Uma vez elidida a existência da linguagem, subsiste na representação apenas seu funcionamento:
- sua natureza
- e suas virtudes de discurso.
Este não é mais do que a própria representação, ela mesma representada por signos verbais.
Mas qual é, pois, a particularidade desses signos, e esse estranho poder que lhes permite, melhor que todos os outros, assinalar a representação, analisá-Ia e recompô-Ia?
Dentre todos os sistemas de signo qual é o próprio da linguagem?
Ao primeiro exame, é possível definir as palavras por seu caráter arbitrário ou coletivo. Na sua raiz primeira, a linguagem é feita, como diz Hobbes, de um sistema de sinais que os indivíduos escolheram, primeiramente, para si próprios: por essas marcas, podem eles recordar as representações, ligá-Ias, dissociá-las e operar sobre elas. São esses sinais que uma convenção ou uma violência impuseram à coletividade(1); mas, de toda maneira, o sentido das palavras só pertence à representação de cada um e, conquanto seja aceite por todos, não tem outra existência senão no pensamento dos indivíduos tomados um a um:
“É das ideias daquele que fala”, diz Locke, “que as palavras são signos, e ninguém as pode imediatamente aplicar como signos a outra coisa senão às ideias que ele próprio tem no espírito”(2).
O que distingue a linguagem de todos os outros signos e lhe permite desempenhar na representação um papel decisivo não é tanto o fato de ser individual ou coletiva, natural ou arbitrária. Mas, sim, o fato de que ela analisa a representação segundo uma ordem necessariamente sucessiva:
- os sons, com efeito, só podem ser articulados um a um;
- a linguagem não pode representar o pensamento, de imediato, na sua totalidade;
- precisa dispô-Io parte por parte segundo uma ordem linear.
Ora, esta é estranha à representação.
Certamente os pensamentos se sucedem no tempo, mas cada um forma uma unidade,
- quer se admita com Condillac(3) que todos os elementos de uma representação são dados num instante e que somente a reflexão pode desenrolá-los um a um,
- quer se admita com Destutt de Tracy que eles se sucedem com uma rapidez tão grande que não é praticamente possível observá-Ia nem reter sua ordem(4).
São essas representações, assim cerradas em si mesmas, que é preciso desenrolar nas proposições:
- para meu olhar, “o fulgor está no interior da rosa”;
- no meu discurso, não posso evitar que a preceda ou suceda(5).
Se o espírito tivesse poder de pronunciar as ideias “como as percebe”, não há nenhuma dúvida de que “as pronunciaria todas ao mesmo tempo”(6). Mas é isso justamente que não é possível, pois, se “o pensamento é uma operação simples”, “sua enunciação é uma operação sucessiva”(7).
Aí reside o que é próprio da linguagem, o que a distingue, a um tempo,
- da representação (de que, no entanto e por sua vez, ela não é senão a representação)
- e dos sígnos (aos quais pertence sem outro privilégio singular).
Ela não se opõe ao pensamento como o exterior ao interior, ou a expressão à reflexão; não se opõe aos outros signos – gestos, pantomimas, versões, pinturas, emblemas(8) – como o arbitrário ou o coletivo ao natural e ao singular.
Opõe-se, porém, a tudo isso, como o sucessivo ao contemporâneo. Ela está para o pensamento e para os signos como a álgebra para a geometria:
- substitui a comparação simultânea das partes (ou das grandezas)
- por uma ordem cujos graus se devem percorrer uns após outros.
É nesse sentido estrito que a linguagem é análise do pensamento:
- não simples repartição,
- mas instauração profunda da ordem no espaço.
É aí que se situa esse domínio epistemológico novo que a idade clássica chamou de “gramática geral”.
Seria contrasenso ver nela somente a pura e simples aplicação de uma lógica à teoria da linguagem. Contrasenso igualmente, porém, querer decifrá-Ia como a prefiguração de uma linguística.
A Gramática Geral é o estudo da ordem verbal na sua relação com a simultaneidade que ela é encarregada de representar. Por objeto próprio, ela não tem, pois, nem o pensamento nem a língua: mas o discurso entendido como sequência de signos verbais.
Essa sequência é artificial em relação à simultaneidade das representações e, nessa medida, a linguagem se opõe ao pensamento como o refletido ao imediato.
E, contudo, essa sequência não é a mesma em todas as línguas: algumas colocam a ação no meio da frase; outras, no final; algumas nomeiam primeiro o objeto principal da representação, outras, as circunstâncias acessórias; como observa a Enciclopédia, o que torna as línguas estrangeiras opacas umas às outras e tão difíceis de traduzir, mais que a diferença de palavras, é a incompatibilidade de sua sucessão(9).
Em relação à ordem evidente, necessária, universal, que a ciência e particularmente a álgebra introduzem na representação, a linguagem é espontânea e irrefletida; é como que natural. Conforme o ponto de vista com que a consideramos, ela é tanto uma representação já analisada, quanto uma reflexão em estado selvagem. Na verdade, é o liame concreto entre a representação e a reflexão.
Não é tanto o instrumento de comunicação dos homens entre si, como o caminho pelo qual, necessariamente, a representação comunica com a reflexão.
Eis por que a Gramática geral assumiu tanta importância para a filosofia no decurso do século XVIII: ela era, num só movimento, a forma espontânea da ciência, como uma lógica incontrolada do espírito(10) e a primeira decomposição refletida do pensamento: uma das mais primitivas rupturas com o imediato.
Constituía como que uma filosofia inerente ao espírito – “qual a metafísica”, diz Adam Smith, “não foi indispensável para formar o menor dos adjetivos”(11) – e aquilo que toda filosofia devia retomar para reencontrar, através de tantas escolhas diversas, a ordem necessária e evidente da representação.
Forma inicial de toda reflexão, tema primeiro de toda critica: assim é a linguagem. É essa coisa ambígua, tão vasta quanto o conhecimento, mas sempre interior à representação, que a Gramática geral toma por objeto.
Mas é preciso, desde logo, tirar um certo número de consequências.
1. A primeira é que se vê bem como se distribuem na época clássica as ciências da linguagem:
- de um lado, a Retórica, que trata das figuras e dos tropos, isto é, da maneira como a linguagem se espacializa nos signos verbais;
- de outro, a Gramática, que trata da articulação e da ordem, isto é, da maneira como a análise da representação se dispõe segundo uma série sucessiva.
A Retórica define a espacialidade da representação, tal como ela nasce com a linguagem;
a Gramática define para cada língua a ordem que reparte no tempo essa espacialidade.
É por isso que, como se verá mais adiante, a Gramática supõe a natureza retórica das linguagens, mesmo das mais primitivas e das mais espontâneas.
2. Por outro lado, a Gramática, como reflexão sobre a linguagem em geral, manifesta a relação que esta mantém com a universalidade.
Essa relação pode receber duas formas, conforme se tome em consideração
- a possibilidade de uma Língua universal
- ou de um Discurso universal.
Na época clássica o que se designa por língua universal não é o falar primitivo, intato e puro, capaz de restaurar, se fosse reencontrado para além dos castigos do esquecimento, o entendimento anterior a BabeI.
Trata-se de uma língua que
- seria suscetível de atribuir a cada representação e a cada elemento de cada representação o signo pelo qual podem ser marcados de um modo unívoco;
- seria capaz também de indicar de que maneira os elementos se compõem numa representação e como estão ligados uns aos outros;
- possuindo os instrumentos que permitem indicar todas as relações eventuais entre os segmentos da representação, ela teria, por isso mesmo, o poder de percorrer todas as ordens possíveis.
Ao mesmo tempo Característica e Combinatória, a Língua universal não restabelece a ordem dos tempos antigos: ela inventa signos, uma sintaxe, uma gramática, em que toda ordem concebível deve encontrar seu lugar.
Quanto ao Discurso universal,
- também ele não é o Texto único que conserva no enigma de seu segredo a chave desveladora de todo saber;
- ele é antes a possibilidade de definir a marcha natural e necessária do espírito, desde as mais simples representações até as mais finas análises ou as mais complexas combinações:
- esse discurso é o saber colocado na ordem única que lhe prescreve sua origem.
Ele percorre todo o campo dos conhecimentos, mas de uma forma de certo modo subterrânea, para fazer surgir sua possibilidade a partir da representação, para mostrar seu nascimento e pôr ao vivo o seu liame natural, linear e universal.
Esse denominador comum, esse fundamento de todos os conhecimentos, essa origem manifestada em um discurso contínuo é a Ideologia, uma linguagem que reduplica em toda a sua extensão o fio espontâneo do conhecimento:
“O homem por sua natureza tende sempre para o resultado mais próximo e mais premente. Pensa primeiramente em suas necessidades, depois em seus prazeres. Ocupa-se de agricultura, de medicina, de guerra, de política prática, depois de poesia e de artes, antes de pensar na filosofia; e quando se volta sobre si mesmo e começa a refletir, prescreve regras para seu juízo, é a lógica, para seus discursos, é a gramática, para seus desejos, é a moral. Julga-se então no cume da teoria”; mas apercebe-se de que todas essas operações têm “uma fonte comum” e que “esse centro único de todas as verdades é o conhecimento de suas faculdades intelectuais”(12).
A Característica universal e a Ideologia opõem-se
- como a universalidade da língua em geral (ela desdobra todas as ordens possíveis na simultaneidade de um só quadro fundamental)
- e a universalidade de um discurso exaustivo (ele reconstitui a gênese única e válida para cada um de todos os conhecimentos possíveis em seu encadeamento).
Mas seu projeto e sua comum possibilidade residem num poder que a idade clássica confere à linguagem: atribuir signos adequados a todas as representações, quaisquer que sejam, e estabelecer entre elas todos os liames possíveis.
Na medida em que a linguagem pode representar todas as representações, ela é, de pleno direito, o elemento do universal.
Deve haver uma linguagem, ao menos possível, que recolha entre suas palavras a totalidade do mundo
e inversamente, o mundo, como totalidade do representável, deve poder tornar-se, em seu conjunto, uma Enciclopédia.
E o grande sonho de Charles Bonnet atinge aqui o que é a linguagem em seu liame e em sua dependência relativamente à representação:
“Apraz-me considerar a multidão inumerável dos Mundos como outros tantos livros cuja coleção compõe a imensa Biblioteca do Universo ou a verdadeira Enciclopédia universal. Concebo que a gradação maravilhosa que há entre esses diferentes mundos facilita às inteligências superiores, às quais foi dado percorrê-los, ou melhor, lê-los, a aquisição de verdades de todo gênero que aí se encerram e confere ao seu conhecimento essa ordem e esse encadeamento que constituem sua principal beleza. Mas esses enciclopedistas celestes não possuem todos no mesmo grau a Enciclopédia do Universo; uns dela só possuem alguns ramos; outros possuem um número maior, outros a apreendem mais ainda; todos, porém, têm a eternidade para crescer e aperfeiçoar seus conhecimentos e desenvolver todas as suas faculdades.”(13)
Sobre esse fundo de uma Enciclopédia absoluta, os humanos constituem formas intermediárias de universalidade composta e limitada:
- Enciclopédias alfabéticas que alojam a maior quantidade possível de conhecimentos na ordem arbitrária das letras;
- pasigrafias que permitem transcrever segundo um único e mesmo sistema de figuras todas as línguas do mundo(14),
- léxicos polivalentes que estabelecem as sinonímias entre um número mais ou menos considerável de línguas;
- enfim, as enciclopédias racionais que pretendem “expor tanto quanto possível a ordem e o encadeamento dos conhecimentos humanos” examinando “sua genealogia e sua filiação, as causas que as fizeram nascer e os caracteres que as distinguem”(15)
Qualquer que tenha sido o caráter parcial de todos esses projetos, quaisquer que tenham sido as circunstâncias empíricas de seu empreendimento, o fundamento de sua possibilidade na epistémê clássica está em que, se o ser da linguagem era inteiramente reduzido ao seu funcionamento na representação, esta, em contrapartida, só tinha relação com o universal por intermédio da linguagem.
3. Conhecimento e linguagem estão estreitamente entrecruzados. Têm, na representação, mesma origem e mesmo princípio de funcionamento; apóiam-se um ao outro, completam-se e se criticam incessantemente.
Em sua forma mais geral, conhecer e falar consistem primeiramente em analisar a simultaneidade da representação, em distinguir-lhe os elementos, em estabelecer as relações que os combinam, as sucessões possíveis segundo as quais podemos desenvolvê-los:
- é num mesmo movimento que o espírito fala e conhece,
“é pelos mesmos procedimentos que se aprende a falar e que se descobrem
-
-
- ou os princípios do sistema do mundo
- ou aqueles das operações do espírito humano,
isto é, tudo o que há de sublime nos nossos conhecimentos”(16).
Mas a linguagem só é conhecimento sob uma forma irrefletida;
- impõe-se do exterior aos indivíduos que ela guia, quer queiram quer não, em direção a noções concretas ou abstratas, exatas ou pouco fundadas;
- o conhecimento, em contrapartida, é como uma linguagem de que cada palavra tivesse sido examinada e cada relação verificada.
Saber é falar como se deve e como o prescreve o procedimento certo do espírito;
falar é saber como se pode e segundo o modelo que impõem aqueles com quem se partilha o nascimento.
As ciências são línguas bem feitas na mesma medida em que as línguas são ciências incultas.
Toda língua deve, pois, ser refeita: isto é,
- explicada e julgada a partir dessa ordem analítica que nenhuma dentre elas segue exatamente;
- e reajustada eventualmente para que a cadeia de conhecimentos possa aparecer com toda a clareza, sem sombra nem lacuna.
Assim, pertence à natureza mesma da gramática ser prescritiva, não, de modo algum,
- porque pretendesse impor as normas de uma bela linguagem, fiel às regras do gosto,
- mas porque ela refere a possibilidade radical de falar à colocação em ordem da representação.
Destutt de Tracy observaria um dia que os melhores tratados de Lógica, no século XVIII, foram escritos por gramáticos: é que as prescrições da gramática eram de ordem analítica, não estética. E essa dependência da língua relativamente ao saber libera todo um campo histórico que não existira nas épocas precedentes. Algo assim como uma história do conhecimento torna-se possível.
É que,
- se a língua é uma ciência espontânea, obscura a si mesma e inábil –
- em contrapartida é aperfeiçoada pelos conhecimentos que não se podem depositar em suas palavras sem nelas deixar seu vestígio e como que o lugar vazio de seu conteúdo.
As línguas, saber imperfeito, são a memória fiel de seu aperfeiçoamento. Induzem em erro, mas registram o que se aprendeu. Em sua ordem desordenada, fazem nascer falsas ideias; mas as ideias verdadeiras nelas depositam a marca indelével de uma ordem que o acaso somente não poderia dispor.
O que nos deixam as civilizações e os povos como monumentos de seu pensamento não são tanto os textos, mas sim os vocabulários e as sintaxes, os sons de suas línguas mais que as palavras que pronunciaram, seus discursos menos que o que os tornou possíveis: a discursividade de sua linguagem.
“A língua de um povo fornece seu vocabulário e seu vocabulário é uma bíblia bastante fiel de todos os conhecimentos desse povo; apenas a comparação do vocabulário de uma nação em diferentes tempos é suficiente para se formar uma ideia de seus progressos. Cada ciência tem seu nome, cada noção na ciência tem o seu, tudo o que é conhecido na natureza está designado, assim como tudo o que se inventa nas artes, bem como os fenômenos, as manobras e os instrumentos.”(17)
Daí a possibilidade de fazer uma história da liberdade e da escravidão a partir das línguas(18), ou ainda uma história das opiniões, dos preconceitos, das superstições, das crenças de toda ordem cujos escritos testemunham sempre pior que as próprias palavras(19).
Daí também o projeto de fazer uma enciclopédia “das ciências e das artes” que não seguisse o encadeamento dos próprios conhecimentos, mas se alojasse na forma da linguagem, no interior do espaço aberto nas palavras; é aí que os tempos futuros buscarão necessariamente o que soubemos ou pensamos, pois as palavras, em sua rude repartição, estão distribuídas nessa linha mediana pela qual
- a ciência se emparelha à percepção,
- e a reflexão às imagens.
Nelas,
- o que se imagina torna-se o que se sabe
- e, em contrapartida, o que se sabe torna-se o que se representa cotidianamente.
A velha relação com o texto, pela qual o Renascimento definia a erudição, está agora transformada:
- tornou-se, na idade clássica, a relação com o puro elemento da língua.
Vê-se assim aclarar-se o elemento luminoso no qual comunicam, em pleno direito,
- linguagem e conhecimento,
- discurso bem-feito e saber,
- língua universal e análise do pensamento,
- história dos homens e ciências da linguagem.
Mesmo quando era destinado à publicação, o saber do Renascimento se dispunha segundo um espaço cerrado. A “Academia” era um círculo fechado, que projetava na superfície das configurações sociais a forma essencialmente secreta do saber.
É que esse saber tinha por tarefa primeira fazer falar siglas mudas: visava reconhecer-lhes as formas, interpretá-Ias e retranscrevê-Ias em outros traços que, por sua vez, deviam ser decifrados; de tal sorte que nem mesmo a descoberta do segredo escapava a essa ardilosa disposição que a tornava a um tempo tão difícil e tão preciosa.
Na idade clássica, conhecer e saber se imbricam na mesma trama: para o saber e para a linguagem, trata-se de atribuir à representação signos pelos quais seja possível desdobrá-Ia segundo uma ordem necessária e visível.
Quando era enunciado, o saber do século XVI era um segredo, mas partilhado.
Quando é oculto, o dos séculos XVII e XVIII é um discurso por sobre o qual se colocou um véu.
É que é próprio à mais originária natureza da ciência entrar no sistema das comunicações verbais(20) e à da linguagem ser conhecimento desde sua primeira palavra. Falar, esclarecer e saber são, no sentido estrito do termo, da mesma ordem.
O interesse que a idade clássica confere à ciência,
- a publicidade de seus debates,
- seu caráter fortemente exotérico,
- sua abertura ao profano,
- a astronomia fontenellizada,
- Newton lido por Voltaire,
tudo isso certamente não é mais que um fenômeno sociológico.
Não provocou a menor alteração na história do pensamento, não modificou por pouco que fosse o devir do saber.
Nada explica, salvo certamente ao nível doxográfico em que, com efeito, deve ser situado; sua condição de possibilidade, porém, está aí nesta dependência recíproca entre o saber e a linguagem.
O século XIX, mais tarde, a desfará e lhe ocorrerá deixar em face um da outra, um saber fechado sobre si mesmo e uma pura linguagem tomada, em seu ser e sua função, enigmática – qualquer coisa a que se chama, desde essa época, Literatura. Entre os dois desenvolver-se-ão, ao infinito, as linguagens intermediárias, derivadas ou, se se quiser, decaídas, do saber assim como das obras.
4. Porque se tomou análise e ordem, a linguagem estabelece com o tempo relações até então inéditas.
O século XVI admitia que as línguas se sucediam na história e podiam engendrar-se umas às outras. As mais antigas eram as línguas mães. De todas a mais arcaica, pois que a língua do Eterno quando se dirigia aos homens, o hebreu passava por ter dado nascimento ao siríaco e ao árabe; depois vinha o grego, do qual saíram o copta e o egípcio; o latim tinha na sua filiação o italiano, o espanhol e o francês; enfim, do “teutônico” derivavam o alemão, o inglês e o flamengo(21).
A partir do século XVII, a relação da linguagem com o tempo se inverte:
- este não deposita mais as falas por etapas na história do mundo;
- são as linguagens que desenrolam as representações e as palavras segundo uma sucessão cuja lei elas mesmas definem.
É por essa ordem interna e pelo lugar que reserva às palavras que cada língua define sua especificidade. E não mais pelo seu lugar numa série histórica. O tempo é para a linguagem seu modo interior de análise; não seu lugar de nascimento.
Daí o pouco interesse que a idade clássica conferiu à filiação cronológica, a ponto de negar, contra toda “evidência” – é da nossa que se trata – o parentesco do italiano ou do francês com o latim(22).
A tais séries, que existiam no século XVI e reaparecerão no século XIX, substituem-se tipologias. E são as da ordem.
- Há o grupo de línguas que colocam primeiro o sujeito de quem se fala; depois, a ação que é empreendida ou sofrida por ele; enfim, o agente sobre o qual ele a exerce: testemunham isso o francês, o inglês, o espanhol.
- Do lado oposto, o grupo de línguas que fazem “preceder ora a ação, ora o objeto, ora a modificação ou a circunstância”; o latim, por exemplo, ou o “esclavão”, nos quais a função da palavra não é indicada por seu lugar mas por sua flexão.
- Enfim, o terceiro grupo é formado pelas línguas mistas (como o grego ou o teutônico), “que têm algo dos dois outros, possuindo um artigo e casos”(23).
Mas é preciso compreender bem que não é a presença ou a ausência de flexões que define para cada língua a ordem possível ou necessária de suas palavras. É a ordem como análise e alinhamento sucessivo das representações que constitui o elemento prévio e prescreve utilizar declinações ou artigos.
As línguas que seguem a ordem “da imaginação e do interesse” não determinam lugar constante para as palavras: devem marcá-Ias por flexões (são as línguas “transpositivas”).
Se, em contrapartida, seguem a ordem uniforme da reflexão, basta-lhes indicar por um artigo o número e o gênero dos substantivos; o lugar na ordenação analítica tem em si mesmo um valor funcional: são as linguagens “análogas”(24).
As línguas se aparentam e se distinguem no quadro dos tipos possíveis de sucessão. Quadro que é simultâneo, mas que sugere quais foram as línguas mais antigas: pode-se admitir, com efeito, que a ordem mais espontânea (a das imagens e das paixões) deve ter precedido a mais reflexiva (a da lógica): a datação externa é comandada pelas formas internas da análise e da ordem.
O tempo tornou-se interior à linguagem.
Quanto à própria história das línguas, não é mais que erosão ou acidente, introdução, encontro e mistura de elementos diversos; não tem lei, nem movimento, nem necessidade próprios. Como a língua grega, por exemplo, se formou? “Foram mercadores da Fenícia, aventureiros da Frigia, da Macedônia e da Ilíria, gálatas, citas, bandos de exilados ou de fugitivos que carregaram a base primitiva da língua grega de tantas espécies de partículas inumeráveis e de tantos dialetos.”(25)
Quanto ao francês, é constituído de nomes latinos e góticos, de formas de expressão e de construções gaulesas, de artigos e números árabes, de palavras tomadas de empréstimo aos ingleses e aos italianos, por ocasião de viagens, guerras ou convenções de comércio(26).
É que as línguas evoluem por efeito das migrações, das vitórias e das derrotas, das modas, das trocas; não, porém, por força de uma historicidade que por si mesmas deteriam. Não obedecem a qualquer princípio interno de desenvolvimento; são elas que desenvolvem ao longo de uma linha as representações e seus elementos.
Se há para as línguas um tempo que é positivo, não se deve buscá-lo no exterior, do lado da história, mas na ordenação das palavras, no âmago do discurso.
Pode-se circunscrever agora o campo epistemológico da Gramática geral, que surgiu na segunda metade do século XVII e desvaneceu-se nos primeiros anos do século seguinte.
Gramática geral não é gramática comparada: não toma por objeto, não utiliza como método as aproximações entre as línguas. É que sua generalidade não consiste em encontrar leis propriamente gramaticais que seriam comuns a todos os domínios linguísticos e fariam aparecer, numa unidade ideal e constringente, a estrutura de toda língua possível; se ela é geral, é na medida em que pretende fazer surgir, por sob as regras da gramática, mas ao nível do seu fundamento, a função representativa do discurso – quer seja a função vertical que designa um representado, ou a horizontal que o liga do mesmo modo que o pensamento.
Porquanto faz aparecer a linguagem como uma representação que articula outra, ela é, de pleno direito, “geral”:
é do desdobramento interior da representação que ela trata.
Visto, porém, que essa articulação pode fazer-se de muitas maneiras diferentes, haverá, paradoxalmente, diversas gramáticas gerais: a do francês, do inglês, do latim, do alemão etc.(27).
A gramática geral não visa a definir as leis de todas as línguas, mas a tratar, por etapas, cada língua particular, como um modo de articulação do pensamento sobre si mesmo. Em toda língua tomada isoladamente, a representação se provê de “caracteres”.
- A gramática geral definirá o sistema de identidades e de diferenças que esses caracteres espontâneos supõem e utilizam.
- Estabelecerá a taxinomia de cada língua. Isto é, aquilo que funda em cada uma delas a possibilidade de sustentar um discurso.
Daí as duas direções que ela necessariamente assume. Visto que o discurso liga suas partes como a representação seus elementos, a gramática geral deverá estudar o funcionamento representativo das palavras umas em relação às outras:
- o que supõe, de início, uma análise do liame que vincula as palavras conjuntamente
- (teoria da proposição e singularmente do verbo),
- depois uma análise dos diversos tipos de palavras e da maneira como elas determinam a representação e se distinguem entre si
Todavia, já que o discurso não é simplesmente um conjunto representativo mas uma representação reduplicada que designa uma outra – aquela mesma que ela representa -, a gramática geral deve estudar a maneira pela qual as palavras designam o que elas dizem,
- primeiramente no seu valor primitivo (teoria da origem e da raiz),
- depois, na sua capacidade permanente de desvio, de extensão, de reorganização (teoria do espaço retórico e da derivação).