, o modo de ser profundamente histórico das coisas e dos homens. 

    Em todo o caso, essa constituição de uma historicidade viva teve, para o pensamento europeu, vastas consequências. Tão vastas, sem dúvida, quanto aquelas acarretadas pela formação de uma historicidade econômica. 

    Ao nível superficial dos grandes valores imaginários, a vida, doravante votada à história, se delineia sob a forma da animalidade. A besta, cuja grande ameaça ou estranheza radical tinham ficado suspensas e como que desarmadas no final da Idade Média ou pelo menos ao cabo do Renascimento, encontra, no século XIX, novos poderes fantásticos. 

    Nesse ínterim, a natureza clássica privilegiara os valores vegetais – a planta trazendo sobre seu brasão visível a marca sem reticências de cada ordem eventual; com todas as suas figuras desdobradas, do caule à semente, da raiz ao fruto, o vegetal formava, para um pensamento em quadro, um puro objeto transparente aos segredos generosamente restituídos. 

    A partir do momento em que caracteres e estruturas se escalonam em profundidade na direção da vida – esse ponto de fuga soberano, indefinidamente distante mas constituinte – é o animal então que se torna figura privilegiada, com seus arcabouços ocultos, seus órgãos encobertos, tantas funções invisíveis e essa força longínqua, no fundo de tudo, que o mantém em vida. 

    Se o ser vivo é uma classe de seres, a erva, melhor que tudo, enuncia sua límpida essência; 

    mas se o ser vivo é manifestação da vida, o animal deixa melhor perceber o que é o seu enigma. 

    Mais que a imagem calma dos caracteres, ele mostra a passagem incessante do inorgânico ao orgânico, pela respiração ou pela nutrição, e a transformação inversa, sob o efeito da morte, das grandes arquiteturas funcionais em poeira sem vida: 

    “As substâncias mortas são conduzidas para os corpos vivos”, dizia Cuvier, “para aí terem um lugar e aí exercerem uma ação, determinados pela natureza das combinações em que ingressaram, e para daí escaparem um dia, a fim de entrarem novamente sob as leis da natureza morta”(29). 

    A planta reinava nos confins do movimento e da imobilidade, do sensível e do insensível; já o animal mantém-se nos confins da vida e da morte. Esta o assedia de todos os lados; bem mais, ameaça-o também do interior, pois somente o organismo pode morrer, e é do fundo de sua vida que a morte sobrevém aos seres vivos. 

    Daí, sem dúvida, os valores ambíguos assumidos, por volta do fim do século XVIII, pela animalidade: 

    • a besta aparece como portadora dessa morte, à qual, ao mesmo tempo, está sujeita; 
    • há nela uma devoração perpétua da vida por ela mesma. Ela só pertence à natureza quando encerra em si um núcleo de contranatureza. 

    Transferindo sua mais secreta essência do vegetal ao animal, a vida abandona o espaço da ordem e volta a ser selvagem. Revela-se mortífera nesse mesmo movimento que a vota à morte. Mata porque vive. A natureza já não sabe ser boa. 

    Que a vida não possa mais ser separada do assassínio, a natureza do mal, nem os desejos da contranatureza, Sade o anunciava ao século XVIII, cuja linguagem ele esgotava, bem como à idade moderna, que por longo tempo quis condená-lo ao mutismo. Que se desculpe a insolência (para com quem?): Les 120 journées são o reverso aveludado, maravilhoso, das Leçons d’anatomie comparée. Em todo. o caso, no calendário de nossa arqueologia, tem a mesma idade. 

    Mas esse estatuto imaginário da animalidade, totalmente carregada de poderes inquietantes e noturnos, remete de maneira mais profunda às funções múltiplas e simultâneas da vida no pensamento do século XIX. 

    Pela primeira vez talvez na cultura ocidental, a vida escapa às leis gerais do ser, tal como ele se dá e se analisa na representação. 

    Do outro lado de todas as coisas que estão aquém mesmo daquelas que podem ser, suportando-as para fazê-Ias aparecer, e destruindo-as incessantemente pela violência da morte, a vida se torna uma força fundamental e que se opõe ao ser como o movimento à imobilidade, o tempo ao espaço, o querer secreto à manifestação visível. 

    A vida é a raiz de toda existência, e o nãovivo, a natureza inerte, nada mais são que a vida decaída; o ser puro e simples é o não-ser da vida. 

    Pois esta, e é por isso que ela tem um valor radical no pensamento do século XIX, é ao mesmo tempo núcleo do ser e do não-ser: só há ser porque há vida e, nesse movimento fundamental que os vota à morte, os seres dispersos e estáveis por instantes formam-se, detêm-se, imobilizam-na – e, num sentido, a matam -.:., mas são por sua vez destruídos por essa força inesgotável. 

    A experiência da vida apresenta-se, pois, como a lei mais geral dos seres, o aclaramento dessa força primitiva a partir da qual eles são; ela funciona como uma ontologia selvagem que buscasse dizer o ser e o não-ser indissociáveis de todos os seres. 

    Mas essa ontologia desvela menos o que funda os seres do que o que os leva, por um instante, a uma forma precária e secretamente já os mina por dentro, para os destruir. 

    Em relação à vida, 

    • os seres não passam de figuras transitórias 
    • e o ser que eles mantêm, durante o episódio de sua existência, 
    • nada mais é que sua presunção, sua vontade de subsistir. 

    De sorte que, para o conhecimento, o ser das coisas é ilusão, véu que se deve rasgar, para se reencontrar a violência muda e invisível que os devora na noite. A ontologia do aniquilamento dos seres vale, portanto, como crítica do conhecimento; 

    • mas trata-se menos de fundar o fenômeno, de dizer ao mesmo tempo seu limite e sua lei, de reportá-lo à finitude que o torna possível, 
    • do que de dissipá-lo e destruí-lo como a própria vida destrói os seres: pois todo o seu ser é só aparência. 

    Vê-se constituir-se assim um pensamento que se opõe, quase em cada um de seus termos, ao que estava ligado à formação de uma historicidade econômica. 

    Vimos como esta última se apoiava sobre uma tríplice teoria 

    • das necessidades irredutíveis, 
    • da objetividade do trabalho 
    • e do fim da história. 

    Aqui vemos, ao contrário, desenvolver-se 

    • um pensamento em que a individualidade, com suas formas, seus limites e suas necessidades, não passa de um momento precário, votado à destruição, formando, em tudo e por tudo, um simples obstáculo que, na via desse aniquilamento, tem de ser afastado; 
    • um pensamento em que a objetividade das coisas não passa de aparência, quimera da percepção, ilusão que é preciso dissipar e restituir à pura vontade sem fenômeno que as fez nascer e as suportou por um instante; 
    • um pensamento, enfim, para o qual o recomeço da vida, suas retomadas incessantes, sua obstinação, excluem que se lhe estabeleça um limite no curso do tempo, tanto mais que o próprio tempo, com suas divisões cronológicas e seu calendário quase espacial, não é, sem dúvida, mais que uma ilusão do conhecimento. 

    Lá onde um pensamento prevê o fim da história, o outro anuncia o infinito da vida; 

    onde um reconhece a produção real das coisas pelo trabalho, o outro dissipa as quimeras da consciência; 

    onde um afirma com os limites do indivíduo as exigências de sua vida, o outro os apaga no murmúrio da morte. 

    Será essa oposição o sinal de que, a partir do século XIX, o campo do saber não pode mais dar lugar a uma reflexão homogênea e uniforme em todos os seus pontos? 

    Será preciso admitir que, doravante, cada forma de positividade tem a “filosofia” que lhe convém: 

    • a economia, a de um trabalho marcado pelo signo da necessidade, mas destinado finalmente à grande recompensa do tempo; 
    • a biologia, a de uma vida marcada por essa continuidade que só forma os seres para os desfazer, achando-se com isso liberada de todos os limites da História? 

    E as ciências da linguagem, uma filosofia das culturas, de sua relatividade e de seu poder singular de manifestação?

    II. Ricardo

    Capítulo VIII - Trabalho, vida e linguagem; tópico II - Ricardo

    David Ricardo, 1772-1823

    David Ricardo (Londres18 de Abril de 1772 — Gatcombe Park11 de setembro de 1823) foi um economista e político britânico – um dos mais influentes economistas clássicos, ao lado de Thomas MalthusAdam Smith e James Mill.[1] Ricardo e sua família tem origens sefarditas que remontam a Holanda e Portugal.[2]

    Na análise de Adam Smith, 

    o trabalho devia seu privilégio ao poder que se lhe reconhecia de estabelecer entre os valores das coisas uma medida constante:

    permitia fazer equivaler na troca objetos de necessidade cujo aferimento de outro modo teria sido exposto à mudança ou submetido a uma essencial relatividade. 

    No entanto, só podia assumir tal papel à custa de uma condição: 

    era preciso supor que

    • a quantidade de trabalho indispensável para produzir uma coisa fosse igual 
    • à quantidade de trabalho que essa coisa, em retorno, pudesse comprar no processo de troca.

    Ora, como justificar essa identidade, em que fundá-Ia a não ser sobre uma certa assimilação, admitida na sombra mais que esclarecida, entre 

      • o trabalho como atividade de produção 
      • e o trabalho como mercadoria que se pode comprar e vender? 

    Nesse segundo sentido, ele não pode ser utilizado como medida constante, pois “experimenta tantas variações quanto as mercadorias ou bens com os quais pode ser comparado”(1). 

    Essa confusão, em Adam Smith, tinha sua origem no primado concedido à representação: 

    • toda mercadoria representava certo trabalho, 
    • e todo trabalho podia representar certa quantidade de mercadoria. 

    A atividade dos homens e o valor das coisas comunicavam-se no elemento transparente da representação.

    É aí que a análise de Ricardo encontra seu lugar
    e a razão de sua importância decisiva.
    Ela não é a primeira a organizar
    um lugar importante para o trabalho no jogo da economia; mas faz explodir a unidade da noção,
    e distingue, pela primeira vez,
    de uma forma radical, 

    • essa força, esse esforço, esse tempo do operário que se compram e se vendem, 
    • e essa atividade que está na origem do valor das coisas. 

    Ter-se-á pois, 

    • por um lado, o trabalho que os operários oferecem, que os empresários aceitam ou demandam e que é retribuído pelos salários; 
    • por outro, ter-se-á o trabalho que extrai os metais, produz os bens, fabrica os objetos, transporta as mercadorias e forma assim valores permutáveis que antes dele não existiam e sem ele não teriam aparecido. 

    Certamente, para Ricardo como para Smith, o trabalho pode realmente medir a equivalência das mercadorias que passam pelo circuito das trocas: 

    “Na infância das sociedades, o valor permutável das coisas ou a regra que fixa a quantidade que se deve dar de um objeto por outro só depende da quantidade comparativa de trabalho que foi empregada na produção de cada um deles.”(2) 

    A diferença, porém, entre Smith e Ricardo está no seguinte: 

    • para o primeiro, o trabalho, porque analisável em jornadas de subsistência, pode servir de unidade comum a todas as outras mercadorias (de que fazem parte os próprios bens necessários à subsistência); 
    • para o segundo, a quantidade de trabalho permite fixar o valor de uma coisa,
      • não apenas porque este seja representável em unidades de trabalho, 
      • mas primeiro e fundamentalmente porque o trabalho como atividade de produção é “a fonte de todo valor”. 

    Já não pode este ser definido, como na idade clássica, a partir do sistema total de equivalências e da capacidade que podem ter as mercadorias de se representarem umas às outras. 

    O valor deixou de ser signo,
    tornou-se um produto. 

    Se as coisas valem tanto quanto o trabalho que a elas se consagrou, ou se, pelo menos, seu valor está em proporção a esse trabalho, 

    • não é porque o trabalho seja um valor fixo, constante e permutável todos os céus e em todos os tempos, 
    • mas sim porque todo valor, qualquer que seja, extrai sua origem do trabalho.

    E a melhor prova disso está em que 

    • o valor das coisas aumenta com a quantidade de trabalho que lhes temos de consagrar se as quisermos produzir; 
    • porém não muda com o aumento ou baixa dos salários pelos quais o trabalho se troca como qualquer outra mercadoria(3). 

    Circulando nos mercados, trocando-se uns por outros, os valores realmente têm ainda um poder de representação. Extraem esse poder, porém, de outra parte – desse trabalho mais primitivo e radical do que toda representação e que, portanto, não pode definir-se pela troca. 

    • Enquanto no pensamento clássico o comércio e a troca servem de base insuperável para a análise das riquezas (e isso mesmo ainda em Adam Smith, para quem a divisão do trabalho é comandada pelos critérios da permuta), 
    • desde Ricardo, a possibilidade da troca está assentada no trabalho;
      • e a teoria da produção, 
      • doravante, deverá sempre preceder a da circulação. 

    Daí, três consequências que importa reter. 

    A primeira é a instauração de uma série causal cuja forma é radicalmente nova. 

    No século XVIII, não se ignorava, de modo algum, o jogo das determinações econômicas: explicava-se como a moeda podia dissipar-se ou afluir, os preços subirem ou baixarem, a produção crescer, estagnar ou diminuir; mas todos esses movimentos eram definidos a partir de um espaço em quadro onde os valores se podiam representar uns aos outros; os preços aumentavam quando os elementos representantes cresciam mais depressa que os elementos representados; a produção diminuía quando os instrumentos de representação diminuíam em relação às coisas a serem representadas etc. Tratava-se sempre de uma causalidade circular e de superfície, pois que não concernia jamais senão aos poderes recíprocos do analisando e do analisado. 

    A partir de Ricardo, o trabalho, desnivelado em relação à representação, e instalando-se em uma região onde ela não tem mais domínio, organiza-se segundo uma causalidade que lhe é própria. 

    A quantidade de trabalho necessária para a fabricação de uma coisa (ou para sua colheita, ou para seu transporte) e que determina seu valor depende das formas de produção: segundo o grau de divisão no trabalho, a quantidade e a natureza dos instrumentos, o volume de capital de que dispõe o empresário e o que ele investiu nas instalações de sua fábrica, a produção será modificada; em certos casos será dispendiosa; em outros, o será menos(4). Mas, como em todos os casos, esse custo (salários, capital e rendimentos, lucros) é determinado pelo trabalho já efetuado e aplicado a essa nova produção, vê-se nascer uma grande série linear e homogênea que é a da produção. Todo trabalho tem um resultado que, sob uma forma ou outra, é aplicado a um novo trabalho cujo custo ele define; e esse novo trabalho, por sua vez, entra na formação de um valor etc. Essa acumulação em série rompe pela primeira vez com as determinações recíprocas, as únicas que atuavam na análise clássica das riquezas. Introduz, por isso mesmo, a possibilidade de um tempo histórico contínuo, ainda que de fato, como veremos, Ricardo só pense na evolução futura sob a forma de um afrouxamento e, em última análise, de uma suspensão total da história. 

    Ao nível das condições de possibilidade do pensamento, Ricardo, ao dissociar formação e representatividade do valor, permitiu a articulação da economia com a história. 

    As “riquezas”, em vez de se distribuírem num quadro e de constituírem assim um sistema de equivalência, organizam-se e se acumulam numa cadeia temporal: todo valor se determina não segundo os instrumentos que permitem analisá-lo, mas segundo as condições de produção que o fizeram nascer; e, mais ainda, essas condições são determinadas por quantidades de trabalho aplicadas para produzi-Ias. Antes mesmo que a reflexão econômica estivesse ligada à história dos acontecimentos ou das sociedades num discurso explícito, a historicidade penetrou, e por longo tempo sem dúvida, o modo de ser da economia. Esta, em sua positividade, não está mais ligada a um espaço simultâneo de diferenças e de identidades, mas ao tempo de produções sucessivas. 

    Quanto à segunda conseqüência, não menos decisiva, diz respeito à noção de raridade. 

    Para a análise clássica, a raridade era definida em relação à necessidade: admitia-se que a raridade se acentuava ou se deslocava na medida em que as necessidades aumentavam ou tomavam formas novas; para os que têm fome, raridade do trigo; para os ricos que frequentam a sociedade, raridade do diamante. Quanto a essa raridade, os economistas do século XVIII – quer fossem fisiocratas quer não – pensavam que a terra, ou o trabalho da terra, permitia superá-Ia, ao menos em parte: é que a terra tem a maravilhosa propriedade de poder cobrir necessidades bem mais numerosas do que aquelas dos homens que a cultivam. 

    No pensamento clássico,

    há raridade porque os homens se representam objetos que não possuem; 

    mas há riqueza porque a terra produz, com certa abundância, objetos que não são logo consumidos e que podem então representar outros nas trocas e na circulação. 

    Ricardo inverte os termos dessa análise: 

    a aparente generosidade da terra só é de fato devida à sua avareza crescente; 

    e o que é primeiro não é a necessidade e a representação da necessidade no espírito dos homens, 

    é pura e simplesmente uma carência originária. 

    Com efeito, o trabalho – isto é, a atividade econômica só apareceu na história do mundo no dia em que os homens se acharam numerosos demais para poderem nutrir-se dos frutos espontâneos da terra. Não tendo com que subsistir, alguns morriam e muitos outros estariam mortos se não se pusessem a trabalhar a terra. E, na medida em que a população se multiplicava, novas faixas da floresta deviam ser abatidas, desbravadas e cultivadas. A cada instante de sua história, a humanidade só trabalha sob a ameaça da morte: toda população, se não encontra novos recursos, está fadada a extinguir-se; e inversamente, à medida que os homens se multiplicam, empreendem trabalhos mais numerosos, mais longínquos, mais difíceis, menos imediatamente fecundos. Como a pendência da morte se faz mais temível à proporção que as subsistências necessárias se tornam de mais difícil acesso, o trabalho, inversamente, deve crescer em intensidade e utilizar todos os meios de se tomar mais prolífico. Assim, o que torna a economia possível e necessária é uma perpétua e fundamental situação de raridade: em face de uma natureza que por si mesma é inerte e, salvo numa parte minúscula, estéril, o homem arrisca sua vida. 

    Não é mais nos jogos da representação que a economia encontra seu princípio, mas do lado dessa região perigosa onde a vida afronta a morte. Ela remete, pois, a essa ordem de considerações bastante ambíguas a que se pode chamar antropológicas: reporta-se, com efeito, às propriedades biológicas de uma espécie humana, acerca da qual Malthus, na mesma época que Ricardo, mostrou que tende sempre a crescer caso não se lhe traga remédio ou coerção; reporta-se também à situação desses seres vivos que se arriscam a não encontrar na natureza que os rodeia aquilo com que assegurar sua existência; ela designa enfim o trabalho e a dureza mesma desse trabalho como o único meio de negar a carência fundamental e triunfar por um instante sobre a morte. A positividade da economia se aloja nesse vão antropológico. 

    O Homo oeconomicus não é aquele que se representa suas próprias necessidades bem como os objetos capazes de as saciar; é aquele que passa, usa e perde sua vida escapando da iminência da morte. É um ser finito: e assim como, desde Kant, a questão da atitude se tornou mais fundamental que a análise das representações (já não podendo esta ser senão derivada em relação àquela), desde Ricardo a economia repousa, de maneira mais ou menos explícita, numa antropologia que tenta atribuir à finitude formas concretas. 

    A economia do século XVIII estava relacionada a uma máthêsis como ciência geral de todas as ordens possíveis; a do século XIX está referida a uma antropologia como discurso sobre a finitude natural do homem. 

    Por isso mesmo, a necessidade e o desejo retiram-se para o lado da esfera subjetiva – para essa região que, na mesma época, está em via de se tomar o objeto da psicologia. 

    É lá, precisamente, que, na segunda metade do século XIX, os marginalistas irão buscar a noção de utilidade. Julgar-se-á então que Condillac, ou Graslin, ou Fortbonnais, “já” eram “psicologistas”, visto que analisavam o valor a partir da necessidade; e, do mesmo modo, julgar-se-á que os fisiocratas foram os primeiros antepassados de uma economia que, desde Ricardo, analisou o valor a partir dos custos de produção. 

    De fato, ter-se-á saído da configuração que tornava simultaneamente possíveis Quesnay e Condillac; terse-á escapado ao reino dessa epistémê que assentava o conhecimento na ordem das representações; e ter-se-á entrado em outra disposição epistemológica, a que distingue, não sem referi-Ias uma à outra, uma psicologia das necessidades representadas e uma antropologia da finitude natural. 

    Enfim, a última conseqüência concerne à evolução da economia. 

    Ricardo mostra que não se deve interpretar como fecundidade da natureza o que marca, e de uma forma sempre mais insistente, sua essencial avareza. 

    A renda fundiária, na qual todos os economistas, até o próprio Adam Smith(5), viam o signo de uma fecundidade própria à terra, só existe na medida exata em que o trabalho agrícola se toma cada vez mais duro, cada vez menos “rentável”. 

    À medida que se é compelido, pelo crescimento ininterrupto da população, a desbravar terras menos fecundas, a colheita dessas novas unidades de trigo exige mais trabalho: seja porque os cultivos devam ser mais profundos, seja porque a superfície semeada deva ser mais vasta, seja porque se necessite de mais adubo; o custo da produção é portanto muito mais elevado para estas últimas colheitas do que para as primeiras, que foram obtidas, na origem, em terras ricas e fecundas. Ora, esses bens, tão difíceis de obter, não são menos indispensáveis que os outros, se não se quiser que certa parte da humanidade morra de fome. 

    É, portanto, o custo de uma produção de trigo em terras mais estéreis que determinará o preço do trigo em geral, mesmo se foi obtido com duas ou três vezes menos trabalho. 

    Daí, para as terras fáceis de cultivar, um aumento de beneficio, que permite a seus proprietários arrendá-Ias retirando antecipadamente um importante rendimento. A renda fundiária é o efeito não de uma natureza prolífica, mas de uma terra avara. Ora, essa avareza não cessa de tornar-se cada dia mais sensível: a população, com efeito, se desenvolve; começa-se a lavrar terras cada vez mais pobres; os custos de produção aumentam; aumentam os preços agrícolas e com eles as rendas fundiárias. 

    Sob essa pressão, é bem possível – necessário mesmo – que também o salário nominal dos operários comece a crescer a fim de cobrir as despesas mínimas de subsistência; mas, por essa mesma razão, o salário real não poderá praticamente elevar-se acima do que é indispensável para que o operário se vista, se aloje e se alimente. 

    E, finalmente, o lucro dos empresários baixará na medida mesma em que a renda fundiária aumentar e em que a retribuição operária permanecer fixa. Baixaria mesmo indefinidamente a ponto de desaparecer, se não se caminhasse para um limite; com efeito, a partir de certo momento os lucros industriais serão demasiado baixos para que se faça trabalhar novos operários; na falta de salários suplementares, a mão-de-obra não poderá mais crescer, a população ficará estagnada; não será necessário desbravar novas terras ainda mais infecundas que as precedentes: a renda fundiária atingir seu teto e não exercerá mais sua costumeira pressão sobre os rendimentos industriais, que poderão então se estabilizar. 

    A História enfim se tornará estanque. 

    A finitude do homem será definida – de uma vez por todas, isto é, por um tempo indefinido

    Paradoxalmente, é a historicidade introduzida na economia por Ricardo que permite pensar essa imobilização da História. 

    O pensamento clássico concebia para a economia um futuro sempre aberto e sempre cambiante; mas tratava-se, de fato, de uma modificação de tipo espacial: o quadro que, pensava-se, as riquezas formavam ao se desenvolverem, e ao serem trocadas e ordenadas, podia muito bem ampliar-se permanecia, porém, o mesmo quadro, cada elemento perdendo um pouco de sua superfície relativa mas entrando em relação com novos elementos. 

    Em contrapartida, é o tempo cumulativo da população e da produção, é a história ininterrupta da raridade que, a partir do século XIX, permite pensar o empobrecimento da História, sua inércia progressiva, sua petrificação e, dentro em breve, sua imobilidade rochosa. 

    Vê-se que papel a História e a antropologia desempenham uma em relação à outra. Só há história (trabalho, produção, acumulação e crescimento dos custos reais) na medida em que o homem como ser natural é finito: finitude que se prolonga muito além dos limites primitivos da espécie e das necessidades imediatas do corpo, mas que não cessa de acompanhar, ao menos em surdina, todo o desenvolvimento das civilizações. 

    Quanto mais o homem se instala no cerne do mundo, quanto mais avança na posse da natureza, tanto mais fortemente também é acossado pela finitude, tanto mais se aproxima de sua própria morte. 

    A História não permite ao homem evadir-se de seus limites iniciais – salvo na aparência e se se der ao limite o sentido mais superficial; se se considerar, porém, a finitude fundamental do homem, perceber-se-á que sua situação antropológica não cessa de dramatizar cada vez mais sua História, de torná-Ia mais perigosa e de aproximá-Ia, por assim dizer, de sua própria impossibilidade. 

    No momento em que toca tais confins, a História só pode deter-se, vibrar um instante sobre seu eixo e imobilizar-se para sempre. 

    Mas isso pode produzir-se de dois modos: 

    • seja porque ela alcance progressivamente, e com uma lentidão sempre mais acentuada, um estado de estabilidade que sanciona, no indefinido do tempo, aquilo para o que ela sempre marchou, aquilo que no fundo de si ela jamais cessou de ser desde o começo; 
    • seja porque, ao contrário, ela atinja um ponto de reversão onde só se fixa na medida em que suprime o que continuamente fora até então.

    Na primeira solução (representada pelo “pessimismo” de Ricardo), 

    a História funciona ante as determinações antropológicas como uma espécie de grande mecanismo compensador; 

    • aloja-se, é certo, na finitude humana, mas aí aparece à maneira de uma figura positiva e em relevo; 
    • permite ao homem superar a raridade a que está votado. 

    Como essa carência se torna cada dia mais rigorosa, o trabalho se torna mais intenso; 

    • a produção aumenta em cifras absolutas, 
    • mas, ao mesmo tempo que ela e no mesmo movimento, também os custos de produção – isto é, as quantidades de trabalho necessário para produzir um mesmo objeto. 

    De sorte que deverá inevitavelmente chegar um momento em que o trabalho não é mais sustentado pela mercadoria que ele produz (não custando esta mais que o alimento do operário que a obtém). 

    A produção não pode mais preencher a falta. 

    Então, 

    • a raridade vai limitar-se ela própria (por uma estabilização demográfica) 
    • e o trabalho vai ajustar-se exatamente às necessidades (por uma repartição determinada das riquezas). 

    Doravante, a finitude e a produção vão superpor-se exatamente numa figura única. Todo labor suplementar seria inútil; todo excedente de população pereceria. A vida e a morte serão assim colocadas exatamente uma contra a outra, superfície contra superfície, imobilizadas e como que reforçadas ambas por seu impulso antagonista. 

    A História terá conduzido a finitude do homem até esse ponto-limite em que ela aparecerá enfim em sua pureza; 

    • já não terá margem que lhe permita escapar-se a si mesma, nem esforço a fazer para forjar um porvir, nem novas terras abertas a homens futuros; 
    • sob a grande erosão da História, o homem será pouco a pouco despojado de tudo o que pode escondê-lo a seus próprios olhos; 
    • terá exaurido todas essas possibilidades que confundem um pouco e esquivam sob as promessas do tempo sua nudez antropológica; 
    • por longos caminhos, mas inevitáveis e constringentes, a História terá conduzido o homem até essa verdade que o detém sobre si mesmo. 

    Na segunda solução (representada por Marx), 

    a relação da História com a finitude antropológica é decifrada segundo a direção inversa. 

    A História desempenha então um papel negativo: 

    • é ela, com efeito, que acentua as pressões da necessidade, que faz crescer as carências, coagindo os homens a trabalhar e a produzir sempre mais, sem receberem mais do que o que lhes é indispensável para viver, e algumas vezes um pouco menos. 
    • De sorte que, com o tempo, o produto do trabalho se acumula, escapando sem trégua àqueles que o executam:
      • estes produzem infinitamente mais do que essa parte do valor que lhes cabe sob forma de salário 
      • e dão assim ao capital a possibilidade de novamente comprar trabalho. 

    Assim cresce sem cessar o número daqueles que a História mantém nos limites de suas condições de existência; 

    • e, por isso mesmo, essas condições não cessam de tomar-se mais precárias e de aproximar-se do que tornará a própria existência impossível; 
    • a acumulação do capital, 
    • o crescimento das empresas e de sua capacidade, 
    • a pressão constante sobre os salários, 
    • o excesso da produção 
    • reduzem o mercado de trabalho, diminuindo sua retribuição e aumentando o desemprego. 

    Repelida pela miséria aos confins da morte, toda uma classe de homens faz, como que a nu, a experiência do que sejam a necessidade, a fome e o trabalho. 

    • No que os outros atribuem à natureza ou à ordem espontânea das coisas, 
    • eles sabem reconhecer o resultado de uma história e a alienação de uma finitude que não tem essa forma. 

    É essa verdade da essência humana que eles podem, por essa razão – e que só eles podem – reassumir a fim de a restaurar. O que só poderá ser obtido pela supressão ou, ao menos, pela reversão da História tal como ela se desenrolou até o presente: somente então começará um tempo que não terá mais nem a mesma forma, nem as mesmas leis, nem a mesma forma de transcorrer. 

    Mas, sem dúvida, pouco importa a alternativa entre o “pessimismo” de Ricardo e a promessa revolucionária de Marx. Tal sistema de opções nada mais representa senão duas maneiras possíveis de percorrer as relações entre a antropologia e a História, tais como a economia as instaura através das noções de raridade e de trabalho. 

    Para Ricardo, 

    • a História preenche o vão disposto pela finitude antropológica e manifestado por uma perpétua carência, 
    • até o momento em que seja atingido o ponto de uma estabilização definitiva; 

    segundo a leitura marxista, 

    • a História, espoliando o homem de seu trabalho, faz surgir em relevo a forma positiva de sua finitude – sua verdade material enfim liberada. 

    Certamente, compreende-se sem dificuldade como, ao nível da opinião, as escolhas reais se distribuíram, porque alguns optaram pelo primeiro tipo de análise e outros pelo segundo. 

    Mas trata-se somente de diferenças derivadas que procedem em tudo e por tudo de uma inquirição e de um tratamento doxológicos. 

    No nível profundo do saber ocidental, o marxismo não introduziu nenhum corte real; 

    alojou-se sem dificuldade, como uma figura plena, tranquila, confortável e, reconheça-se, satisfatória por um tempo (o seu), no interior de uma disposição epistemológica que o acolheu favoravelmente (pois foi ela justamente que lhe deu lugar) e que ele não tinha, em troca, nem o propósito de perturbar nem sobretudo o poder de alterar, por pouco que fosse, pois que repousava inteiramente sobre ela. 

    O marxismo está no pensamento do século XIX como peixe n’ água: o que quer dizer que noutra parte qualquer deixa de respirar. 

    Se ele se opõe às teorias “burguesas” da economia e se, nessa oposição, projeta contra elas uma reversão radical da História, esse conflito e esse projeto têm por condição de possibilidade não a retomada de toda a História nas mãos, mas um acontecimento que toda a arqueologia pode situar com precisão e que prescreveu simultaneamente, segundo o mesmo modo, a economia burguesa e a economia revolucionária do século XIX. 

    Seus debates podem agitar algumas ondas e desenhar sulcos na superfície: são tempestades num copo d’ água. O essencial é que, no começo do século XIX, constituiu-se uma disposição do saber em que figuram, a um tempo, 

    • a historicidade da economia (em relação com as formas de produção), 
    • a finitude da existência humana (em relação com a raridade e o trabalho) 
    • e o aprazamento de um fim da História – quer por afrouxamento indevido quer por reversão radical. 

    História, antropologia e suspensão do devir se pertencem segundo uma figura que define para o pensamento do século XIX uma de suas redes maiores. 

    Sabe-se, por exemplo, que papel essa disposição desempenhou para reanimar a boa vontade fatigada dos humanismos; sabe-se de que modo fez renascer as utopias de um acabamento. 

    No pensamento clássico, a utopia funcionava antes como um devaneio de origem: 

    é que o frescor do mundo devia assegurar o desdobramento ideal de um quadro onde cada coisa estaria presente em seu lugar, com suas vizinhanças, suas diferenças próprias, suas equivalências imediatas; 

    nessa luz primeira, as representações não deviam ser ainda destacadas da viva, aguda e sensível presença daquilo que elas representam. 

    No século XIX, a utopia concerne ao crepúsculo do tempo mais que à sua aurora: 

    é que o saber não é mais constituído ao modo do quadro, mas ao da série, do encadeamento e do devir; 

    quando vier, com a noite prometida, a sombra do desenlace, a erosão lenta ou a violência da História fará realçar, em sua imobilidade rochosa, a verdade antropológica do homem; 

    o tempo dos calendários poderá certamente continuar; 

    mas será como que vazio, pois a historicidade se terá superposto exatamente à essência humana. 

    O escoar do devir, com todos os seus recursos de drama, de olvido, de alienação, será captado numa finitude antropológica que aí encontra em troca sua manifestação iluminada. 

    A finitude com sua verdade se dá no tempo; e, desde logo, o tempo é finito. 

    O grande devaneio de um termo da História é a utopia dos pensamentos causais, 

    como o sonho das origens era a utopia dos pensamentos classificadores. 

    Essa disposição foi por longo tempo constringente; e, no fim do século XIX, Nietzsche a fez cintilar uma última vez, incendiando-a. 

    Retomou o fim dos tempos para dele fazer a morte de Deus e a errância do último homem; retomou a finitude antropológica, mas para fazer fulgir o arremesso prodigioso do super-homem; retomou a grande cadeia contínua da História, mas para curvá-Ia no infinito do retorno. 

    A morte de Deus, a iminência do super-homem, a promessa e o terror do grande ano se esforçam em vão por retomar, como que termo a termo, os elementos que se dispõem no pensamento do século XIX e formam sua rede arqueológica, mas não é menos certo que inflamam todas essas formas estáveis, desenham com seus restos calcinados rostos estranhos, impossíveis talvez; 

    e, a uma luz de que não se sabe ainda ao certo 

    • se reaviva o último incêndio 
    • ou se indica a aurora, 

    vê-se abrir o que pode ser o espaço do pensamento contemporâneo. 

    Foi Nietzsche, em todo o caso, que queimou para nós, e antes mesmo que tivéssemos nascido, as promessas mescladas da dialética e da antropologia.

     

    I. As novas empiricidades

    Capítulo VIII - Trabalho, vida e linguagem; tópico I - As novas empiricidades

    Eis que nos adiantamos
    bem para além do acontecimento histórico que se impunha situar
    – bem para além das margens cronológicas
    dessa ruptura que divide, em sua profundidade,
    a epistémê do mundo ocidental
    e isola para nós o começo
    de certa maneira moderna de conhecer as empiricidades. 

    É que o pensamento que nos é contemporâneo
    e com o qual, queiramos ou não, pensamos,
    se acha ainda muito dominado 

    pela impossibilidade,
    trazida à luz por volta do fim do século XVIII,
    de fundar as sínteses no espaço da representação 

    e pela obrigação
    correlativa, simultânea, mas logo dividida contra si mesma,
    de abrir o campo transcendental da subjetividade
    e de constituir inversamente,
    para além do objeto,
    esses “quase-transcendentais” que são para nós
    a Vida, o Trabalho, a Linguagem. 

    Para fazer surgir 

    • essa obrigação 
    • e essa impossibilidade 

    na aspereza de sua irrupção histórica, 

    • era preciso deixar a análise correr ao longo de todo o pensamento que encontra sua fonte em semelhante abertura; 
    • era preciso que tal intento reduplicasse apressadamente o destino ou o pendor do pensamento moderno para atingir finalmente seu ponto de declínio: 

    esta claridade de hoje, ainda pálida mas talvez decisiva, que nos permite, se não contornar por inteiro, ao menos dominar fragmentariamente e ter um pouco sob controle aquilo que, desse pensamento formado no limiar da idade moderna, chega ainda até nós, nos investe e serve de solo contínuo ao nosso discurso. 

    Entretanto, a outra metade do acontecimento – a mais importante sem dúvida – pois ela concerne em seu ser mesmo, em seu enraizamento, às positividades sobre as quais se arraigam nossos conhecimentos empíricos – ficou em suspenso; e é ela que é preciso agora analisar. 

    Numa primeira fase 

    – a que cronologicamente se estende de 1775 a 1795 e cuja configuração se pode designar através das obras de Smith, de Jussieu e de Wilkins – os conceitos de trabalho, de organismo e de sistema gramatical foram introduzidos – ou reintroduzidos com um estatuto singular – na análise das representações e no espaço tabular onde esta até então se desenrolava. 

    Sem dúvida, sua função era ainda somente autorizar essa análise, permitir o estabelecimento das identidades e das diferenças, e fornecer o instrumento – como a medida qualitativa – de uma ordenação. 

    Todavia, 

    • nem o trabalho, 
    • nem o sistema gramatical, 
    • nem a organização viva 

    podiam ser definidos ou assegurados pelo simples jogo da representação se decompondo, se analisando, se recompondo e assim representando-se a si mesma numa pura reduplicação; o espaço da análise não podia, pois, deixar de perder sua autonomia. 

    O quadro, doravante, deixando de ser o lugar de todas as ordens possíveis, a matriz de todas as relações, a forma de distribuição de todos os seres em sua individualidade singular, já não constitui para o saber senão uma fina película de superfície; 

    • as vizinhanças que ele manifesta, 
    • as identidades elementares que circunscreve e cuja repetição é por ele mostrada, 
    • as semelhanças que desprende e expõe, 
    • as constâncias que permite percorrer, 

    nada mais são que os efeitos de certas sínteses, ou organizações, ou sistemas 

    que residem muito além de todas as repartições que se podem ordenar a partir do visível. 

    A ordem que se dá ao olhar, com o quadriculado permanente de suas distinções, não é mais que uma cintilação superficial por sobre uma profundeza. 

    O espaço do saber ocidental acha-se agora prestes a balançar: 

    • a taxinomia 

    cuja grande camada universal se estendia em correlação com a possibilidade de uma máthêsis e que constituía o tempo forte do saber – ao mesmo tempo sua possibilidade primeira e o termo de sua perfeição – 

    vai ordenar-se segundo uma verticalidade obscura: 

    esta definirá a lei das semelhanças, prescreverá as vizinhanças e as descontinuidades, fundará as disposições perceptíveis e desviará todos os grandes desdobramentos horizontais da taxinomia para a região um pouco acessória das consequências. 

    Assim, a cultura européia inventa para si uma profundeza em que 

    • a questão não será mais a das identidades, dos caracteres distintivos, das plataformas permanentes com todos os seus caminhos e percursos possíveis, 
    • mas a das grandes forças ocultas desenvolvidas a partir de seu núcleo primitivo e inacessível, 
    • mas a da origem, da causalidade e da história. 

    Doravante, as coisas só virão à representação do fundo dessa espessura recolhida em si, emaranhadas talvez e tornadas mais sombrias por sua obscuridade, porém fortemente enlaçadas a si mesmas, reunidas ou divididas, agrupadas sem recurso pelo vigor que lá, naquele fundo, se oculta. 

    As figuras visíveis, seus liames, os brancos que as isolam e contornam seu perfil

    não mais se oferecerão a nosso olhar
    senão totalmente compostos,
    já articulados
    nessa noite subterrânea que as fomenta com o tempo. 

    Então – e esta é a outra fase do acontecimento – 

    o saber, em sua positividade, muda de natureza e de forma. 

    Seria falso – sobretudo insuficiente – atribuir essa mutação 

    • à descoberta de objetos ainda desconhecidos como o sistema gramatical do sânscrito, 
    • ou a relação, no ser vivo, entre as disposições anatômicas e os planos funcionais, 
    • ou ainda o papel econômico do capital. 

    Nem seria mais exato imaginar que 

    • a gramática geral tornou-se filologia, 
    • a história natural, biologia, 
    • e a análise das riquezas, economia política, 

    porque todos esses modos de conhecimento retificaram seus métodos, se acercaram mais de perto do seu objeto, racionalizaram seus conceitos, escolheram melhores modelos de formalização – em suma, porque se teriam desprendido de sua pré-história por uma espécie de auto-análise da própria razão. 

    O que mudou, na curva do século,
    e sofreu uma alteração irreparável
    foi o próprio saber
    como modo de ser prévio e indiviso
    entre o sujeito que conhece
    e o objeto do conhecimento; 

    • se se começa a estudar o custo da produção, e não mais se utiliza a situação ideal e primitiva da permuta para analisar a formação do valor, é porque, ao nível arqueológico,
      • a produção como figura fundamental no espaço do saber 
      • substituiu-se à troca, 
    • fazendo aparecer,
      • por um lado, novos objetos cognoscíveis (como o capital) 
      • e prescrevendo, por outro, novos conceitos e novos métodos (como a análise das formas de produção). 

    Do mesmo modo, 

    • se se estuda, a partir de Cuvier, a organização interna dos seres vivos, e se, para tanto, se utilizam métodos da anatomia comparada, é porque
      • a Vida, como forma fundamental do saber, fez aparecer novos objetos
        • (como a relação do caráter com a função) 
        • e novos métodos ( como a busca das analogias). 

    Enfim, 

    • se Grimm e Bopp tentam definir as leis da alternância vocálica ou da mutação das consoantes, é porque
      • o Discurso como modo do saber veio a ser substituído pela Linguagem, que define objetos até então inaparentes
        • (famílias de línguas em que os sistemas gramaticais são análogos) 
        • e prescreve métodos que não haviam ainda sido empregados (análise das regras de transformação das consoantes e das vogais). 

    A produção, a vida, a linguagem
    – não se devem buscar aí
    objetos que se tivessem,
    como que por seu próprio peso
    e sob o efeito de uma insistência autônoma,
    imposto do exterior a um conhecimento
    que durante um tempo por demais longo
    os negligenciara;
    também não se devem ver aí
    conceitos construídos pouco a pouco,
    graças a novos métodos,
    através do progresso de ciências
    que marcham em direção
    à sua racionalidade própria. 
    Trata-se de modos fundamentais do saber
    que suportam em sua unidade sem fissura
    a correlação segunda e derivada
    de ciências e de técnicas novas
    com objetos inéditos. 

    A constituição desses modos fundamentais está sem dúvida enterrada longe, na espessura das camadas arqueológicas: é possível, contudo, descortinar alguns dos seus sinais através das obras 

    • de Ricardo para a economia
    • de Cuvier para a biologia
    • de Bopp para a filologia.

    Prefácio

    Prefácio

    1 - A ideia que deu origem ao livro 'As palavras e as coisas:
    uma arqueologia das ciências humanas

    A figura ao lado dá acesso a uma animação cujo propósito é relacionar

    • a ideia que, segundo Foucault, teria dado origem ao ‘As palavras e as coisas’;
    • a imagens, figuras que relacionam diferentes conjuntos de ideias, ou elementos de imagem, especialmente reunidos em paletas para modelar operações em diferentes modos de ver as coisas que surgem à medida em que o texto se desenvolve.
    2 - A imagem que Michel Foucault tinha na cabeça
    ao escrever o livro 'As palavras e as coisas'
    3 - dez (10) pontos selecionados no texto do livro e ilustrados, para contextualizar o Prefácio com o restante do livro 'As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas'

    (o texto do Prefácio, formatado)

    Este livro nasceu de um texto de Borges. Do riso que, com sua leitura, perturba todas as familiaridades do pensamento

    – do nosso: daquele que tem nossa idade e nossa geografia,

    abalando todas as superfícies ordenadas, e todos os planos que tornam sensata para nós a profusão dos seres, fazendo vacilar e inquietando. por muito tempo, nossa prática milenar do Mesmo e do Outro.

    Esse texto cita “uma certa enciclopédia chinesa“ onde será escrito que “os animais se dividem em:

    • a) pertencentes ao imperador; 
    • b) embalsamados, 
    • c) domesticados, 
    • d) leitões, 
    • e) sereias, 
    • f) fabulosos, 
    • g) cães em liberdade, 
    • h) incluídos na presente classificação, 
    • i) que se agitam como loucos, 
    • j) inumeráveis, 
    • k) desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo, 
    • l) et cetera, 
    • m) que acabam de quebrar a bilha, 
    • n) que de longe parecem moscas”.

    No deslumbramento dessa taxinomia, o que de súbito atingimos, o que, graças ao apólogo, nos é indicado como o encanto exótico de um outro pensamento,
    é o limite do nosso: 

    • a impossibilidade patente de pensar isso. 

    Que coisa, pois, é impossível pensar; e de que impossibilidade se trata? 

    A cada uma destas singulares rubricas podemos dar um sentido preciso e um conteúdo determinável; 

    • algumas envolvem realmente seres fantásticos – animais fabulosos ou sereias; 
    • mas, justamente em lhes conferindo um lugar à parte, a enciclopédia chinesa localiza seus poderes de contágio; 
    • distingue com cuidado os animais bem reais (que se agitam como loucos ou que acabam de quebrar a bilha) 
    • e aqueles que só têm lugar no imaginário. 

    As perigosas misturas são conjuradas, 

    • insígnias e fábulas reencontram seu alto posto; 
    • nenhum anfíbio inconcebível, 
    • nenhuma asa arranhada, 
    • nenhuma pele escamosa, 
    • nada dessas faces polimorfas e demoníacas, 
    • nenhum hálito em chamas. 

    Ali, a monstruosidade não altera nenhum corpo real, em nada modifica o bestiário da imaginação; 

    • não se esconde na profundeza de algum poder estranho. 
    • Sequer estaria presente em alguma parte dessa classificação, 
    • se não se esgueirasse em todo o espaço vazio, 
    • em todo o branco intersticial que separa os seres uns dos outros. 

    Não são os animais “fabulosos” que são impossíveis,
    pois que são designados como tais, 

    mas a estreita distância segundo a qual são justapostos aos cães em liberdade ou àqueles que de longe parecem moscas. 

    O que transgride toda imaginação,
    todo pensamento possível,
    é simplesmente a série alfabética (a, b, c, d)
    que liga a todas as outras
    cada uma dessas categorias.
    Tampouco se trata da extravagância
    de encontros insólitos. 

    Sabe-se o que há de desconcertante na proximidade dos extremos ou, muito simplesmente, na vizinhança súbita das coisas sem relação; 

    a enumeração que as faz entrechocar-se possui, por si só, um poder de encantamento:

     “Já não estou em jejum, diz Eustenes. Por todo o dia de hoje estarão a salvo da minha saliva: Aspides, Anfisbenas, Anerudutos, Abedessimões, Alartas, Amóbatas, Apinaos, Alatrobãs, Aractes, Astérios, Alcarates, Arges, Aranhas, Ascálabos, Atélabos, Ascalabotas, Aemorróides…”. 

    Mas todos esses vermes e serpentes, todos esses seres de podridão e de viscosidade fervilham, como as sílabas que os nomeiam, na saliva de Eustenes: 

    é aí que todos têm seu lugar-comum, como, sobre a mesa de trabalho, o guarda-chuva e a máquina de costura; 

    se a estranheza de seu encontro é manifesta,
    ela o é na base 

      • deste e
      • deste em
      • deste sobre

    cuja solidez e evidência garantem a possibilidade de uma justaposição. 

    Era decerto improvável que as hemorroidas, as aranhas e as amóbatas viessem um dia se misturar sob os dentes de Eustenes: mas, afinal de contas, nessa boca acolhedora e voraz, tinham realmente como se alojar e encontrar o palácio  de sua coexistência.

     A monstruosidade que Borges faz circular na sua enumeração consiste, ao contrário,
    em que o próprio espaço comum dos encontros
    se acha arruinado. 

    O impossível não é a vizinhança das coisas,
    é o lugar mesmo onde elas poderiam avizinhar-se. 

    Os animais “i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo ” – onde poderiam eles jamais se encontrar; a não ser na voz imaterial que pronuncia sua enumeração, a não ser na página que a transcreve? 

    Onde poderiam eles se justapor; senão no não-lugar da linguagem? 

    Mas esta, ao desdobrá-los, não abre mais que um espaço impensável. 

    A categoria central dos animais “[h] incluídos na presente classificação” indica bem, pela explícita referência a paradoxos conhecidos, que jamais se chegará a definir; entre cada um desses conjuntos e aquele que os reúne a todos, uma relação estável de conteúdo e continente: 

    se todos os animais classificados se alojam, sem exceção, numa das casas da distribuição, todas as outras não estarão dentro desta? 

    E esta, por sua vez, em que espaço reside? 

    O absurdo arruína o e da enumeração, afetando de impossibilidade o em onde se repartiram as coisas enumeradas.

    • Borges não acrescenta nenhuma figura ao atlas do impossível; 
    • não faz brilhar em parte alguma o clarão do encontro poético; 
    • esquiva apenas a mais discreta, mas a mais insistente das necessidades; 
    • subtrai o chão, o solo mudo onde os seres podem justapor-se. 

    Desaparecimento mascarado, ou, antes, irrisoriamente indicado pela série abecedária de nosso alfabeto, que se supõe servir de fio condutor (o único visível) às enumerações de uma enciclopédia chinesa…

    Numa palavra, o que se retira é a célebre “tábua de trabalho”; e, restituindo a Roussel uma escassa parte do que lhe é sempre devido, emprego esta palavra “tábua” em dois sentidos superpostos: 

    • mesa niquelada, encerada, envolta em brancura, faiscante sob o sol de vidro que devora as sombras – lá onde, por um instante, para sempre talvez, o guarda-chuva encontra a máquina de costura; 
    • e quadro que permite ao pensamento operar com os seres uma ordenação, uma repartição em classes, um agrupamento nominal pelo que são designadas suas similitudes e suas diferenças – lá onde, desde o fundo dos tempos, a linguagem se entrecruza com o espaço. 

    Esse texto de Borges fez-me rir durante muito tempo, não sem um mal-estar evidente e difícil de vencer:

    • Talvez porque no seu rastro nascia a suspeita de que há desordem pior que aquela do incongruente e da aproximação do que não convém; 
    • seria a desordem que faz cintilar os fragmentos de um grande número de ordens possíveis na dimensão, sem lei nem geometria, do heteróclito

      e importa entender esta palavra [heteróclito] no sentido mais próximo de sua etimologia: as coisas aí são “deitadas “, “colocadas “, “dispostas” em lugares a tal ponto diferentes, que é impossível encontrar-lhes um espaço de acolhimento, definir por baixo de umas e outras um lugar comum. 

    As utopias consolam: é que, 

    • se elas não têm lugar real, 
    • desabrocham, contudo, num espaço maravilhoso e liso; 
    • abrem cidades com vastas avenidas, 
    • jardins bem plantados, 
    • regiões fáceis, 

    ainda que o acesso a elas seja quimérico. 

    As heterotopias inquietam, sem dúvida porque 

    • solapam secretamente a linguagem, 
    • porque impedem de nomear isto e aquilo, 
    • porque fracionam os nomes comuns ou os emaranham, 
    • porque arruínam de antemão a “sintaxe!’, 
      • e não somente aquela que constrói as frases 
      • – aquela, menos manifesta, que autoriza “manter juntos” (ao lado e em frente umas das outras) as palavras e as coisas. 

    Eis por que as utopias

    • permitem as fábulas e os discursos:
      • situam-se na linha reta da linguagem,
      • na dimensão fundamental da fábula; 

    as heterotopias (encontradas tão frequentemente em Borges) 

    • dessecam o propósito, 
    • estancam as palavras nelas próprias, 
    • contestam, desde a raiz, toda possibilidade de gramática; 
    • desfazem os mitos 
    • e imprimem esterilidade ao lirismo das frases. 

    Parece que certos afásicos não chegam a classificar de maneira coerente as meadas de lãs multicores que se lhes apresentam sobre a superfície de uma mesa;

    como se esse retângulo unificado não pudesse servir de espaço homogêneo e neutro onde as coisas viessem ao mesmo tempo 

        • manifestar a ordem contínua de suas identidades ou de suas diferenças 
        • e o campo semântico de sua denominação.

    Eles formam, nesse espaço unido, onde as coisas normalmente se distribuem e se nomeiam, uma multiplicidade de pequenos domínios granulosos e fragmentários onde semelhanças sem nome aglutinam as coisas em ilhotas descontínuas; 

    • num canto, colocam as meadas mais claras, 
    • noutro, as vermelhas, 
    • aqui, aquelas que têm uma consistência mais lanosa, 
    • ali, aquelas mais longas, ou as que tendem ao violeta, 
    • ou as que foram enroladas em novelo. 

    Mas, mal são esboçados, todos esses agrupamentos se desfazem, pois a orla de identidade que os sustenta, por mais estreita que seja, é ainda demasiado extensa para não ser instável; e, infinitamente, o doente 

    • reúne e separa, 
    • amontoa similitudes diversas, 
    • destrói as mais evidentes, 
    • dispersa as identidades, 
    • superpõe critérios diferentes, 
    • agita-se, 
    • recomeça, 
    • inquieta-se 
    • e chega finalmente à beira da angústia. 

    O embaraço que faz rir quando se lê Borges é por certo aparentado ao profundo mal-estar daqueles cuja linguagem está arruinada: 

    ter perdido o “comum” do lugar e do nome.
    Atopia, afasia.

    No entanto, o texto de Borges aponta para outra direção; a essa distorção da classificação que nos impede de pensá-Ia, a esse quadro sem espaço coerente Borges dá como pátria mítica uma região precisa, cujo simples nome constitui para o Ocidente uma grande reserva de utopias. 

    A China, em nosso sonho,
    não é justamente o lugar privilegiado do espaço? 

    Para nosso sistema imaginário, a cultura chinesa é a mais meticulosa, a mais hierarquizada, a mais surda aos acontecimentos do tempo, a mais vinculada ao puro desenrolar da extensão; pensamos nela como numa civilização de diques e de barragens sob a face eterna do céu; vemo-la estendida e imobilizada sobre toda a superfície de um continente cercado de muralhas. 

    Sua própria escrita não reproduz em linhas horizontais o voo fugidio da voz; ela ergue em colunas a imagem imóvel e ainda reconhecível das próprias coisas. 

    Assim é que a enciclopédia chinesa citada por Borges e a taxinomia que ela propõe 

    • conduzem a um pensamento sem espaço, a palavras e categorias mas que, em essência, repousam sobre um espaço solene, todo sobrecarregado de figuras complexas, de caminhos emaranhados, de locais estranhos, de secretas passagens e imprevistas comunicações; 
    • haveria assim, na outra extremidade da terra que habitamos, uma cultura votada inteiramente à ordenação da extensão, 
      • mas que não distribuiria a proliferação dos seres em nenhum dos espaços onde nos é possível nomear; falar; pensar: 

    Quando instauramos uma classificação refletida, quando dizemos que o gato e o cão se parecem menos que dois galgos, mesmo se ambos estão adestrados ou embalsamados, mesmo se os dois correm como loucos e mesmo se acabam de quebrar a bilha, qual é, pois, o solo a partir do qual podemos estabelecê-lo com inteira certeza? 

    Em que “tábua”, segundo qual espaço de identidades, de similitudes, de analogias, adquirimos o hábito de distribuir tantas coisas diferentes e parecidas sem tempo nem lugar ?  

    Que coerência é essa – que se vê logo não ser nem determinada por um encadeamento a priori e necessário, nem imposta por conteúdos imediatamente sensíveis? 

    Pois não se trata de ligar consequências, mas sim 

    • de aproximar e isolar; 
    • de analisar; 
    • ajustar e encaixar conteúdos concretos; 

    nada mais tateante, nada mais empírico (ao menos na aparência) que a instauração de uma ordem entre as coisas; 

    • nada que exija um olhar mais atento, uma linguagem mais fiel e mais bem modulada; 
    • nada que requeira com maior insistência que se deixe conduzir pela proliferação das qualidades e das formas. 

    E, contudo, um olhar desavisado bem poderia aproximar algumas figuras semelhantes e distinguir outras em razão de tal ou qual diferença: 

    de fato não há, mesmo para a mais ingênua experiência, nenhuma similitude, nenhuma distinção que não resulte de uma operação precisa e da aplicação de um critério prévio. 

    Um “sistema dos elementos ” – uma definição dos segmentos sobre os quais poderão aparecer as semelhanças e as diferenças, os tipos de variação de que esses segmentos poderão ser afetados, o limiar; enfim, acima do qual haverá diferença e abaixo do qual haverá similitude – é indispensável para o estabelecimento da mais simples ordem. 

    A ordem é ao mesmo tempo 

    • aquilo que se oferece nas coisas como sua lei interior; 
      • a rede secreta segundo a qual elas se olham de algum modo umas às outras 
    • e aquilo que só existe através do crivo de um olhar; 
      • de uma atenção, de uma linguagem; 

    e é somente nas casas brancas desse quadriculado que ela se manifesta em profundidade como já presente, esperando em silêncio o momento de ser enunciada. 

    Os códigos fundamentais de uma cultura  

    • – aqueles que regem sua linguagem, 
    • seus esquemas perceptivos, 
    • suas trocas, 
    • suas técnicas, 
    • seus valores, 
    • a hierarquia de suas práticas –

    fixam, logo de entrada, para cada homem, as ordens empíricas com as quais terá de lidar e nas quais se há de encontrar. 

    Na outra extremidade do pensamento, teorias científicas ou interpretações de filósofos explicam 

    • por que há em geral uma ordem, 
    • a que lei geral obedece, 
    • que princípio pode justificá-Ia, 
    • por que razão é esta a ordem estabelecida e não outra. 

    Mas, entre essas duas regiões tão distantes, reina um domínio que, apesar de ter sobretudo um papel intermediário, não é menos fundamental: é mais confuso, mais obscuro e, sem dúvida, menos fácil de analisar: 

    É aí que uma cultura, 

    • afastando-se insensivelmente das ordens empíricas que lhe são prescritas por seus códigos primários, 
    • instaurando uma primeira distância em relação a elas, 
    • fá-Ias perder sua transparência inicial, 
    • cessa de se deixar passivamente atravessar por elas, 
    • desprende-se de seus poderes imediatos e invisíveis, 
    • libera-se o bastante para constatar que essas ordens não são talvez as únicas possíveis nem as melhores: 

    de tal sorte que se encontre diante do fato bruto de que há, sob suas ordens espontâneas, coisas que são em si mesmas ordenáveis, que pertencem a uma certa ordem muda, em suma, que há ordem. 

    Como se, libertando-se por uma parte de seus grilhões linguísticos, perceptivos, práticos, a cultura aplicasse sobre estes um segundo grilhão que os neutralizasse, que, duplicando-os, os fizesse aparecer ao mesmo tempo que os excluísse e, no mesmo movimento, se achasse diante do ser bruto da ordem. 

    É em nome dessa ordem que os códigos da linguagem, da percepção, da prática são criticados e parcialmente invalidados. 

    É com base nessa ordem, assumida como solo positivo, que se construirão as teorias gerais da ordenação das coisas e as interpretações que esta requer: 

    Assim, entre o olhar já codificado e o conhecimento reflexivo, há uma região mediana que libera a ordem no seu ser mesmo: 

    • é aí que ela aparece, segundo as culturas e segundo as épocas, 
    • contínua e graduada ou fracionada e descontínua, 
    • ligada ao espaço ou constituída a cada instante pelo impulso do tempo, 
    • semelhante a um quadro de variáveis ou definida por sistemas separados de coerências, 
    • composta de semelhanças que se aproximam sucessivamente ou se espelham mutuamente, organizada em torno de diferenças crescentes etc. 

    De tal sorte que essa região “mediana “, na medida em que manifesta os modos de ser da ordem, pode apresentar-se como a mais fundamental: 

    • anterior às palavras, às percepções e aos gestos, incumbidos então de traduzi-Ia com maior ou menor exatidão ou sucesso (razão pela qual essa experiência da ordem, sem seu ser maciço e primeiro, desempenha sempre um papel crítico); 
    • mais sólida, mais arcaica, menos duvidosa, sempre mais “verdadeira” que as teorias que lhes tentam dar uma forma explícita, uma explicação exaustiva, ou um fundamento filosófico. 

    Assim, em toda cultura,
    entre  

    o uso do que se poderia chamar
    os códigos ordenadores

    e as reflexões sobre a ordem, 

    há a experiência nua da ordem e de seus modos de ser: 

    No presente estudo, é essa experiência que se pretende analisar:

    Trata-se de mostrar o que ela veio a se tornar; desde o século XVI, no meio de uma cultura como a nossa: de que maneira, refazendo, como que contra a corrente, 

    • o percurso da linguagem tal como foi falada, 
    • dos seres naturais, tais como foram percebidos e reunidos, 
    • das trocas, tais como foram praticadas,

    nossa cultura manifestou que havia ordem

    e que às modalidades dessa ordem deviam 

    • as permutas suas leis, 
    • os seres vivos sua regularidade, 
    • as palavras seu encadeamento e seu valor representativo; 

    que modalidades de ordem foram reconhecidas, colocadas, vinculadas ao espaço e ao tempo, para formar o suporte positivo de conhecimento tais que vão dar 

    • na gramática e na filologia, 
    • na história natural e na biologia, 
    • no estudo das riquezas e na economia política. 

    Tal análise, como se vê, não compete à história das idéias ou das ciências: é antes um estudo que se esforça por encontrar 

    • a partir de que foram possíveis conhecimentos e teorias; 
    • segundo qual espaço de ordem se constituiu o saber; 
    • na base de qual a priori histórico e no elemento de qual positividade puderam aparecer idéias, constituir-se ciências, refletir-se experiências em filosofias, formar-se racionalidades, 
    • para talvez se desarticularem e logo desvanecerem. 

    Não se tratará, portanto, de conhecimentos descritos no seu progresso em direção a uma objetividade na qual nossa ciência de hoje pudesse enfim se reconhecer; 

    • o que se quer trazer à luz é o campo epistemológico, a epistémê onde os conhecimentos, encarados fora de qualquer critério referente a seu valor racional ou a suas formas objetivas, enraízam sua positividade e manifestam assim uma história que não é a de sua perfeição crescente, mas, antes, a de suas condições de possibilidade; 
    • neste relato, o que deve aparecer são, no espaço do saber; as configurações que deram lugar às formas diversas do conhecimento empírico. 

    Mais que de uma história no sentido tradicional da palavra,
    trata-se de uma “arqueologia “(1). 

    Ora, esta investigação arqueológica mostrou duas grandes descontinuidades na epistémê da cultura ocidental: 

    aquela que inaugura a idade clássica
    (por volta dos meados do século XVII) 

    e aquela que, no início do século XIX,
    marca o limiar de nossa modernidade. 

    A ordem, sobre cujo fundamento pensamos, não tem o mesmo modo de ser que a dos clássicos. 

    • Por muito forte que seja a impressão que temos de um movimento quase ininterrupto da ratio européia desde o Renascimento até nossos dias, 
    • por mais que pensemos que a classificação de Lineu, mais ou menos adaptada, pode de modo geral continuar a ter uma espécie de validade, 
    • que a teoria do valor de Condillac se encontra em parte no marginalismo do século XIX,
    • que Keynes realmente sentiu a afinidade de suas próprias análises com as de Cantillon, 
    • que o propósito da Gramática geral
      (tal como o encontramos nos autores de Port-Royal ou em Bauzée) não está tão afastado de nossa atual linguística 

    – toda esta quase-continuidade ao nível das idéias e dos temas não passa, certamente, de um efeito de superfície; 

    • no nível arqueológico, vê-se que o sistema das positividades mudou de maneira maciça na curva dos séculos XVIII e XIX 

    Não que a razão tenha feito progressos; 

    • mas o modo de ser das coisas e da ordem que, distribuindo-as, oferece-as ao saber; é que foi profundamente alterado. 

    Se a história natural de Tournefort, de Lineu e de Buffon tem relação com alguma coisa que não ela mesma, não é com a biologia, a anatomia comparada de Cuvier ou o evolucionismo de Darwin, mas com a gramática geral de Bauzée, com a análise da moeda e da riqueza tal como a encontramos em Law, em Véron de Fortbonnais ou em Turgot. 

    Os conhecimentos chegam talvez a se engendrar; as ideias a se transformar e a agir umas sobre as outras (mas como? até o presente os historiadores não no-lo disseram); 

    uma coisa, em todo o caso, é certa: 

    • a arqueologia, dirigindo-se ao espaço geral do saber; 
    • a suas configurações e ao modo de ser das coisas que aí aparecem, 

    define sistemas de simultaneidade, assim como a série de mutações necessárias e suficientes para circunscrever o limiar de uma positividade nova. 

    Assim, a análise pôde mostrar a coerência que existiu,
    durante toda a idade clássica, entre 

    • a teoria da representação 
    • e as da linguagem, das ordens naturais, da riqueza e do valor: 

    É esta configuração que, a partir do século XIX, muda inteiramente; 

    • a teoria da representação desaparece como fundamento geral de todas as ordens possíveis; 
    • a linguagem, por sua vez, como quadro espontâneo e quadriculado primeiro das coisas, como suplemento indispensável entre a representação e os seres, desvanece-se; 
    • uma historicidade profunda penetra no coração das coisas, isola-às e as define na sua coerência própria. Impõe-lhes formas de ordem que são implicadas pela continuidade do tempo; 
    • a análise das trocas e da moeda cede lugar ao estudo da produção, 
    • a do organismo toma dianteira sobre a pesquisa dos caracteres taxinômicos; 
    • e, sobretudo, a linguagem perde seu lugar privilegiado e torna-se, por sua vez, uma figura da história coerente com a espessura de seu passado. 

    Na medida, porém,
    em que as coisas giram sobre si mesmas,
    reclamando para seu devir
    não mais que o princípio de sua inteligibilidade
    e abandonando o espaço da representação,
    o homem, por seu turno,
    entra, e pela primeira vez,
    no campo do saber ocidental. 

    Estranhamente, o homem – cujo conhecimento passa, a olhos ingênuos, como a mais velha busca desde Sócrates – não é, sem dúvida, nada mais que uma certa brecha na ordem das coisas, uma configuração, em todo o caso, desenhada pela disposição nova que ele assumiu recentemente no saber: 

    Daí nasceram todas as quimeras dos novos humanismos, todas as facilidades de uma “antropologia “, entendida como reflexão geral, meio positiva, meio filosófica, sobre o homem. 

    Contudo, é um reconforto e um profundo apaziguamento pensar que o homem não passa de uma invenção recente, uma figura que não tem dois séculos, uma simples dobra de nosso saber; e que desaparecerá desde que este houver encontrado uma forma nova. 

    Vê-se que esta investigação responde um pouco, como em eco, ao projeto de escrever uma história da loucura na idade clássica; 

    • ela tem, em relação ao tempo, as mesmas articulações, tomando como seu ponto de partida o fim do Renascimento 
    • e encontrando, também ela, na virada do século XIX; o limiar de uma modernidade de que ainda não saímos. 

    Enquanto, na história da loucura, se interrogava a maneira como uma cultura pode colocar sob uma forma maciça e geral a diferença que a limita, 

    trata-se aqui de observar a maneira como ela experimenta a proximidade das coisas, Como ela estabelece o quadro de seus parentescos e a ordem segundo a qual é preciso percorrê-los. 

    Trata-se, em suma, de uma história da semelhança: 

    sob que condições o pensamento clássico pôde refletir; entre as coisas, relações de similaridade ou de equivalência que fundam e justificam as palavras, as classificações, as trocas? 

    A partir de qual a priori histórico foi possível definir o grande tabuleiro das identidades distintas que se estabelece sobre o fundo confuso, indefinido, sem fisionomia e como que indiferente, das diferenças? 

    A história da loucura seria a história do Outro 

    – daquilo que, para uma cultura é ao mesmo tempo interior e estranho, a ser portanto excluído (para conjurar-lhe o perigo interior), encerrando-o porém (para reduzir-lhe a alteridade); 

    a história da ordem das coisas seria a história do Mesmo 

    – daquilo que, para uma cultura, é ao mesmo tempo disperso e aparentado, a ser portanto distinguido por marcas e recolhido em identidades. 

    E se se pensar que a doença é, ao mesmo tempo, 

    • a desordem, a perigosa alteridade no corpo humano e até o cerne da vida, 
    • mas também um fenômeno da natureza que tem suas regularidades, suas semelhanças e seus tipos 

    – vê-se que lugar poderia ter uma arqueologia do olhar médico. 

    • Da experiência-limite do Outro às formas constitutivas do saber médico 
    • e, destas, à ordem das coisas e ao pensamento do Mesmo, 
    • o que se oferece à análise arqueológica é todo o saber clássico, 
    • ou melhor; 
      • esse limiar que nos separa do pensamento clássico e constitui nossa modernidade. 

    Nesse limiar apareceu pela primeira vez esta estranha figura do saber que se chama homem e que abriu um espaço próprio às ciências humanas. 

    Tentando trazer à luz esse profundo desnível da cultura ocidental,
    é a nosso solo silencioso e ingenuamente imóvel
    que restituímos suas rupturas, sua instabilidade, suas falhas; 

    e é ele que se inquieta novamente sob nossos passos.

    Cap. I. Las Meninas

    Capítulo I. Las Meninas

    Las meninas, de Diego Velázquez, 1656;
    óleo sobre tela; Museu do Prado,
    Madrid, Espanha

    I

    O pintor está ligeiramente afastado do quadro. Lança um olhar em direção ao modelo; talvez se trate de acrescentar um último toque, mas é possível também que o primeiro traço não tenha ainda sido aplicado. O braço que segura o pincel está dobrado para a esquerda, na direção da palheta; permanece imóvel, por um instante, entre a tela e as cores, Essa mão hábil está pendente do olhar; e o olhar, em troca, repousa sobre o gesto suspenso. Entre a fina ponta do pincel e o gume do olhar, o espetáculo vai liberar seu volume. Não sem um sistema sutil de evasivas. 

    Distanciando-se um pouco, o pintor colocou-se ao lado da obra na qual trabalha. Isso quer dizer que, para o espectador que no momento olha, ele está à direita de seu quadro, o qual ocupa toda a extremidade esquerda. A esse mesmo espectador o quadro volta as costas: dele só se pode perceber o reverso, com a imensa armação que o sustenta. 

    O pintor, em contrapartida, é perfeitamente visível em toda a sua estatura; de todo modo, ele não está encoberto pela alta tela que, talvez, irá absorvê-lo logo em seguida, quando, dando um passo em sua direção, se entregará novamente a seu trabalho; sem dúvida, nesse mesmo instante, ele acaba de aparecer aos olhos do espectador, surgindo dessa espécie de grande gaiola virtual que a superfície que ele está pintando projeta para trás. 

    Podemos vê-Io agora, num instante de pausa, no centro neutro dessa oscilação. Seu talhe escuro, seu rosto claro são meios-termos entre o visível e o invisível: saindo dessa tela que nos escapa, ele emerge aos nossos olhos; mas quando, dentro em pouco, der um passo para a direita, furtando-se aos nossos olhares, achar-se-á colocado bem em face da tela que está pintando; entrará nessa região onde seu quadro, negligenciado por um instante, se lhe vai tornar de novo visível, sem sombra nem reticência. 

    Como se o pintor não pudesse ser ao mesmo tempo visto no quadro em que está representado e ver aquele em que se aplica a representar alguma coisa. Ele reina no limiar dessas duas visibilidades incompatíveis. O pintor olha, o rosto ligeiramente virado e a cabeça inclinada para o ombro. 

    Fixa um ponto invisível, mas que nós, espectadores, podemos facilmente determinar, pois que esse ponto somos nós mesmos: nosso corpo, nosso rosto, nossos olhos. 

    O espetáculo que ele observa é, portanto, duas vezes invisível: uma vez que não é representado no espaço do quadro e uma vez que se situa precisamente nesse ponto cego, nesse esconderijo essencial onde nosso olhar se furta a nós mesmos no momento em que olhamos. 

    E, no entanto, como poderíamos deixar de ver essa invisibilidade, que está aí sob nossos olhos, já que ela tem no próprio quadro seu sensível equivalente, sua figura selada? 

    Poder-se-ia, com efeito, adivinhar o que o pintor olha, se fosse possível lançar os olhos sobre a tela a que se aplica; desta, porém, só se distingue a textura, os esteios na horizontal e, na vertical, o oblíquo do cavalete. 

    O alto retângulo monótono que ocupa toda a parte esquerda do quadro real e que figura o verso da tela representada reconstituiu, sob as espécies de uma superfície, a invisibilidade em profundidade daquilo que o artista contempla: este espaço em que nós estamos, que nós somos. 

    Dos olhos do pintor até aquilo que ele olha, está traçada uma linha imperiosa que nós, os que olhamos, não poderíamos evitar: ela atravessa o quadro real e alcança, à frente da sua superfície, o lugar de onde vemos o pintor que nos observa; esse pontilhado nos atinge infalivelmente e nos liga à representação do quadro. 

    Aparentemente, esse lugar é simples; constitui-se de pura reciprocidade: olhamos um quadro de onde um pintor, por sua vez, nos contempla. Nada mais que um face-a-face, olhos que se surpreendem, olhares retos que, em se cruzando, se superpõem. E, no entanto, essa tênue linha de visibilidade envolve, em troca, toda uma rede complexa de incertezas, de trocas e de evasivas. 

    O pintor só dirige os olhos para nós na medida em que nos encontramos no lugar do seu motivo. Nós, espectadores, estamos em excesso. Acolhidos sob esse olhar, somos por ele expulsos, substituídos por aquilo que desde sempre se encontrava lá, antes de nós: o próprio modelo. 

    Mas, inversamente, o olhar do pintor, dirigido para fora do quadro, ao vazio que lhe faz face, aceita tantos modelos quantos espectadores lhe apareçam; nesse lugar preciso mas indiferente, o que olha e o que é olhado permutam-se incessantemente. Nenhum olhar é estável, ou antes, no sulco neutro do olhar que traspassa a tela perpendicularmente, o sujeito e o objeto, o espectador e o modelo invertem seu papel ao infinito. 

    E, na extremidade esquerda do quadro, a grande tela virada exerce aí sua segunda função: obstinadamente invisível, impede que seja alguma vez determinável ou definitivamente estabelecida a relação dos olhares. A fixidez opaca que ela faz reinar num lado torna para sempre instável o jogo das metamorfoses que, no centro, se estabelece entre o espectador e o modelo. 

    Porque só vemos esse reverso, não sabemos quem somos nem o que fazemos. Somos vistos ou vemos? O pintor fixa atualmente um lugar que, de instante a instante, não cessa de mudar de conteúdo, de forma, de rosto, de identidade. 

    Mas a imobilidade atenta de seus olhos remete a uma outra direção, que eles já seguiram frequentes vezes e que breve, sem dúvida alguma, vão retomar: a da tela imóvel sobre a qual se traça, está talvez traçado, desde muito tempo e para sempre, um retrato que jamais se apagará.

     De sorte que o olhar soberano do pintor comanda um triângulo virtual, que define em seu percurso esse quadro de um quadro: 

    • no vértice – único ponto visível – os olhos do artista; 
    • na base, de um lado, o lugar invisível do modelo, 
    • do outro, a figura provavelmente esboçada na tela virada. 

    No momento em que colocam o espectador no campo de seu olhar, os olhos do pintor captam-no, constrangem-no a entrar no quadro, designam-lhe um lugar ao mesmo tempo privilegiado e obrigatório, apropriam-se de sua luminosa e visível espécie e a projetam sobre a superfície inacessível da tela virada. 

    Ele vê sua invisibilidade tornada visível ao pintor e transposta em uma imagem definitivamente invisível a ele próprio. 

    Surpresa que é multiplicada e tornada ainda mais inevitável por um estratagema marginal. Na extremidade direita, o quadro recebe sua luz de uma janela representada segundo uma perspectiva muito curta; dela apenas se visualiza o vão; de sorte que o fluxo de luz que ela espalha largamente banha ao mesmo tempo, com a mesma generosidade, dois espaços vizinhos, entrecruzados, mas irredutíveis: 

    • a superfície da tela, com o volume que ela representa (isto é, o ateliê do pintor, ou a sala em que instalou seu cavalete), 
    • e, à frente dessa superfície, o volume real que o espectador ocupa (ou então o lugar irreal do modelo). 

    E, percorrendo a sala da direita para a esquerda, a vasta luz dourada impele ao mesmo tempo o espectador em direção ao pintor e o modelo em direção à tela; é ela também que, iluminando o pintor, torna-o visível ao espectador e faz brilhar como linhas de ouro, aos olhos do modelo, a moldura da tela enigmática, onde sua imagem, transposta, vai se achar encerrada. 

    Esta janela encantoada, parcial, apenas indicada, libera uma luz inteira e mista que serve de lugar-comum à representação. 

    Ela equilibra, na outra extremidade do quadro, a tela invisível: 

    • assim como esta, virando as costas aos espectadores, se redobra contra o quadro que a representa e forma, pela superposição de seu reverso visível sobre a superfície do quadro que a contém, o lugar, para nós inacessível, onde cintila a Imagem por excelência; 
    • assim a janela, pura abertura, instaura um espaço tão manifesto quanto o outro é oculto; tão comum ao pintor, às personagens, aos modelos, aos espectadores quanto o outro é solitário (pois ninguém o olha, nem mesmo o pintor). 

    Da direita, derrama-se por uma janela invisível o puro volume de uma luz que torna visível toda representação; 

    à esquerda, estende-se a superfície que encobre, do outro lado de sua textura demasiado visível, a representação que ela contém. 

    Inundando a cena (quero dizer, tanto a sala quanto a tela, a sala representada na tela e a sala onde a tela está colocada), a luz envolve as personagens e os espectadores, impelindo-os, sob o olhar do pintor, em direção ao lugar onde seu pincel os vai representar. 

    Esse lugar, porém, nos é recusado. 

    Olhamo-nos olhados pelo pintor e tornados visíveis aos seus olhos pela mesma luz que no-lo faz ver. E, no momento em que vamos nos apreender transcritos por sua mão como num espelho, deste não podemos surpreender mais que o insípido reverso. O outro lado de um reflexo. 

    Ora, exatamente em face dos espectadores – de nós mesmos – sobre a parede que constitui o fundo da sala, o autor representou uma série de quadros; e eis que, entre todas essas telas suspensas, uma dentre elas brilha com um clarão singular. Sua moldura é mais larga, mais sombria que a das outras; uma fina linha branca, no entanto, a duplica interiormente, difundindo sobre toda a sua superfície uma luz dificilmente determinável; pois não vem de parte alguma senão de um espaço que lhe seria interior. 

    Nessa luz estranha aparecem duas silhuetas e, acima delas, um pouco para trás, uma pesada cortina de púrpura. Os outros quadros só dão a ver algumas manchas mais pálidas no limite de uma noite sem profundeza. Esse, ao contrário, abre-se para um espaço em recuo onde formas reconhecíveis se dispõem numa claridade que só a ele pertence. 

    Entre todos esses elementos destinados a oferecer representações, mas que as contestam, as recusam, as esquivam por sua posição ou sua distância, esse é o único que funciona com toda a honestidade e que dá a ver o que deve mostrar. A despeito de seu distanciamento, a despeito da sombra que o envolve. 

    Mas não é um quadro: é um espelho. 

    Ele oferece enfim esse encantamento do duplo, que tanto as pinturas afastadas quanto a luz do primeiro plano com a tela irônica recusavam. 

    De todas as representações que o quadro representa, ele é a única visível; mas ninguém o olha. Em pé ao lado de sua tela, a atenção toda absorvida pelo seu modelo, o pintor não pode ver esse espelho que brilha suavemente atrás dele. 

    As outras personagens do quadro estão, na maioria, voltadas também elas para o que se deve passar à frente – para a clara invisibilidade que margeia a tela, para esse átrio de luz, onde seus olhares têm para ver aqueles que os vêem, e não para essa cavidade sombria pela qual se fecha o quarto onde estão representadas. 

    Há, com efeito, algumas cabeças que se oferecem de perfil: nenhuma, porém, suficientemente virada para olhar, no fundo da sala, esse espelho desolado, pequeno retângulo brilhante que nada mais é senão visibilidade, mas sem nenhum olhar capaz de apossar-se dela, torná-Ia atual e comprazer-se no fruto, subitamente amadurecido, de seu espetáculo. 

    É preciso reconhecer que essa indiferença só se iguala à do espelho. Com efeito, este nada reflete daquilo que se encontra no mesmo espaço que ele: nem o pintor, que lhe volta as costas, nem as personagens no centro da sala. Em sua clara profundidade, não é o visível que ele fita. 

    Na pintura holandesa, era tradição que os espelhos desempenhassem um papel de reduplicação: repetiam o que era dado uma primeira vez no quadro, mas no interior de um espaço irreal, modificado, estreitado, recurvo. Ali se via a mesma coisa que na primeira instância do quadro, porém decomposta e recomposta segundo uma outra lei. 

    Aqui o espelho nada diz do que já foi dito. Sua posição, entretanto, é quase central: sua borda superior está exatamente sobre a linha que reparte em duas a altura do quadro, ocupa sobre a parede do fundo (ao menos sobre a parte visível desta) uma posição mediana; deveria, pois, ser atravessado pelas mesmas linhas perspectivas que o próprio quadro; poder-se-ia esperar que um mesmo ateliê, um mesmo pintor, uma mesma tela nele se dispusessem segundo um espaço idêntico; poderia ser o duplo perfeito. 

    Ora, ele não faz ver nada do que o próprio quadro representa. Seu olhar imóvel vai captar à frente do quadro, nessa região necessariamente invisível que forma sua face exterior, as personagens que ali estão dispostas. 

    Em vez de girar em torno de objetos visíveis, esse espelho atravessa todo o campo da representação, negligenciando o que aí poderia captar, e restitui a visibilidade ao que permanece fora de todo olhar. 

    Mas essa invisibilidade que ele supera não é a do oculto: não contorna o obstáculo, não desvia a perspectiva, endereça-se ao que é invisível ao mesmo tempo pela estrutura do quadro e por sua existência como pintura. 

    O que nele se reflete é o que todas as personagens da tela estão fixando, o olhar reto diante delas; é, pois, o que se poderia ver, se a tela se prolongasse para a frente, indo mais para baixo, até envolver as personagens que servem de modelos ao pintor. Mas é também, já que a tela se interrompe ali, dando a ver o pintor e seu ateliê, o que está exterior ao quadro, na medida em que ele é quadro, isto é, fragmento retangular de linhas e cores, encarregado de representar alguma coisa aos olhos de todo espectador possível. 

    No fundo da sala, ignorado por todos, o espelho inesperado faz brilhar as figuras que o pintor olha (o pintor e sua realidade representada, objetiva, de pintor trabalhando); mas também as figuras que olham o pintor (nessa realidade material que as linhas e as cores depositaram sobre a tela). 

    Estas figuras são, uma e outra, igualmente inacessíveis, mas de modo diferente: a primeira, por um efeito de composição que é próprio ao quadro; a segunda, pela lei que preside à existência mesma de todo quadro em geral. 

    Aqui, o jogo da representação consiste em conduzir essas duas formas de invisibilidade uma ao lugar da outra, numa superposição instável – e em restituí-Ias logo à outra extremidade do quadro – a esse pólo que é o mais altamente representado: o de uma profundidade de reflexo na reentrância de uma profundidade de quadro. 

    O espelho assegura uma metátese da visibilidade que incide ao mesmo tempo sobre o espaço representado no quadro e sua natureza de representação; faz ver, no centro da tela, aquilo que, do quadro, é duas vezes necessariamente invisível. 

    Estranha maneira de aplicar ao pé da letra, mas invertendo-o, o conselho que o velho Pachero dera, ao que parece, ao seu aluno, quando trabalhava no ateliê de Sevilha: 

    “A imagem deve sair da moldura.”

     

     II

    Mas talvez seja tempo de nomear enfim essa imagem que aparece no fundo do espelho e que o pintor contempla à frente do quadro. Talvez valha a pena fixar de vez a identidade das personagens presentes ou indicadas, para não nos atrapalharmos infinitamente nestas designações flutuantes, um pouco abstratas, sempre suscetíveis de equívocos e de desdobramentos: “o pintor”, “as personagens”, “os espectadores”, “as imagens”. 

    Em vez de prosseguir sem fim numa linguagem fatalmente inadequada ao visível, bastaria dizer 

    • que Velásquez compôs um quadro; que nesse quadro ele se representou a si mesmo no seu ateliê, ou num salão do Escorial, 
    • a pintar duas personagens que a infanta Margarida vem contemplar, 
    • rodeada de aias, 
    • de damas de honor, 
    • de cortesãos 
    • e de anões; 
    • que a esse grupo pode-se muito precisamente atribuir nomes: a tradição reconhece 
    • aqui dona Maria Agustina Sarmiente, 
    • ali, Nieto, 
    • no primeiro plano, Nicolaso Pertusato, bufão italiano. 

    Bastaria acrescentar que as duas personagens que servem de modelo ao pintor não são visíveis, ao menos diretamente; mas que podemos distingui- Ias num espelho; que se trata, sem dúvida, 

    • do rei Filipe IV 
    • e de sua esposa Mariana. 

    Esses nomes próprios constituiriam indícios úteis evitariam designações ambíguas; eles nos diriam, em todo o caso, o que o pintor olha e, com ele, a maioria das personagens do quadro. 

    Mas a relação da linguagem com a pintura é uma relação infinita. Não que a palavra seja imperfeita e esteja, em face do visível, num déficit que em vão se esforçaria por recuperar. 

    São irredutíveis uma ao outro: 

    • por mais que se diga o que se vê, 
      • o que se vê não se aloja jamais no que se diz, 
    • e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas, comparações, 
      • o lugar onde estas resplandecem não é aquele que os olhos descortinam, 
      • mas aquele que as sucessões da sintaxe definem. 

    Ora, o nome próprio, nesse jogo, não passa de um artifício: 

    • permite mostrar com o dedo, quer dizer, fazer passar sub-repticiamente 
      • do espaço onde se fala 
      • para o espaço onde se olha, 
    • isto é, ajustá-los comodamente um sobre o outro como se fossem adequados. 

    Mas, se se quiser manter aberta a relação entre a linguagem e o visível, se se quiser falar não de encontro a, mas a partir de sua incompatibilidade, de maneira que se permaneça o mais próximo possível de uma e de outro, é preciso então pôr de parte os nomes próprios e meter-se no infinito da tarefa. 

    É, talvez, por intermédio dessa linguagem nebulosa, anônima, sempre meticulosa e repetitiva, porque demasiado ampla, que a pintura, pouco a pouco, acenderá suas luzes. 

    É preciso, pois, fingir não saber quem se refletirá no fundo do espelho e interrogar esse reflexo ao nível de sua existência. 

    De início, ele é o verso da grande tela representada à esquerda. O verso ou, antes, a face dianteira, pois que mostra de frente o que ela, por sua posição, esconde. 

    Ademais, opõe-se à janela e a reforça. Como ela, é um lugar-comum ao quadro e ao que lhe é exterior. 

    • A janela, porém, opera pelo movimento contínuo de uma efusão que, da direita para a esquerda, agrega às personagens atentas, ao pintor, ao quadro, o espetáculo que contemplam; 
    • já o espelho, por um movimento violento, instantâneo e de pura surpresa, vai buscar, à frente do quadro, aquilo que é olhado mas não visível, a fim de, no extremo da profundidade fictícia, torná-lo visível mas indiferente a todos os olhares. 

    O pontilhado imperioso que está traçado entre o reflexo e o que ele reflete corta perpendicularmente o fluxo lateral da luz. 

    Enfim – e é a terceira função desse espelho – ele põe em paralelo uma porta que, como ele, se abre na parede do fundo. 

    Também ela recorta um retângulo claro, cuja luz fosca não se irradia pela sala. Não passaria de uma placa dourada, não estivesse ela aberta para fora através de um batente esculpido, da curva de uma cortina e da sombra de vários degraus. Aí começa um corredor; mas, em vez de se perder em meio à obscuridade, ele se dissipa num brilho amarelo, cuja luz, sem entrar, rodopia em tomo de si mesma e repousa. 

    Sobre esse fundo, ao mesmo tempo próximo e sem limite, um homem destaca sua alta silhueta; ele é visto de perfil; com uma das mãos retém o peso de um cortinado; seus pés estão pousados sobre dois degraus diferentes; tem o joelho dobrado. Talvez vá entrar na sala; talvez se limite a espiar o que se passa no interior, contente de surpreender sem ser observado. 

    Tal como o espelho, fixa o verso da cena: tanto quanto ao espelho, ninguém lhe presta atenção. 

    Não se sabe donde vem; pode-se supor que, seguindo por incertos corredores, contornou a sala onde as personagens estão reunidas e onde trabalha o pintor; talvez estivesse, há pouco, também ele à frente da cena, na região invisível que é contemplada por todos os olhos do quadro. Como as imagens que se distinguem no fundo do espelho, é possível que ele seja um emissário desse espaço evidente e escondido. 

    Há, no entanto, uma diferença: 

    • ele está ali em carne e osso; surgiu de fora, no limiar da área representada; ele é indubitável – não um reflexo provável, mas uma irrupção. 
    • O espelho, fazendo ver, para além mesmo dos muros do ateliê, o que se passa à frente do quadro, faz oscilar, na sua dimensão sagital, o interior e o exterior. 

    Com um pé sobre o degrau e o corpo inteiramente de perfil, o visitante ambíguo entra e sai ao mesmo tempo, num balancear imóvel. Ele repete, sem sair do lugar, mas na realidade sombria de seu corpo, o movimento instantâneo das imagens que atravessam a sala, penetram no espelho, nele se refletem e dele ressaltam como espécies visíveis, novas e idênticas. Pálidas, minúsculas, essas silhuetas no espelho são recusadas pela alta e sólida estatura do homem que surge no vão da porta. 

    Cumpre, no entanto, retomar do fundo do quadro em direção à frente da cena; é preciso abandonar esse circuito cuja voluta se acaba de percorrer. 

    Partindo do olhar do pintor que, à esquerda, constitui como que um centro deslocado, distingue-se primeiro o reverso da tela, depois os quadros expostos, com o espelho no centro, a seguir a porta aberta, novos quadros, cuja perspectiva, porém, muito aguda, só deixa ver as molduras em sua densidade, enfim, à extremidade direita a janela, ou, antes, a fenda por onde se derrama a luz. 

    Essa concha em hélice oferece todo o ciclo da representação: o olhar, a palheta e o pincel, a tela inocente de signos (são os instrumentos materiais da representação), os quadros, os reflexos, o homem real (a representação acabada, mas como que liberada de seus conteúdos ilusórios ou verdadeiros que lhe são justapostos); depois, a representação se dilui: só se vêem as molduras e essa luz que, do exterior, banha os quadros, os quais, contudo, devem em troca reconstituir à sua própria maneira, como se ela viesse de outro lugar, atravessando suas molduras de madeira escura. E essa luz, vemo-la, com efeito, no quadro, parecendo emergir no interstício da moldura; e de lá ela alcança a fronte, as faces, os olhos, o olhar do pintor que segura numa das mãos a palheta e, na outra, o fino pincel… 

    Assim se fecha a voluta, ou melhor, por essa luz, ela se abre. Essa abertura não é mais, como no fundo, uma porta que se abriu; é a própria amplitude do quadro, e os olhares que por ela passam não são de um visitante longínquo. 

    O friso que ocupa o primeiro e o segundo planos do quadro representa – se se incluir o pintor – oito personagens. Cinco delas, a cabeça mais ou menos inclinada, virada ou abaixada, olham na direção perpendicular do quadro. 

    O centro do grupo é ocupado pela pequena infanta, com seu amplo vestido cinza e rosa. A princesa vira a cabeça para a direita do quadro, enquanto seu busto e os grandes folhos do vestido pendem ligeiramente para a esquerda; o olhar, porém, dirige-se aprumado na direção do espectador que se acha em face do quadro. 

    Uma linha mediana que dividisse a tela em duas alas iguais passaria entre os dois olhos da criança. Seu rosto está a um terço da altura total do quadro. De sorte que aí reside, sem dúvida, o tema principal da composição; aí, o objeto mesmo dessa pintura. 

    Como que para prová-lo e melhor sublinhá-lo, o autor recorreu a uma figura tradicional: ao lado da personagem principal, colocou outra, ajoelhada, que a olha. Como um ofertante em prece, como o Anjo saudando a Virgem, uma governanta de joelhos estende as mãos para a princesa. Seu rosto se recorta num perfil perfeito. Está à altura do da criança. A aia olha para a princesa e só para ela. 

    Um pouco mais à direita, outra dama de honor, voltada também para a infanta, ligeiramente inclinada acima dela mas com os olhos claramente dirigidos para a frente, lá onde já olham o pintor e a princesa. 

    Enfim, dois grupos de duas personagens: um, em recuo; outro, composto de anões, no primeiro plano. Em cada par, uma personagem olha em frente, a outra à direita ou à esquerda. Por sua posição e por sua proporção, esses dois grupos se correspondem e se emparelham: 

    • atrás, os cortesãos (a mulher, à esquerda, olha para a direita); 
    • à frente, os anões (o rapaz que está na extremidade direita olha para o interior do quadro). 

    Esse conjunto de personagens assim dispostas pode constituir, conforme a atenção que se dê ao quadro ou o centro de referência que se escolha, duas figuras. 

    Uma seria um grande X; 

    • no ponto superior esquerdo estaria o olhar do pintor 
    • e, à direita, o do cortesão; 
    • na ponta inferior, do lado esquerdo, está o canto da tela representada de costas (mais exatamente, o pé do cavalete); 
    • do lado direito, o anão (com o calçado deposto sobre o dorso do cão). 

    No cruzamento dessas duas linhas, no centro do X, o olhar da infanta. 

    A outra figura seria antes a de uma vasta curva; 

    • suas duas pontas seriam determinadas pelo pintor à esquerda e pelo cortesão à direita – extremidades altas e recuadas; 
    • o recôncavo, bem mais aproximado, coincidiria com o rosto da princesa e com o olhar que a aia lhe dirige. 

    Essa tênue linha desenha uma concha que, ao mesmo tempo, encerra e libera, no meio do quadro, a localização do espelho. 

    Há, pois, dois centros que podem organizar o quadro, conforme a atenção do espectador divague e se prenda aqui ou ali. 

    A princesa mantém-se de pé no meio de uma cruz de Santo André, que gira em torno dela com o turbilhão dos cortesãos, damas de honor, animais e bufões. 

    Mas essa rotação é fixa. Fixa por um espetáculo que seria absolutamente invisível se essas mesmas personagens, subitamente imóveis, não oferecessem, como que no vão de uma taça, a possibilidade de olhar no fundo de um espelho, o dúplice imprevisto de sua contemplação. 

    No sentido da profundidade, a princesa se superpõe ao espelho; 

    no da altura, é o reflexo que se superpõe ao rosto. Mas a perspectiva os torna muito próximos um do outro. 

    Ora, cada um deles emana uma linha inevitável; 

    • uma, saída do espelho, transpõe toda a espessura representada (e mesmo além dela, já que o espelho perfura a parede do fundo e faz nascer atrás dela um outro espaço); 
    • a outra é mais curta; vem do olhar da criança e só atravessa o primeiro plano. 

    Essas duas linhas sagitais são convergentes, segundo um ângulo muito agudo, e o ponto de seu encontro, saindo da tela, se fixa à frente do quadro, mais ou menos lá de onde o olhamos. Ponto duvidoso, pois que não o vemos; ponto, porém, inevitável e perfeitamente definido, pois que é prescrito por essas duas figuras mestras e confirmado ainda por outros pontilhados adjacentes que nascem do quadro e que também dele escapam. 

    Que há, enfim, nesse lugar perfeitamente inacessível, porquanto exterior ao quadro, mas prescrito por todas as linhas de sua composição? 

    Que espetáculo é esse, quem são esses rostos que se refletem primeiro no fundo das pupilas da infanta, depois dos cortesãos e do pintor e, finalmente, na claridade longínqua do espelho? 

    Mas a questão logo se desdobra: 

    • o rosto que o espelho reflete é igualmente aquele que o contempla; 
    • o que todas as personagens do quadro olham são também as personagens a cujos olhos elas são oferecidas como uma cena a contemplar; 
    • o quadro como um todo olha a cena para a qual ele é, por sua vez, uma cena. 

    Pura reciprocidade que manifesta o espelho que olha e é olhado, e cujos dois momentos são desprendidos nos dois ângulos do quadro: 

    • à esquerda a tela virada, pela qual o ponto exterior se torna puro espetáculo; 
    • à direita o cão estirado, único elemento do quadro que não olha nem se mexe, porque ele, com seus fortes relevos e a luz que brinca em seus pelos sedosos, só é feito para ser um objeto a ser olhado. 

    O primeiro olhar lançado ao quadro nos ensinou de que é constituído esse espetáculo-de-olhares. 

    São os soberanos. 

    Adivinhamo-los já no olhar respeitoso da assistência, no espanto da criança e dos anões. Reconhecemo-los, no fundo do quadro, nas duas pequenas silhuetas que o espelho reflete. Em meio a todos esses rostos atentos, a todos esses corpos ornamentados, eles são a mais pálida, a mais irreal, a mais comprometida de todas as imagens; um movimento, um pouco de luz bastariam para fazê-los desvanecer-se. 

    De todas as personagens representadas, elas são também as mais desprezadas, pois ninguém presta atenção a esse reflexo que se esgueira por trás de todo o mundo e se introduz silenciosamente por um espaço insuspeitado; na medida em que são visíveis, são a forma mais frágil e mais distante de toda realidade. 

    Inversamente, na medida em que, residindo no exterior do quadro, se retiraram para uma invisibilidade essencial, ordenam em torno delas toda a representação; 

    • é diante delas que as coisas estão, é para elas que se voltam, é a seus olhos que se mostra a princesa em seu vestido de festa; 
    • da tela virada à infanta e desta ao anão que brinca na extremidade direita, desenha-se uma curva (ou então, abre-se o braço inferior do X) para ordenar em relação a eles toda a disposição do quadro e fazer aparecer, assim, o verdadeiro centro da composição, ao qual o olhar da infanta e a imagem no espelho estão finalmente submetidos. 

    Esse centro é simbolicamente soberano na sua particularidade histórica, já que é ocupado pelo rei Filipe IV e sua esposa. 

    Mas, sobretudo, ele o é pela tríplice função que ocupa em relação ao quadro. 

    Nele vêm superpor-se exatamente 

    • o olhar do modelo no momento em que é pintado, 
    • o do espectador que contempla a cena 
    • e o do pintor no momento em que compõe seu quadro (não o que é representado, mas o que está diante de nós e do qual falamos). 

    Essas três funções “olhantes” confundem-se em um ponto exterior ao quadro: isto é, ideal em relação ao que é representado, mas perfeitamente real, porquanto é a partir dele que se torna possível a representação; nessa realidade mesma, ele não pode deixar de ser invisível. E, contudo, essa realidade é projetada no interior do quadro – projetada e difratada em três figuras que correspondem às três funções desse ponto ideal e real. 

    São elas: 

    • à esquerda, o pintor com sua palheta na mão (autoretrato do autor do quadro); 
    • à direita o visitante, com um pé sobre o degrau, prestes a entrar na sala; ele capta ao revés toda a cena, mas vê de frente o par real, que é o próprio espetáculo; 
    • no centro, enfim, o reflexo do rei e da rainha, ornamentados, imóveis, na atitude de pacientes modelos. .

    Tal reflexo mostra ingenuamente, e na sombra, aquilo que todos olham no primeiro plano. Restitui, como que por encanto, o que falta a cada olhar: 

    • ao do pintor, o modelo que é recopiado no quadro pelo seu duplo representado; 
    • ao do rei, seu retrato que se completa nesse lado da tela que ele não pode distinguir do lugar em que está; 
    • ao do espectador, o centro real da cena, cujo lugar ele assumiu como que por intrusão. 

    Mas talvez essa generosidade do espelho seja simulada; talvez esconda tanto ou mais do que manifesta. O lugar onde impera o rei com sua esposa é também o do artista e o do espectador: no fundo do espelho poderiam aparecer – deveriam aparecer – o rosto anônimo do transeunte e o de Velásquez. Pois a função desse reflexo é atrair para o interior do quadro o que lhe é intimamente estranho: o olhar que o organizou e aquele para o qual ele se desdobra. 

    Mas, por estarem presentes no quadro, à direita e à esquerda, o artista e o visitante não podem estar alojados no espelho: 

    do mesmo modo o rei aparece no fundo do espelho, na medida mesma em que não faz parte do quadro. 

    Na grande voluta que percorria o perímetro do ateliê, desde o olhar do pintor, sua palheta e sua mão suspensa, até os quadros terminados, a representação nascia, completava-se para se desfazer novamente na luz; o ciclo era perfeito. 

    Em contrapartida, as linhas que atravessam a profundidade do quadro são incompletas; falta, a todas, uma parte de seu trajeto. 

    Essa lacuna é devida à ausência do rei – ausência que é um artifício do pintor. Mas esse artifício recobre e designa um lugar vago que é imediato: o do pintor e do espectador quando olham ou compõem o quadro. 

    É que, nesse quadro talvez, como em toda representação de que ele é, por assim dizer, a essência manifestada, 

    • a invisibilidade profunda do que se vê é solidária 
    • com a invisibilidade daquele que vê – malgrado os espelhos, os reflexos, as imitações, os retratos. 

    Em torno da cena 

    • estão depositados os signos e as formas sucessivas da representação; 
    • mas a dupla relação 
      • da representação com o modelo e com o soberano, 
      • com o autor e com aquele a quem ela é dada em oferenda, 
    • essa relação é necessariamente interrompida. 

    Ela jamais pode estar toda presente, ainda quando numa representação que se desse a si própria em espetáculo. 

    Na profundidade que atravessa a tela, que a escava ficticiamente e a projeta para a frente dela própria, não é possível que a pura felicidade da imagem ofereça alguma vez, em plena luz, 

    • o mestre que representa 
    • e o soberano representado. 

    Talvez haja, neste quadro de Velásquez, como que a representação da representação clássica e a definição do espaço que ela abre. 

    Com efeito, ela intenta representar-se a si mesma em todos os seus elementos, com suas imagens, os olhares aos quais ela se oferece, os rostos que torna visíveis, os gestos que a fazem nascer. 

    Mas aí, nessa dispersão que ela reúne e exibe em conjunto, por todas as partes um vazio essencial é imperiosamente indicado: o desaparecimento necessário daquilo que a funda – daquele a quem ela se assemelha e daquele a cujos olhos ela não passa de semelhança. 

    Esse sujeito mesmo – que é o mesmo – foi elidido. 

    E livre, enfim, dessa relação que a acorrentava, a representação pode se dar como pura representação.

     

    V. O ser da linguagem

    Capítulo II. A prosa do mundo; tópico V. O ser da linguagem

    Desde o estoicismo, o sistema dos signos no mundo ocidental fora ternário, já que nele se reconhecia

    • o significante,
    • o significado
    • e a “conjuntura” (o ‘túyxavov).

    A partir do século XVII, em contrapartida, a disposição dos signos tornar-se-á binária, pois que será definida, com Port- Royal,

    • pela ligação de um significante
    • com um significado.

    No Renascimento, a organização é diferente e muito mais complexa; ela é ternária, já que apela

    • para o domínio formal das marcas,
    • para o conteúdo que se acha por elas assinalado
    • e para as similitudes que ligam as marcas às coisas designadas;

    porém, como a semelhança é tanto a forma dos signos quanto seu conteúdo, os três elementos distintos dessa distribuição se resolvem numa figura única.

    Essa disposição, com o jogo que ela autoriza, se reencontra, mas invertida, na experiência da linguagem. Com efeito, esta existe primeiramente, em seu ser bruto e primitivo, sob a forma simples, material, de uma escrita, de um estigma sobre as coisas, de uma marca espalhada pelo mundo e que faz parte de suas mais indeléveis figuras.

    Num sentido, essa camada da linguagem é única e absoluta. Mas ela faz logo nascer duas outras formas de discurso que a vão enquadrar:

    • acima dela, o comentário, que retoma os signos dados com um novo propósito
    • e, abaixo, o texto, cujo comentário supõe a primazia oculta por sob as marcas visíveis a todos.

    Daí três níveis de linguagem a partir do ser único da escrita. É esse jogo complexo que vai desaparecer com o fim do Renascimento. E isso de duas maneiras:

    • seja porque as figuras que oscilavam indefinidamente entre um e três termos vão ser fixadas numa forma binária que as tornará estáveis;
    • seja porque a linguagem, em vez de existir como escrita material das coisas, não achará mais seu espaço senão no regime geral dos signos representativos.

    Essa nova disposição implica o aparecimento de um novo problema até então desconhecido: com efeito, perguntava-se

    • como reconhecer que um signo designasse realmente aquilo que ele significava;
    • a partir do século XVII, perguntar-se-á como um signo pode estar ligado àquilo que ele significa.

    Questão à qual a idade clássica responderá pela análise da representação;

    e à qual o pensamento moderno responderá pela análise do sentido e da significação.

    Mas, por isso mesmo, a linguagem não será nada mais

    • que um caso particular da representação (para os clássicos)
    • ou da significação (para nós).

    A profunda interdependência da linguagem e do mundo se acha desfeita.

    O primado da escrita está suspenso.

    Desaparece então essa camada uniforme onde se entrecruzavam indefinidamente

    • o visto e o lido,
    • o visível e o enunciável.

    As coisas e as palavras vão separar-se.

    O olho será destinado a ver e somente a ver; o ouvido somente a ouvir.

    O discurso terá realmente por tarefa dizer o que é, mas não será nada mais que o que ele diz.

    Imensa reorganização da cultura de que a idade clássica foi a primeira etapa, a mais importante talvez, posto ser ela a responsável pela nova disposição na qual estamos ainda presos – posto ser ela que nos separa de uma cultura onde a significação dos signos não existia, por ser absorvida na soberania do Semelhante; mas onde seu ser enigmático, monótono, obstinado, primitivo, cintilava numa dispersão infinita.

    Nada mais há em nosso saber nem em nossa reflexão que nos traga hoje a lembrança desse ser. Nada mais, salvo talvez a literatura e ainda de um modo mais alusivo e diagonal que direto.

    Pode-se dizer, num certo sentido, que a “literatura”, tal como se constituiu e assim se designou no limiar da idade moderna, manifesta o reaparecimento, onde era inesperado, do ser vivo da linguagem.

    Nos séculos XVII e XVIII, a existência própria da linguagem, sua velha solidez de coisa inscrita no mundo foram dissolvidas no funcionamento da representação; toda linguagem valia como discurso.

    A arte da linguagem era uma maneira de “fazer signo” ao mesmo tempo de significar alguma coisa e de dispor, em torno dessa coisa, signos: uma arte, pois, de nomear e, depois, por uma reduplicação ao mesmo tempo demonstrativa e decorativa, de captar esse nome, de encerrá-lo e encobri-lo por sua vez com outros nomes, que eram sua presença adiada, seu signo segundo, sua figura, seu aparato retórico.

    Ora, ao longo de todo o século XIX e até nossos dias ainda – de Hôlderlin a Mallarmé, a Antonin Artaud – a literatura só existiu em sua autonomia, só se desprendeu de qualquer outra linguagem, por um corte profundo, na medida em que constituiu uma espécie de “contradiscurso” e remontou assim da função representativa ou significante da linguagem àquele ser bruto esquecido desde o século XVI.

    Crê-se atingir a essência mesma da literatura, interrogando-a não mais ao nível do que ela diz, mas na sua forma significante: fazendo-o, permanece-se no estatuto clássico da linguagem.

    Na idade moderna, a literatura é o que compensa (e não o que confirma) o funcionamento significativo da linguagem. Através dela o ser da linguagem brilha de novo nos limites da cultura ocidental e em seu coração – pois ele é, desde o século XVI, aquilo que lhe é mais estranho; porém, desde esse mesmo século XVI, ele está no centro do que ela recobriu.

    Eis por que, cada vez mais, a literatura aparece como o que deve ser pensado; mas também, e pela mesma razão, como o que não poderá em nenhum caso ser pensado a partir de uma teoria da significação.

    Quer a analisemos do lado do significado (o que ela quer dizer, suas “ideias”, o que ela promete ou o que exige), quer do lado do significante (com a ajuda de esquemas tomados à linguística ou à psicanálise), pouco importa: isso não passa de um episódio.

    Tanto num caso como no outro, buscam-na fora do lugar onde, para a nossa cultura, ela jamais cessou, desde há um século e meio, de nascer e de se imprimir.

    Tais modos de decifração provém de uma situação clássica da linguagem aquela que reinou no século XVII, quando o regime dos signos se tornou binário e quando a significação foi refletida na forma da representação; então a literatura era realmente composta de um significante e de um significado e merecia ser analisada como tal.

    A partir do século XIX, a literatura repõe à luz a linguagem no seu ser: não, porém, tal como ela aparecia ainda no final do Renascimento.

    Porque agora não há mais aquela palavra primeira, absolutamente inicial, pela qual se achava fundado e limitado o movimento infinito do discurso; doravante a linguagem vai crescer sem começo, sem termo e sem promessa.

    É o percurso desse espaço vão e fundamental que traça, dia a dia, o texto da literatura.