VII. O quadrilátero da linguagem

Capítulo IV - Falar; tópico VII. O quadrilátero da linguagem

Os 4 momentos que fixam
as funções essenciais da linguagem
atribuição, articulação, designação e derivação.
nos Séculos XVII e XVIII
Os 4 momentos que fixam
as funções essenciais da linguagem
atribuição, articulação, designação e derivação.
no Século XIX

Algumas observações para terminar.

As quatro teorias –

  • da proposição,
  • da articulação,
  • da designação
  • e da derivação

– formam como que os segmentos de um quadrilátero.

Opõem-se duas a duas e duas a duas se apoiam.

A articulação

  • é o que dá conteúdo à pura forma verbal, vazia ainda, da proposição;
  • preenche-a, mas a ela se opõe
    • como uma nomeação que diferencia as coisas
    • se opõe à atribuição que as religa.

A teoria da designação

  • manifesta o ponto de ligação de todas as formas nominais que a articulação recorta;
  • mas opõe-se a esta
  • como a designação instantânea, gestual, perpendicular
    • se opõe ao recorte das generalidades.

A teoria da derivação

  • mostra o movimento contínuo das palavras a partir de sua origem,
  • mas o desvio na superfície da representação
    • se opõe ao liame único e estável que liga uma raiz a uma representação.

Enfim, a derivação retorna à proposição, pois que

  • sem ela a designação permaneceria dobrada sobre si própria
  • e não poderia adquirir essa generalidade que autoriza um laço de atribuição;
    • contudo a derivação se faz segundo uma figura espacial,
    • enquanto a proposição se desenrola segundo uma ordem sucessiva.

É preciso notar que, entre os vértices opostos desse retângulo, existem como que relações diagonais.

Primeiro entre articulação e derivação:

se pode haver uma linguagem articulada, com palavras que se justapõem, ou se encaixam ou se ordenam umas às outras, é na medida em que,

  • a partir de seu valor de origem e do ato simples de designação que as fundou,
    • as palavras não cessaram de derivar, adquirindo uma extensão variável;
  • daí um eixo que atravessa todo o quadrilátero da linguagem; é ao longo dessa linha que se fixa o estado de uma língua:
    • suas capacidades de articulação são prescritas pelo ponto de derivação ao qual ela chegou;
    • aí se definem, ao mesmo tempo, sua postura histórica e seu poder de discriminação.

A outra diagonal vai da proposição à origem, isto é,

da afirmação envolvida em todo ato de julgar

à designação implicada em todo ato de nomear;

  • é ao longo desse eixo que se estabelece a relação das palavras com o que representam:
  •  mostra-se aí que as palavras
    • jamais dizem senão o ser da representação,
    • mas nomeiam sempre algo de representado.

A primeira diagonal

  • marca o progresso da linguagem em seu poder de especificação;

a segunda,

  • o enredamento indefinido entre a linguagem e a representação – o desdobramento que faz com que o signo verbal represente sempre uma representação.

Nesta última linha, a palavra funciona como substituto (com seu poder de representar); na primeira, como elemento (com seu poder de compor e de decompor).

No ponto de cruzamento dessas duas diagonais,

  • no centro do quadrilátero,
    • ali onde o desdobramento da representação se descobre como análise e onde o substituto tem o poder de repartir,
    • ali onde se alojam, por conseguinte, a possibilidade e o princípio de uma taxinomia geral da representação,
  • ali há o nome.

Nomear é, ao mesmo tempo,

  • dar a representação verbal de uma representação
  • e colocá-la num quadro geral.

Toda a teoria clássica da linguagem se organiza em torno desse ser privilegiado e central.

Nele se cruzam todas as funções da linguagem, pois é por ele que as representações podem vir a figurar numa proposição. Portanto, é por ele também que o discurso se articula com o conhecimento.

É claro que só o juízo pode ser verdadeiro ou falso.

Porém, se todos os nomes fossem exatos, se a análise em que repousam fosse perfeitamente refletida, se a língua fosse “bem-feita”, não haveria nenhuma dificuldade para pronunciar juízos verdadeiros, e o erro, no caso em que ocorresse, seria tão fácil de desvendar e tão evidente quanto num cálculo algébrico.

Mas a imperfeição da análise e todos os desvios da derivação impuseram nomes a análises, a abstrações ou a combinações ilegítimas. O que não teria inconveniente (como emprestar um nome aos monstros da fábula), se a palavra não se apresentasse como representação de uma representação:

  • de sorte que não se pode pensar uma palavra – por mais abstrata, geral e vazia que seja –
  • sem afirmar a possibilidade daquilo que ela representa.

É por isso que,

  • no meio do quadrilátero da linguagem, o nome aparece a um tempo
    • como o ponto para o qual convergem todas as estruturas da língua
      • (é sua figura mais íntima,
      • a mais bem protegida,
      • o puro resultado interior de todas as suas convenções, de todas as suas regras,
      • de toda a sua história)
    • e como o ponto a partir do qual toda a linguagem pode entrar numa relação com a verdade pela qual será julgada.

Aí se trava toda a experiência clássica da linguagem:

  • o caráter reversível da análise gramatical que é, num só movimento,
    • ciência e prescrição,
    • estudo das palavras e regra para construí-las, utilizá-las, reformá-las na sua função representativa;
  • o nominalismo fundamental da filosofia desde Hobes até a Ideologia, nominalismo que não é separável de uma crítica da linguagem e de toda essa desconfiança em relação às palavras gerais e abstratas que se encontra em Malebranche, em Berkeley, em Condillac e em Hume;
  • a grande utopia de uma linguagem perfeitamente transparente em que as próprias coisas seriam nomeadas sem confusão, quer por um sistema totalmente arbitrário mas exatamente refletido (língua artificial), quer por uma linguagem tão natural que traduzisse o pensamento como o rosto quando exprime uma paixão (é com essa linguagem feita de signos imediatos que Rousseau sonhou no primeiro de seus Diálogos).

Pode-se dizer que é o Nome que organiza todo o discurso clássico;

  • falar ou escrever não é dizer as coisas ou se exprimir, não é jogar com a linguagem,
  • é encaminhar-se em direção ao ato soberano de nomeação, é ir, através da linguagem, até o lugar onde as coisas e as palavras se ligam em sua essência comum, e que permite dar-lhes um nome.
  • Mas, uma vez enunciado esse nome,
    • toda a linguagem que a ele conduziu ou que se atravessou para atingi-lo,
    • nele se reabsorve e se desvanece.

De sorte que, em sua essência profunda, o discurso clássico tende sempre a esse limite; mas só subsiste se o recuar. Ele caminha no adiamento incessantemente mantido do Nome.

É por isso que, em sua possibilidade mesma, está ligado à retórica, isto é, a todo esse espaço que rodeia o nome, fá-lo oscilar em torno daquilo que ele representa, deixa aparecer os elementos ou a vizinhança ou as analogias daquilo que ele nomeia. As figuras que o discurso atravessa asseguram o retardamento do nome, que vem no último momento preenchê-las e aboli-las.

O nome é o termo do discurso.

E talvez toda a literatura clássica resida nesse espaço, nesse movimento para atingir um nome sempre temível porque mata, ao mesmo tempo que esgota, a possibilidade de falar.

É esse movimento que conduziu a experiência da linguagem desde a confissão tão discreta da Princesse de Cleves até a imediata violência de Juliette.

Aqui, a nomeação se oferece enfim na sua mais simples nudez,

  • e as figuras da retórica, que até então a mantinham em suspenso, oscilam
  • e se tornam as figuras indefinidas do desejo
    • que os  mesmos nomes sempre repetidos se exaurem em percorrer,
    • sem que jamais lhes seja dado atingir-lhes o limite.

Toda a literatura clássica se aloja no movimento que vai

  • da figura do nome ao próprio nome,
    • passando da tarefa de nomear ainda a mesma coisa por novas figuras (é o preciosismo)
    • à de nomear por palavras enfim precisas o que jamais o fora ou permanecera adormecido nas dobras de longínquas palavras:
      • tais como esses segredos da alma,
      • essas impressões nascidas no limite das coisas e do corpo,
      • para as quais a linguagem da Cinquieme promenade tornou-se espontaneamente límpida.

O romantismo acreditará ter rompido com a era precedente, porque terá aprendido a nomear as coisas por seu nome. Na verdade, todo o classicismo tendia a isso: Hugo cumpriu a promessa de Voiture.

Mas por isso mesmo o nome deixa de ser a recompensa da linguagem; toma-se sua enigmática matéria.

O único momento – intolerável e por longo tempo enterrado no segredo – em que o nome foi ao mesmo tempo

  • realização e substância da linguagem,
  • promessa e matéria bruta,
deu-se quando, com Sade, foi ele atravessado em toda a sua extensão pelo desejo, do qual era o lugar de aparição, a saciedade e o indefinido recomeço.
 

Daí o fato de que a obra de Sade desempenhe em nossa cultura o papel de um incessante murmúrio primordial.

Com essa violência do nome enfim pronunciado por si mesmo, a linguagem emerge na sua brutalidade de coisa;

  • as outras “partes da oração”, por sua vez, ganham autonomia,
  • escapam à soberania do nome,
  • deixam de formar em torno dele uma ronda acessória de ornamentos.

E, visto que não há mais beleza singular em

“reter” a linguagem em torno e à margem do nome, em fazê-la mostrar o que ela não diz,

  • haverá um discurso não-discursivo, cujo papel consistirá em manifestar a linguagem em seu ser bruto.

É a esse ser próprio da linguagem que o século XIX chamará

o Verbo
(por oposição ao “verbo” dos clássicos, cuja função é vincular, discreta mas continuamente, a linguagem ao ser da representação).

E o discurso que detém esse ser e o libera para ele próprio é a literatura.

Em torno desse privilégio clássico do nome, os segmentos teóricos (proposição, articulação, designação e derivação) definem a moldura do que foi então a experiência da linguagem.

Analisando-os passo a passo, não se tratava de fazer uma história das concepções gramaticais dos séculos XVII e XVIII, nem de estabelecer o perfil geral daquilo que os homens puderam pensar a propósito da linguagem.

Tratava-se de determinar sob que condições a linguagem podia tornar-se objeto de um saber e entre que limites se desdobrava esse domínio epistemológico.

Não calcular o denominador comum das opiniões, mas definir a partir de que era possível haver opiniões – tais ou quais – sobre a linguagem.

É por isso que esse retângulo desenha mais uma periferia que uma largura interior, e mostra de que modo a linguagem se imbrica com o que lhe é exterior e indispensável.

Viu-se que só havia linguagem em virtude da proposição:

  • sem a presença, ao menos implícita, do verbo ser e da relação de atribuição que ele autoriza, não se está lidando com linguagem mas com signos iguais aos outros.
  • A forma proposicional estabelece como condição da linguagem a afirmação de uma relação de identidade ou de diferença: só se fala na medida em que essa relação é possível.

Mas os outros três segmentos teóricos

  • envolvem uma exigência totalmente diversa:
    • para que haja derivação das palavras a partir de sua origem,
    • para que já haja pertença originária de uma raiz à sua significação,
    • para que haja, enfim, um recorte articulado das representações,
  •  é preciso haver, desde a mais imediata experiência, um rumor analógico das coisas, semelhanças que se dão de início.

Se tudo fosse absoluta diversidade, o pensamento seria votado à singularidade, e, como a estátua de Condillac antes de ter começado a se lembrar e a comparar, seria ele votado à dispersão absoluta e à absoluta monotonia.

Não haveria nem memória nem imaginação possíveis, nem, por consequência, reflexão.

E seria impossível comparar as coisas entre si, definir-lhes os traços idênticos e fundar um nome comum.

Não haveria linguagem.

Se a linguagem existe é que, por sob identidades e diferenças, há o fundo das continuidades, das semelhanças, das repetições, dos entrecruzamentos naturais.

A semelhança, que é excluída do saber desde o começo do século XVII, constitui sempre a orla exterior da linguagem: o anel que contorna o domínio daquilo que se pode analisar, pôr em ordem e conhecer. É o murmúrio que o discurso dissipa, mas sem o qual ele não poderia falar.

Pode-se apreender agora qual seja a unidade sólida e cerrada da linguagem na experiência clássica.

É ela que, pelo jogo de uma designação articulada, faz entrar a semelhança na relação proposicional.

Quer dizer, num sistema de identidades e de diferenças, tal como é fundado pelo verbo ser e manifestado pela rede dos nomes.

A tarefa fundamental do “discurso” clássico consiste em atribuir um nome às coisas e com esse nome nomear o seu ser:

Durante dois séculos, o discurso ocidental foi o lugar da ontologia.

  • Quando ele nomeava o ser de toda representação em geral, era filosofia: teoria do conhecimento e análise das ideias.
  • Quando atribuía a cada coisa representada o nome que convinha e, sobre todo o campo da representação, dispunha a rede de uma língua bem-feita, era ciência – nomenclatura e taxinomia.

VI. A derivação

Capítulo IV. Falar; tópico VI. A derivação

Os 4 momentos que fixam
as funções essenciais da linguagem
atribuição, articulação, designação e derivação.
nos Séculos XVII e XVIII
Os 4 momentos que fixam
as funções essenciais da linguagem
atribuição, articulação, designação e derivação.
no Século XIX

Como ocorre que as palavras que, em sua essência primeira são nomes e designações e que se articulam do modo como se analisa a própria representação,

possam afastar-se irresistivelmente de sua significação de origem, adquirir um sentido vizinho, mais amplo ou mais limitado?

Mudar não somente de forma, mas de extensão?

Adquirir novas sonoridades e também novos conteúdos de sorte tal que, a partir de um equipamento provavelmente idêntico de raízes, as diversas línguas formam sonoridades diferentes e, além disso, palavras cujo sentido não coincide?

As modificações de forma não têm regra, são quase indefinidas e jamais estáveis. Todas as suas causas são externas: facilidade de pronúncia, modos, hábitos, clima – o frio favorece “o silvo labial”, o calor, “as aspirações guturais”(83).

Em contrapartida, as alterações de sentido, porque limitadas a ponto de autorizarem uma ciência etimológica, se não absolutamente certa, ao menos “provável”(84) – obedecem a princípios que se podem assinalar.

Esses princípios que fomentam a história interior das línguas são todos de ordem espacial. Uns concernem à semelhança visível ou à vizinhança das coisas entre si; outros concernem ao lugar onde se depositam a linguagem e a forma segundo a qual ela se conserva.

As figuras e a escrita.

Conhecem-se dois grandes tipos de escrita:

  • a que retraça o sentido das palavras;
  • a que analisa e restitui os sons.

Entre elas há uma divisão rigorosa,

  • seja porque se admita que a segunda prevaleceu, em certos povos, sobre a primeira, em consequência de um verdadeiro “golpe de gênio”(85),
  • seja porque se admita, tão diferentes são uma da outra, que apareceram quase simultaneamente,
    • a primeira nos povos desenhadores,
    • a segunda nos povos cantores(86).

Representar graficamente o sentido das palavras é, na origem, fazer o desenho exato da coisa que ele designa: na verdade, quase não é uma escrita, quando muito uma reprodução pictórica, graças à qual só se podem transcrever as narrativas mais concretas. Segundo Warburton, os mexicanos só conheciam esse processo(87)

A escrita verdadeira começou quando se pôs a representar não mais a própria coisa, mas um dos elementos que a constituem, ou então uma das circunstâncias habituais que a marcam, ou ainda uma outra coisa a que ela se assemelha.

Daí três técnicas:

  • a escrita curiológica dos egípcios, a mais grosseira, que utiliza “a principal circunstância de um assunto para ocupar o lugar de tudo” (um arco para uma batalha, uma escada para o cerco das cidades);
  • depois, os hieróglifos “trópicos”, um pouco mais aperfeiçoados, que utilizam uma circunstância notável (por ser Deus todo-poderoso, saber tudo e poder vigiar os homens, será representado por um olho);
  • enfim, a escrita simbólica, que se serve de semelhanças mais ou menos ocultas (o sol que se levanta é figurado pela cabeça de um crocodilo, cujos olhos redondos afloram exatamente à superfície da água)(88).

Reconhecem-se aí as três grandes figuras da retórica:

  • sinédoque,
  • metonímia,
  • catacrese.

E é seguindo a nervura que elas prescrevem que essas linguagens duplicadas por uma escrita simbólica vão poder evoluir. Elas se investem, pouco a pouco, de poderes poéticos; as primeiras nomeações tornam-se o ponto de partida de longas metáforas: estas se complicam progressivamente e logo estão tão longe de seu ponto de origem que se torna difícil reencontrá-lo.

Assim nascem as superstições que deixam crer que o sol é um crocodilo ou Deus um grande olho que vigia o mundo; assim nascem igualmente os saberes esotéricos entre aqueles (os sacerdotes) que se transmitem metáforas de geração em geração; assim nascem as alegorias do discurso (tão frequentes nas mais arcaicas literaturas) e também a ilusão de que o saber consiste em conhecer as semelhanças.

Mas a história da linguagem dotada de uma escrita figurada é logo interrompida. É que com ela é pouco possível realizar progressos. Os signos não se multiplicam com a análise meticulosa das representações, mas com as mais longínquas analogias: de sorte que a imaginação dos povos é mais favorecida que sua reflexão.

Credulidade, não ciência.

Ademais, o conhecimento necessita de duas aprendizagens:

  • a das palavras primeiro (como para todas as linguagens),
  • em seguida a das siglas, que não têm relação com a pronúncia das palavras;

uma vida humana não é demasiado longa para essa dupla educação; e se, além disso, se teve o ensejo de fazer alguma descoberta, não se dispõe de signos para transmiti-la.

Inversamente, um signo transmitido, porque não mantém relação intrínseca com a palavra que ele figura, permanece sempre duvidoso: de época em época nunca se pode estar seguro de que o mesmo som habita a mesma figura.

As novidades são portanto impossíveis e as tradições comprometidas. De maneira que o único cuidado dos sábios está em guardar “um respeito supersticioso” para com as luzes recebidas dos ancestrais e para com as instituições que conservam sua herança:

“Eles sentem que toda mudança nos costumes acarreta mudança na língua e que toda mudança na língua confunde e aniquila toda a sua ciência.”(89)

Quando um povo possui somente uma escrita figurada, sua política deve excluir a história ou, pelo menos, toda história que não fosse pura e simples conservação.

É aí, nesta relação do espaço com a linguagem, que se situa, segundo Volney(90), a diferença essencial entre o Oriente e o Ocidente. Como se a disposição espacial da linguagem prescrevesse a lei do tempo; como se a língua não chegasse aos homens através da história, mas que inversamente eles só acedessem à história através do sistema de seus signos.

É nesse laço

  • da representação,
  • das palavras
  • e do espaço

(as palavras representando o espaço da representação,

e representando-se por sua vez, no tempo)

que se forma, silenciosamente, o destino dos povos.

De fato, com a escrita alfabética, a história dos homens muda inteiramente. Eles transcrevem no espaço não suas ideias mas os sons e, destes, extraem os elementos comuns para formar um pequeno número de signos únicos, cuja combinação permitirá formar todas as sílabas e todas as palavras possíveis.

Enquanto a escrita simbólica, pretendendo espacializar as próprias representações, segue a lei confusa das similitudes e faz deslizar a linguagem para fora das formas do pensamento refletido,

a escrita alfabética, renunciando a desenhar a representação, transpõe na análise dos sons as regras que valem para a própria razão.

De maneira que as letras, embora não representem ideias, combinam-se entre si como as ideias, e as ideias se ligam e se desligam como as letras do alfabeto(91).

A ruptura do paralelismo exato entre representação e grafismo permite alojar a totalidade da linguagem, mesmo escrita, no domínio geral da análise, e apoiar, um sobre outro, o progresso da escrita e o progresso do pensamento(92). Os mesmos signos gráficos poderão decompor todas as palavras novas e transmitir, sem receio de esquecimento, cada descoberta, desde que tenha sido feita; poder-se- á utilizar o mesmo alfabeto para transcrever diferentes línguas e assim transmitir a um povo as ideias de outro.

Sendo muito fácil a aprendizagem desse alfabeto por causa do pequeno número de seus elementos, cada qual poderá consagrar à reflexão e à análise das ideias o tempo que os outros povos desperdiçam para aprender as letras. E assim é que no interior da linguagem, exatamente nessa dobra das palavras onde a análise e o espaço se juntam, nasce a possibilidade primeira mas indefinida do progresso.

Na sua raiz, o progresso, tal como é definido no século XVIII, não é um movimento interior à história, é o resultado de uma relação fundamental entre o espaço e a linguagem:

“Os signos arbitrários da linguagem e da escrita dão aos homens o meio de assegurar a posse de suas ideias e de comunicá-las aos outros, assim como uma herança sempre avolumada das descobertas de cada século; e o gênero humano, considerado desde sua origem, aparece aos olhos de um filósofo como um todo Imenso que tem, ele próprio, como cada indivíduo, sua infância e seus progressos.”(93)

A linguagem confere à perpétua ruptura do tempo a continuidade do espaço, e é na medida em que analisa, articula e recorta a representação, que ela tem o poder de ligar – através do tempo o conhecimento das coisas. Com a linguagem, a monotonia confusa do espaço se fragmenta, enquanto se unifica a diversidade das sucessões.

Resta, contudo, um último problema. Pois a escrita é realmente o suporte e a guardiã sempre vigilante dessas análises progressivamente mais finas.

Não é, porém, seu princípio.

Nem o movimento primeiro.

Este é um deslizar comum à atenção, aos signos e às palavras. Numa representação, o espírito pode se vincular e vincular um signo verbal a um elemento que dela faz parte, a uma circunstância que a acompanha, a uma outra coisa, ausente, que lhe é semelhante e que, por causa dela, retoma à memória(94).

Foi realmente assim que a linguagem se desenvolveu e, pouco a pouco, prosseguiu seu desvio a partir das designações primeiras. Na origem tudo tinha um nome – nome próprio ou singular. Depois o nome vinculou-se a um único elemento dessa coisa e se aplicou a todos os outros indivíduos que o continham igualmente:

  • não é mais a tal carvalho que se deu o nome de árvore, mas a tudo o que continha ao menos tronco e galhos.
  • O nome vinculou-se também a uma circunstância marcante: a noite não designou o fim deste dia, mas a faixa de obscuridade que separa todos os poentes de todas as auroras.
  • Vinculou-se enfim a analogias: chamou-se folha a tudo o que fosse fino e leve como uma folha de árvore(95).

A análise progressiva e a articulação mais desenvolvida da linguagem, que permitem dar um só nome a várias coisas, efetuaram-se seguindo o fio destas figuras fundamentais que a retórica conhece bem: sinédoque, metonímia e catacrese (ou metáfora, se a analogia é menos imediatamente sensível).

É que elas não são o efeito de um refinamento de estilo; traem, ao contrário, a mobilidade própria a toda linguagem desde que espontânea:

“Compõem-se mais figuras num dia de compra no Mercado do que em vários dias de assembléias acadêmicas.”(96)

É bem provável que essa mobilidade fosse mesmo muito maior na origem do que hoje: em nossos dias, a análise é tão fina, o crivo tão cerrado, as relações de coordenação e de subordinação tão bem estabelecidas, que as palavras quase não têm ocasião de mover-se de seu lugar.

Mas nos primórdios da humanidade, quando as palavras eram raras, quando as representações eram ainda confusas e mal analisadas, quando as paixões as modificavam ou as fundavam simultaneamente, as palavras tinham um grande poder de deslocamento.

Pode-se mesmo dizer que as palavras foram figuradas antes de serem próprias: isto é, bastava-lhes terem seu estatuto de nomes singulares para já se expandirem sobre as representações por força de uma retórica espontânea. Como diz Rousseau, falou-se dos gigantes, sem dúvida, antes de se designarem os homens(97). Designaram-se primeiramente os barcos por suas velas, e a alma, a “Psique”, recebeu primitivamente a figura de uma borboleta(98).

De sorte que, no âmago da linguagem falada como da escrita, o que se descobre é o espaço retórico das palavras: esta liberdade que o signo tem de vir colocar-se, segundo a análise da representação, sobre um elemento interno, sobre um ponto de sua vizinhança, sobre uma figura análoga.

E se as línguas têm a diversidade que constatamos, se, a partir de designações primitivas que, sem dúvida, foram comuns por causa da universalidade da natureza humana, não cessaram de se desenvolver segundo formas diferentes, se tiveram cada qual sua história, seus modos, seus hábitos, seus esquecimentos, é porque as palavras têm seu lugar não no tempo, mas num espaço onde podem encontrar o seu local de origem, deslocar-se, voltar-se sobre si mesmas, e desenvolver lentamente toda uma curva: um espaço tropológico.

Atinge-se, assim, aquilo mesmo que servira de ponto de partida para a reflexão sobre a linguagem.

Entre todos os signos, a linguagem tinha a propriedade de ser sucessiva: não porque ela própria tivesse pertencido a uma cronologia, mas porque estendia em sonoridades sucessivas a simultaneidade da representação.

Mas essa sucessão, que analisa e faz surgir uns após outros elementos descontínuos, percorre o espaço que a representação oferece ao olhar do espírito. De sorte que a linguagem não faz mais que colocar numa ordem linear as dispersões representadas.

A proposição desdobra e faz ouvir a largura que a retórica torna sensível ao olhar. Sem esse espaço tropológico, a linguagem não seria formada de todos esses nomes comuns que permitem estabelecer uma relação de atribuição. E, sem essa análise das palavras, as figuras teriam permanecido mudas, instantâneas e, apenas distinguidas na incandescência do instante, logo cairiam numa noite em que nem sequer existe tempo.

Desde a teoria da proposição até a da derivação, toda a reflexão clássica da linguagem – tudo isso a que se chamou “gramática geral” – não é mais que o denso comentário desta simples frase:

“A linguagem analisa.”

Nisto é que foi abalada, no século XVII, toda a experiência ocidental da linguagem – ela, que até então sempre acreditara que a linguagem falava.

V. A designação

Capítulo IV. Falar; tópico V. A designação

Os 4 momentos que fixam
as funções essenciais da linguagem
atribuição, articulação, designação e derivação.
nos Séculos XVII e XVIII
Os 4 momentos que fixam
as funções essenciais da linguagem
atribuição, articulação, designação e derivação.
no Século XIX

E, contudo, a teoria da “nomeação generalizada” descobre no extremo da linguagem uma certa relação com as coisas, que é de uma natureza totalmente diferente do que a forma proposicional.

Se, no fundo de si mesma, a linguagem tem por função nomear, isto é, suscitar uma representação ou como que mostrá-Ia com o dedo, ela é indicação e não juízo.

Liga-se às coisas

  • por uma marca,
  • uma nota,
  • uma figura associada,
  • um gesto que designa:

nada que seja redutível a uma relação de predicação.

O princípio da nomeação primeira e da origem das palavras contrabalança a primazia formal do juízo. Como se, de um lado e outro da linguagem, desdobrada em todas as suas articulações, houvesse

  • o ser em seu papel verbal de atribuição
  • e a origem no seu papel de designação primeira.

Esta [a origem] permite substituir por um signo aquilo que é indicado,

aquele, [o papel verbal da atribuição] ligar um conteúdo a outro.

Encontram-se assim,

  • em sua oposição,
  • mas também em sua mútua dependência,

as duas funções de liame e de substituição que foram dadas ao signo em geral com seu poder de analisar a representação.

Reconduzir à luz a origem da linguagem é reencontrar o momento primitivo em que ela era pura designação.

E com isso se deve, ao mesmo tempo,

  • explicar seu caráter arbitrário (porquanto o que designa pode ser tão diferente daquilo que mostra quanto um gesto do objeto para o qual tende)
  • e sua relação profunda com o que ela nomeia (pois tal sílaba ou tal palavra sempre foram escolhidas para designar tal coisa).

À primeira exigência responde a análise da linguagem de ação,

à segunda, o estudo das raízes.

Elas não se opõem, porém, como no Crátilo

  • a explicação pela “natureza”
  • e a explicação pela “lei”;

são, ao contrário, absolutamente indispensáveis uma à outra, pois que

  • a primeira explica a substituição do designado pelo signo
  • e a segunda justifica o poder permanente de designação desse signo.

A linguagem de ação, é o corpo que a fala; e contudo não é dada logo de início.

O que a natureza permite é apenas que, nas diversas situações em que se encontra, o homem faça gestos; seu rosto é agitado por movimentos; ele emite gritos inarticulados – isto é, que não são “desferidos nem com a língua nem com os lábios”(67).

Tudo isso não é ainda nem linguagem nem mesmo signo, mas efeito e sequência de nossa animalidade. Esta manifesta agitação tem a seu favor, entretanto, ser universal, visto só depender da conformação de nossos órgãos.

Daí a possibilidade que o homem tem de notar a identidade dela em si mesmo e em seus companheiros.

  • Pode, portanto, associar ao grito que ouve do outro, ao trejeito que percebe em seu rosto, as mesmas representações que, tantas vezes, duplicaram seus próprios gritos e seus próprios movimentos.
  • Pode receber essa mímica como a marca e o substituto do pensamento do outro. Como um signo.

Tem início a compreensão.

Ele pode, em troca, utilizar essa mímica tornada signo para suscitar em seus parceiros a ideia que ele próprio experimenta, as sensações, as necessidades, as dores que ordinariamente são associadas a tais gestos e a tais sons: grito lançado de propósito perante o outro e em direção a um objeto, pura interjeição(68).

Com esse uso combinado do signo (expressão já), algo como uma linguagem está em via de nascer.

Vê-se, por essas análises comuns a Condillac e a Destutt, que a linguagem de ação religa bem, mediante uma gênese, a linguagem à natureza. Mais, porém, para dela separá-Ia que para aí a enraizar. Para marcar sua diferença indelével para com o grito e fundar o que constitui seu artifício.

Enquanto for simples prolongamento do corpo, a ação não tem nenhum poder para falar: não é linguagem.

Torna-se linguagem; mas ao cabo de operações definidas e complexas:

  • notação de uma analogia de relações (o grito do outro é em relação àquilo que ele experimenta – a incógnita – o que o meu é em relação ao meu apetite ou ao meu susto);
  • inversão do tempo e uso voluntário do signo antes da representação que ele designa (antes de experimentar uma sensação de fome bastante forte para me fazer gritar, emito o grito que lhe é associado);
  • enfim, propósito de fazer nascer no outro a representação correspondente ao grito ou ao gesto (mas com a particularidade de que, emitindo um grito, não faço nascer nem pretendo fazer nascer a sensação da fome, mas a representação da relação entre esse signo e meu próprio desejo de comer).

A linguagem só é possível com base nessa imbricação. Não repousa sobre um movimento natural de compreensão ou de expressão, mas sobre as relações reversíveis e analisáveis dos signos e das representações..

Não há linguagem quando a representação se exterioriza, mas sim, quando de uma forma combinada, ela destaca de si um signo e se faz por ele representar.

Portanto,

  • não é a título de sujeito falante, nem do interior de uma linguagem já feita, que o homem descobre em torno de si signos, que seriam como outras tantas palavras mudas a serem decifradas e tornadas novamente audíveis;
  • é porque a representação se provê de signos que as palavras podem nascer e com elas toda uma linguagem que é tão-somente a organização ulterior de signos sonoros.

Apesar do seu nome, a “linguagem de ação” faz surgir a irredutível rede de signos que separa a linguagem da ação.

Com isso, ela funda na natureza o seu artifício. É que os elementos de que essa linguagem de ação é composta (sons, gestos, trejeitos) são propostos sucessivamente pela natureza e contudo não têm, na sua maioria,

  • nenhuma identidade de conteúdo com o que eles designam,
  • mas, sobretudo, relações de simultaneidade ou de sucessão.

O grito não se assemelha ao medo, nem a mão estendida à sensação de fome. Uma vez combinados, esses signos ficarão sem “fantasia e sem capricho”(69), pois que foram de uma vez por todas instaurados pela natureza; mas não exprimem a natureza daquilo que designam, pois não são à sua imagem.

E, a partir daí, os homens poderão estabelecer uma linguagem convencional:

  • dispõem agora de suficientes signos marcando as coisas para fixarem novos que analisam e combinam os primeiros.

No Discours sur I ‘origine de l’inégalité(70), Rousseau salientava que nenhuma língua pode repousar sobre um acordo entre os homens, pois que este já supõe uma linguagem estabelecida, reconhecida e praticada; é preciso, portanto, imaginá-Ia recebida e não construída pelos homens.

De fato, a linguagem de ação confirma essa necessidade e torna inútil essa hipótese. O homem recebe da natureza aquilo com que fazer signos e estes signos

  • lhe servem primeiramente para se entender com os outros homens a fim de escolher aqueles que serão retidos, os valores que se lhes reconhecerá, as regras de seu uso;
  • e servem, em seguida, para formar novos signos segundo o modelo dos primeiros.

A primeira forma de. acordo consiste em escolher os signos sonoros (mais fáceis de recolher a distância e os únicos utilizáveis de noite),

a segunda, em compor, para designar representações vizinhas.

Assim se constitui a linguagem propriamente dita, por uma série de analogias que prolongam lateralmente a linguagem de ação ou, pelo menos, sua parte sonora: assemelha-se a ela e

“é essa semelhança que facilitará sua inteligência.
Chama-se-Ihe analogia…
Vedes que a analogia que nos constitui a lei não nos permite escolher os signos ao acaso ou arbitrariamente”(71).

A gênese da linguagem a partir da linguagem de ação escapa inteiramente à alternativa entre a imitação natural e a convenção arbitrária.

  • Lá onde há natureza – nos signos que nascem espontaneamente através de nosso corpo – não há nenhuma semelhança;
  • e lá onde há utilização das semelhanças, já foi estabelecido o acordo voluntário entre os homens.

A natureza justapõe as diferenças e as liga à força; a reflexão descobre as semelhanças, as analisa e as desenvolve. O primeiro tempo permite o artifício, mas com um material imposto de maneira idêntica a todos os homens; o segundo exclui o arbitrário mas abre à análise vias que não serão exatamente passíveis de sobreposição para todos os homens e para todos os povos.

A lei de natureza é a diferença das palavras e das coisas – a divisão vertical entre a linguagem e aquilo que, por sob ela, lhe cumpre designar;

a regra das convenções é a semelhança das palavras entre si, a grande rede horizontal que forma as palavras umas a partir das outras e as propaga ao infinito.

Compreende-se então por que a teoria das raízes de modo algum contradiz a análise da linguagem de ação, mas nela vem muito exatamente alojar-se.

As raizes são palavras rudimentares que se encontram, idênticas, num grande número de línguas – em todas talvez; foram impostas pela natureza como gritos involuntários e utilizados espontaneamente pela linguagem de ação. É aí que os homens foram buscá-Ias para fazê-Ias figurar nas suas línguas convencionais. E se todos os povos, em todos os climas, escolheram, entre o material da linguagem de ação, essas sonoridades elementares, é porque nelas descobriram, de uma forma porém secundária e refletida, uma semelhança com o objeto que designavam, ou a possibilidade de aplicá-Ia a um objeto análogo.

A semelhança da raiz com o que ela nomeia só adquire seu valor de signo verbal mediante a convenção que uniu os homens e regulou numa língua sua linguagem de ação.

É assim que, do interior da representação, os signos se reúnem à natureza mesma daquilo que designam e que se impõe, de modo idêntico, a todas as línguas, tesouro primitivo dos vocábulos.

As raízes podem formar-se de várias maneiras.

  • Por onomatopéia certamente, que não é expressão espontânea, mas articulação voluntária de um signo semelhante: “Fazer com a voz o mesmo ruído que faz o objeto que se quer nomear.”(72)
  • Por utilização de uma semelhança experimentada nas sensações: “A impressão da cor vermelha, que é viva, rápida, dura à vista, será muito bem traduzida pelo som r, que causa uma impressão análoga no ouvido.”(73)
  • Impondo aos órgãos da voz movimentos análogos aos que se tem o propósito de significar: “de sorte que o som que resulta da forma e do movimento natural do órgão posto nesse estado torna-se o nome do objeto”: a garganta raspa para designar a fricção de um corpo contra outro, abre-se inteiramente para indicar uma superfície côncava(74).
  • Enfim, utilizando, para designar um órgão, os sons que ele produz naturalmente: a articulação ghen deu seu nome à garganta, donde ela provém, e usam-se dentais (d e t) para designar os dentes(75).
Com essas articulações convencionais da semelhança, cada língua pode se prover do seu jogo de raízes primitivas. Jogo restrito, pois que elas são quase todas monossilábicas e existem em muito pequeno número – 200 para a língua hebraica, segundo as estimativas de Bergier(76); ainda mais restrito se se lembrar que são (por causa dessas relações de semelhança que instituem) comuns à maioria das línguas: De Brosses pensa que, para todos os dialetos da Europa e do Oriente, elas não preenchem, todas juntas, “uma página de papel de cartas”. Mas é a partir delas que cada língua, em sua particularidade, vem a se formar: “Seu desenvolvimento é prodigioso. Tal como uma semente de olmo produz uma grande árvore que, lançando novos rebentos de cada raiz, produz, com o tempo, uma verdadeira floresta”(77).

A linguagem pode desenrolar-se agora na sua genealogia. É ela que De Brosses queria expor num espaço de filiações contínuas a que ele chamava “Arqueólogo universal”(78).

No alto desse espaço escrever-se-iam as raízes – bem pouco numerosas – que as línguas da Europa e do Oriente utilizam; sob cada uma, colocar-se-iam as palavras mais complicadas que delas derivam, cuidando, porém, de colocar primeiramente as mais próximas delas e de seguir uma ordem bastante cerrada, para que haja entre as palavras sucessivas a menor distância possível.

Constituir-se-iam assim séries perfeitas e exaustivas, cadeias absolutamente contínuas, em que as rupturas, se existissem, indicariam incidentalmente o lugar de uma palavra, de um dialeto ou de uma língua hoje desaparecidos(79).

Uma vez constituída essa grande superfície sem costura, ter-se-ia um espaço em duas dimensões que se poderia percorrer em abscissas ou em ordenadas:

  • na vertical, ter-se-ia a filiação completa de cada raiz,
  • na horizontal, as palavras que são utilizadas por determinada língua;

quanto mais nos afastássemos das raízes primitivas, mais complicadas e, sem dúvida, mais recentes, seriam as línguas definidas por uma linha transversal, mas, ao mesmo tempo, mais eficácia e finura teriam as palavras para a análise das representações.

Assim o espaço histórico e o quadriculado do pensamento estariam exatamente superpostos.

Essa procura das raízes pode afigurar-se um retorno à história e à teoria das línguas-mães que o classicismo, por um instante, parecera manter em suspenso.

Na realidade, a análise das raízes não recoloca a linguagem numa história que fosse como que seu meio de nascimento e de transformação. Antes, faz da história o percurso, por etapas sucessivas, do recorte simultâneo da representação e das palavras.

A linguagem, na época clássica, não é um fragmento de história que autoriza, em tal ou qual momento, um modo definido de pensamento e de reflexão; é um espaço de análise sobre o qual o tempo e o saber dos homens desenrolam seu percurso.

E encontrar-se-ia bem facilmente a prova de que a linguagem não se tornou – ou não voltou a tornar-se – pela teoria das raízes, um ser histórico, na maneira como, no século XVIII, se procuraram as etimologias.

Não se tomava como fio condutor o estudo das transformações materiais da palavra, mas a constância das significações.

Essa procura tinha dois aspectos: definição da raiz, isoladamente das desinências e dos prefixos. Definir a raiz é fazer uma etimologia. Arte que tem suas regras codificadas (80); é preciso despojar a palavra de todos os traços que nela depositaram as combinações e as flexões; chegar a um elemento monossilábico; seguir esse elemento em todo o passado da língua através das antigas “cartas e glossários”; remontar a outras línguas mais primitivas.

E, ao longo de todo esse veio, é preciso certamente admitir que o monossílabo se transforma: todas as vogais podem substituir-se umas às outras na história de uma raiz, pois as vogais são a própria voz que é sem descontinuidade e sem ruptura; as consoantes, em contrapartida, se modificam segundo vias privilegiadas: guturais, linguais, palatais, dentais, labiais, nasais formam famílias de consoantes homófonas, no interior das quais se fazem preferencialmente, mas sem nenhuma obrigação, as mudanças de pronúncia(81). A única constante indelével que assegura a continuidade da raiz ao longo de toda a sua história é a unidade de sentido: região representativa que persiste indefinidamente.

É que “nada talvez pode limitar as induções e tudo lhes pode servir de fundamento desde a semelhança total até as semelhanças mais leves”: o sentido das palavras é “a luz mais segura que se possa consultar”

IV. A articulação

Capítulo IV. Falar; tópico IV. A articulação

Os 4 momentos que fixam
as funções essenciais da linguagem
atribuição, articulação, designação e derivação.
nos Séculos XVII e XVIII
Os 4 momentos que fixam
as funções essenciais da linguagem
atribuição, articulação, designação e derivação.
no Século XIX

O verbo ser,

  • misto de atribuição e de afirmação,
  • cruzamento do discurso com a possibilidade primeira e radical de falar,

define a primeira invariante da proposição, e a mais fundamental.

Ao lado dele, de uma parte e de outra, elementos: partes do discurso ou da “oração”.

Essas regiões são ainda indiferentes e determinadas apenas pela figura tênue, quase imperceptível e central que designa o ser;

  • funcionam, em torno desse “julgador”,
    • como a coisa a julgar – o judicande,
    • e a coisa julgada – o judicat(41).

Como pode esse puro esboço da proposição transformar-se em frases distintas?
Como pode o discurso enunciar todo o conteúdo de uma representação?

Porque ele é feito de palavras que nomeiam, parte por parte, o que é dado à representação.

A palavra designa, o que quer dizer que, em sua natureza, é nome. Nome próprio, pois que aponta para tal representação e mais nenhuma.

Assim é que, em face da uniformidade do verbo

  • – que nunca é mais que o enunciado universal da atribuição –

os nomes pululam e ao infinito.

Deveria haver tantos nomes quantas coisas a nomear. Mas então cada nome seria tão fortemente vinculado à única representação que ele designa, que não se poderia sequer formular a menor atribuição; e a linguagem recairia abaixo de si mesma:

“Se tivéssemos por substantivos somente nomes próprios, seria preciso multiplicá-los ao infinito. Essas palavras, cuja multidão sobrecarregaria a memória, não poriam ordem alguma nos objetos de nossos conhecimentos, nem, por conseguinte, em nossas ideias, e todos os nossos discursos estariam na maior confusão.”(42)

Os nomes podem funcionar na frase e permitir a atribuição somente se um dos dois (o atributo ao menos) designar algum elemento comum a várias representações.

A generalidade do nome é tão necessária às partes do discurso quanto a designação do ser à forma da proposição. Essa generalidade pode ser adquirida de duas maneiras.

  • Ou por uma articulação horizontal, agrupando os indivíduos que têm entre si certas identidades, separando aqueles que são diferentes;
    • forma ela então uma generalização sucessiva de grupos cada vez mais amplos (e cada vez menos numerosos);
    • pode também subdividi-los quase ao infinito por distinções novas e atingir assim o nome próprio do qual partiu(43);
    • toda a ordem das coordenações e das subordinações se acha recoberta pela linguagem e cada um desses pontos aí figura com seu nome;
      • do indivíduo à espécie,
      • desta em seguida ao gênero e à classe, a linguagem se articula exatamente sobre o domínio das generalidades crescentes; são os substantivos que manifestam na linguagem essa função taxinômica: diz-se
        • um animal,
          • um quadrúpede,
            • um cão,
              • um cão-d’água(44)
  • Ou então por uma articulação vertical – ligada à primeira, pois elas são indispensáveis uma à outra;
    • essa segunda articulação distingue
      • as coisas que subsistem por si mesmas
      • e aquelas – modificações, traços, acidentes, ou caracteres – que jamais se podem encontrar em estado independente:
      • em profundidade, as substâncias,
      • na superfície, as qualidades;
    • esse corte – essa metafísica, como dizia Adam Smith(45) – é manifestado no discurso pela presença de adjetivos que designam na representação tudo o que não pode subsistir por si.

A articulação primeira da linguagem (se se puser de parte o verbo ser, que é condição tanto quanto parte do discurso) faz-se, pois, segundo dois eixos ortogonais:

  • um que vai do indivíduo singular ao geral;
  • outro que vai da substância à qualidade.

No seu cruzamento reside o nome comum;

  • numa extremidade, o nome próprio,
  • na outra, o adjetivo.

Mas esses dois tipos de representação só distinguem as palavras entre si na medida exata em que a representação é analisada segundo esse mesmo modelo.

Como o dizem os autores de Port-Royal:

  • as palavras “que significam as coisas se chamam nomes substantivos, como terra, sol.
  • Aquelas que significam os modos, marcando ao mesmo tempo o sujeito ao qual convêm se chamam adjetivos, como bom, justo, redondo”(46).

Entre a articulação da linguagem e a da representação há, contudo, um jogo.

  • Quando se fala de “brancura”, é certamente uma qualidade que se designa, mas é designada por um substantivo:
  • quando se fala dos “humanos”, utiliza-se um adjetivo para designar indivíduos que subsistem por si mesmos.

Esse desnível não indica que a linguagem obedeça a outras leis além da representação: mas, ao contrário, que ela tem, consigo mesma e na sua espessura própria, relações que são idênticas às da representação.

Com efeito, não é ela uma representação desdobrada e não tem ela o poder de combinar, com os elementos da representação, uma representação distinta da primeira, embora não tenha por função e sentido senão representá-Ia? Se o discurso se apropria do adjetivo que designa uma modificação e fá-Io valer no interior da frase como a substância mesma da proposição, então o adjetivo torna-se substantivo; o nome, ao contrário, que se comporta na frase como um acidente, torna-se, por seu turno, adjetivo, mesmo designando, como que pelo passado, substâncias.

“Porque a substância é o que subsiste por si mesmo, chamou-se substantivos a todas as palavras que subsistem por si mesmas no discurso, ainda quando signifiquem acidentes.

E, ao contrário, chamou-se adjetivos àquelas que significam substância, quando, em sua maneira de significar, devem estar unidas a outros nomes no discurso.”(47)

Os elementos da proposição têm entre si relações idênticas às da representação; mas essa identidade não é assegurada ponto por ponto, de sorte que toda substância seria designada por um substantivo e todo acidente por um adjetivo.

Trata-se de uma identidade global e de natureza:

  • a proposição é uma representação;
  • articula-se segundo os mesmos modos que ela;
  • mas compete-lhe poder articular, de uma forma ou de outra, a representação que ela transforma em discurso.

Ela é, em si mesma, uma representação que articula outra, com uma possibilidade de desnível que constitui ao mesmo tempo a liberdade do discurso e a diferença das línguas.

Tal é a primeira camada de articulação: a mais superficial, em todo o caso, a mais aparente. Desde logo, tudo pode tornar-se discurso. Mas numa linguagem ainda pouco diferenciada:

  • para religar os nomes, só se dispõe ainda da monotonia do verbo ser e de sua função atributiva.

Ora, os elementos da representação se articulam segundo toda uma rede de relações complexas (sucessão, subordinação, consequência) que é necessário fazer passar para a linguagem a fim de que esta se tome realmente representativa.

Daí todas as palavras, sílabas, letras mesmo que, circulando entre os nomes e os verbos, devem designar essas ideias a que Port-Royal chamava “acessórias”(48);

  • são necessárias preposições e conjunções;
  • são necessários signos de sintaxe que indiquem as relações de identidade ou de concordância
  • e as de dependência ou de regência(49): marcas de plural e de gênero, casos de declinações;
  • são necessárias, enfim, palavras que reportem os nomes comuns aos indivíduos que eles designam – esses artigos ou esses demonstrativos a que Lemercier chamava “concretizadores” ou “desabstradores”(50).

Uma tal poeira de palavras constitui uma articulação inferior à unidade do nome (substantivo ou adjetivo) tal como é requerida pela forma nua da proposição:

  • nenhuma delas detém, no seu íntimo e em estado isolado, um conteúdo representativo que seja fixo e determinado;
  • só recobrem uma ideia – mesmo acessória – uma vez ligadas a outras palavras;
  • enquanto os nomes e os verbos são “significativos absolutos”, elas só têm significação de um modo relativo(51).

É certo que

  • se dirigem à representação;
  • só existem na medida em que essa, analisando-se, deixa ver a rede interior dessas relações; mas elas próprias só têm valor pelo conjunto gramatical de que fazem parte.

Estabelecem na linguagem uma articulação nova e de natureza mista, ao mesmo tempo

  • representativa
  • e gramatical,

sem que nenhuma dessas duas ordens possa ajustar-se exatamente à outra.

Eis que a frase se povoa de elementos sintáticos que são de um recorte mais fino que as figuras amplas da proposição.

Esse novo recorte coloca a gramática geral perante a necessidade de uma escolha:

  • ou prosseguir a análise por sob a unidade nominal, e fazer surgir, antes da significação, os elementos insignificantes de que é construída,
  • ou então reduzir, por um processo regressivo, essa unidade nominal, reconhecer-lhe medidas mais restritas e encontrar sua eficácia representativa abaixo das palavras completas, nas partículas, nas sílabas e até nas próprias letras.

Essas possibilidades são oferecidas – mais: são prescritas – desde o momento em que a teoria das línguas se dá por objeto o discurso e a análise de seus valores representativos.

  • Elas definem o ponto de heresia que divide a gramática do século XVIII.

“Suporemos”, diz Harris, “que toda significação é, como o corpo, divisível numa infinidade de outras significações, divisíveis, elas mesmas, ao infinito? Seria um absurdo; é preciso pois, necessariamente, admitir que há sons significativos dos quais nenhuma parte pode, por si mesma, ter significação.”(52)

A significação desaparece desde que são dissociados ou suspensos os valores representativos das palavras: aparecem, em sua independência, materiais que não se articulam com o pensamento e cujos liames não se podem reduzir aos do discurso.

Há uma “mecânica” própria às concordâncias, às regências, às flexões, às sílabas e aos sons e, essa mecânica, nenhum valor representativo pode explicar.

É preciso tratar a língua como essas máquinas que, pouco a pouco, se aperfeiçoam(53):

  • em sua forma mais simples, a frase é composta apenas de um sujeito, de um verbo, de um atributo;
  • e toda adição de sentido exige uma proposição nova e inteira;
    • assim as mais rudimentares máquinas supõem princípios de movimento que diferem para cada um de seus órgãos.

Mas, quando elas se aperfeiçoam, submetem a um só e mesmo princípio todos os seus órgãos que, desse princípio, não são então mais do que intermediários, meios de transformação, pontos de aplicação; do mesmo modo, aperfeiçoando-se, as línguas fazem passar o sentido de uma proposição por órgãos gramaticais que não têm, eles mesmos, valor representativo, mas cujo papel é precisá- Io, religar seus elementos, indicar suas determinações atuais.

Numa frase, e num só movimento, podem-se marcar relações de tempo, de consequência, de possessão, de localização, que entram realmente na série sujeito-verbo-atributo, mas não podem ser demarcadas por uma distinção tão vasta.

Daí a importância assumida, desde Bauzée(54), pelas teorias do complemento, da subordinação.

Daí também o papel crescente da sintaxe;

  • na época de Port-Royal, esta era identificada com a construção e a ordem das palavras, portanto, com o desenrolar interior da proposição (55) ;
  • com Sicard, ela tornou-se independente:
    • é ela “que comanda para cada palavra sua forma própria”(56).

E assim se esboça a autonomia do gramatical, tal como será definida, bem no fim do século, por Sylvestre de Saci, quando, pela primeira vez, junto com Sicard, distingue

  • a análise lógica da proposição
  • e a gramatical, da frase(57).

Compreende-se por que análises desse gênero permaneceram suspensas enquanto o discurso foi o objeto da gramática;

  • desde que se atingisse uma camada de articulação onde os valores representativos se pulverizassem,
  • passava-se para o outro lado da gramática, lá onde ela não tinha mais controle,
    num domínio que era
    •  o do uso
    • e da história –
  • a sintaxe, no século XVIII, era considerada como o lugar do arbitrário, onde se desenvolviam, em sua fantasia, os hábitos de cada povo(58).

Em todo o caso, elas não podiam ser, no século XVIII, nada mais que possibilidades abstratas, não prefigurações do que viria a ser a filologia, mas ramo não-privilegiado de uma escolha.

De outro lado, a partir do mesmo ponto de heresia, vê-se desenvolver-se uma reflexão que, para nós e para a ciência da linguagem que construímos desde o século XIX, é desprovida de valor, mas que permitia então manter toda a análise dos signos verbais no interior do discurso. E que, por esse recobrimento exato, fazia parte das figuras positivas do saber.

Buscava-se a obscura função nominal que se julgava investida e oculta nessas palavras, nessas sílabas, nessas flexões, nessas letras que a análise demasiado frouxa da proposição deixava passar através de seu crivo. É que afinal, como observavam os autores de Port- Royal, todas as partículas de ligação têm realmente um certo conteúdo, pois que representam a maneira pela qual os objetos são ligados e aquela pela qual eles se encadeiam em nossas representações(59)

Não se pode supor que foram nomes como todos os outros?

Porém, em vez de substituírem os objetos, eles teriam tomado o lugar dos gestos com que os homens os indicavam ou simulavam seus liames e sua sucessão(60).

São essas palavras que, ou perderam pouco a pouco seu sentido próprio (este, com efeito, não era sempre visível, já que ligado aos gestos, ao corpo e à situação do locutor), ou então se incorporavam às outras palavras em que encontravam um suporte estável e a que forneciam, em troca, todo um sistema de modificações(61).

De sorte que todas as palavras, quaisquer que sejam, são nomes adormecidos:

  • os verbos juntaram nomes adjetivos ao verbo ser;
  • as conjunções e as preposições são os nomes de gestos doravante imóveis;
  • as declinações e as conjugações nada mais são que nomes absorvidos.

As palavras, agora, podem se abrir e liberar o vôo de todos os nomes que nelas se depositaram.

Como dizia Le Bel, a título de princípio fundamental da análise,

“não há reunião cujas partes não tenham existido separadamente antes de serem reunidas”(62),

o que lhe permitia reduzir todas as palavras a elementos silábicos em que reapareciam enfim os velhos nomes esquecidos – os únicos vocábulos que tiveram a possibilidade de existir ao lado do verbo ser:

  • Romulus, por exemplo(63), vem de Roma e moliri (construir);
  • e Roma vem de Ro, que designava a força (Robur) e de Ma, que indicava a grandeza (magnus).

Do mesmo modo, Thiébault descobre em “abandonner” [“abandonar”] três significações latentes:

  • a, que “apresenta a ideia da tendência ou da destinação de uma coisa em direção a outra coisa qualquer”;
  • ban, que “dá a ideia da totalidade do corpo social”,
  • e do que indica “o ato pelo qual se renuncia a alguma coisa”(64).

E se é preciso não ficar nas sílabas, ir até as próprias letras, recolher-se-ão ainda os valores de uma nomeação rudimentar. Nisso empenhou-se maravilhosamente Court de Gébelin, para sua maior glória, e a mais perecível;

  • “o toque labial, o mais fácil de acionar, o mais suave, o mais gracioso, servia para designar os primeiros seres que o homem conhece, aqueles que o cercam e a quem deve tudo” (papai, mamãe, beijo).
  • Em contrapartida, “os dentes são tão firmes quanto os lábios são móveis e flexíveis; as entoações que deles provêm são fortes, sonoras, ruidosas… É pelo toque dental que se atroa, que se retumba, que se espanta; por ele, designam-se os tambores, os timbales, as trombetas”.

Isoladas, as vogais podem, por sua vez, manifestar o segredo dos nomes milenares em que o uso os encerrou:

  • A para a posse (haver),
  • E para a existência,
  • I para o poderio,
  • O para o espanto (os olhos que se arredondam),
  • U para umidade, portanto para o humor(65)

E talvez, nos recônditos mais antigos de nossa história, consoantes e vogais, distinguidas apenas como dois grupos ainda confusos, formassem como que dois únicos nomes que teriam articulado a linguagem humana:

  • as vogais cantantes diziam as paixões;
  • as rudes consoantes, as necessidades(66).

Pode-se ainda distinguir

  • o falar áspero do Norte – floresta das guturais, da fome e do frio –
  • ou as línguas meridionais, todas de vogais, nascidas do matinal encontro de pastores, quando “saíam do puro cristal das fontes os primeiros fogos do amor”.

Em toda a sua espessura e até os mais arcaicos sons que pela primeira vez a arrancaram ao grito, a linguagem conserva sua função representativa: em cada uma de suas articulações, desde os tempos mais remotos, ela sempre nomeou. Em si mesma, é tão-somente um imenso sussurro de denominações que se sobrepõem, se comprimem, se ocultam e, entretanto, se mantêm para permitir analisar ou compor as mais complexas representações.

No interior das frases, ali mesmo onde a significação parece ter um apoio mudo em sílabas insignificantes, há sempre uma nomeação adormecida, uma forma que guarda fechado entre suas paredes sonoras o reflexo de uma representação invisível e todavia inapagável.

Para a filologia do século XIX, semelhantes análises permaneceram, no sentido estrito do termo, “letra morta”.

Não, porém, para toda uma experiência da linguagem –

  • primeiramente esotérica e mística, na época de Saint-Marc, de Reveroni, de Fabre d’Olivet, d’Oegger,
  • depois literária, quando o enigma da palavra ressurge em seu ser maciço, com Mallarmé, Roussel, Leiris ou Ponge.
A ideia de que, destruindo as palavras, não são nem ruídos nem puros elementos arbitrários que se reencontram, mas outras palavras que, pulverizadas por sua vez, liberam outras – essa ideia é ao mesmo tempo o negativo de toda a ciência moderna das línguas e o mito no qual transcrevemos os mais obscuros poderes da linguagem, e os mais reais.
 
Sem dúvida, porque arbitrária e porque se pode definir sob que condição é significante, é que a linguagem pode tornar-se objeto de ciência.
Mas é porque ela jamais cessou de falar aquém de si mesma, porque valores inesgotáveis a penetram tão longe quanto se pode atingir, que dela podemos falar nesse murmúrio ao infinito em que viceja a literatura.

Na época clássica, porém, a relação não era a mesma; as duas figuras se recobriam exatamente:
 
  • para que a linguagem fosse inteiramente compreendida na forma geral da proposição,
  • era necessário que cada palavra, na menor de suas parcelas, fosse uma nomeação meticulosa.

III. A teoria do verbo

Capítulo IV. Falar; tópico III. A teoria do verbo

A proposição é para a linguagem
o que a representação é para o pensamento: 
sua forma, ao mesmo tempo mais geral e mais elementar,
porquanto, desde que a decomponhamos,
não reencontraremos mais o discurso,
mas seus elementos
como tantos materiais dispersos.

Abaixo da proposição, por certo, encontram-se palavras, mas não é nelas que a linguagem se completa.

É verdade que originariamente o homem só emitia simples gritos, mas estes somente começaram a ser linguagem no dia em que encerraram – ainda que no interior de seus monossílabos – uma relação que era da ordem da proposição.

O urro do primitivo que se debate só se torna palavra verdadeira se não for mais a expressão lateral de seu sofrimento e se valer por um juízo ou uma declaração do tipo:

“eu sufoco”(28).

O que erige a palavra como palavra e a ergue acima dos gritos e dos ruídos é a proposição nela oculta. Se o selvagem de Aveyron não chegou a falar é porque as palavras permaneceram para ele como as marcas sonoras das coisas e das impressões que elas causavam em seu espírito;

não haviam recebido valor de proposição.

Ele poderia, decerto, pronunciar a palavra “leite” diante da tigela que se lhe oferecia:

  • isso não passava da “expressão confusa
    • desse líquido alimentar,
    • do vaso que o continha
    • e do desejo de que era o objeto”(29);
  • jamais a palavra se tornou signo representativo da coisa, pois jamais ele quis dizer
    • que o leite estava quente,
    • ou pronto,
    • ou esperado.

É a proposição, com efeito,

  • que destaca
    • o signo sonoro
    • de seus valores imediatos de expressão
  • e o instaura soberanamente
    • na sua possibilidade linguística.

Para o pensamento clássico, a linguagem começa onde houver

  • não expressão,
  • mas discurso.

Quando se diz

  • “não”,

não se traduz a recusa por um grito;
resume-se numa palavra “uma proposição inteira:

  • … eu não sinto isso, ou
  • eu não creio nisso”(30).

“Vamos direto à proposição, objeto essencial da gramática.”(31)

Nela todas as funções da linguagem são reconduzidas aos três únicos elementos que são indispensáveis para formar uma proposição:

  • o sujeito,
  • o atributo
  • e seu liame.

O sujeito e o atributo são ainda da mesma natureza, pois que a proposição afirma que um é idêntico ou pertence ao outro: eles podem, pois, sob certas condições, trocar suas funções.

A única diferença, mas decisiva, é a que manifesta a irredutibilidade do verbo:

“em toda proposição”, diz Hobbes(32) “há três coisas a considerar:

  • saber os dois nomes,
    • sujeito
    • e predicado
  • e o liame ou a cópula.

Os dois nomes despertam no espírito a ideia de uma única e mesma coisa, mas a cópula fez nascer a ideia da causa pela qual estes nomes foram impostos a esta coisa”.

O verbo é a condição indispensável a todo discurso: e onde ele não existir, ao menos de modo virtual, não é possível dizer que há linguagem.

As proposições nominais guardam todas a presença invisível de um verbo, e Adam Smith(33) pensa que, sob sua forma primitiva, a linguagem era composta só de verbos impessoais (do tipo: “chove” ou “troveja”), e que a partir desse núcleo verbal todas as outras partes do discurso se foram destacando como outras tantas precisões derivadas e secundárias.

O limiar da linguagem está onde surge o verbo.
É preciso, portanto,
tratar esse verbo como um ser misto,
ao mesmo tempo palavra entre as palavras,
preso às mesmas regras, obedecendo como elas
às leis de regência e de concordância;
e depois,
em recuo em relação a elas todas,
numa região que não é aquela do falado
mas aquela donde se fala.
Ele está na orla do discurso,
na juntura entre
aquilo que é dito
e aquilo que se diz,
exatamente lá onde os signos
estão em via de se tornar linguagem.

É nessa função que é preciso interrogá-lo – despojando-o daquilo que não cessou de o sobrecarregar e de o obscurecer.

  • Não se deter com Aristóteles no fato de que o verbo significa os tempos (muitas outras palavras, advérbios, adjetivos, nomes, podem carregar significações temporais).
  • Não se deter tampouco, como o fazia Scaliger, no fato de que ele exprime ações ou paixões, enquanto os nomes designam coisas, e permanentes (pois há justamente este próprio nome “ação”).
  • Não atribuir importância, como o fazia Buxtorf, às diferentes pessoas do verbo, pois certos pronomes também têm a propriedade de as designar.

Trazer porém, de imediato, à plena luz, aquilo que o constitui:

  • o verbo afirma, isto é, indica

“que o discurso, onde essa palavra é empregada, é o discurso de um homem que não somente concebe os nomes, mas os julga”(34).

Há proposição – e discurso – quando se afirma entre duas coisas um liame de atribuição, quando se diz que isto é aquilo(35).

A espécie inteira do verbo se reduz ao único que significa:

  • ser.

Todos os outros se servem secretamente dessa função única, mas a recobriram com determinações que a ocultam:

  • acrescentaram-se-lhe atributos e, em vez de se dizer “eu sou cantante”, diz-se “eu canto”;
  • acrescentaram-se-lhe indicações de tempo e, no lugar de se dizer “outrora eu sou cantante”, diz-se “eu cantava”;
  • enfim, certas línguas integraram aos verbos o próprio sujeito e é assim que os latinos não dizem ego vivit, mas vivo.

Tudo isso não passa de depósito e sedimentação em torno e acima de uma função verbal absolutamente tênue mas essencial,

“há apenas o verbo ser… que se manteve nessa simplicidade”(36).

A essência inteira da linguagem se concentra nessa palavra singular. Sem ela tudo teria permanecido silencioso, e os homens, como alguns animais, poderiam certamente fazer uso de sua voz, mas nenhum desses gritos lançados na floresta jamais teria articulado a grande cadeia da linguagem.

Na época clássica, o ser bruto da linguagem – essa massa de signos depositados no mundo para aí exercitar nossa interrogação – desvaneceu-se, mas a linguagem estabeleceu com o ser novas relações, mais difíceis de apreender,

  • porquanto é por uma palavra que a linguagem o enuncia e o atinge;
  • do interior de si mesma, ela o afirma;
  • e, contudo, ela não poderia existir como linguagem se essa palavra, por si só, não sustentasse de antemão todo discurso possível.

Sem uma forma de designar o ser, não há linguagem; mas sem linguagem, não há verbo ser, o qual é apenas uma parte dela. Essa simples palavra é o ser representado na linguagem; mas é também o ser representativo da linguagem – o que, permitindo-lhe afirmar o que ela diz, a toma suscetível de verdade ou de erro. Nisso é diferente de todos os signos que podem ser conformes, fiéis, ajustados ou não ao que eles designam, mas que jamais são verdadeiros ou; falsos. 

A linguagem é toda ela discurso,
em virtude desse singular poder de uma palavra
que passa por sobre o sistema dos signos
em direção ao ser daquilo que é significado.

Mas donde vem esse poder?

E que sentido é esse que, transbordando as palavras,
funda a proposição?

Os gramáticos de Port-Royal diziam que o sentido do verbo ser era afirmar. O que indicava bem em que região da linguagem estava seu privilégio absoluto, mas não em que ele consistia. Não se deve compreender que o verbo ser contém a ideia de afirmação, pois esta mesma palavra afirmação e o vocábulo sim a contêm igualmente(37); portanto, é antes a afirmação da ideia que se acha assegurada por ele.

Mas afirmar uma ideia é enunciar sua existência? – É o que pensa Bauzée, que aí encontra uma razão para que o verbo tenha recolhido em sua forma as variações do tempo: pois a essência das coisas não muda, somente sua existência aparece e desaparece, somente ela tem um passado e um futuro(38).

Sobre isso, observa Condillac que, se a existência pode ser retirada das coisas, é porque ela não é nada mais que um atributo e porque o verbo pode afirmar a morte tanto quanto a existência.

A única coisa que o verbo afirma
é a coexistência de duas representações:
por exemplo,
a do verde e da árvore,
a do homem e da existência ou da morte;
é por isso que o tempo dos verbos
não indica aquele em que as coisas existiram no absoluto, mas um sistema relativo
de anterioridade ou de simultaneidade
das coisas entre si(39).

A coexistência, com efeito, não é um atributo da própria coisa, mas também não é nada mais que uma forma de representação: dizer que o verde e a árvore coexistem é dizer que estão ligados em todas ou na maioria das impressões que recebo.

Assim é que o verbo ser teria essencialmente por função reportar toda linguagem à representação que ele designa. O ser em direção ao qual ele transborda os signos não é nem mais nem menos que o ser do pensamento.

Comparando a linguagem a um quadro, um gramático do fim do século XVIII define

  • os nomes como formas,
  • os adjetivos como cores
  • e o verbo como a própria tela onde elas aparecem.

Tela invisível, inteiramente recoberta pelo brilho e o desenho das palavras, mas que fornece à linguagem o lugar onde fazer valer sua pintura;

  • o que o verbo designa é finalmente o caráter representativo da linguagem,
  • o fato de que ela tem seu lugar no pensamento
  • e de que a única palavra capaz de transpor o limite dos signos e fundá-Ios na verdade não atinge jamais senão a própria representação.

De sorte que a função do verbo se acha identificada com o modo de existência da linguagem, que ela percorre em toda a sua extensão: falar é, ao mesmo tempo, representar por signos e conferir a signos uma forma sintética comandada pelo verbo.

Como o diz Destutt, o verbo é a atribuição, o suporte e a forma de todos os atributos:

“O verbo ser acha-se em todas as proposições porque não se pode dizer que uma coisa é de tal maneira sem dizer com isto que ela é… Mas esta palavra é, que está em todas as proposições, nelas faz parte sempre do atributo, delas é sempre o começo e a base, o atributo geral e comum.”(40)

Vê-se de que modo, atingindo esse ponto de generalidade, a função do verbo não terá senão que dissociar-se, desde que venha a desaparecer o domínio unitário da gramática geral.

Quando for liberada a dimensão do gramatical puro, a proposição não será mais que uma unidade de sintaxe.

O verbo aí figurará em meio às outras palavras com seu sistema próprio de concordância, de flexões e de regência.

E, no outro extremo, o poder de manifestação da linguagem reaparecerá numa questão autônoma, mais arcaica que a gramática.

E, durante todo o século XIX, a linguagem será interrogada na sua natureza enigmática de verbo: lá onde ele está mais próximo do ser, mais capaz de nomeá-lo, de transmitir ou de fazer cintilar seu sentido fundamental, de tomá-lo absolutamente manifesto.

De Regel a Mallarmé, esse espanto diante das relações entre o ser e a linguagem contrabalançará a reintrodução do verbo na ordem homogênea das funções gramaticais.

II. A gramática geral

Capítulo IV. Falar; tópico II. A gramática geral

Uma vez elidida a existência da linguagem, subsiste na representação apenas seu funcionamento:

  • sua natureza
  • e suas virtudes de discurso.

Este não é mais do que a própria representação, ela mesma representada por signos verbais.

Mas qual é, pois, a particularidade desses signos, e esse estranho poder que lhes permite, melhor que todos os outros, assinalar a representação, analisá-Ia e recompô-Ia?

Dentre todos os sistemas de signo qual é o próprio da linguagem?

Ao primeiro exame, é possível definir as palavras por seu caráter arbitrário ou coletivo. Na sua raiz primeira, a linguagem é feita, como diz Hobbes, de um sistema de sinais que os indivíduos escolheram, primeiramente, para si próprios: por essas marcas, podem eles recordar as representações, ligá-Ias, dissociá-las e operar sobre elas. São esses sinais que uma convenção ou uma violência impuseram à coletividade(1); mas, de toda maneira, o sentido das palavras só pertence à representação de cada um e, conquanto seja aceite por todos, não tem outra existência senão no pensamento dos indivíduos tomados um a um:

“É das ideias daquele que fala”, diz Locke, “que as palavras são signos, e ninguém as pode imediatamente aplicar como signos a outra coisa senão às ideias que ele próprio tem no espírito”(2).

O que distingue a linguagem de todos os outros signos e lhe permite desempenhar na representação um papel decisivo não é tanto o fato de ser individual ou coletiva, natural ou arbitrária. Mas, sim, o fato de que ela analisa a representação segundo uma ordem necessariamente sucessiva:

  • os sons, com efeito, só podem ser articulados um a um;
  • a linguagem não pode representar o pensamento, de imediato, na sua totalidade;
    • precisa dispô-Io parte por parte segundo uma ordem linear.

Ora, esta é estranha à representação.

Certamente os pensamentos se sucedem no tempo, mas cada um forma uma unidade,

  • quer se admita com Condillac(3) que todos os elementos de uma representação são dados num instante e que somente a reflexão pode desenrolá-los um a um,
  • quer se admita com Destutt de Tracy que eles se sucedem com uma rapidez tão grande que não é praticamente possível observá-Ia nem reter sua ordem(4).

São essas representações, assim cerradas em si mesmas, que é preciso desenrolar nas proposições:

  • para meu olhar, “o fulgor está no interior da rosa”;
  • no meu discurso, não posso evitar que a preceda ou suceda(5).

Se o espírito tivesse poder de pronunciar as ideias “como as percebe”, não há nenhuma dúvida de que “as pronunciaria todas ao mesmo tempo”(6). Mas é isso justamente que não é possível, pois, se “o pensamento é uma operação simples”, “sua enunciação é uma operação sucessiva”(7).

Aí reside o que é próprio da linguagem, o que a distingue, a um tempo,

  • da representação (de que, no entanto e por sua vez, ela não é senão a representação)
  • e dos sígnos (aos quais pertence sem outro privilégio singular).

Ela não se opõe ao pensamento como o exterior ao interior, ou a expressão à reflexão; não se opõe aos outros signos – gestos, pantomimas, versões, pinturas, emblemas(8) – como o arbitrário ou o coletivo ao natural e ao singular.

Opõe-se, porém, a tudo isso, como o sucessivo ao contemporâneo. Ela está para o pensamento e para os signos como a álgebra para a geometria:

  • substitui a comparação simultânea das partes (ou das grandezas)
  • por uma ordem cujos graus se devem percorrer uns após outros.

É nesse sentido estrito que a linguagem é análise do pensamento:

  • não simples repartição,
  • mas instauração profunda da ordem no espaço.

É aí que se situa esse domínio epistemológico novo que a idade clássica chamou de “gramática geral”.

Seria contrasenso ver nela somente a pura e simples aplicação de uma lógica à teoria da linguagem. Contrasenso igualmente, porém, querer decifrá-Ia como a prefiguração de uma linguística.

A Gramática Geral é o estudo da ordem verbal na sua relação com a simultaneidade que ela é encarregada de representar. Por objeto próprio, ela não tem, pois, nem o pensamento nem a língua: mas o discurso entendido como sequência de signos verbais.

Essa sequência é artificial em relação à simultaneidade das representações e, nessa medida, a linguagem se opõe ao pensamento como o refletido ao imediato.

E, contudo, essa sequência não é a mesma em todas as línguas: algumas colocam a ação no meio da frase; outras, no final; algumas nomeiam primeiro o objeto principal da representação, outras, as circunstâncias acessórias; como observa a Enciclopédia, o que torna as línguas estrangeiras opacas umas às outras e tão difíceis de traduzir, mais que a diferença de palavras, é a incompatibilidade de sua sucessão(9).

Em relação à ordem evidente, necessária, universal, que a ciência e particularmente a álgebra introduzem na representação, a linguagem é espontânea e irrefletida; é como que natural. Conforme o ponto de vista com que a consideramos, ela é tanto uma representação já analisada, quanto uma reflexão em estado selvagem. Na verdade, é o liame concreto entre a representação e a reflexão.

Não é tanto o instrumento de comunicação dos homens entre si, como o caminho pelo qual, necessariamente, a representação comunica com a reflexão.

Eis por que a Gramática geral assumiu tanta importância para a filosofia no decurso do século XVIII: ela era, num só movimento, a forma espontânea da ciência, como uma lógica incontrolada do espírito(10) e a primeira decomposição refletida do pensamento: uma das mais primitivas rupturas com o imediato.

Constituía como que uma filosofia inerente ao espírito – “qual a metafísica”, diz Adam Smith, “não foi indispensável para formar o menor dos adjetivos”(11) – e aquilo que toda filosofia devia retomar para reencontrar, através de tantas escolhas diversas, a ordem necessária e evidente da representação.

Forma inicial de toda reflexão, tema primeiro de toda critica: assim é a linguagem. É essa coisa ambígua, tão vasta quanto o conhecimento, mas sempre interior à representação, que a Gramática geral toma por objeto.

Mas é preciso, desde logo, tirar um certo número de consequências.

1. A primeira é que se vê bem como se distribuem na época clássica as ciências da linguagem:

  • de um lado, a Retórica, que trata das figuras e dos tropos, isto é, da maneira como a linguagem se espacializa nos signos verbais;
  • de outro, a Gramática, que trata da articulação e da ordem, isto é, da maneira como a análise da representação se dispõe segundo uma série sucessiva.

A Retórica define a espacialidade da representação, tal como ela nasce com a linguagem;

a Gramática define para cada língua a ordem que reparte no tempo essa espacialidade.

É por isso que, como se verá mais adiante, a Gramática supõe a natureza retórica das linguagens, mesmo das mais primitivas e das mais espontâneas.

2. Por outro lado, a Gramática, como reflexão sobre a linguagem em geral, manifesta a relação que esta mantém com a universalidade.

Essa relação pode receber duas formas, conforme se tome em consideração

  • a possibilidade de uma Língua universal
  • ou de um Discurso universal.

Na época clássica o que se designa por língua universal não é o falar primitivo, intato e puro, capaz de restaurar, se fosse reencontrado para além dos castigos do esquecimento, o entendimento anterior a BabeI.

Trata-se de uma língua que

  • seria suscetível de atribuir a cada representação e a cada elemento de cada representação o signo pelo qual podem ser marcados de um modo unívoco;
  • seria capaz também de indicar de que maneira os elementos se compõem numa representação e como estão ligados uns aos outros;
  • possuindo os instrumentos que permitem indicar todas as relações eventuais entre os segmentos da representação, ela teria, por isso mesmo, o poder de percorrer todas as ordens possíveis.

Ao mesmo tempo Característica e Combinatória, a Língua universal não restabelece a ordem dos tempos antigos: ela inventa signos, uma sintaxe, uma gramática, em que toda ordem concebível deve encontrar seu lugar.

Quanto ao Discurso universal,

  • também ele não é o Texto único que conserva no enigma de seu segredo a chave desveladora de todo saber;
  • ele é antes a possibilidade de definir a marcha natural e necessária do espírito, desde as mais simples representações até as mais finas análises ou as mais complexas combinações:
    • esse discurso é o saber colocado na ordem única que lhe prescreve sua origem.

Ele percorre todo o campo dos conhecimentos, mas de uma forma de certo modo subterrânea, para fazer surgir sua possibilidade a partir da representação, para mostrar seu nascimento e pôr ao vivo o seu liame natural, linear e universal.

Esse denominador comum, esse fundamento de todos os conhecimentos, essa origem manifestada em um discurso contínuo é a Ideologia, uma linguagem que reduplica em toda a sua extensão o fio espontâneo do conhecimento:

“O homem por sua natureza tende sempre para o resultado mais próximo e mais premente. Pensa primeiramente em suas necessidades, depois em seus prazeres. Ocupa-se de agricultura, de medicina, de guerra, de política prática, depois de poesia e de artes, antes de pensar na filosofia; e quando se volta sobre si mesmo e começa a refletir, prescreve regras para seu juízo, é a lógica, para seus discursos, é a gramática, para seus desejos, é a moral. Julga-se então no cume da teoria”; mas apercebe-se de que todas essas operações têm “uma fonte comum” e que “esse centro único de todas as verdades é o conhecimento de suas faculdades intelectuais”(12).

A Característica universal e a Ideologia opõem-se

  • como a universalidade da língua em geral (ela desdobra todas as ordens possíveis na simultaneidade de um só quadro fundamental)
  • e a universalidade de um discurso exaustivo (ele reconstitui a gênese única e válida para cada um de todos os conhecimentos possíveis em seu encadeamento).

Mas seu projeto e sua comum possibilidade residem num poder que a idade clássica confere à linguagem: atribuir signos adequados a todas as representações, quaisquer que sejam, e estabelecer entre elas todos os liames possíveis.

Na medida em que a linguagem pode representar todas as representações, ela é, de pleno direito, o elemento do universal.

Deve haver uma linguagem, ao menos possível, que recolha entre suas palavras a totalidade do mundo

e inversamente, o mundo, como totalidade do representável, deve poder tornar-se, em seu conjunto, uma Enciclopédia.

E o grande sonho de Charles Bonnet atinge aqui o que é a linguagem em seu liame e em sua dependência relativamente à representação:

“Apraz-me considerar a multidão inumerável dos Mundos como outros tantos livros cuja coleção compõe a imensa Biblioteca do Universo ou a verdadeira Enciclopédia universal. Concebo que a gradação maravilhosa que há entre esses diferentes mundos facilita às inteligências superiores, às quais foi dado percorrê-los, ou melhor, lê-los, a aquisição de verdades de todo gênero que aí se encerram e confere ao seu conhecimento essa ordem e esse encadeamento que constituem sua principal beleza. Mas esses enciclopedistas celestes não possuem todos no mesmo grau a Enciclopédia do Universo; uns dela só possuem alguns ramos; outros possuem um número maior, outros a apreendem mais ainda; todos, porém, têm a eternidade para crescer e aperfeiçoar seus conhecimentos e desenvolver todas as suas faculdades.”(13)

Sobre esse fundo de uma Enciclopédia absoluta, os humanos constituem formas intermediárias de universalidade composta e limitada:

  • Enciclopédias alfabéticas que alojam a maior quantidade possível de conhecimentos na ordem arbitrária das letras;
  • pasigrafias que permitem transcrever segundo um único e mesmo sistema de figuras todas as línguas do mundo(14),
  • léxicos polivalentes que estabelecem as sinonímias entre um número mais ou menos considerável de línguas;
  • enfim, as enciclopédias racionais que pretendem “expor tanto quanto possível a ordem e o encadeamento dos conhecimentos humanos” examinando “sua genealogia e sua filiação, as causas que as fizeram nascer e os caracteres que as distinguem”(15)

Qualquer que tenha sido o caráter parcial de todos esses projetos, quaisquer que tenham sido as circunstâncias empíricas de seu empreendimento, o fundamento de sua possibilidade na epistémê clássica está em que, se o ser da linguagem era inteiramente reduzido ao seu funcionamento na representação, esta, em contrapartida, só tinha relação com o universal por intermédio da linguagem.

3. Conhecimento e linguagem estão estreitamente entrecruzados. Têm, na representação, mesma origem e mesmo princípio de funcionamento; apóiam-se um ao outro, completam-se e se criticam incessantemente.

Em sua forma mais geral, conhecer e falar consistem primeiramente em analisar a simultaneidade da representação, em distinguir-lhe os elementos, em estabelecer as relações que os combinam, as sucessões possíveis segundo as quais podemos desenvolvê-los:

  • é num mesmo movimento que o espírito fala e conhece,

“é pelos mesmos procedimentos que se aprende a falar e que se descobrem

      • ou os princípios do sistema do mundo
      • ou aqueles das operações do espírito humano,

isto é, tudo o que há de sublime nos nossos conhecimentos”(16).

Mas a linguagem só é conhecimento sob uma forma irrefletida;

  • impõe-se do exterior aos indivíduos que ela guia, quer queiram quer não, em direção a noções concretas ou abstratas, exatas ou pouco fundadas;
  • o conhecimento, em contrapartida, é como uma linguagem de que cada palavra tivesse sido examinada e cada relação verificada.

Saber é falar como se deve e como o prescreve o procedimento certo do espírito;

falar é saber como se pode e segundo o modelo que impõem aqueles com quem se partilha o nascimento.

As ciências são línguas bem feitas na mesma medida em que as línguas são ciências incultas.

Toda língua deve, pois, ser refeita: isto é,

  • explicada e julgada a partir dessa ordem analítica que nenhuma dentre elas segue exatamente;
  • e reajustada eventualmente para que a cadeia de conhecimentos possa aparecer com toda a clareza, sem sombra nem lacuna.

Assim, pertence à natureza mesma da gramática ser prescritiva, não, de modo algum,

  • porque pretendesse impor as normas de uma bela linguagem, fiel às regras do gosto,
  • mas porque ela refere a possibilidade radical de falar à colocação em ordem da representação.

Destutt de Tracy observaria um dia que os melhores tratados de Lógica, no século XVIII, foram escritos por gramáticos: é que as prescrições da gramática eram de ordem analítica, não estética. E essa dependência da língua relativamente ao saber libera todo um campo histórico que não existira nas épocas precedentes. Algo assim como uma história do conhecimento torna-se possível.

É que,

  • se a língua é uma ciência espontânea, obscura a si mesma e inábil –
  • em contrapartida é aperfeiçoada pelos conhecimentos que não se podem depositar em suas palavras sem nelas deixar seu vestígio e como que o lugar vazio de seu conteúdo.

As línguas, saber imperfeito, são a memória fiel de seu aperfeiçoamento. Induzem em erro, mas registram o que se aprendeu. Em sua ordem desordenada, fazem nascer falsas ideias; mas as ideias verdadeiras nelas depositam a marca indelével de uma ordem que o acaso somente não poderia dispor.

O que nos deixam as civilizações e os povos como monumentos de seu pensamento não são tanto os textos, mas sim os vocabulários e as sintaxes, os sons de suas línguas mais que as palavras que pronunciaram, seus discursos menos que o que os tornou possíveis: a discursividade de sua linguagem.

“A língua de um povo fornece seu vocabulário e seu vocabulário é uma bíblia bastante fiel de todos os conhecimentos desse povo; apenas a comparação do vocabulário de uma nação em diferentes tempos é suficiente para se formar uma ideia de seus progressos. Cada ciência tem seu nome, cada noção na ciência tem o seu, tudo o que é conhecido na natureza está designado, assim como tudo o que se inventa nas artes, bem como os fenômenos, as manobras e os instrumentos.”(17)

Daí a possibilidade de fazer uma história da liberdade e da escravidão a partir das línguas(18), ou ainda uma história das opiniões, dos preconceitos, das superstições, das crenças de toda ordem cujos escritos testemunham sempre pior que as próprias palavras(19).

Daí também o projeto de fazer uma enciclopédia “das ciências e das artes” que não seguisse o encadeamento dos próprios conhecimentos, mas se alojasse na forma da linguagem, no interior do espaço aberto nas palavras; é aí que os tempos futuros buscarão necessariamente o que soubemos ou pensamos, pois as palavras, em sua rude repartição, estão distribuídas nessa linha mediana pela qual

  • a ciência se emparelha à percepção,
  • e a reflexão às imagens.

Nelas,

  • o que se imagina torna-se o que se sabe
  • e, em contrapartida, o que se sabe torna-se o que se representa cotidianamente.

A velha relação com o texto, pela qual o Renascimento definia a erudição, está agora transformada:

  • tornou-se, na idade clássica, a relação com o puro elemento da língua.

Vê-se assim aclarar-se o elemento luminoso no qual comunicam, em pleno direito,

  • linguagem e conhecimento,
  • discurso bem-feito e saber,
  • língua universal e análise do pensamento,
  • história dos homens e ciências da linguagem.

Mesmo quando era destinado à publicação, o saber do Renascimento se dispunha segundo um espaço cerrado. A “Academia” era um círculo fechado, que projetava na superfície das configurações sociais a forma essencialmente secreta do saber.

É que esse saber tinha por tarefa primeira fazer falar siglas mudas: visava reconhecer-lhes as formas, interpretá-Ias e retranscrevê-Ias em outros traços que, por sua vez, deviam ser decifrados; de tal sorte que nem mesmo a descoberta do segredo escapava a essa ardilosa disposição que a tornava a um tempo tão difícil e tão preciosa.

Na idade clássica, conhecer e saber se imbricam na mesma trama: para o saber e para a linguagem, trata-se de atribuir à representação signos pelos quais seja possível desdobrá-Ia segundo uma ordem necessária e visível.

Quando era enunciado, o saber do século XVI era um segredo, mas partilhado.

Quando é oculto, o dos séculos XVII e XVIII é um discurso por sobre o qual se colocou um véu.

É que é próprio à mais originária natureza da ciência entrar no sistema das comunicações verbais(20) e à da linguagem ser conhecimento desde sua primeira palavra. Falar, esclarecer e saber são, no sentido estrito do termo, da mesma ordem.

O interesse que a idade clássica confere à ciência,

  • a publicidade de seus debates,
  • seu caráter fortemente exotérico,
  • sua abertura ao profano,
  • a astronomia fontenellizada,
  • Newton lido por Voltaire,

tudo isso certamente não é mais que um fenômeno sociológico.

Não provocou a menor alteração na história do pensamento, não modificou por pouco que fosse o devir do saber.

Nada explica, salvo certamente ao nível doxográfico em que, com efeito, deve ser situado; sua condição de possibilidade, porém, está aí nesta dependência recíproca entre o saber e a linguagem.

O século XIX, mais tarde, a desfará e lhe ocorrerá deixar em face um da outra, um saber fechado sobre si mesmo e uma pura linguagem tomada, em seu ser e sua função, enigmática – qualquer coisa a que se chama, desde essa época, Literatura. Entre os dois desenvolver-se-ão, ao infinito, as linguagens intermediárias, derivadas ou, se se quiser, decaídas, do saber assim como das obras.

4. Porque se tomou análise e ordem, a linguagem estabelece com o tempo relações até então inéditas.

O século XVI admitia que as línguas se sucediam na história e podiam engendrar-se umas às outras. As mais antigas eram as línguas mães. De todas a mais arcaica, pois que a língua do Eterno quando se dirigia aos homens, o hebreu passava por ter dado nascimento ao siríaco e ao árabe; depois vinha o grego, do qual saíram o copta e o egípcio; o latim tinha na sua filiação o italiano, o espanhol e o francês; enfim, do “teutônico” derivavam o alemão, o inglês e o flamengo(21).

A partir do século XVII, a relação da linguagem com o tempo se inverte:

  • este não deposita mais as falas por etapas na história do mundo;
  • são as linguagens que desenrolam as representações e as palavras segundo uma sucessão cuja lei elas mesmas definem.

É por essa ordem interna e pelo lugar que reserva às palavras que cada língua define sua especificidade. E não mais pelo seu lugar numa série histórica. O tempo é para a linguagem seu modo interior de análise; não seu lugar de nascimento.

Daí o pouco interesse que a idade clássica conferiu à filiação cronológica, a ponto de negar, contra toda “evidência” – é da nossa que se trata – o parentesco do italiano ou do francês com o latim(22).

A tais séries, que existiam no século XVI e reaparecerão no século XIX, substituem-se tipologias. E são as da ordem.

  • Há o grupo de línguas que colocam primeiro o sujeito de quem se fala; depois, a ação que é empreendida ou sofrida por ele; enfim, o agente sobre o qual ele a exerce: testemunham isso o francês, o inglês, o espanhol.
  • Do lado oposto, o grupo de línguas que fazem “preceder ora a ação, ora o objeto, ora a modificação ou a circunstância”; o latim, por exemplo, ou o “esclavão”, nos quais a função da palavra não é indicada por seu lugar mas por sua flexão.
  • Enfim, o terceiro grupo é formado pelas línguas mistas (como o grego ou o teutônico), “que têm algo dos dois outros, possuindo um artigo e casos”(23).

Mas é preciso compreender bem que não é a presença ou a ausência de flexões que define para cada língua a ordem possível ou necessária de suas palavras. É a ordem como análise e alinhamento sucessivo das representações que constitui o elemento prévio e prescreve utilizar declinações ou artigos.

As línguas que seguem a ordem “da imaginação e do interesse” não determinam lugar constante para as palavras: devem marcá-Ias por flexões (são as línguas “transpositivas”).

Se, em contrapartida, seguem a ordem uniforme da reflexão, basta-lhes indicar por um artigo o número e o gênero dos substantivos; o lugar na ordenação analítica tem em si mesmo um valor funcional: são as linguagens “análogas”(24).

As línguas se aparentam e se distinguem no quadro dos tipos possíveis de sucessão. Quadro que é simultâneo, mas que sugere quais foram as línguas mais antigas: pode-se admitir, com efeito, que a ordem mais espontânea (a das imagens e das paixões) deve ter precedido a mais reflexiva (a da lógica): a datação externa é comandada pelas formas internas da análise e da ordem.

O tempo tornou-se interior à linguagem.

Quanto à própria história das línguas, não é mais que erosão ou acidente, introdução, encontro e mistura de elementos diversos; não tem lei, nem movimento, nem necessidade próprios. Como a língua grega, por exemplo, se formou? “Foram mercadores da Fenícia, aventureiros da Frigia, da Macedônia e da Ilíria, gálatas, citas, bandos de exilados ou de fugitivos que carregaram a base primitiva da língua grega de tantas espécies de partículas inumeráveis e de tantos dialetos.”(25)

Quanto ao francês, é constituído de nomes latinos e góticos, de formas de expressão e de construções gaulesas, de artigos e números árabes, de palavras tomadas de empréstimo aos ingleses e aos italianos, por ocasião de viagens, guerras ou convenções de comércio(26).

É que as línguas evoluem por efeito das migrações, das vitórias e das derrotas, das modas, das trocas; não, porém, por força de uma historicidade que por si mesmas deteriam. Não obedecem a qualquer princípio interno de desenvolvimento; são elas que desenvolvem ao longo de uma linha as representações e seus elementos.

Se há para as línguas um tempo que é positivo, não se deve buscá-lo no exterior, do lado da história, mas na ordenação das palavras, no âmago do discurso.

Pode-se circunscrever agora o campo epistemológico da Gramática geral, que surgiu na segunda metade do século XVII e desvaneceu-se nos primeiros anos do século seguinte.

Gramática geral não é gramática comparada: não toma por objeto, não utiliza como método as aproximações entre as línguas. É que sua generalidade não consiste em encontrar leis propriamente gramaticais que seriam comuns a todos os domínios linguísticos e fariam aparecer, numa unidade ideal e constringente, a estrutura de toda língua possível; se ela é geral, é na medida em que pretende fazer surgir, por sob as regras da gramática, mas ao nível do seu fundamento, a função representativa do discurso – quer seja a função vertical que designa um representado, ou a horizontal que o liga do mesmo modo que o pensamento.

Porquanto faz aparecer a linguagem como uma representação que articula outra, ela é, de pleno direito, “geral”:

é do desdobramento interior da representação que ela trata.

Visto, porém, que essa articulação pode fazer-se de muitas maneiras diferentes, haverá, paradoxalmente, diversas gramáticas gerais: a do francês, do inglês, do latim, do alemão etc.(27).

A gramática geral não visa a definir as leis de todas as línguas, mas a tratar, por etapas, cada língua particular, como um modo de articulação do pensamento sobre si mesmo. Em toda língua tomada isoladamente, a representação se provê de “caracteres”.

  • A gramática geral definirá o sistema de identidades e de diferenças que esses caracteres espontâneos supõem e utilizam.
  • Estabelecerá a taxinomia de cada língua. Isto é, aquilo que funda em cada uma delas a possibilidade de sustentar um discurso.

Daí as duas direções que ela necessariamente assume. Visto que o discurso liga suas partes como a representação seus elementos, a gramática geral deverá estudar o funcionamento representativo das palavras umas em relação às outras:

  • o que supõe, de início, uma análise do liame que vincula as palavras conjuntamente
    • (teoria da proposição e singularmente do verbo),
  • depois uma análise dos diversos tipos de palavras e da maneira como elas determinam a representação e se distinguem entre si
    • (teoria da articulação).

Todavia, já que o discurso não é simplesmente um conjunto representativo mas uma representação reduplicada que designa uma outra – aquela mesma que ela representa -, a gramática geral deve estudar a maneira pela qual as palavras designam o que elas dizem,

  • primeiramente no seu valor primitivo (teoria da origem e da raiz),
  • depois, na sua capacidade permanente de desvio, de extensão, de reorganização (teoria do espaço retórico e da derivação).

I. Crítica e comentário

Capítulo IV. Falar; tópico I. Crítica e comentário

A existência da linguagem na idade clássica é a um tempo

  • soberana
  • e discreta.

Soberana, pois que as palavras receberam a tarefa e o poder de “representar o pensamento”.

Mas representar não quer dizer aqui traduzir, dar uma versão visível, fabricar um duplo material que possa, na vertente externa do corpo, reproduzir o pensamento em sua exatidão.

Representar deve-se entender no sentido estrito:

  • a linguagem representa o pensamento
  • como o pensamento se representa a si mesmo.

Não há, para constituir a linguagem ou para animá-Ia por dentro, um ato essencial e primitivo de significação, mas tão-somente, no coração da representação, este poder que ela detém de se representar a si mesma, isto é, de se analisar em se justapondo, parte por parte, sob o olhar da reflexão e de se delegar, ela própria, num substituto que a prolongue.

Na idade clássica, nada é dado que não seja dado à representação; mas, por isso mesmo, nenhum signo surge, nenhuma fala se enuncia, nenhuma palavra ou nenhuma proposição jamais visa a algum conteúdo senão pelo jogo de uma representação que se põe à distância de si, se desdobra e se reflete numa outra representação que lhe é equivalente.

As representações não se enraízam num mundo do qual tomariam emprestado seu sentido; abrem-se por si mesmas para um espaço que lhes é próprio e cuja nervura interna dá lugar ao sentido. E a linguagem está aí, nessa distância que a representação estabelece consigo mesma.

As palavras não formam, pois, a tênue película que duplica o pensamento do lado de sua fachada; elas o lembram, o indicam, mas primeiramente em direção ao interior, em meio a todas estas representações que representam outras.

Muito mais do que se crê, a linguagem clássica está próxima do pensamento que ela é encarregada de manifestar; não lhe é, porém, paralela; está presa na sua rede e tecida na trama mesma que ele desenvolve.

Não é efeito exterior do pensamento, mas o próprio pensamento.

E, desse modo, ela se faz invisível ou quase. Tornou-se, em todo o caso, tão transparente à representação que seu ser cessa de constituir problema.

O Renascimento detinha-se diante do fato bruto de que havia linguagem: na espessura do mundo, um grafismo misturado às coisas ou correndo por sob elas; siglas depositadas nos manuscritos ou nas folhas dos livros.

E todas essas marcas insistentes demandavam uma linguagem segunda – a do comentário, da exegese, da erudição – para fazer falar e tornar enfim móvel a linguagem que nelas dormitava; o ser da linguagem precedia, como que com muda obstinação, o que nela se podia ler e as palavras com as quais se fazia com que ele ressoasse.

A partir do século XVII, é essa existência maciça e intrigante da linguagem que se acha elidida. Não aparece mais encoberta no enigma da marca: não aparece ainda desenvolvida na teoria da significação.

Em última análise, poder-se-ia dizer que a linguagem clássica não existe. Mas que funciona: toda a sua existência assume lugar no seu papel representativo, a ele se limita com exatidão e acaba por nele esgotar-se.

A linguagem não tem mais outro lugar senão a representação, nem outro valor senão em si mesma: nesse vão que ela tem poder de compor.

Com isso, a linguagem clássica descobre certa relação consigo mesma que até então não fora nem possível nem mesmo concebível.

Em relação a si mesma, a linguagem do século XVI estava numa postura de perpétuo comentário:

  • ora, este só pode exercer-se se houver linguagem – linguagem que pré-exista silenciosamente ao discurso pelo qual se tenta fazê-Ia falar;
  • para comentar, é preciso a antecedência absoluta do texto;
  • e inversamente, se o mundo é um entrelaçamento de marcas e de palavras, como falar dele senão sob a forma do comentário?

A partir da idade clássica, a linguagem se desenvolve no interior da representação e nesse desdobramento de si mesma que a escava.

Doravante, o Texto primeiro se apaga e, com ele, todo o fundo inesgotável de palavras cujo ser mudo estava inscrito nas coisas; só permanece a representação, desenrolando-se nos signos verbais que a manifestam e tornando-se assim discurso.

O enigma de uma palavra que uma segunda linguagem deve interpretar foi substituído pela discursividade essencial da representação: possibilidade aberta, ainda neutra e indiferente, mas que o discurso terá por tarefa concluir e fixar.

Ora, quando esse discurso se torna, por sua vez, objeto de linguagem,

  • não é interrogado como se dissesse alguma coisa sem o dizer, como se fosse uma linguagem retida em si mesma e uma palavra fechada;
  • não se busca mais desvelar o grande propósito enigmático que está oculto sob seus signos;
    • pergunta-se-lhe como ele funciona:
    • que representações ele designa,
    • que elementos recorta e recolhe,
    • como analisa e compõe,
    • que jogo de substituições lhe permite assegurar seu papel de representação.

O comentário cedeu lugar à crítica.

Essa relação nova que a linguagem instaura para consigo mesma não é nem simples nem unilateral.

Aparentemente

  • a crítica se opõe ao comentário
  • como a análise de uma forma visível à descoberta de um conteúdo oculto.

Mas como essa forma é a de uma representação, a crítica só pode analisar a linguagem em termos de verdade, de exatidão, de propriedade ou de valor expressivo.

Daí o papel misto da crítica e a ambiguidade de que jamais pôde desfazer-se.

  • Ela interroga a linguagem como se esta fosse pura função, conjunto de mecanismos, grande jogo autônomo dos signos;
  • mas não pode, ao mesmo tempo, deixar de lhe apresentar a questão de sua verdade ou de sua mentira, de sua transparência ou de sua opacidade, portanto do modo de presença daquilo que ela diz nas palavras pelas quais o representa.

É a partir dessa dupla necessidade fundamental que a oposição do fundo e da forma surgiu pouco a pouco e ocupou finalmente o lugar que conhecemos. Mas essa oposição, sem dúvida, só foi consolidada tardiamente, quando, no século XIX, a relação crítica, por sua vez, tornou-se frágil.

Na época clássica, a crítica se exerce, sem dissociação e como que em bloco, sobre o papel representativo da linguagem. Ela assume, então, quatro formas distintas ainda que solidárias e articuladas uma à outra.

  • Desenvolve-se primeiro na ordem reflexiva, como uma crítica das palavras: impossibilidade de construir uma ciência ou uma filosofia com o vocabulário recebido; denúncia dos termos gerais que confundem o que é distinto na representação e dos termos abstratos que separam o que deve permanecer solidário; necessidade de constituir o tesouro de uma língua perfeitamente analítica.
  • Manifesta-se também na ordem gramatical como uma análise dos valores representativos da sintaxe, da ordem das palavras, da construção das frases: será uma língua mais aperfeiçoada quando dispõe de declinações ou de um sistema de preposições? Será preferível que a ordem das palavras seja livre ou rigorosamente determinada? Que regime dos tempos melhor exprime as relações de sucessão?
  • A crítica se dá também seu espaço no exame das formas da retórica: análise das figuras, isto é, dos tipos de discursos com o valor expressivo de cada um, análise dos tropos, isto é, das diferentes relações que as palavras podem manter com um mesmo conteúdo representativo (designação pela parte ou pelo todo, pelo essencial ou pelo acessório, pelo evento ou pela circunstância, pela própria coisa ou pelos seus análogos).
  • Enfim a crítica, perante a linguagem existente e já escrita, se dá por tarefa definir a relação que ela mantêm com o que representa: é dessa maneira que a exegese dos textos religiosos incumbiu-se, a partir do século XVII, de métodos críticos: com efeito, já não se tratava mais de redizer o que já havia sido dito neles, mas de definir através de que figuras e imagens, seguindo que ordem, para que fins expressivos e para dizer qual verdade, tal discurso fora sustentado por Deus ou pelos Profetas sob a forma que nos foi transmitida.

Tal é, na sua diversidade, a dimensão crítica que se instaura necessariamente, quando a linguagem se interroga a si mesma a partir de sua função.

Desde a idade clássica, comentário e crítica opõem-se profundamente.

  • Falando da linguagem em termos de representações e de verdade, a crítica a julga e a profana.
  • Mantendo a linguagem na irrupção de seu ser e questionando-a em direção de seu segredo, o comentário se detém perante o caráter íngreme do texto prévio e dá-se a tarefa impossível, sempre renovada, de repetir em si seu nascimento: sacraliza-o.

Essas duas maneiras de a linguagem fundar uma relação consigo mesma vão entrar doravante numa rivalidade de que ainda não saímos. E que talvez se reforça dia a dia.

É que a literatura, objeto privilegiado da crítica, não cessou, desde Mallarmé, de se aproximar daquilo que é a linguagem no seu ser mesmo e, com isso, ela solicita uma linguagem segunda que não seja mais em forma de crítica mas de comentário.

E, com efeito, todas as linguagens críticas, desde o século XIX, se impregnaram de exegese, um pouco como as exegeses da época clássica estavam impregnadas de métodos críticos.

Contudo, enquanto a dependência da linguagem relativamente à representação não for desfeita em nossa cultura ou ao menos contornada, todas as linguagens segundas estarão presas na alternativa da crítica ou do comentário.

E proliferarão ao infinito na sua indecisão.

 
 

VII. O discurso da natureza

Capítulo V - Classificar; tópico VII. O discurso da natureza

A teoria da história natural não é dissociável da teoria da linguagem.

E contudo, de uma a outra, não se trata

  • de uma transferência de método.
  • Nem de uma comunicação de conceitos,
  • ou dos prestígios de um modelo que, por ter tido “sucesso” de um lado, seria tentado no domínio vizinho.

Também não se trata

  • de uma racionalidade mais geral que imporia formas idênticas
    • à reflexão sobre a gramática
    • e à taxinomia.

Mas sim

  • de uma disposição fundamental do saber que ordena o conhecimento dos seres segundo a possibilidade de representá-los num sistema de nomes.

Houve, sem dúvida, nessa região a que hoje chamamos a vida, muitas outras pesquisas além dos esforços de classificação, muitas outras análises além daquelas das identidades e das diferenças.

Todas, porém, repousavam numa espécie de a priori histórico que as autorizava em sua dispersão, em seus projetos singulares e divergentes, que tornava igualmente possíveis todos os debates de opiniões de que eles eram o lugar.

Esse a priori não é

  • constituído por um equipamento de problemas constantes que os fenômenos concretos não cessariam de apresentar como enigmas à curiosidade dos homens;
  • tampouco é formado por um certo estado de conhecimentos, sedimentado no curso das idades precedentes e servindo de solo aos progressos mais ou menos desiguais ou rápidos da racionalidade;
  • nem mesmo é determinado, sem dúvida, pelo que se denomina a mentalidade ou os “quadros de pensamento” de uma dada época, se com isso se entender o perfil histórico dos interesses especulativos, das credulidades ou das grandes opções teóricas.

Esse a priori é

  • aquilo que, numa dada época, recorta na experiência um campo de saber possível,
  • define o modo de ser dos objetos que aí aparecem,
  • arma o olhar cotidiano de poderes teóricos
  • e define as condições em que se pode sustentar sobre as coisas um discurso reconhecido como verdadeiro.

O a priori histórico 

  • que, no século XVIII, fundou as pesquisas ou os debates sobre a existência dos gêneros,
  • a estabilidade das espécies,
  • a transmissão dos caracteres através das gerações,

é a existência de uma história natural:

  • organização de um determinado visível como domínio do saber,
  • definição das quatro variáveis da descrição,
  • constituição de um espaço de vizinhanças onde todo indivíduo, qualquer que seja, pode vir localizar-se.

A história natural, na idade clássica, não corresponde à pura e simples descoberta de um novo objeto de curiosidade; recobre uma série de operações complexas que introduzem, num conjunto de representações, a possibilidade de uma ordem constante. Constitui como descritível e ordenável ao mesmo tempo todo um domínio de empiricidade.

O que a aparenta às teorias da linguagem a distingue do que nós entendemos, desde o século XIX, por biologia e a faz desempenhar no pensamento clássico um certo papel crítico.

A historia natural é contemporânea da linguagem:

  • está no mesmo nível do jogo espontâneo que analisa as representações na lembrança,
  • fixa seus elementos comuns
  • estabelece signos a partir deles
  • e, finalmente, impõe nomes.

Classificar e falar encontram seu lugar de origem nesse mesmo espaço que a representação abre no interior de si, porque ela é votada ao tempo, à memória, à reflexão, à continuidade.

Mas a história natural só pode e só deve existir como língua independente de todas as outras, se ela for língua bem-feita. E universalmente válida.

Na linguagem espontânea e “malfeita”, os quatro elementos (proposição, articulação, designação, derivação) deixam entre si interstícios abertos: as experiências de cada um, as necessidades ou as paixões, os hábitos, os preconceitos, uma atenção mais ou menos despertada constituíram centenas de línguas diferentes e que se distinguem somente pela forma das palavras mas, antes de tudo, pela maneira como essas palavras cortam a representação.

A história natural só será uma língua bem-feita se o jogo for fechado:

  • se a exatidão descritiva fizer de toda proposição um recorte constante do real (se se puder sempre
    • atribuir à representação
    • o que aí se articula)
  • e se a designação de cada ser indicar, de pleno direito, o lugar que ele ocupa na disposição geral do conjunto.

Na linguagem,

  • a função do verbo é universal e vazia;
    • prescreve somente a forma mais geral da proposição;
    • e é no interior desta que os nomes fazem atuar seu sistema de articulação;
  • a história natural reagrupa essas duas funções na unidade da estrutura, que articula umas às outras todas as variáveis que podem ser atribuídas a um ser.

E, enquanto

  • na linguagem
    • a designação, em seu funcionamento individual, está exposta ao acaso das derivações que dão sua amplitude e sua extensão aos nomes comuns,
  • o caráter, tal como o estabelece a história natural, permite a um tempo
    • marcar o indivíduo
    • e situá-lo num espaço de generalidades que se encaixam umas nas outras.

De sorte que, por sobre as palavras de todos os dias (e através delas, pois que realmente cumpre utilizá-las para as descrições primeiras), constrói-se o edifício de uma linguagem de segundo grau, em que reinam enfim os Nomes exatos das coisas:

“O método, alma da ciência, designa à primeira vista qualquer corpo da natureza, de tal sorte que esse corpo enuncia o nome que lhe é próprio, e que esse nome evoca todos os conhecimentos que puderam ser adquiridos no curso do tempo acerca do corpo assim nomeado: de modo que na extrema confusão se descobre a ordem soberana da natureza.”(60)

Mas essa nomeação essencial – essa passagem da estrutura visível ao caráter taxinômico – remete a uma exigência onerosa.

  • A linguagem espontânea, para realizar e cerrar a figura que vai
    • da função monótona do verbo ser
    • à derivação e ao percurso do espaço retórico,
  • só precisava do jogo da imaginação: isto é, das semelhanças imediatas.
  • Em contrapartida, para que a taxinomia seja possível, é necessário que a natureza seja realmente contínua e na sua plenitude mesma.

Lá onde a linguagem requeria a similitude das impressões, a classificação requer o princípio da menor diferença possível entre as coisas.

Ora, esse continuum que aparece assim no fundo da nomeação, na abertura deixada entre a descrição e a disposição, está suposto bem antes da linguagem e como sua condição.

E não somente porque ele pode fundar uma linguagem bem-feita, mas porque dá conta de toda linguagem em geral.

É a continuidade da natureza, sem dúvida, que dá à memória a ocasião de se exercer quando uma representação, por alguma identidade confusa e mal percebida, evoca uma outra e permite aplicar a ambas o signo arbitrário de um nome comum.

O que na imaginação se oferecia como uma similitude cega não era senão o vestígio irrefletido e confuso da grande trama ininterrupta das identidades e das diferenças.

A imaginação (aquela que, permitindo comparar, autoriza a linguagem) formava, sem que então se soubesse, o lugar ambíguo onde a continuidade da natureza, arruinada mas insistente, se reunia à continuidade vazia, mas atenta, da consciência.

De sorte que não teria sido possível falar, não teria havido lugar para o menor nome, se no fundo das coisas, antes de toda representação, a natureza não tivesse sido continua.

Para estabelecer o grande quadro sem falhas das espécies, dos gêneros e das classes, foi necessário que a história natural utilizasse, criticasse, classificasse e finalmente reconstituísse por sua conta uma linguagem, cuja condição de possibilidade residia justamente nesse contínuo.

As coisas e as palavras estão muito rigorosamente entrecruzadas: a natureza só se dá através do crivo das denominações e ela que, sem tais nomes, permaneceria muda e invisível, cintila ao longe, por trás deles, continuamente presente para além desse quadriculado que, no entanto, a oferece ao saber e só a toma visível quando inteiramente atravessada pela linguagem.

É por isso, sem dúvida, que a história natural, na época clássica, não se pode constituir como biologia.

Com efeito, até o fim do século XVIII, a vida não existe. Apenas existem seres vivos.

Estes formam uma, ou antes, várias classes na série de todas as coisas do mundo:

  • e se se pode falar da vida,
  • é somente como de um caráter – no sentido taxinômico da palavra – na universal distribuição dos seres.

Tem-se o hábito de repartir as coisas da natureza em três classes:

  • os minerais, aos quais se reconhece o crescimento, mas sem movimento nem sensibilidade;
  • os vegetais, que podem crescer e que são suscetíveis de sensação;
  • os animais, que se deslocam espontaneamente(61).

Quanto à vida e ao limiar que ela instaura, pode-se, segundo os critérios que se adotarem, fazê-los deslizar ao longo de toda essa escala.

  • Se, com Maupertuis, a definirmos pela mobilidade e pelas relações de afinidade que atraem os elementos uns para os outros e os mantêm ligados, temos de alojar a vida nas mais simples partículas da matéria. Estaremos obrigados a situá-la muito mais alto na série,
  • se a definirmos por um caráter carregado e complexo, como o fazia Lineu quando lhe fixava como critérios o nascimento (por semente ou rebento), a nutrição (por intussuscepção), o envelhecimento, o movimento exterior, a propulsão interna dos humores, as doenças, a morte, a presença de vasos, de glândulas, de epidermes e de utrículos(62). A vida não constitui um limiar manifesto a partir do qual formas inteiramente novas do saber são requeridas.

Ela é uma categoria de classificação, relativa, como todas as outras, aos critérios que se fixarem. E, como todas as outras, submetida a certas imprecisões desde que se trate de fixar-lhe as fronteiras.

Assim como o zoófito está na orla ambígua dos animais e das plantas, assim os fósseis, assim os metais se alojam nesse limite incerto em que não se sabe se se deve ou não falar de vida. Mas o corte entre o vivo e o não-vivo jamais é um problema decisivo(63). Como diz Lineu, o naturalista – aquele a quem ele chama Historiens naturalis –

“distingue pela vista as partes dos corpos naturais, descreve-as convenientemente segundo o número, a figura, a posição e a proporção e as nomeia”(64).

O naturalista é o homem do visível estruturado e da denominação característica.

Não da vida.

Não se deve, pois, vincular a história natural, tal como se desenrolou durante a época clássica, a uma filosofia, mesmo obscura, mesmo ainda balbuciante, da vida.

Ela está, na realidade, entrecruzada com uma teoria das palavras. A história natural está situada ao mesmo tempo antes e depois da linguagem; desfaz a de todos os dias, mas para refazê-la e descobrir o que a tomou possível através das semelhanças cegas da imaginação; critica-a, mas para descobrir-lhe o fundamento.

Se a retoma e a quer realizar na sua perfeição, é porque também retorna à sua origem. Passa por sobre esse vocabulário cotidiano que lhe serve de solo imediato e, aquém dele, vai buscar o que pôde constituir sua razão de ser; mas, inversamente, aloja-se por inteiro no espaço da linguagem, pois que ela é essencialmente um uso regulado dos nomes e tem por fim último dar às coisas sua verdadeira denominação.

Entre a linguagem e a teoria da natureza, existe portanto uma relação que é de tipo crítico;

  • conhecer a natureza é, com efeito, construir, a partir da linguagem, uma linguagem verdadeira
  • que descobrirá, porém, sob que condições toda linguagem é possível e dentro de que limites pode ter ela um domínio de validade.

A questão crítica certamente existiu no século XVIII, mas ligada à forma de um saber determinado. Por essa razão não poderia adquirir autonomia e valor de interrogação radical: não cessou de vagar numa região onde se tratava da semelhança, da força da imaginação, da natureza e da natureza humana, do valor das ideias gerais e abstratas, em suma, das relações entre a percepção da similitude e a validade do conceito.

Na idade clássica – Locke e Lineu, Buffon e Hume o testemunham – a questão crítica é a do fundamento da semelhança e da existência do gênero.

No fim do século XVIII, uma nova configuração aparecerá, emaranhando definitivamente para olhos modernos o velho espaço da história natural. De um lado, a crítica se oca e se destaca do solo onde nascera.

  • Enquanto Hume fazia do problema da causalidade um caso de interrogação geral sobre as semelhanças(65),
  • Kant, isolando a causalidade, inverte a questão;
    • lá onde se tratava de estabelecer as relações de identidade e de distinção sobre o fundo contínuo das similitudes,
    • ele faz surgir o problema inverso da síntese do diverso.

No mesmo movimento, a questão crítica se acha reportada

  • do conceito ao juízo,
  • da existência do gênero (obtida pela análise das representações) à possibilidade de ligar representações entre si,
  • do direito de nomear ao fundamento da atribuição,
  • da articulação nominal à proposição mesma e ao verbo ser que a estabelece.

Ela se acha então absolutamente generalizada.

Em vez de valer somente a propósito das relações entre a natureza e a natureza humana, ela interroga a possibilidade mesma de todo conhecimento.

Mas, por outro lado, na mesma época a vida assume sua autonomia em relação aos conceitos da classificação. Ela escapa a essa relação crítica que, no século XVIII, era constituída do saber da natureza. Escapa, e isso quer dizer duas coisas:

  • a vida torna-se objeto de conhecimento em meio aos outros e, a esse título, está sob a alçada de toda crítica em geral;
  • mas resiste também a essa jurisdição crítica que ela retoma por sua conta e que reporta, em seu próprio nome, a todo conhecimento possível.

De sorte que, ao longo de todo século XIX, de Kant a Dilthey e a Bergson, os pensamentos críticos e as filosofias da vida se encontrarão numa posição de retomada e de contestação recíprocas.

VI. Monstros e fósseis

Capítulo V - Classificar; tópico VI. Monstros e fósseis

Objetar-se-á que houve, muito antes de Lamarck, todo um pensamento de tipo evolucionista. Que sua importância foi grande nos meados do século XVIII e até sua suspensão pelo golpe desferido por Cuvier. Que Bonnet, Maupertuis, Diderot, Robinet, Benoit de Maillet articularam muito claramente a ideia de que

  • as formas vivas podem passar umas às outras,
  • que as espécies atuais são sem dúvida o resultado de transformações antigas
  • e que todo o mundo vivo se dirige talvez para um ponto futuro, de sorte que não se poderia assegurar, a propósito de qualquer forma viva, que está definitivamente adquirida e estabilizada para sempre.

Na realidade, tais análises são incompatíveis com o que hoje entendemos por pensamento da evolução.

Com efeito, elas têm como propósito o quadro das identidades e das diferenças na série dos acontecimentos sucessivos. E, para pensar a unidade desse quadro e dessa série, só têm à sua disposição dois meios.

  • Um consiste em integrar na continuidade dos seres e na sua distribuição em quadro a série das sucessões.

Todos os seres que a taxinomia dispôs numa simultaneidade ininterrupta são então submetidos ao tempo. Não no sentido de que a série temporal faria nascer uma multiplicidade de espécies, que um olhar horizontal poderia em seguida dispor segundo um quadriculado classificador, mas no sentido de que todos os pontos da taxinomia são afetados por um índice temporal, de sorte que a “evolução” não é outra coisa senão o deslocamento solidário e geral da escala, desde o primeiro até o último de seus elementos. Esse sistema é o de Charles Bonnet. Ele implica, antes do mais, que a cadeia dos seres, dirigida por uma série inumerável de anéis para a perfeição absoluta de Deus, não a alcance atualmente(49); que a distância seja infinita entre Deus e a menos defeituosa das criaturas; e que, nessa distância talvez intransponível, toda a trama ininterrupta dos seres não cesse de avançar em direção a uma maior perfeição. Implica também que essa “evolução” mantenha intacta a relação que existe entre as diferentes espécies; se uma, em se aperfeiçoando, atinge o grau de complexidade que antes dela já possuía a do grau imediatamente superior, esta nem por isso é alcançada, pois, impelida pelo mesmo movimento, ela não pôde deixar de se aperfeiçoar numa proporção equivalente:

“Haverá um progresso contínuo e mais ou menos lento de todas as espécies em direção a uma perfeição superior, de sorte que todos os graus da escala serão continuamente variáveis numa relação determinada e constante… O homem, transportado para uma estância mais condizente com a eminência de suas faculdades, deixará ao macaco e ao elefante esse primeiro lugar que ocupava entre os animais de nosso planeta… Haverá Newtons entre os macacos e Vaubans entre os castores. As ostras e os pólipos serão, em relação às mais elevadas espécies, o que são os pássaros e os quadrúpedes em relação ao homem.”(50)

Esse “evolucionismo” não é uma forma de conceber o aparecimento dos seres uns a partir dos outros; é, na realidade, uma forma de generalizar o princípio de continuidade e a lei segundo a qual os seres formam uma superfície sem interrupção. Acrescenta, num estilo leibniziano(51), o contínuo do tempo ao contínuo do espaço e, à infinita multiplicidade dos seres, o infinito de seu aperfeiçoamento. Não se trata de uma hierarquização progressiva, mas do surto constante e global de uma hierarquia totalmente instaurada. O que supõe, finalmente, que o tempo, longe de ser um princípio da taxinomia, não seja mais que um de seus fatores. E que seja preestabelecido como todos os outros valores assumidos por todas as outras variáveis.

É necessário, pois, que Bonnet seja pré-formacionista e isso, muito longe do que entendemos, desde o século XIX, por “evolucionismo”; ele é obrigado a supor que as metamorfoses ou as catástrofes do globo foram dispostas de antemão como ocasiões para que a cadeia infinita dos seres se encaminhe no sentido de um infinito melhoramento:

“Essas evoluções foram previstas e inscritas nos germens dos animais desde o primeiro dia da criação. Pois essas evoluções estão ligadas a revoluções em todo o sistema solar, dispostas por Deus de antemão.” O mundo inteiro foi larva; ei-lo crisálida; um dia, sem dúvida, tomar-se-á borboleta(52) E todas as espécies serão arrastadas do mesmo modo por essa grande mutação.

Vê-se que semelhante sistema não é um evolucionismo que começasse a abalar o velho dogma da fixidez; é uma taxinomia que envolve, ademais, o tempo. Uma classificação generalizada.

  • A outra forma de “evolucionismo” consiste em conferir ao tempo um papel totalmente oposto.

Ele não serve mais para deslocar, sobre a linha finita ou infinita do aperfeiçoamento, o conjunto do quadro classificador, mas para fazer aparecer, umas após as outras, todas as porções que, juntas, formarão a rede contínua das espécies. Ele faz com que as variáveis do ser vivo assumam sucessivamente todos os valores possíveis: ele é a instância de uma caracterização que se efetua pouco a pouco e como que elementos após elementos.

As semelhanças ou as identidades parciais que sustentam a possibilidade de uma taxinomia seriam então as marcas patenteadas no presente de um único e mesmo ser vivo, persistindo através das metamorfoses da natureza e preenchendo assim todas as possibilidades que o quadro taxinômico oferece no vazio.

Se as aves, observa Benoit de Maillet, têm asas como os peixes têm barbatanas, é porque, na época do grande refluxo das primeiras águas, elas foram douradas ressequidas ou golfinhos transportados para sempre a uma pátria aérea.

“O sêmen desses peixes, transportado para pântanos, pode ter dado lugar à primeira transmigração da espécie, do mar para a terra. De 100 milhões que pereceram sem ter logrado adaptar-se, bastou que dois o conseguissem para dar origem à espécie.”(53)

Aqui, como em certas formas de evolucionismo, as mudanças nas condições de vida dos seres vivos parecem acarretar o aparecimento de espécies novas. Mas o modo de ação do ar, da água, do clima, da terra sobre os animais não é o de um meio ambiente sobre uma função e sobre os órgãos nos quais ela se realiza; os elementos exteriores só intervêm ocasionalmente para fazer aparecer o caráter: E esse aparecimento, se é cronologicamente condicionado por determinado acontecimento do globo, é tornado a priori possível pelo quadro geral das variáveis que define todas as formas eventuais do ser vivo.

O quase-evolucionismo do século XVIII parece pressagiar

  • tanto a variação espontânea do caráter, tal como se encontrará em Darwin,
  • quanto a ação positiva do meio ambiente, tal como a descreverá Lamarck.

Trata-se, porém, de uma ilusão retrospectiva:

  • com efeito, para essa forma de pensamento, a sequência do tempo jamais pode desenhar mais do que a linha ao longo da qual se sucedem todos os valores possíveis das variáveis preestabelecidas.
  • E, por conseguinte, é preciso definir um princípio de modificação interior ao ser vivo capaz de permitir-lhe, por ocasião de uma peripécia natural, assumir um novo caráter.

Está-se então diante de um novo ponto de escolha:

  • ou supor no ser vivo uma aptidão espontânea para mudar de forma (ou, pelo menos, para adquirir com as gerações um caráter ligeiramente diferente daquele que fora dado originalmente, de modo que pouco a pouco acabará por tornar-se irreconhecível),
  • ou então atribuir-lhe a busca obscura de uma espécie terminal que possuiria os caracteres de todas as que a precederam, num grau porém mais alto de complexidade e de perfeição.
O primeiro sistema é o dos erros ao infinito – tal como se encontra em Maupertuis.

O quadro das espécies que a história natural pode estabelecer teria sido adquirido, peça por peça, pelo equilíbrio, constante na natureza, entre uma memória que garante o continuo (manutenção das espécies no tempo e semelhança de uma com outra) e um pendor para o desvio que assegura, ao mesmo tempo, a história, as diferenças e a dispersão. Maupertuis supõe que as partículas da matéria são dotadas de atividade e de memória. Atraídas umas pelas outras, as menos ativas formam as substâncias minerais; as mais
ativas delineiam o corpo mais complexo dos animais. Essas formas, que são devidas à atração e ao acaso, desaparecem quando não podem subsistir. Aquelas que se mantêm dão nascimento a novos indivíduos, cuja memória conserva os caracteres do casal progenitor. E isso até que um desvio de partículas – um acaso – faça nascer uma nova espécie que, por sua vez, é mantida pela força obstinada da lembrança:
 
“A força de digressões repetidas, teria surgido a diversidade infinita dos animais.”(54)
 
Assim, cada vez mais os seres vivos adquirem, por variações sucessivas, todos os caracteres que lhes reconhecemos e, se os olharmos na dimensão do tempo, a superfície coerente e sólida que constituem não é mais que o resultado fragmentário de um continuo muito mais cerrado, muito mais fino: um contínuo que foi tecido com um número incalculável de pequenas diferenças esquecidas ou abortadas.
 
As espécies visíveis que se oferecem à nossa análise foram talhadas sobre o fundo incessante de monstruosidades que aparecem, cintilam, caem em ruína e por vezes se mantêm.
 
E aí está o ponto fundamental: a natureza só tem uma história na medida em que é – suscetível do contínuo.
 
É porque ela assume, um a um, todos os caracteres possíveis (cada valor de todas as variáveis) que se apresenta sob a forma da sucessão.
 
  • Não é diferente o que ocorre com o sistema inverso do protótipo e da espécie terminal.
Nesse caso, temos de supor, com J.-B. Robinet, que a continuidade não é garantida pela memória, mas por um projeto. Projeto de um ser complexo em direção ao qual a natureza se encaminha, partindo de elementos simples que ela compõe e organiza pouco a pouco:
 
“Primeiro, os elementos se combinam. Um pequeno número de princípios simples serve de base para todos os corpos”;
 
são eles que presidem exclusivamente à organização dos minerais; depois,
 
“a magnificência da natureza” não cessa de aumentar “até os seres que vagueiam sobre a superfície do globo”; “a variação dos órgãos em número, em grandeza, em finura, em textura interna, em figura externa ocasiona espécies que se dividem e se subdividem ao infinito mediante novas combinações”55.

E assim por diante, até a combinação mais complexa que conhecemos. De sorte que a continuidade inteira da natureza se aloja
 
  • entre um protótipo absolutamente arcaico, enterrado mais profundamente que toda a história,
  • e a extrema complicação desse modelo, tal como se pode observar, ao menos no globo terrestre, na pessoa do ser humano(56).
Entre esses dois extremos, há todos os graus possíveis de complexidade e de combinação: como uma imensa série de tentativas, das quais algumas persistiram sob a forma de espécies constantes e outras foram dissipadas.
 
Os monstros não são de uma “natureza” distinta da das próprias espécies:
 
“Creiamos que as mais estranhas formas na aparência… pertencem necessária e essencialmente ao plano universal do ser; que são metamorfoses do protótipo tão naturais quanto as outras, embora nos ofereçam fenômenos diferentes e sirvam de passagem às formas vizinhas: que elas preparam e dispõem as combinações que as seguem, assim como são dispostas por aquelas que as precedem; que contribuem para a ordem das coisas, longe de perturbá-la. É talvez somente por abundância de seres que a natureza chega a produzir seres mais regulares e com uma organização mais simétrica.”(57)
 
Em Robinet como em Maupertuis, a sucessão e a história são para a natureza apenas meios de percorrer a trama das variações infinitas de que ela é suscetível. Não é, pois, o tempo nem a duração que, através da diversidade dos meios ambientes, assegura a continuidade e a especificação dos seres vivos, mas sobre o fundo contínuo de todas as variações possíveis, o tempo desenha um percurso em que os climas e a geografia predispõem somente regiões privilegiadas e destinadas a se manterem.
 
  • O contínuo não é o sulco visível de uma história fundamental em que um mesmo princípio vivo se debateria com um meio ambiental variável.
    • Pois o contínuo precede o tempo. É sua condição.
  • E, em relação a ele, a história só pode desempenhar um papel negativo:
    • ela predispõe e faz subsistir
    • ou ela negligencia e deixa desaparecer.
Disso, duas consequências.

  • Primeiro, a necessidade de fazer intervir os monstros – que são como que o ruído de fundo, o murmúrio ininterrupto da natureza.
Se, com efeito é necessário que o tempo, que é limitado, percorra – já tenha talvez percorrido – todo o contínuo da natureza, deve-se admitir que um número considerável de variações possíveis tenham sido atravessadas e depois suprimidas;

  • assim como a catástrofe geológica era necessária para que se pudesse ascender do quadro taxinômico ao contínuo, através de uma experiência confusa, caótica e retalhada,
  • assim também a proliferação de monstros sem amanhã é necessária para que se possa tornar a descer do contínuo ao quadro através de uma série temporal.

Em outros termos,

  • o que num sentido deve ser lido como drama da terra e das águas,
  • deve ser lido, num outro sentido, como aberração aparente das formas.
O monstro garante no tempo e para nosso saber teórico uma continuidade que os dilúvios, os vulcões e os continentes desmoronados confundem no espaço para nossa experiência cotidiana.

  • A outra consequência é que, ao longo de uma tal história, os signos da continuidade são apenas da ordem da semelhança.
Como nenhuma relação do meio ambiente com o organismo(58) define essa história, as formas vivas nela sofrerão todas as metamorfoses possíveis e só deixarão atrás de si, como marca do trajeto percorrido, os indícios das similitudes.

Como se pode reconhecer, por exemplo, que a natureza não cessou de esboçar, a partir do protótipo primitivo, a figura, provisoriamente terminal, do homem? No fato de ter ela abandonado em seu percurso mil formas que dele desenham o modelo rudimentar.

Quantos fósseis não são, em relação à orelha, ao crânio ou às partes sexuais do homem, como que estátuas de gesso moldadas um dia e abandonadas por uma forma mais aperfeiçoada?

“A espécie que se assemelha ao coração humano e que se denomina, por causa disso, Antropocardite… merece uma atenção particular. Sua substância é uma rocha por dentro. A forma de um coração é tão bem imitada quanto possível. Nela se distingue o tronco da veia cava com uma porção de seus dois ramos. Vê-se também sair do ventrículo esquerdo o tronco da grande artéria com sua parte inferior descendente.”(59)

O fóssil, com sua natureza mista de animal e de mineral, é o lugar privilegiado de uma semelhança que o historiador do contínuo exige, ao passo que o espaço da taxinomia a decompunha rigorosamente.

O monstro e o fóssil desempenham ambos um papel muito preciso nessa configuração. A partir do poder do contínuo que a natureza detém,

  • o monstro faz aparecer a diferença: esta é ainda sem lei e sem estrutura bem definida; o monstro é o fulcro da especificação, mas não é mais que uma subespécie na obstinação lenta da história.
  • O fóssil é aquilo que deixa subsistir as semelhanças através de todos os desvios que a natureza percorreu; funciona como uma forma longínqua e aproximativa da identidade; marca um quase-caráter no mover-se do tempo.

É que o monstro e o fóssil nada mais são que a projeção em retrospectiva dessas diferenças e dessas identidades que definem, para a taxinomia, a estrutura e depois o caráter.


Eles formam, entre o quadro e o contínuo, a região sombria, móvel, trêmula, onde

  • o que a análise definirá como identidade não é ainda mais que muda analogia;
  • e o que ela definirá como diferença assinalável e constante não é ainda mais que livre e casual variação.

Mas, na verdade,


  • a história da natureza é tão impossível de ser pensada pela história natural,
  • a disposição epistemológica desenhada pelo quadro e pelo contínuo é tão fundamental,
  • que o devir só pode ter lugar intermediário e medido somente pelas exigências do conjunto.
É por isso que ele só intervém para a passagem necessária de um ao outro.

  • Quer como um conjunto de intempéries estranhas aos seres vivos e que lhes advêm unicamente do exterior.
  • Quer como um movimento incessantemente delineado, mas estancado desde seu esboço, e perceptível somente nas bordas do quadro, nas suas margens descuidadas:
e assim, sobre o fundo do contínuo,

  • o monstro narra, como em caricatura, a gênese das diferenças
  • e o fóssil lembra, na incerteza de suas semelhanças, as primeiras obstinações da identidade.

V. O contínuo e a catástrofe

Capítulo V - Classificar; tópico V. O contínuo e a catástrofe

No coração dessa língua bem-feita em que se tornou a história natural, persiste um problema.

Poderia ocorrer que, no final das contas, a transformação da estrutura em caráter nunca fosse possível e que o nome comum jamais pudesse nascer do nome próprio.

Quem pode garantir que as descrições não vão patentear elementos tão diversos de um indivíduo para outro e de uma espécie para outra, que toda tentativa para fundar um nome comum não seria de antemão arruinada?

Quem pode assegurar que cada estrutura não seja rigorosamente isolada de toda outra e que não funcione como marca individual?

Para que o mais simples caráter possa aparecer, é preciso que ao menos um elemento da estrutura primeiramente considerada se repita em outra.

Pois a ordem geral das diferenças que permite estabelecer a disposição das espécies implica um certo jogo de similitudes.

Esse problema é isomorfo daquele que já se encontrou a propósito da linguagem(36): para que um nome comum fosse possível, era preciso que houvesse entre as coisas esta semelhança imediata que permitisse aos elementos significantes

  • circularem ao longo das representações,
  • deslizarem à sua superfície,
  • prenderem-se às suas similitudes,
para formarem, finalmente, designações coletivas.
 

Mas para desenhar esse espaço retórico onde os nomes pouco a pouco assumiam seu valor geral, não era necessário determinar o estatuto dessa semelhança, nem se ela estava fundada em verdade; bastava que ela emprestasse bastante força à imaginação.

Entretanto, para a história natural, língua bem-feita, essas analogias da imaginação não podem valer como garantias; e é preciso que a história natural encontre o meio de contornar a dúvida radical que a ameaça assim como a qualquer linguagem, dúvida essa que Hume fazia incidir sobre a necessidade da repetição na experiência.

Deve haver continuidade na natureza. Essa exigência de uma natureza contínua não tem inteiramente a mesma forma nos sistemas e nos métodos.

Para os partidários do sistema, a continuidade é feita apenas pela justaposição sem falha das diferentes regiões que os caracteres permitem distinguir com clareza; basta uma gradação ininterrupta dos valores que, no domínio inteiro das espécies, a estrutura escolhida como caráter pode assumir; a partir desse princípio, evidenciar-se-á que todos esses valores serão ocupados por seres reais, mesmo que ainda desconhecidos.

“O sistema indica as plantas, até aquelas que não mencionou; coisa que jamais pode fazer a enumeração de um catálogo.”(37)

E sobre essa continuidade de justaposição, as categorias não serão simplesmente convenções arbitrárias; poderão corresponder (se não forem estabelecidas corretamente) a regiões que existem distintamente sobre essa superfície ininterrupta da natureza; serão regiões mais vastas, mas tão reais quanto os indivíduos.

É assim que o sistema sexual permitiu, segundo Lineu, descobrir gêneros indubitavelmente fundados:

“Saiba que não é o caráter que constituiu o gênero, mas o gênero que constituiu o caráter, que o caráter decorre do gênero, não o gênero do caráter.”(38)

Em contrapartida, nos métodos para os quais as semelhanças, sob sua forma maciça e evidente, são dadas de início, a continuidade da natureza

  • não será este postulado puramente negativo (ausência de espaço branco entre as categorias distintas,
  • mas uma exigência positiva: toda a natureza forma uma grande trama onde os seres se assemelham gradualmente, onde os indivíduos vizinhos são infinitamente semelhantes entre si; de sorte que todo corte que não indique a ínfima diferença do indivíduo, mas categorias mais amplas, é sempre irreal.

Continuidade de fusão em que toda generalidade é nominal. Nossas idéias gerais, diz Buffon, “são relativas a uma escala contínua de objetos, da qual só percebemos nitidamente os núcleos e cujas extremidades fogem e escapam sempre e cada vez mais às nossas considerações… Quanto mais aumentarmos o número de divisões das produções naturais, mais nos aproximaremos da verdade, visto que não existe realmente na natureza senão indivíduos e que os gêneros, as ordens, as classes só existem na nossa imaginação”(39).

E Bonnet dizia, no mesmo sentido, que

“não há saltos na natureza; nela tudo é graduado, matizado. Se, entre dois seres quaisquer, existisse um vazio, qual seria a razão da passagem de um ao outro? Portanto não há ser acima e abaixo do qual não haja outros que se lhe aproximem por alguns caracteres e que dele se afastem por outros”.

Podemos, pois, sempre descobrir “produções medianas”,

  • como o pólipo entre o vegetal e o animal,
  • o esquilo voador entre a ave e o quadrúpede,
  • o macaco entre o quadrúpede e o homem.

Por conseguinte, nossas distribuições em espécies e em classes “são puramente nominais”; elas não representam nada mais que “meios relativos às nossas necessidades e aos limites de nossos conhecimentos”(40).

No século XVIII, a continuidade da natureza é exigida por toda história natural, isto é, por todo esforço para instaurar na natureza uma ordem e nela descobrir categorias gerais, quer sejam elas reais e prescritas por distinções manifestas, quer cômoda e simplesmente demarcadas por nossa imaginação.

Só o contínuo pode garantir que a natureza se repita e que a estrutura, por consequência, possa tornar-se caráter.

Mas essa exigência logo se desdobra. Pois, se fosse dado à experiência, no seu movimento ininterrupto, percorrer exatamente, passo por passo,

  • o contínuo dos indivíduos,
  • das variedades,
  • das espécies,
  • dos gêneros,
  • das classes,
não haveria necessidade de constituir uma ciência; as designações descritivas se generalizariam de pleno direito e a linguagem das coisas, por um movimento espontâneo, se constituiria em discurso científico.
 

As identidades da natureza se ofereceriam como que letra por letra à imaginação e o deslizar espontâneo das palavras para dentro desse espaço retórico reproduziria em linhas cheias a identidade dos seres na sua generalidade crescente.

A história natural tomar-se-ia inútil, ou melhor, já estaria feita pela linguagem cotidiana dos homens; a gramática geral seria ao mesmo tempo a taxinomia universal dos seres.

Mas, se uma história natural perfeitamente distinta da análise das palavras é indispensável, é porque a experiência não nos libera o contínuo da natureza tal como ele é. Oferece-o ao mesmo tempo retalhado –

  • pois que há muitas lacunas na série dos valores efetivamente ocupados pelas variáveis (existem seres possíveis cujo valor se constata mas que jamais se teve ocasião de observar) –
  • e confuso, porque o espaço real, geográfico e terrestre onde nos encontramos nos mostra os seres imbricados uns com os outros numa ordem que, em relação à grande superfície das taxinomias, não passa de acaso, desordem ou perturbação.

Lineu observava que, ao associar nos mesmos lugares

  • o lernea (que é um animal)
  • e a conferva (que é uma alga),
  • ou ainda a esponja e o coral,

a natureza não reúne, como o desejaria a ordem das classificações,

“as mais perfeitas plantas com os animais chamados muito imperfeitos, mas combina os animais imperfeitos com as plantas imperfeitas”(41).

E Adanson constatava que a natureza

“é uma mistura confusa de seres que o acaso parece ter aproximado: aqui, o ouro está mesclado com outro metal, com uma pedra, com uma terra; ali, a violeta cresce ao lado do carvalho. Entre essas plantas vagueiam igualmente o quadrúpede, o réptil e o inseto; os peixes se confundem, por assim dizer, com o elemento aquoso onde nadam e com as plantas que crescem no fundo das águas… Essa mistura é tão geral até e tão multiplicada que parece ser uma das leis da natureza “(42).

Ora, essa imbricação é o resultado de uma série cronológica de acontecimentos. Estes têm seu ponto de origem e seu primeiro lugar de aplicação

  • não nas próprias espécies vivas,
  • mas no espaço onde elas se alojam.

Produzem-se na relação entre a Terra e o Sol, no regime dos climas, nas metamorfoses da crosta terrestre; o que eles atingem primeiramente são os mares e os continentes, é a superfície do globo; os seres vivos só são afetados por contragolpe e de maneira secundária: o calor os atrai ou os repele, os vulcões os destroem; desaparecem com as terras que desmoronam.

É possível, por exemplo, como supunha Buffon(43), que a terra tenha sido incandescente na origem, antes de arrefecer pouco a pouco; os animais, habituados a viver nas mais elevadas temperaturas, reagruparam-se na única região atualmente tórrida, enquanto as terras temperadas ou frias se povoavam de espécies que até então não tinham tido ocasião de aparecer.

Com as revoluções na história da Terra, o espaço taxinômico (onde as vizinhanças são da ordem do Caráter e não do modo de vida) veio a ser repartido num espaço concreto que o transmutava.

Bem mais: ele foi, sem dúvida, despedaçado, e muitas espécies, vizinhas daquelas que conhecemos ou intermediárias entre regiões taxinômicas que nos são familiares, devem ter-se extinguido, só deixando atrás de si vestígios difíceis de decifrar.

Em todo o caso, essa série histórica de acontecimentos se ajunta à superfície dos seres: não lhe pertence propriamente; desenrola-se no espaço real do mundo, não naquele, analítico, das classificações; o que ela põe em questão é o mundo como lugar dos seres e não os seres enquanto têm a propriedade de serem vivos.

Uma historicidade simbolizada pelas narrativas bíblicas afeta diretamente nosso sistema astronômico, indiretamente a rede taxinômica das espécies; e, além da Gênese e do Dilúvio, é bem possível que “nosso globo tenha sofrido outras revoluções que não nos foram reveladas. Ele depende de todo o sistema astronômico, e as ligações que unem este globo aos outros corpos celestes e, em particular, ao Sol e aos cometas podem ter sido a fonte de muitas revoluções, de que para nós não resta nenhum traço sensível e das quais talvez os habitantes de mundos vizinhos tenham tido algum conhecimento”(44).

A história natural supõe, pois, para poder existir como ciência, dois conjuntos:

  • um deles é constituído pela rede contínua dos seres; essa continuidade pode tomar diversas formas espaciais; Charles Bonnet concebe-a ora sob a forma de uma grande escala linear cujas extremidades são uma muito simples, outra muito complicada, tendo ao centro uma estreita região mediana, a única a nos ser desvelada, ora sob a forma de um tronco central do qual partiriam, de um lado, um ramo (o das conchas com os caranguejos e os lagostins como ramificações suplementares)
  • e, do outro, a série dos insetos na qual entroncam insetos e rãs(45);

Buffon define essa mesma continuidade “como uma vasta trama ou, antes, um feixe que, de intervalo em intervalo, lança ramos para o lado, a fim de se reunir a feixes de uma outra ordem”(46); Palias pensa numa figura poliédrica(47); J. Hennann queria constituir um modelo de três dimensões, composto de fios que, partindo todos de um ponto comum, se separam uns dos outros, “se expandem por um número muito grande de ramos laterais” e depois se reúnem de novo(48).

Dessas configurações espaciais que descrevem, cada qual à sua maneira, a continuidade taxinômica,

  • se distingue a série dos acontecimentos;
    • esta é descontínua e diferente em cada um de seus episódios, mas seu conjunto só pode desenhar uma linha simples, que é a do tempo (e que não se pode conceber como reta, quebrada ou circular).

Sob sua forma concreta e na espessura que lhe é própria, a natureza se aloja inteira

  • entre a superfície da taxinomia
  • e a linha das revoluções.

Os “quadros” que ela forma sob os olhos dos homens e que o discurso da ciência é encarregado de percorrer são os fragmentos da grande superficie das espécies vivas, de acordo com o que foi repartido, transmutado, imobilizado, entre duas revoluções do tempo.

Vê-se quanto é superficial opor, como duas opiniões diferentes e que se defrontassem em suas opções fundamentais

  • um “fixismo” que se contentasse em classificar os seres da natureza num quadro permanente
  • e uma espécie de “evolucionismo” que acreditasse numa história imemorial da natureza e num profundo impulso dos seres através da sua continuidade.

A solidez sem lacunas de uma rede de espécies e de gêneros e a série dos acontecimentos que a confundiram fazem parte, e num mesmo nível, do suporte epistemológico a partir do qual um saber como a história natural foi possível na idade clássica.

  • Não se trata de duas maneiras de perceber a natureza, radicalmente opostas porque comprometidas com opções filosóficas mais antigas e mais fundamentais que qualquer ciência;
  • trata-se de duas exigências simultâneas na rede arqueológica que define, na idade clássica, o saber da natureza.

Essas duas exigências, porém, são complementares. Portanto, irredutíveis. A série temporal não pode integrar-se na gradação dos seres. As épocas da natureza não prescrevem o tempo interior dos seres e de sua continuidade; elas ditam as intempéries que não cessaram de os dispersar, de os destruir, de os misturar, de os separar, de os entrelaçar.

Não há nem pode haver sequer a suspeita de um evolucionismo ou de um transformismo no pensamento clássico;

  • pois o tempo jamais é concebido como princípio de desenvolvimento para os seres vivos na sua organização interna;
  • só é percebido a título de revolução possível no espaço exterior onde eles vivem.