Capítulo IV. Falar; tópico III. A teoria do verbo

A proposição é para a linguagem
o que a representação é para o pensamento: 
sua forma, ao mesmo tempo mais geral e mais elementar,
porquanto, desde que a decomponhamos,
não reencontraremos mais o discurso,
mas seus elementos
como tantos materiais dispersos.

Abaixo da proposição, por certo, encontram-se palavras, mas não é nelas que a linguagem se completa.

É verdade que originariamente o homem só emitia simples gritos, mas estes somente começaram a ser linguagem no dia em que encerraram – ainda que no interior de seus monossílabos – uma relação que era da ordem da proposição.

O urro do primitivo que se debate só se torna palavra verdadeira se não for mais a expressão lateral de seu sofrimento e se valer por um juízo ou uma declaração do tipo:

“eu sufoco”(28).

O que erige a palavra como palavra e a ergue acima dos gritos e dos ruídos é a proposição nela oculta. Se o selvagem de Aveyron não chegou a falar é porque as palavras permaneceram para ele como as marcas sonoras das coisas e das impressões que elas causavam em seu espírito;

não haviam recebido valor de proposição.

Ele poderia, decerto, pronunciar a palavra “leite” diante da tigela que se lhe oferecia:

  • isso não passava da “expressão confusa
    • desse líquido alimentar,
    • do vaso que o continha
    • e do desejo de que era o objeto”(29);
  • jamais a palavra se tornou signo representativo da coisa, pois jamais ele quis dizer
    • que o leite estava quente,
    • ou pronto,
    • ou esperado.

É a proposição, com efeito,

  • que destaca
    • o signo sonoro
    • de seus valores imediatos de expressão
  • e o instaura soberanamente
    • na sua possibilidade linguística.

Para o pensamento clássico, a linguagem começa onde houver

  • não expressão,
  • mas discurso.

Quando se diz

  • “não”,

não se traduz a recusa por um grito;
resume-se numa palavra “uma proposição inteira:

  • … eu não sinto isso, ou
  • eu não creio nisso”(30).

“Vamos direto à proposição, objeto essencial da gramática.”(31)

Nela todas as funções da linguagem são reconduzidas aos três únicos elementos que são indispensáveis para formar uma proposição:

  • o sujeito,
  • o atributo
  • e seu liame.

O sujeito e o atributo são ainda da mesma natureza, pois que a proposição afirma que um é idêntico ou pertence ao outro: eles podem, pois, sob certas condições, trocar suas funções.

A única diferença, mas decisiva, é a que manifesta a irredutibilidade do verbo:

“em toda proposição”, diz Hobbes(32) “há três coisas a considerar:

  • saber os dois nomes,
    • sujeito
    • e predicado
  • e o liame ou a cópula.

Os dois nomes despertam no espírito a ideia de uma única e mesma coisa, mas a cópula fez nascer a ideia da causa pela qual estes nomes foram impostos a esta coisa”.

O verbo é a condição indispensável a todo discurso: e onde ele não existir, ao menos de modo virtual, não é possível dizer que há linguagem.

As proposições nominais guardam todas a presença invisível de um verbo, e Adam Smith(33) pensa que, sob sua forma primitiva, a linguagem era composta só de verbos impessoais (do tipo: “chove” ou “troveja”), e que a partir desse núcleo verbal todas as outras partes do discurso se foram destacando como outras tantas precisões derivadas e secundárias.

O limiar da linguagem está onde surge o verbo.
É preciso, portanto,
tratar esse verbo como um ser misto,
ao mesmo tempo palavra entre as palavras,
preso às mesmas regras, obedecendo como elas
às leis de regência e de concordância;
e depois,
em recuo em relação a elas todas,
numa região que não é aquela do falado
mas aquela donde se fala.
Ele está na orla do discurso,
na juntura entre
aquilo que é dito
e aquilo que se diz,
exatamente lá onde os signos
estão em via de se tornar linguagem.

É nessa função que é preciso interrogá-lo – despojando-o daquilo que não cessou de o sobrecarregar e de o obscurecer.

  • Não se deter com Aristóteles no fato de que o verbo significa os tempos (muitas outras palavras, advérbios, adjetivos, nomes, podem carregar significações temporais).
  • Não se deter tampouco, como o fazia Scaliger, no fato de que ele exprime ações ou paixões, enquanto os nomes designam coisas, e permanentes (pois há justamente este próprio nome “ação”).
  • Não atribuir importância, como o fazia Buxtorf, às diferentes pessoas do verbo, pois certos pronomes também têm a propriedade de as designar.

Trazer porém, de imediato, à plena luz, aquilo que o constitui:

  • o verbo afirma, isto é, indica

“que o discurso, onde essa palavra é empregada, é o discurso de um homem que não somente concebe os nomes, mas os julga”(34).

Há proposição – e discurso – quando se afirma entre duas coisas um liame de atribuição, quando se diz que isto é aquilo(35).

A espécie inteira do verbo se reduz ao único que significa:

  • ser.

Todos os outros se servem secretamente dessa função única, mas a recobriram com determinações que a ocultam:

  • acrescentaram-se-lhe atributos e, em vez de se dizer “eu sou cantante”, diz-se “eu canto”;
  • acrescentaram-se-lhe indicações de tempo e, no lugar de se dizer “outrora eu sou cantante”, diz-se “eu cantava”;
  • enfim, certas línguas integraram aos verbos o próprio sujeito e é assim que os latinos não dizem ego vivit, mas vivo.

Tudo isso não passa de depósito e sedimentação em torno e acima de uma função verbal absolutamente tênue mas essencial,

“há apenas o verbo ser… que se manteve nessa simplicidade”(36).

A essência inteira da linguagem se concentra nessa palavra singular. Sem ela tudo teria permanecido silencioso, e os homens, como alguns animais, poderiam certamente fazer uso de sua voz, mas nenhum desses gritos lançados na floresta jamais teria articulado a grande cadeia da linguagem.

Na época clássica, o ser bruto da linguagem – essa massa de signos depositados no mundo para aí exercitar nossa interrogação – desvaneceu-se, mas a linguagem estabeleceu com o ser novas relações, mais difíceis de apreender,

  • porquanto é por uma palavra que a linguagem o enuncia e o atinge;
  • do interior de si mesma, ela o afirma;
  • e, contudo, ela não poderia existir como linguagem se essa palavra, por si só, não sustentasse de antemão todo discurso possível.

Sem uma forma de designar o ser, não há linguagem; mas sem linguagem, não há verbo ser, o qual é apenas uma parte dela. Essa simples palavra é o ser representado na linguagem; mas é também o ser representativo da linguagem – o que, permitindo-lhe afirmar o que ela diz, a toma suscetível de verdade ou de erro. Nisso é diferente de todos os signos que podem ser conformes, fiéis, ajustados ou não ao que eles designam, mas que jamais são verdadeiros ou; falsos. 

A linguagem é toda ela discurso,
em virtude desse singular poder de uma palavra
que passa por sobre o sistema dos signos
em direção ao ser daquilo que é significado.

Mas donde vem esse poder?

E que sentido é esse que, transbordando as palavras,
funda a proposição?

Os gramáticos de Port-Royal diziam que o sentido do verbo ser era afirmar. O que indicava bem em que região da linguagem estava seu privilégio absoluto, mas não em que ele consistia. Não se deve compreender que o verbo ser contém a ideia de afirmação, pois esta mesma palavra afirmação e o vocábulo sim a contêm igualmente(37); portanto, é antes a afirmação da ideia que se acha assegurada por ele.

Mas afirmar uma ideia é enunciar sua existência? – É o que pensa Bauzée, que aí encontra uma razão para que o verbo tenha recolhido em sua forma as variações do tempo: pois a essência das coisas não muda, somente sua existência aparece e desaparece, somente ela tem um passado e um futuro(38).

Sobre isso, observa Condillac que, se a existência pode ser retirada das coisas, é porque ela não é nada mais que um atributo e porque o verbo pode afirmar a morte tanto quanto a existência.

A única coisa que o verbo afirma
é a coexistência de duas representações:
por exemplo,
a do verde e da árvore,
a do homem e da existência ou da morte;
é por isso que o tempo dos verbos
não indica aquele em que as coisas existiram no absoluto, mas um sistema relativo
de anterioridade ou de simultaneidade
das coisas entre si(39).

A coexistência, com efeito, não é um atributo da própria coisa, mas também não é nada mais que uma forma de representação: dizer que o verde e a árvore coexistem é dizer que estão ligados em todas ou na maioria das impressões que recebo.

Assim é que o verbo ser teria essencialmente por função reportar toda linguagem à representação que ele designa. O ser em direção ao qual ele transborda os signos não é nem mais nem menos que o ser do pensamento.

Comparando a linguagem a um quadro, um gramático do fim do século XVIII define

  • os nomes como formas,
  • os adjetivos como cores
  • e o verbo como a própria tela onde elas aparecem.

Tela invisível, inteiramente recoberta pelo brilho e o desenho das palavras, mas que fornece à linguagem o lugar onde fazer valer sua pintura;

  • o que o verbo designa é finalmente o caráter representativo da linguagem,
  • o fato de que ela tem seu lugar no pensamento
  • e de que a única palavra capaz de transpor o limite dos signos e fundá-Ios na verdade não atinge jamais senão a própria representação.

De sorte que a função do verbo se acha identificada com o modo de existência da linguagem, que ela percorre em toda a sua extensão: falar é, ao mesmo tempo, representar por signos e conferir a signos uma forma sintética comandada pelo verbo.

Como o diz Destutt, o verbo é a atribuição, o suporte e a forma de todos os atributos:

“O verbo ser acha-se em todas as proposições porque não se pode dizer que uma coisa é de tal maneira sem dizer com isto que ela é… Mas esta palavra é, que está em todas as proposições, nelas faz parte sempre do atributo, delas é sempre o começo e a base, o atributo geral e comum.”(40)

Vê-se de que modo, atingindo esse ponto de generalidade, a função do verbo não terá senão que dissociar-se, desde que venha a desaparecer o domínio unitário da gramática geral.

Quando for liberada a dimensão do gramatical puro, a proposição não será mais que uma unidade de sintaxe.

O verbo aí figurará em meio às outras palavras com seu sistema próprio de concordância, de flexões e de regência.

E, no outro extremo, o poder de manifestação da linguagem reaparecerá numa questão autônoma, mais arcaica que a gramática.

E, durante todo o século XIX, a linguagem será interrogada na sua natureza enigmática de verbo: lá onde ele está mais próximo do ser, mais capaz de nomeá-lo, de transmitir ou de fazer cintilar seu sentido fundamental, de tomá-lo absolutamente manifesto.

De Regel a Mallarmé, esse espanto diante das relações entre o ser e a linguagem contrabalançará a reintrodução do verbo na ordem homogênea das funções gramaticais.