Capítulo VII - Os limites da representação; tópico V. Ideologia e crítica

  • Na gramática geral, 
  • na história natural, 
  • na análise das riquezas, 

produziu-se, pois, nos últimos anos do século XVIII, um acontecimento que, em todas elas, foi do mesmo tipo. 

Os signos de que as representações eram afetadas, 

a análise das identidades e das diferenças que então se podia estabelecer, 

o quadro ao mesmo tempo contínuo e articulado que se instaurava na profusão das similitudes, 

a ordem definida entre as multiplicidades empíricas 

doravante não podem mais se fundar apenas na reduplicação da representação em relação a ela mesma. 

A partir desse acontecimento, 

  • o que valoriza os objetos do desejo não são mais apenas os outros objetos que o desejo pode representar, mas um elemento irredutível a essa representação: o trabalho; 
  • o que permite caracterizar um ser natural não são mais os elementos que se podem analisar sobre as representações que dele e de outros se fazem, mas certa relação interior a esse ser e a que se chama sua organização; 
  • o que permite definir uma língua não é a maneira como ela representa as representações, mas certa arquitetura interna, certa maneira de modificar as próprias palavras segundo a postura gramatical que ocupam umas em relação às outras: é seu sistema flexional. 

Em todos os casos, 

  • a relação da representação consigo mesma 
  • e as relações de ordem que ela permite determinar fora de toda medida quantitativa 

passam agora por condições exteriores à própria representação na sua atualidade. 

Para ligar a representação de um sentido com a de uma palavra, cumpre referir-se e recorrer às leis puramente gramaticais de uma linguagem que, fora de todo poder de representar as representações, está submetida ao sistema rigoroso de suas modificações fonéticas e de suas subordinações sintéticas; 

  • na idade clássica, as línguas tinham uma gramática porque tinham poder de representar; 
  • agora representam a partir dessa gramática, que é para elas como que
    • um reverso histórico, 
    • um volume interior e necessário 
  • cujos valores representativos não constituem mais que a face externa, cintilante e visível.

Para ligar num caráter definido

  • uma estrutura parcial 
  • e a visibilidade de conjunto de um ser vivo, 

é preciso agora referir-se às leis puramente biológicas que, fora de todas as marcas sinaléticas, está como que em recuo em relação a elas, organizam as relações entre funções e órgãos; 

  • os seres vivos não mais definem suas semelhanças, suas afinidades e suas famílias a partir de sua descritibilidade desdobrada; 
  • possuem caracteres que a linguagem pode percorrer e definir, porque têm uma estrutura que é como o reverso sombrio, volumoso e interior de sua visibilidade:
    • é na superfície clara e discursiva dessa massa secreta mas soberana que os caracteres emergem, espécie de depósito exterior à periferia de organismos agora enrolados sobre si mesmos. 

Enfim, quando se trata de ligar 

  • a representação de um objeto de necessidade 
  • a todos aqueles que podem figurar em face dele no ato de troca, 

é preciso recorrer 

  • à forma 
  • e à quantidade 

de um trabalho que lhe determinam o valor; 

  • o que hierarquiza as coisas nos movimentos contínuos do mercado não são os outros objetos nem as outras necessidades; 
  • é a atividade que as produziu e que, silenciosamente, nelas se depositou; 
  • são as jornadas e as horas necessárias para fabricá-Ias, para extraí-Ias ou transportá-Ias que constituem seu peso próprio, sua solidez mercantil, sua lei interior e, por conseguinte, o que se pode chamar seu preço real; 

a partir desse núcleo essencial, as trocas poderão efetuar-se e os preços de mercado, depois de oscilarem, encontrarão seu ponto fixo.

Esse acontecimento um pouco enigmático, esse acontecimento subterrâneo que, nos fins do século XVIII, se produziu nesses três domínios, submetendo-os num só lance a uma mesma ruptura, pode, pois, agora ser assinalado na unidade que funda suas formas diversas. 

Vê-se quão superficial seria buscar essa unidade do lado de um progresso na racionalidade ou da descoberta de um tema cultural novo. 

Nos últimos anos do século XVIII, 

  • não se introduziram os fenômenos complexos da biologia, ou da história das línguas ou da produção industrial em formas de análise racional a que, até então, elas teriam permanecido estranhas; 
  • tampouco se despertou de súbito o interesse – sob a “influência” de não se sabe que “romantismo” nascente – pelas figuras complexas da vida, da história e da sociedade; 
  • não se desprendeu, sob a instância de seus problemas, de um racionalismo submetido ao modelo da mecânica, às regras da análise e às leis do entendimento. 

Ou, antes, tudo isso se produziu efetivamente, mas como movimento de superfície: 

  • alteração e desvio dos interesses culturais, 
  • redistribuição das opiniões e dos juízos, 
  • aparecimento de novas formas no discurso científico, 
  • rugas traçadas pela primeira vez sobre a face esclarecida do saber. 

De maneira mais fundamental, e naquele nível em que os conhecimentos se enraízam em sua positividade, 

o acontecimento concerne 

  • não aos objetos visados, analisados e explicados no conhecimento, nem mesmo à maneira de os conhecer ou de os racionalizar, 
  • mas à relação da representação para com o que nela é dado. 

O que se produziu com Adam Smith, com os primeiros filólogos, com Jussieu, Vicq d’ Azyr ou Lamarck, foi um desnível ínfimo, mas absolutamente essencial e que abalou todo o pensamento ocidental: 

a representação perdeu o poder de criar, a partir de si mesma, no seu desdobramento próprio e pelo jogo que a reduplica sobre si, os liames que podem unir seus diversos elementos. 

Nenhuma composição, nenhuma decomposição, nenhuma análise em identidades e em diferenças pode mais justificar o liame das representações entre si; a ordem, o quadro onde ela se espacializa, as vizinhanças que ela define, as sucessões que autoriza como tantos percursos possíveis entre os pontos de sua superfície não têm mais o poder de ligar as representações entre si ou, entre si, os elementos de cada uma. 

A condição desses liames reside doravante no exterior da representação, para além de sua imediata visibilidade, numa espécie de mundo subjacente, mais profundo que ela própria e mais espesso. 

Para atingir esse ponto em que se vinculam 

  • as formas visíveis dos seres – a estrutura dos vivos, 
  • o valor das riquezas, 
  • a sintaxe das palavras – 

é preciso dirigir-se para esse cume, para essa extremidade necessária mas jamais acessível que se entranha fora do nosso olhar, no coração mesmo das coisas. 

Retiradas em direção à sua essência própria, habitando enfim na força que as anima, na organização que as mantém, na gênese que não cessou de produzi-Ias, as coisas escapam, na sua verdade fundamental, ao espaço do quadro; 

  • em vez de serem unicamente a constância que distribui segundo as mesmas formas as suas representações, 
  • elas se enrolam sobre si mesmas, 
  • dão-se um volume próprio, 
  • definem para si um espaço interno que, para nossa representação, está no exterior: 

É a partir da arquitetura
que escondem,
da coesão que mantém
seu reino soberano e secreto
sobre cada uma de suas partes,
é do fundo dessa força que as faz nascer
e nelas permanece como que imóvel
mas ainda vibrante,
que as coisas,
por fragmentos, perfis, pedaços, retalhos,
vêm oferecer-se
bem parcialmente
à representação. 
Desta sua inacessível reserva
ela só destaca, peça por peça,
tênues elementos
cuja Unidade
permanece travada
sempre aquém. 

O espaço de ordem 

  • que servia de lugar-comum à representação e às coisas, 
  • à visibilidade empírica e às regras essenciais, 
  • que unia as regularidades da natureza e as semelhanças da imaginação no quadriculado das identidades e das diferenças, 
  • que expunha a sequência empírica das representações num quadro simultâneo e permitia percorrer, passo a passo, segundo uma seqüência lógica, o conjunto dos elementos da natureza tornados contemporâneos deles próprios

 – esse espaço de ordem vai doravante ser rompido: 

  • haverá coisas, com sua organização própria, suas secretas nervuras, o espaço que as articula, o tempo que as produz; 
  • e, depois, a representação, pura sucessão temporal, em que elas se anunciam sempre parcialmente 
  • a uma subjetividade, a uma consciência, ao esforço singular de um conhecimento,
    • ao indivíduo “psicológico” que, do fundo de sua própria história, ou a partir da tradição que se lhe transmitiu, tenta saber. 

A representação está em via de não mais poder definir o modo de ser comum às coisas e ao conhecimento. O ser mesmo do que é representado vai agora cair fora da própria representação. Essa proposição, entretanto, é imprudente. Antecipa em todo o caso uma disposição do saber que não está ainda definitivamente estabelecida no final do século XVlII. 

Não se deve esquecer que, se Smith, Jussieu e W. Jones se serviram das noções de trabalho, de organização e de sistema gramatical, 

  • não foi para sair do espaço tabular definido pelo pensamento clássico, 
  • não foi para contornar a visibilidade das coisas e escapar ao jogo da representação que representa a si mesma; 
  • foi somente para aí instaurar uma forma de ligação que fosse ao mesmo tempo analisável, constante e fundada.

 Tratava-se sempre de encontrar a ordem geral das identidades e das diferenças. 

O grande desvio que irá buscar, do outro lado da representação, o ser mesmo do que é representado não se realizou ainda; 

somente já está instaurado o lugar a partir do qual ele será possível. 

Esse lugar, porém, figura sempre nas disposições interiores da representação. 

Sem dúvida, a essa configuração epistemológica ambígua corresponde uma dualidade filosófica que indica seu próximo desfecho. 

A coexistência, no final do século XVIII, 

  • da Ideologia 
  • e da filosofia crítica
    • – de Destutt de Tracy e de Kant – 

partilha, sob a forma de dois pensamentos exteriores um ao outro mas simultâneos, o que as reflexões científicas mantêm numa unidade destinada a dissociar-se dentro em breve. 

Em Destutt ou Gerando, a Ideologia se apresenta ao mesmo tempo 

  • como a única forma racional e científica que a filosofia possa revestir 
  • e como o único fundamento filosófico que possa ser proposto às ciências em geral e a cada domínio singular do conhecimento. 

Ciência das idéias, a Ideologia deve ser um conhecimento do mesmo tipo que aqueles que se dão por objeto os seres da natureza, ou as palavras da linguagem, ou as leis da sociedade. 

Mas, na medida mesma em que tem por objeto as idéias, a maneira de exprimi-Ias em palavras e de ligá-Ias em raciocínios, ela vale como a Gramática e a Lógica de toda ciência possível. 

A Ideologia não interroga o fundamento, os limites ou a raiz da representação; percorre o domínio das representações em geral; fixa as sucessões necessárias que aí aparecem; define os liames que aí se travam; manifesta as leis de composição e de decomposição que aí podem reinar. 

Aloja todo saber no espaço das representações e, percorrendo esse espaço, formula o saber das leis que o organiza. 

É, em certo sentido, o saber de todos os saberes. 

Mas essa reduplicação fundadora não a faz sair do campo da representação; tem por finalidade calcar todo saber sobre uma representação de cuja imediatez jamais se escapa: 

“Alguma vez vos apercebestes um pouco do que seja precisamente pensar, do que experimentais quando pensais em qualquer coisa que for?.. Vós vos dizeis: eu penso isto, quando tendes uma opinião, quando formais um juízo. Efetivamente, fazer um juízo verdadeiro ou falso é um ato do pensamento; esse ato consiste em sentir que existe uma ligação, uma relação… Pensar, como vedes, é sempre sentir e não é mais que sentir.”(27) 

É preciso notar entretanto que, 

  • definindo o pensamento de uma relação pela sensação dessa relação ou, mais sucintamente, o pensamento em geral pela sensação, Destutt cobre realmente, sem dele sair, o domínio inteiro da representação; 
  • atinge, porém, a fronteira em que a sensação, como forma primeira, absolutamente simples da representação, como conteúdo mínimo do que pode ser dado ao pensamento, cai na ordem das condições fisiológicas capazes de a explicarem.
    • Aquilo que, lido num sentido, aparece como a mais tênue generalidade do pensamento,
      • aparece, decifrado em outra direção, como o resultado complexo de uma singularidade zoológica: 

“Tem-se apenas um conhecimento incompleto de um animal se não se conhecerem as suas faculdades intelectuais. A ideologia é uma parte da zoologia, e é sobretudo no homem que essa parte é importante e merece ser aprofundada.”(28) 

A análise da representação, no momento em que atinge sua maior extensão, toca, em sua orla mais exterior, um domínio que seria mais ou menos – ou antes, que será, pois não existe ainda – o de uma ciência natural do homem. 

Por muito diferentes que sejam pela sua forma, seu estilo e seu intento, a questão kantiana e a dos Ideólogos têm o mesmo ponto de aplicação: 

  • a relação das representações entre si. 

Mas essa relação – o que a funda e a justifica -, 

  • Kant não a requer ao nível da representação,
    • mesmo atenuada em seu conteúdo até não ser mais, nos confins da passividade e da consciência, do que pura e simples sensação; 
  • interroga-a na direção do que a toma possível em sua generalidade. 

Em vez de fundar o liame entre as representações por uma espécie de escavação interna que o esvaziasse pouco a pouco até a pura impressão,

estabelece-o sobre as condições que definem sua forma universalmente válida. 

Dirigindo assim sua questão, 

  • Kant contorna a representação e o que nela é dado, 
  • para endereçar-se àquilo mesmo a partir do qual toda representação, seja ela qual for, pode ser dada. 

Não são, pois, as próprias representações que, segundo as leis de um jogo que lhes pertenceria propriamente, poderiam desenvolver-se a partir de si e, num só movimento, decompor-se (pela análise) e se recompor (pela síntese): somente juízos de experiência ou constatações empíricas podem fundar-se sobre os conteúdos da representação. 

Qualquer outra ligação, para ser universal, deve fundar-se para além de toda experiência, no a priori que a toma possível. 

Não que se trate de um outro mundo, mas das condições sob as quais pode existir qualquer representação do mundo em geral. 

Há, portanto, uma correspondência certa entre a crítica kantiana e o que, na mesma época, se apresentava como a primeira forma mais ou menos completa de análise ideológica. 

Mas a Ideologia, estendendo sua reflexão sobre todo o campo do conhecimento 

– desde as impressões originárias até a economia política, passando pela lógica, a aritmética, as ciências da natureza e a gramática -, 

tentava retomar na força da representação aquilo mesmo que estava em via de se constituir e de se reconstituir fora dela. 

Essa retomada só podia fazer-se sob a forma quase mítica de uma gênese ao mesmo tempo singular e universal: 

  • uma consciência, isolada, vazia e abstrata 
  • devia, a partir da mais tênue representação, desenvolver pouco a pouco o grande quadro de tudo o que é representável. 

Nesse sentido, 

a Ideologia é a última das filosofias clássicas 

– um pouco como Juliette é a última das narrativas clássicas. 

As cenas e os raciocínios de Sade retomam toda a nova violência do desejo, no desdobramento de uma representação transparente e sem falhas; as análises da Ideologia retomam, na narrativa de um nascimento, todas as formas, até as mais complexas, da representação. 

Em face da Ideologia, a critica kantiana marca, em contra partida, o limiar de nossa modernidade; interroga a representação, 

  • não segundo o movimento indefinido que vai do elemento simples a todas as suas combinações possíveis, 
  • mas a partir de seus limites de direito. 

Sanciona assim, pela primeira vez, este acontecimento da cultura européia que é contemporâneo do fim do século XVIII: 

a retirada do saber e do pensamento para fora do espaço da representação. 

Este é então posto em questão 

  • no seu fundamento, 
  • na sua origem 
  • e nos seus limites: 

por isso mesmo, o campo ilimitado da representação, que o pensamento clássico instaurara, que a Ideologia quisera percorrer num passo a passo discursivo e científico, aparece como uma metafísica. Mas como uma metafísica que jamais se teria delimitado a si mesma, que se teria assentado num dogmatismo desavisado, e jamais fizera vir à plena luz a questão de seu direito. 

Nesse sentido, a Critica ressalta a dimensão metafísica que a filosofia do século XVIII quisera reduzir unicamente pela análise da representação. 

Mas abre, ao mesmo tempo, a possibilidade de uma outra metafisica que teria por propósito interrogar, fora da representação, tudo o que constitui sua fonte e origem; ela permite essas filosofias da Vida, da Vontade, da Palavra, que o século XIX vai desenvolver na esteira da critica.