Capítulo VII - Os limites da representação; tópico III. A organização dos seres

No domínio da história natural, as modificações que se podem constatar entre os anos 1775 e 1795 são do mesmo tipo.

Não se repõe em questão o que está no princípio das classificações: 

  • estas têm sempre por finalidade determinar o “caráter”
    • que agrupa os indivíduos e as espécies em unidades gerais, 
    • que distingue essas unidades umas das outras 
    • e que lhes permite enfim se encaixarem de maneira a formar um quadro em que todos os indivíduos e todos os grupos, conhecidos ou desconhecidos, poderão encontrar seu lugar. 

Esses caracteres são extraídos da representação total dos indivíduos; são sua análise e permitem, representando essas representações, constituir uma ordem; os princípios gerais da taxinomia – aqueles mesmos que orientaram os sistemas de Tournefort e de Lineu, o método de Adanson – continuam a valer do mesmo modo para A.-L. de Jussieu, para Vicq d’Azyr, para Lamarck, para Candolle. 

E, contudo, a técnica que permite estabelecer o caráter, a relação entre estrutura visível e critérios de identidade são modificadas assim como foram modificadas por Adam Smith as relações da necessidade ou do preço. 

Ao longo de todo o século XVIII, os classificadores estabeleceram o caráter pela comparação de estruturas visíveis, isto é, relacionando elementos que eram homogêneos, pois que cada um podia, segundo o princípio ordenador que fosse escolhido, servir para representar todos os outros: 

  • a única diferença residia no fato de que,
    • para os partidários do sistema, os elementos representativos eram fixados desde o início, 
    • e, para os partidários do método, eles se desprendiam pouco a pouco de uma confrontação progressiva. 

Mas a passagem da estrutura descrita para o caráter classificador se fazia inteiramente ao nível das funções representativas que o visível exercia em relação a si mesmo. 

A partir de Jussieu, de Lamarck e de Vicq d’ Azyr, 

  • o caráter, ou antes, a transformação da estrutura em caráter
    • vai basear-se num princípio estranho ao domínio do visível – um princípio interno, irredutível ao jogo recíproco das representações. 

Esse princípio (ao qual corresponde, na ordem da economia, o trabalho) é a organização. 

Como fundamento das taxinomias, a organização aparece de quatro modos diferentes. 

1. Primeiro, sob a forma de uma hierarquia dos caracteres. 

Com efeito, se não se expõem as espécies umas ao lado das outras e na sua maior diversidade, mas se se aceitam, para delimitar imediatamente o campo de investigação, os vastos agrupamentos que a evidência impõe 

  • – como as gramíneas, as compostas, as crucíferas, as leguminosas, para as plantas; 
  • ou, para os animais, os vermes, os peixes, as aves, os quadrúpedes – 

vê-se que certos caracteres são absolutamente constantes e não estão ausentes em nenhum dos gêneros, nenhuma das espécies que se podem aí reconhecer: 

por exemplo, a inserção dos estames, sua situação em relação ao pistilo, a inserção da corola quando ela traz estames, o número de lóbulos que acompanham o embrião na semente. 

Outros caracteres são muito freqüentes numa família, mas não atingem o mesmo grau de constância; 

é que são formados por órgãos menos essenciais (número de pétalas, presença ou ausência da corola, situação respectiva do cálice ou do pistilo): são os caracteres “secundários sub-uniformes”. 

Enfim, os caracteres “terciários semi-uniformes” são ora constantes ora variáveis (estrutura monófila ou polífila do cálice, número de compartimentos no fruto, situação das flores e das folhas, natureza do caule): 

com esses caracteres semi-uniformes não é possível definir famílias ou ordens – não que eles não sejam capazes, se os aplicássemos a todas as espécies, de formar entidades gerais, mas porque não concernem ao que há de essencial num grupo de seres vivos. 

Cada grande família natural tem requisitos que a definem, e os caracteres que permitem reconhecê-Ia são os mais próximos dessas condições fundamentais; assim, sendo a reprodução a função maior da planta, o embrião será sua parte mais importante, e poder-se-ão repartir os vegetais em três classes: acotilédones, monocotilédones e dicotilédones. 

Com base nesses caracteres essenciais e “primários”, os outros poderão aparecer e introduzir distinções mais sutis.

Vê-se que o caráter já não é diretamente extraído da estrutura visível e sem outro critério senão sua presença ou ausência; funda-se na existência de funções essenciais ao ser vivo e nas relações de importância que já não procedem apenas da descrição. 

2. Os caracteres estão, pois, ligados a funções. 

Volta-se, num sentido, à velha teoria das assinalações ou das marcas pelo que se supunha que os seres traziam, no ponto mais visível de sua superfície, o signo do que neles era o mais essencial. 

Aqui, porém, as relações de importância são relações de subordinação funcional. Se o número de cotilédones é decisivo para classificar os vegetais, é porque desempenham um papel determinado na função de reprodução, e porque estão ligados, por isso mesmo, a toda a organização interna da planta; indicam uma função que comanda toda a disposição do indivíduos(8). 

Assim, para os animais, Vicq d’Azyr mostrou que as funções alimentares são, sem dúvida, as mais importantes; é por essa razão que “relações constantes existem entre a estrutura dos dentes dos carnívoros e a de seus músculos, de seus dedos, de suas unhas, de sua língua, de seu estômago, de seus intestinos”(9). 

O caráter não é portanto estabelecido por uma relação do visível consigo próprio; em si mesmo, não é mais do que a saliência visível de uma organização complexa e hierarquizada, em que a função desempenha um papel essencial de comando e de determinação. 

Não é por ser frequente nas estruturas observadas que um caráter é importante; 

é por ser funcionalmente importante que o encontramos com frequência. 

Como observará Cuvier, resumindo a obra dos últimos grandes partidários do método do século, à medida que nos elevamos em direção às classes mais gerais, 

“mais também as propriedades que permanecem comuns são constantes; e, como as relações mais constantes são aquelas que pertencem às partes mais importantes, os caracteres das divisões superiores se acharão extraídos das partes mais importantes… Dessa forma, o método será natural, uma vez que leva em conta a importância dos órgãos”(10). 

3. Nessas condições, compreende-se como pôde a noção de vida tomar-se indispensável à ordenação dos seres naturais.

 Tornou-se indispensável por duas razões: 

  • primeiro, era preciso poder apreender na profundidade do corpo as relações que ligam os órgãos superficiais àqueles cuja existência e forma oculta asseguram as funções essenciais; 

assim, Storr propõe classificar os mamíferos segundo a disposição de seus cascos; é que esta está ligada aos modos de deslocamento e às possibilidades motoras do animal; ora, esses modos, por sua vez, estão em correlação com a forma de alimentação e os diferentes órgãos do sistema digestivo(11). 

  • Ademais, pode ocorrer que os caracteres mais importantes sejam os mais escondidos; 

já na ordem vegetal, pôde-se constatar que não são as flores e os frutos – partes mais visíveis da planta – os elementos significativos, mas o aparelho embrionário e órgãos como os cotilédones. 

Esse fenômeno é mais frequente ainda nos animais. 

Storr pensava ser preciso definir as grandes classes pelas formas da circulação; e Lamarck, que contudo não praticava pessoalmente a dissecação, recusa para os animais inferiores um princípio de classificação que só se fundasse em sua forma visível: 

“A consideração das articulações do corpo e dos membros dos crustáceos fez com que todos os naturalistas os olhassem como verdadeiros insetos, e eu próprio, durante muito tempo, segui a opinião comum a esse respeito. Mas, como é reconhecido que a organização é a mais essencial de todas as considerações para guiar numa distribuição metódica e natural dos animais, assim como para determinar entre eles as verdadeiras relações, resulta daí que os crustáceos, respirando unicamente por brânquias à maneira dos moluscos e, tendo como eles, um coração muscular, devem ser localizados imediatamente após eles, antes dos aracnídeos e dos insetos, que não têm uma semelhante organização.”(12) 

Classificar, portanto,
não será mais
referir o visível a si mesmo,
encarregando um de seus elementos
de representar os outros;
será, num movimento
que faz revolver a análise,
reportar o visível ao invisível,
como à sua razão profunda,
depois alçar de novo
dessa secreta arquitetura
em direção aos seus sinais manifestos,
que são dados à superfície dos corpos. 

Como dizia Pinel, na sua obra de naturalista, 

“atermo-nos aos caracteres exteriores designados pelas nomenclaturas não é fechar para nós mesmos a mais fecunda fonte de instruções e nos recusar, por assim dizer, a abrir o grande livro da natureza que, contudo, nos propomos conhecer?”13. 

Doravante, o caráter reassume seu velho papel de sinal visível despontando em direção a uma profundidade escondida; 

  • mas o que ele indica não é um texto secreto, uma palavra encoberta ou uma semelhança demasiado preciosa para ser exposta; 
  • é o conjunto coerente de uma organização que retoma na trama única de sua soberania tanto o visível como o invisível. 

4. O paralelismo entre classificação e nomenclatura é por isso mesmo rompido. 

Enquanto a classificação consistia numa repartição progressivamente encaixada no espaço visível, era muito concebível que a delimitação e a denominação desses conjuntos pudessem realizar-se paralelamente. 

O problema do nome e o problema do gênero eram isomorfos. 

Mas agora que o caráter não pode mais classificar a não ser referindo-se primeiro à organização dos indivíduos, 

o “distinguir” não se faz mais segundo os mesmos critérios e as mesmas operações que o “denominar”. 

Para encontrar os conjuntos fundamentais que reagrupam os seres naturais, é necessário percorrer esse espaço em profundidade que conduz 

  • dos órgãos superficiais aos mais secretos 
  • e, destes, às grandes funções que eles asseguram.

 Em contrapartida, uma boa nomenclatura continuará a se desdobrar no espaço plano do quadro: 

  • a partir dos caracteres visíveis do indivíduo, 
  • será necessário chegar ao compartimento preciso onde se encontra o nome desse gênero e de sua espécie. 

Há uma distorção fundamental entre o espaço da organização e o da nomenclatura: 
ou, antes,
em vez de se recobrirem exatamente,
são doravante perpendiculares um ao outro; e no seu ponto de junção
encontra-se o caráter manifesto,
que indica, em profundidade, uma função
e permite, na superfície,
encontrar um nome. 

Essa distinção que, em alguns anos, tornará caducas a história natural e a preeminência da taxinomia, é devida ao gênio de Lamarck: 

no Discurso preliminar da Flore française, opôs ele como radicalmente distintas as duas tarefas da botânica: 

  • a “determinação”, que aplica as regras da análise e permite encontrar o nome pelo simples jogo de um método binário
    • (ou tal caráter está presente no indivíduo que se examina e é preciso buscar situá- lo na parte direita do quadro;
    • ou ele não está presente e é preciso buscar na parte esquerda; e isso até a última determinação); 
  • e a descoberta das relações reais de semelhança, que supõe o exame da organização inteira das espécies(14). 

O nome e os gêneros, a designação e a classificação, a linguagem e a natureza deixam de ser entrecruzados de pleno direito. 

A ordem das palavras e a ordem dos seres não se recortam mais senão numa linha artificialmente definida. 

Sua velha interdependência que fundara
a história natural na idade clássica
e que conduzira, num só movimento,
– a estrutura até o caráter,
– a representação até o nome
– e o indivíduo visível até o gênero abstrato, começa a desfazer-se.

Começa-se a falar sobre coisas que têm lugar num espaço diverso do das palavras. 

Ao fazer, e muito cedo, semelhante distinção, Lamarck 

  • encerrou a idade da história natural, 
  • entreabriu a da biologia
    • muito melhor, de um modo bem mais certo e radical do que ao retomar, cerca de 20 anos mais tarde, o tema já conhecido da série única das espécies e de sua transformação progressiva. 

O conceito de organização já existia 

  • na história natural do século XVIII – 
  • assim como, na análise das riquezas, a noção de trabalho que tampouco foi inventada no desembocar da idade clássica; 

mas servia então para definir um certo modo de composição dos indivíduos complexos a partir de materiais mais elementares; 

Lineu, por exemplo, distinguia a “justaposição”, que faz crescer o mineral e a “intuscepção” pela qual o vegetal se desenvolve nutrindo-se(15). 

Bonnet opunha o “agregado” dos “sólidos brutos” à “composição dos sólidos organizados” que “entrelaça num número quase infinito de partes, algumas fluidas, outras sólidas”(16). 

Ora, esse conceito de organização jamais servira, antes do fim do século, para fundar a ordem da natureza, para definir seu espaço, ou para limitar-lhe as figuras. 

É através das obras de Jussieu, de Vicq d’ Azyr e de Lamarck, que ele começa a funcionar pela primeira vez como método de caracterização: 

  • subordina os caracteres uns aos outros; 
  • liga-os a funções; 
  • dispõe-nos segundo uma arquitetura tanto interna quanto externa e não menos invisível que visível; 
  • reparte-os num espaço diverso daquele dos nomes, do discurso e da linguagem. 

Não basta mais só para designar uma categoria de seres entre outros; 

não indica mais apenas um corte no espaço taxinômico; 

define para certos seres a lei interior, que permite a uma de suas estruturas assumir o valor de caráter. 

A organização se insere 

  • entre as estruturas que articulam 
  • e os caracteres que designam 

– introduzindo entre eles um espaço profundo, interior, essencial. 

Essa mutação importante se exerce ainda no elemento da história natural; 

  • ela modifica os métodos e as técnicas de uma taxinomia; 
  • não recusa suas condições fundamentais de possibilidade; 
  • não toca no modo de ser de uma ordem natural. 

Entretanto, acarreta uma consequência maior: a radicalização da divisão entre orgânico e inorgânico. 

No quadro dos seres que a história natural desdobrava, 

  • o organizado 
  • e o não-organizado 

definiam não mais que duas categorias; estas se entrecruzavam sem coincidirem necessariamente com a oposição entre 

  • o ser vivo 
  • e o não-vivo. 

A partir do momento em que a organização se torna conceito fundador da caracterização natural e permite passar da estrutura visível à designação, ela própria tem que deixar de ser apenas um caráter; contorna o espaço taxinômico onde estava alojada e é ela, por sua vez, que dá lugar a uma classificação possível. 

Por isso mesmo, a oposição entre o orgânico e o inorgânico torna-se fundamental. 

É, com efeito, a partir dos anos 1775-1795, 

  • que a velha articulação dos três ou quatro reinos desaparece; 
  • a oposição dos dois reinos – orgânico e inorgânico – não a substitui exatamente; 
  • torna-a antes impossível, impondo outra divisão, em outro nível e em outro espaço. 

PalIas e Lamarck (17) formulam essa grande dicotomia, com a qual vem coincidir a oposição entre o ser vivo e o não-vivo. 

“Só há dois reinos na natureza”, escreve Vicq d’ Azyr, em 1786, “um que usufrui a vida e outro que dela está privado.”(18) 

O orgânico torna-se o ser vivo e o ser vivo é o que produz, crescendo e reproduzindo-se; o inorgânico é o não-vivo, o que não se desenvolve nem se reproduz; é, nos limites da vida, o inerte e o infecundo – a morte. E se se mistura à vida, é como aquilo que nela tende a destruí-Ia e a matá-Ia. 

“Existem em todos os seres vivos duas forças poderosas, muito distintas e sempre em oposição entre si, de tal sorte que cada uma delas destrói perpetuamente os efeitos que a outra consegue produzir.”(19) 

Vê-se como, fraturando em profundidade o grande quadro da história natural, 

  • alguma coisa como uma biologia vai tornar-se possível; 
  • e como também poderá emergir nas análises de Bichat a oposição fundamental entre a vida e a morte. 

Não se tratará do triunfo, mais ou menos precário, de um vitalismo sobre um mecanismo; 

o vitalismo e seu esforço para definir a especificidade da vida não são mais que os efeitos de superfície desses acontecimentos arqueológicos.