I. O retorno da linguagem

Com a literatura, com o retorno da exegese e a preocupação da formalização, com a constituição de uma filologia, em suma, com o reaparecimento da linguagem num pulular múltiplo, a ordem do pensamento clássico pode doravante apagar-se. 

Nessa data entra ela, para todo olhar futuro, numa região de sombra. Nem é de obscuridade que se deveria ainda falar, mas de uma luz um pouco confusa, falsamente evidente e que oculta mais do que manifesta: parece, com efeito, que conhecemos tudo de saber clássico, se compreendemos 

  • que é racionalista, 
  • que atribui, desde Galileu e Descartes, um privilégio absoluto à mecânica, 
  • que supõe uma organização geral da natureza, 
  • que admite uma possibilidade de análise bastante radical para descobrir o elemento ou a origem, 
  • mas que já pressente, através e apesar de todos esses conceitos de entendimento, 
    • o movimento da vida,
    • a espessura da história 
    • e a desordem, difícil de dominar, da natureza. 

Mas reconhecer o pensamento clássico somente por esses sinais é desconhecer-lhe a disposição fundamental; é negligenciar inteiramente a relação entre tais manifestações e o que as tornava possíveis. 

E como, afinal de contas (a não ser por uma técnica laboriosa e lenta), reencontrar

  • a complexa relação das representações,
  • das identidades,
  • das ordens,
  • das palavras,
  • dos seres naturais, 
  • dos desejos
  • e dos interesses, 

a partir do momento em que toda essa grande rede se desfez, 

  • em que as necessidades organizaram por si mesmas sua produção
  • em que os seres vivos se voltaram para as funções essenciais da vida, 
  • em que as palavras se carregaram com o peso de sua história material 

em suma, a partir do momento em que as identidades da representação cessaram de manifestar, sem reticências nem reservas, a ordem dos seres? 

Todo o sistema dos crivos que analisava a seqüência das representações (tênue série temporal desenrolando-se no espírito dos homens) para fazê-la oscilar, para detê-la, desenvolvê-la e reparti-la num quadro permanente, todas essas querelas constituídas pelas palavras e pelo discurso, pelos caracteres e pela classificação, pelas equivalências e pela troca são agora abolidas a ponto de ser difícil reencontrar a maneira como esse conjunto pôde funcionar. 

A última “peça” que saltou – e cujo desaparecimento afastou de nós para sempre o pensamento clássico – é justamente o primeiro desses crivos: 

  • o discurso que assegurava o desdobramento inicial, espontâneo, ingênuo da representação em quadro. 

Desde o dia em que ele cessou de existir e de funcionar no interior da representação como sua ordenação primeira, o pensamento clássico cessou, no mesmo movimento, de nos ser diretamente acessível. 

O limiar do classicismo para a modernidade (mas pouco importam as próprias palavras – digamos, de nossa pré história para o que nos é ainda contemporâneo) foi definitivamente transposto quando as palavras cessaram de entrecruzar-se com as representações e de quadricular espontaneamente o conhecimento das coisas. 

No começo do século XIX, elas encontraram sua velha, sua enigmática espessura; não, porém, para reintegrar a curva do mundo que as alojava no Renascimento, nem para se misturar às coisas num sistema circular de signos. 

Destacada da representação, a linguagem doravante não mais existe, e até hoje ainda, senão de um modo disperso: 

  • para os filólogos, as palavras são como tantos objetos constituídos e depositados pela história;
  • para os que querem formalizar, a linguagem deve despojar-se de seu conteúdo concreto e só deixar aparecer as formas universalmente válidas do discurso;
  • se se quer interpretar, então as palavras tornam-se texto a ser fraturado para que se possa ver emergir, em plena luz, esse outro sentido que ocultam; ocorre enfim à linguagem surgir por si mesma num ato de escrever que não designa nada mais que ele próprio. 

Essa dispersão impõe à linguagem, se não um privilégio, ao menos um destino que parece singular quando comparado ao do trabalho ou da vida. 

  • Quando o quadro da história natural foi dissociado, os seres vivos foram dispersados, mas reagrupados, ao contrário, em torno do enigma da vida; 
  • quando a análise das riquezas desapareceu, todos os processos econômicos se reagruparam em torno da produção e do que a tornava possível; 
  • em contrapartida, quando a unidade da gramática geral – o discurso – se dissipou, então a linguagem apareceu segundo modos de ser múltiplos, cuja unidade, sem dúvida, não podia ser restaurada. 

Foi por essa razão, talvez, que a reflexão filosófica manteve-se durante muito tempo distanciada da linguagem. Enquanto buscava incansavelmente do lado da vida ou do trabalho alguma coisa que fosse seu objeto, ou seus modelos conceptuais, ou seu solo real e fundamental, só prestava à linguagem uma atenção marginal; para ela, tratava-se sobretudo de afastar os obstáculos que a linguagem podia opor à sua tarefa; era necessário, por exemplo, liberar as palavras dos conteúdos silenciosos que as alienava, ou, ainda, tornar a linguagem flexível e como que interiormente fluida, a fim de que, liberta das espacializações do entendimento, pudesse restituir o movimento da vida e sua duração própria. 

A linguagem só entrou diretamente e por si própria no campo do pensamento no fim do século XIX. 

Poder-se-ia mesmo dizer no século XX, se Nietzsche, o filólogo – e nisso também era ele tão erudito, a esse respeito sabia tanto e escrevia tão bons livros -, não tivesse sido o primeiro a aproximar a tarefa filosófica de uma reflexão radical sobre a linguagem. 

E eis que agora, nesse espaço filosófico-filológico que Nietzsche abriu para nós, a linguagem surge numa multiplicidade enigmática que precisaria ser dominada. Aparecem então, como tantos projetos (quimeras, quem pode sabê-lo no momento?), os temas de uma formalização universal de todo discurso, ou os de uma exegese integral do mundo que seria ao mesmo tempo sua perfeita desmistificação, ou os de uma teoria geral dos signos; ou ainda o tema (que foi, sem dúvida, historicamente primeiro) de uma transformação sem resíduo, de uma reabsorção integral de todos os discursos numa única palavra, de todos os livros numa página, de todo o mundo num livro. 

A grande tarefa a que se votou Mallarmé, e até a morte, é a que nos domina agora; no seu balbucio, envolve todos os nossos esforços de hoje para reconduzir à coação de uma unidade talvez impossível o ser fragmentado da linguagem. O empenho de Mallarmé para encerrar todo discurso possível na frágil espessura da palavra, nessa tênue e material linha negra traçada a tinta sobre o papel, responde, no fundo, à questão que Nietzsche prescrevia à filosofia. 

Para Nietzsche, não se tratava de saber o que eram em si mesmos o bem e o mal, mas quem era designado, ou antes, quem falava, quando, para designar-se a si próprio se dizia Agathós, e Deilós para designar os outros. 

Pois é aí, naquele que mantém o discurso e mais profundamente detém a palavra, que a linguagem inteira se reúne. 

A esta questão nietzschiana: 

  • quem fala? 

Mallarmé responde e não cessa de retomar sua resposta, dizendo que 

  • o que fala é, em sua solidão, em sua vibração frágil, em seu nada, a própria palavra – não o sentido da palavra, mas seu ser enigmático e precário. 

Enquanto Nietzsche mantinha até o fim a interrogação sobre aquele que fala, com o risco de fazer afinal a irrupção de si próprio no interior desse questionamento para fundá-lo em si mesmo, sujeito falante e interrogante: Ecce homo – Mallarmé não cessa de apagar-se na sua própria linguagem, a ponto de não mais querer aí figurar senão a título de executor numa pura cerimônia do Livro, em que o discurso se comporia por si mesmo. 

É bem possível que todas as questões que atravessam atualmente nossa curiosidade (Que é linguagem? Que é um signo? O que é mudo no mundo, nos nossos gestos, em todo o brasão enigmático de nossas condutas, em nossos sonhos e em nossas doenças – tudo isso fala, e que linguagem sustenta, segundo que gramática? Tudo é significante, ou o que o é, e para quem, segundo que regras? Que relação há entre a linguagem e o ser, e é realmente ao ser que sempre se endereça a linguagem, pelo menos aquela que fala verdadeiramente? Que é, pois, essa linguagem que nada diz, jamais se cala e se chama “literatura”?) – é bem possível que todas essas questões se coloquem hoje na distância jamais superada entre a questão de Nietzsche e a resposta que lhe deu Mallarmé. 

Sabemos agora donde nos vêm essas questões. 

Elas tornaram-se possíveis pelo fato de que, no começo do século XIX, estando a lei do discurso destacada da representação, o ser da linguagem achou-se como que fragmentado; mas elas se tornaram necessárias quando, com Nietzsche, com Mallarmé, o pensamento foi reconduzido, e violentamente, para a própria linguagem, para seu ser único e difícil. 

Toda a curiosidade de nosso pensamento se aloja agora na questão: 

  • que é a linguagem, como contorná-la para fazê-la aparecer em si mesma e em sua plenitude? 

Em certo sentido, essa questão toma o lugar daquelas que, no século XIX, concerniam à vida ou ao trabalho. Mas o estatuto dessa busca e de todas as questões que a diversificam não é perfeitamente claro. 

Dever-se-á pressentir aí o nascimento, menos ainda, o primeiro vislumbre no horizonte de um dia que mal se anuncia, mas em que já adivinhamos que o pensamento – esse pensamento que fala desde milênios sem saber o que é falar, nem mesmo que ele fala – vai recuperar-se por inteiro e iluminar-se de novo no fulgor do ser? 

Não é isso o que Nietzsche preparava quando, no interior de sua linguagem, matava o homem e Deus ao mesmo tempo e assim prometia, com o Retorno, o cintilar múltiplo e recomeçado dos deuses? 

Ou será preciso admitir, muito simplesmente, que tantas questões sobre a linguagem não fazem mais que prosseguir e no máximo concluir esse acontecimento, cuja existência e cujos primeiros efeitos, desde o fim do século XVIII, a arqueologia nos ensinou? 

O fracionamento da linguagem, contemporâneo de sua passagem à objetividade filológica, seria, então, apenas a conseqüência mais recentemente visível (porque a mais secreta e a mais fundamental) da ruptura da ordem clássica; esforçando-nos por dominar essa quebra e fazer aparecer a linguagem por inteiro, levaríamos a seu termo o que se passou antes de nós e sem nós, por volta do fim do século XVIII. 

Mas que seria, pois, esse acabamento? 

Pretendendo reconstituir a unidade perdida da linguagem, estar-se-ia indo até o fim de um pensamento que é o do século XIX, ou não se estaria indo em direção a formas que já são incompatíveis com ele? 

A dispersão da linguagem está ligada, com efeito, de um modo fundamental, a esse acontecimento arqueológico que se pode designar pelo desaparecimento do Discurso. 

Reencontrar num espaço único o grande jogo da linguagem tanto poderia ser 

  • dar um salto decisivo para uma forma inteiramente nova de pensamento 
  • quanto fechar sobre si mesmo um modo de saber constituído no século precedente. 

É verdade que a essas questões eu não sei responder, nem, entre essas alternativas, qual termo conviria escolher. Sequer adivinho se poderia jamais responder a elas ou se um dia me virão razões para me determinar. 

Todavia, sei agora por que é que, como todo o mundo, eu as posso formular a mim próprio – e que não as posso deixar de formular. 

Somente aqueles que não sabem ler se espantarão de que eu o tenha aprendido mais claramente 

  • em Cuvier, [naturalista]
  • em Bopp, [linguista]
  • em Ricardo, [economista]

do que em Kant ou Hegel.

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
capítulo IX – O homem e seus duplos;
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